Ele e ‘ela’

seg, 24/02/14
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Outra semana agitada: começou com um incrível show de samba, quando tive a oportunidade de ver Diogo Nogueira, Alcione, Martinho da Vila e Roberta Sá cantarem juntos um repertório impecável (de “O mundo é um moinho” a “E o mundo não se acabou”); e terminou em pizza – um programa que eu estou aos poucos retomando nas noites paulistanas de domingo. Mas no meio disso, claro, teve muita coisa – desde gravações incríveis do “Video Show” (a foto ao lado pode dar uma dica) ao um show de Tiago Abravanel e a Big Time Orchestra, que quase emenda no bloco Sovaco do Cristo, que passa na janela da minha casa no Rio… E ainda quase teve Elton John (fiquei preso num trabalho e não pude ir). Tudo isso, porém, descansa à sombra de um filme que vi esta semana e que “acabou” comigo. Veja bem: no melhor dos sentidos.

Admito que eu já fui preparado para gostar de “Ela”. Spike Jonze, gente! “Quero ser John Malkovich”, gente! “Adaptação”, gente! “Onde vivem os monstros”, gente! E não vou nem puxar a lista de vídeos aqui, para não me alongar (mas se você quiser dar uma espiadinha no que ele fez com Björk em “It’s oh so quiet”, ou mesmo nesta lista organizada pela revista “Paste”, fique à vontade). Mas quantas vezes você não foi conferir coisas que “sabe que vai gostar” e acaba se decepcionando? Sim, mesmo os grandes mestres podem vir às vezes com um trabalho menor…

Mas a expectativa para “Ela” era grande, não apenas por conta de Jonze, mas também por Joaquin Phoenix – que é, depois da inesperada morte de Philip Seymour Hoffman, alguns dias atrás, o número um da minha lista de atores favoritos de Hollywood (para reforçar meu argumento, leia aqui o que escrevi sobre sua participação em “I’m still here”). E depois ainda tinham os trailers – o que era aquilo que a gente estava vendo? Um cenário meio futurista, mas não tanto, onde Phoenix conversava com Scarlett Johansson (aquela voz só poderia ser de Scarlett Johansson!), mas através de um objeto que parecia ser – como li em algum lugar – uma cigarreira retrô? Eu estava contando os dias para ver isso no cinema.

Este dia chegou na semana passada. E qual é meu veredicto? É simplesmente o melhor filme dos últimos… 10 anos? 20 anos? Eu arriscaria, para ser mais preciso, o melhor filme dos últimos 15 anos – sim, isso mesmo, o melhor filme desde que “O show de Truman” foi lançado.

Guarde seu choque. Quando falo de “melhor filme” nesse caso, estou menos interessado em conquistas técnicas (Alfonso Cuarón, com seu “Gravidade“, cala todo o argumento recente sobre isso), em possibilidades narrativas (Kathryn Bigelow já chegou na frente nessa área), ou mesmo em maneiras de emocionar uma plateia (a honra aqui vai, claro, para Ang Lee). Mas fui buscar a referência de “O show de Truman” – que, visto com os olhos de hoje, nem é tão bom assim – porque, assim como este trabalho de Peter Wier (com Jim Carrey no papel principal), “Ela” é um filme presciente. Não apenas um filme do seu tempo, mas que olha ali na esquina e prevê, com absurda precisão (e uma boa pitada de ironia), como as coisas vão ser daqui a pouco.

No caso do “Show de Truman”, se sua memória precisa de um sacode, a grande “crônica social” do filme era a chegada – na época, ainda eminente – dos “reality shows”, que mudariam totalmente não só nosso universo do entretenimento como também a maneira que reagimos à sociedade. O grande estouro dos “realities” estava prestes a acontecer – aqui no Brasil, eu mesmo protagonizei, em 2000, um pequeno fenômeno chamado “No Limite”, que já veio de uma primeira onda de uma grande tendência na televisão europeia e americana. E “O show de Truman” antecipou – com inteligência, beleza, e até certa poesia – como nós todos passaríamos a olhar para a vida alheia (e para a nossa também!).

