Dave Eggers escreveu um livro para você

qui, 30/01/14
por Zeca Camargo |
categoria Literatura

Imagine um mundo onde todas as suas opiniões se resumem a uma carinha sorrindo ou uma carinha enrugada – como se estivesse contrariada. Melhor ainda! Sensores de movimento facial identificam se você está fazendo a primeira cara ou a segunda e conseguem transmitir, na sua rede social, exatamente o que você está, hum, “sentindo”. Espera, que fica melhor! Neste mesmo mundo, quando você sente uma grande paixão, não é preciso perder tempo com essas bobagens que a gente chama de palavras: é só se declarar com uma dessas mesmas carinhas, só que com os olhos substituído por corações! Não é uma maravilha?

O quê? Este mundo já existe? As pessoas já estão se comunicando assim? Será possível? Mas esse é o mundo da ficção, criado por Dave Eggers no seu novo livro “The Circle”! (Ainda inédito no Brasil, mas com lançamento anunciado para o segundo semestre, pela Companhia das Letras). Não pode ser? Já chegamos neste nível?

Claro que não. Mesmo para um ser na era mesozoica como eu, que até hoje se recusa a ter uma conta no Facebook (e, é bom lembrar, também não tenho no Twitter nem no Instagram – se você está me seguindo em alguma dessas redes sociais, tem alguém te enganando) – enfim, mesmo para alguém tão fora do “círculo” como eu, dá para saber mais ou menos como as pessoas estão se comunicando. E acho que talvez ainda não chegamos no estágio que Eggers – autor de tantos livros bons, entre eles um dos 20 melhores títulos que eu já li em toda minha vida, “O que é o quê?” (Companhia das Letras) – descreve tão bem em “The Circle”. Mas já vamos chegar. Pode esperar…

A empresa que é a personagem central de seu novo livro é, intencionalmente, muito parecida com a Google – e é, claro, de propósito. Mas, num futuro não muito distante, é como se a Google tivesse dado um passo além – ou ainda, como se ela tivesse se tornado obsoleta com o surgimento de uma outra empresa, “The Circle” – que vou passar a chamar aqui de Círculo (provavelmente o nome que será usado na tradução para o português). O “truque” do Círculo foi ter conseguido convencer as pessoas a assumirem uma identidade verdadeira na internet. Todos os “circlers” – como são chamados os membros dessa comunidade virtual – entram para a rede com seus dados da vida real. Não há pseudônimos, perfis falsos, emails de mentira – mais ou menos como é agora (onde, só insistindo no assunto, já que “apareceu” um Instagram com o nome Zeca Camargo recentemente, e vários amigos vieram perguntar se era eu mesmo, é possível qualquer mané criar um perfil meu – ou seu – e enganar um monte de pessoas). Com isso, não existem mais fraudes na internet, todas as pessoas pagam suas contas, suas multas, todo mundo é responsável por tudo que faz.

Seduzidos por essa “maravilha da transparência”, as pessoas deixaram suas redes sociais antigas e migraram para o Circle – e vivem feliz, sonhando um dia, quem sabe, poder trabalhar nessa empresa tão legal. Mae, a personagem principal que conhecemos logo na primeira página do livro, acaba de realizar este sonho. Graças a um contato com uma amiga da faculdade – que agora pertence ao círculo mais superior e exclusivo de executivos da empresa -, ela agora faz parte desse time de 12 mil pessoas privilegiadas. Não sabemos exatamente onde fica essa sede do Círculo, ou mesmo em que época se passa a história que estamos lendo. Mas os paralelos com nosso mundo de hoje são inevitáveis. E, à primeira vista, sedutores. E nem um pouco improváveis…

Na qualidade de quem acompanha de longe as migrações nas redes sociais, foi engraçado ver, nesses últimos anos, o entusiasmo com que as pessoas abraçavam primeiro uma coisa chamada Frienster, depois MySpace (alguém ainda tem banda com site lá?), Orkut (lembra de Orkut?), e finalmente Facebook – que pelo que li recentemente, os adolescentes já estão achando que é “coisa de velho”. (É bom lembrar essa cronologia, especialmente para quem acredita que certas empresas são insubstituíveis…). Assim, o surgimento de uma “nova” rede social, ainda que na ficção, me pareceu razoavelmente verossímil. Mas as semelhanças entre a história de Eggers e a nossa vida real – se é que uma vida virtual pode ser chamada de real, mas eu divago… – não param por aí.