E como “Ela” capta o momento que estamos vivendo, ou melhor, como o filme faz o mesmo jogo entre nosso presente ridículo e um futuro ainda mais constrangedor? Colocando em evidência nossa relação cada vez mais superficial com outros seres humanos nessa era de redes sociais. Antes que você me chame de velho, gostaria de lembrar que estudos recentes apontam que até mesmo os adolescentes já estão rejeitando o Facebook. Em favor de novas (e ainda mais “interativas” e “rápidas” e “superficiais”) redes sociais – é verdade.

Mas quando celebro o poder da fina ironia de “Ela” não quero levantar bandeira nenhuma contra essas mesmas redes sociais que temos hoje. Se não faço parte de nenhuma delas, não é, como já me expliquei aqui, porque, para usar um argumento dos mais comuns na internet, “eu acho ridículo” (já reparou como, uma vez que não existe nuance numa “conversa” na internet, ou as pessoas “se amam” ou “se odeiam”? Ou elas conhecem “a pessoa da vida delas” ou então se acham no direito de te chamar de “ridículo” – para usar a expressão mais branda, que pode ser aprovada pelas leis de decoro deste espaço -, uma vez que estão protegidas pela falsa coragem que o anonimato do universo virtual proporciona? Mas eu divago…). Não estou nas redes sociais, insisto, porque não teria tempo de me dedicar competentemente a elas. Há uma boa chance de eu lançar, em breve, um Instagram – mas não quero criar falsas expectativas: quando isso acontecer mesmo, você saberá primeiro aqui!

Retomando: o que eu acho incrível em “Ela” é que Spike Jonze tem o poder de se dirigir às próprias pessoas que poderiam se encaixar no personagem de Phoenix – o solitário Theodore, que ganha a vida escrevendo cartas emocionantes para gente que não consegue exprimir suas emoções oferecerem a entes queridos – e, ao mesmo tempo, rir delas, ter pena delas, e olhar com candura esse destino tão infeliz que as aguarda. Sim porque “Ela” é sobre uma história de amor infeliz.

Não estou aqui contando o final – “brigada do spoiler”, pode baixar a guarda. Na verdade, o arco do romance de Theodore por Samantha é bem convencional e sem surpresas. Um namoro como esse já foi contado inúmeras vezes na tela do cinema – e deve estar acontecendo hoje à noite mesmo, em qualquer novela de televisão que você escolher para assistir. O único detalhe é que Samantha não é uma pessoa. É um OS. Traduzindo, “ela” é um “sistema operacional” – ou, para pegar emprestado a sempre boa definição do Wikipedia: “um programa ou conjunto de programas cuja função é gerenciar os recursos do sistema, fornecendo um interface entre o computador e o usuário”. No caso, Theodore é o usuário. E Samantha, o OS.

Quando ouvimos primeiro a voz de Theodore, por alguns segundos achamos que estamos escutando um OS. A tela do computador vai enchendo de frases ditadas por alguém que não vemos – e que poderia ser muito bem do próprio OS daquele terminal. Mas logo vemos o sempre surpreendente rosto de Joaquin Phoenix. Seu personagem mora numa Los Angeles estranha – que logo detectei que era Shangai -, veste-se de maneira estranha (quando calças com cintura tão alta entrarem na moda, eu me retiro dela com orgulho), e tem amigos estranhos. Tudo banhado por cores não menos estranhas, que são simultaneamente fortes e “pastéis”. Nossa reação a essa estranheza toda, no entanto, passa rápido. E logo nos acostumamos a ela – bem como a tudo de inesperado que vamos encontrando no filme.

Um dia Theodore compra um novo OS – o primeiro com inteligência artificial! – e imediatamente começa a conversar com Samantha (cuja voz, lembrando, é de Scatlett Johansson). Ainda se recuperando do final de seu casamento com “a mulher de sua vida”, Catherine (a sempre ótima Rooney Mara), ele é presa fácil para a sedução de Samantha – e que está lá principalmente para isso, para seduzir. Ou não? Jonze, com seu roteiro impecável, deixa no ar a questão tipo “ovo ou galinha”: terá Theodore provocado aquela paixão em Samantha ou “ela” com segundas intenções se aproveitou do coração fragilizado de Theodore? Como em uma boa história de amor, nunca vamos saber…

E também como numa boa história de amor, toda a paixão só é selada depois de uma grande noite de sexo! Novamente, contamos com a genialidade do texto de Jonze para que a cena não seja um esquete de humor fácil. A evolução do erotismo entre Samantha e Theodore é tão natural quanto a de dois adolescentes se descobrindo pela primeira vez – e não posso negar que tudo trouxe a mim mesmo algumas memórias antigas… Mas, melhor do que isso, ter transado com uma OS traz consequências não baratas, mas filosóficas. Samantha se perguntando o que significa ter um corpo que te dá prazer é um dos momentos mais sublimes de “Ela”. Parece estranho mas, como já coloquei, você se acostuma a tudo neste filme.

Jonze faz com que a gente entre fácil nesse universo absurdo – e ria dele não com deboche, mas com propriedade. Quando Theodore conta para sua melhor amiga, Amy (Amy Adams), que esta tendo um caso com sua OS, ela responde que sabe de várias histórias assim, até mesmo – na melhor piada do filme – o de uma amiga que já está um passo à frente: está traindo alguém com um OS! E quando o colega de trabalho de Theodore lhe apresenta sua nova namorada – em carne e osso -, e sugere que todos façam um programa juntos (o casal “de verdade”, mais Theodore e Samantha), o que vemos a seguir é uma adorável tarde onde os “quatro” se divertem como se o fato de um elemento da “turma” ser um OS fosse a coisa mais normal do mundo.

E é, não é? Ou estamos muito perto de que seja normal uma coisa dessa. E este é o poder de “Ela”. Jonze fez uma brilhante crítica social – que em vários momentos me lembrou o último livro de Dave Egger, já comentado aqui - sem nenhum escracho, sem nenhum sarcasmo. Pegando emprestado de Nelson Rodrigues, essa é a vida como ela vai ser – já já. Não necessariamente mais alegre ou mais triste – pergunte às pessoas que você conhece (ou até a você mesmo, se for o caso) se os relacionamentos virtuais estão melhorando a vida delas ou as deixando mais tristes: aposto que você vai ter um bom equilíbrio de respostas boas e ruins. Por que a vida é assim – e essa é a vida que temos agora. Boa sorte.

Aliás, boa sorte para “Ela” também, que concorre a cinco Oscars, na festa do próximo domingo, mas que provavelmente só vai levar um – o de roteiro original. Por mim levava os cinco – inclusive o de melhor filme. E eu ainda dava um para Scarlett Johansson pela melhor interpretação fora das câmeras de todos os tempos. E mais um Oscar pela visão plasticamente mais bonita de um futuro próximo. E outra estatueta por ser o filme que melhor nos faz chorar sem melodrama. E um prêmio ainda maior por respeitar a inteligência de quem o assiste e ainda nos fazer pensar dias e dias depois de sair do cinema. E o Oscar de todos os Oscars para Jonze e sua elegante maneira de nos dizer que os dias que virão serão ainda mais solitários do que esses que vivemos…

 

O refrão nosso de cada dia: “Song to siren”, This Mortal Coil - na mais pura associação de ideias, “Ela” me fez lembrar desse clássico da minha juventude. Mas mesmo que você não tenha os meus 50 anos, nem as minhas lembranças dos primeiros amores, eu duvido que não vai se emocionar com essa música. “Sail to me, sail to me, let me enfold you”…



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