Excitada como está por finalmente ser aceita na empresa mais “cool” do mundo, Mae não consegue dizer não aos pedidos cada vez mais bizarros que seu chefes e colegas de trabalho fazem a ela. De início, ela é designada para trabalhar com atendimento ao consumidor – algo chato como o cão, mas uma espécie de batismo para quem quer se dar bem no Círculo. A tarefa é simples e enfadonha: atender a perguntas e reclamações com textos pré-redigidos (são inúmeros, conforme as consultas mais frequentes), acrescentando um toque pessoal a cada resposta. Ah! E cobrar uma avaliação do cliente – que nunca é menor do que 95 (numa escala de 0 a 100). O objetivo, claro, é ganhar um 100. Se o cliente dá um 96, ou mesmo um 99, o atendente deve responder a ele e ver o que pode ser feito para sua avaliação melhorar. Sim, é uma situação absurda – mas eu pergunto: você já passou por alguma coisa parecida? Hum… Sei… Só para saber…

Mae consegue se sair muito bem logo nos primeiros dias – com uma média de avaliação em torno de 98. Excelente para alguém que esta começando! – é o que todo mundo diz pra ela, inclusive a amiga que a contratou. De tão competente que é, Mae vai recebendo novas tarefas, cada vez mais exigentes. Como por exemplo, subir alguns pontos no raking de “comunicabilidade” da Circle – isto é, responder a tudo quando é “zing” (uma espécie de mensagem de texto ultra moderna, desenvolvida pelo Círculo), mandar carinhas com sorrisinho (tipo, hum, “like”, ou “curti”) para cada coisa legal que ela vê e quer dividir com os outros, e participar (com presença física e comentários posteriores) no maior número possível de eventos coletivos, campanhas humanitárias e seminários “educativos” que acontecem dentro do Círculo.

Disposta a sair da “sarjeta” – sua “posição social” nesses primeiros dias, está abaixo do número 10.000 -, Mae se desdobra para estar conectada o tempo todo. E nós, leitores, acompanhamos sua “escalada” com o entusiasmo de quem vê um esporte olímpico. No princípio ela acha tudo um pouco esquisito – como talvez você acharia (e eu, menos conectado ainda do que você, posso garantir, certamente acho). Mas depois de um episódio hilário, no qual ela é chamada na sala de seu chefe porque “magoou” o organizador de um encontro cultural sobre Portugal – o “sistema”, vasculhando todas as informações do computador de Mae, descobriu algumas fotos de Lisboa e imediatamente a “linkou” a um grupo de pessoas com “interesse em Portugal”.

O tal organizador não está bravo – está triste! Magoou! Mae realmente ofendeu seus sentimentos. Como alguém pode fazer parte do Círculo, “gostar” de Portugal, e não ir ao seu evento? Mae precisa estar mais conectada com outros, lembra seu chefe direto. E precisa pedir desculpas ao “pessoal de Portugal”. O que ela faz numa carta oficial, que é distribuída para todo mundo, com um tom de “Olha só galera: Mae se arrepende do que fez e gosta de Portugal”. Todo mundo, como já era de se esperar, manda uma carinha sorrindo para ela. E Mae segue na sua caminha rumo à popularidade máxima!

Mas os pedidos do Círculo não param. Com apenas algumas semanas de casa, ela ganha um “óculos retinal” (sim, que lembra muito o Google Glass), e com ele deve responder perguntas sobre preferências de consumo. Como tudo no Círculo, ela não é obrigada a nada, mas… Se responder a quase 100 perguntas dessas por dia, seu ranking de integração só vai subir. E claro que Mae logo está respondendo 100, 200, 300 perguntas “mercadológicas” por dia. E já que ela está tão bem assim, por que não apresentá-la ao “ranking de influência de compras”?

Funciona assim: você vê um produto, diz que gosta dele, manda para as pessoas da sua rede, um algoritmo calcula quantas pessoas gostaram dele também, e o quanto isso significaria potencialmente em compras para a empresa que o produz – o que imediatamente reflete no ranking de Mae. Em um piscar de olhos – quase que literalmente -, Mae passa a ser uma das pessoas mais influentes de toda a companhia. E por que parar por aí? Por que não ter um vida totalmente transparente, onde todo mundo pode saber o que você está fazendo, curtindo (ou não), vivendo?

As consequências de tudo isso na história de Eggers, como você pode imaginar, são desastrosas. Isto é, para quem não faz parte do Círculo… Mas se você é da “comunidade”, você vai achar isso tudo SUPERCOOL! E não podia ser diferente! Como não achar mega legal uma coisa que todo mundo participa, que todo mundo acha tudo bom, onde todo mundo tem uma avaliação de 99, e todos seus “amigos” gostam das mesmas coisas que você? Não é o máximo? Bem…

Como uma espécie de “grupo de controle”, Dave Eggers nos apresenta também os pais de Mae e um antigo namorado dela – que por instinto (e pela necessidade de uma boa ficção de ter antagonistas) não acham que fazer parte do Círculo é a coisa mais legal do universo. Seus pais até ficam encantados e orgulhosos de a filha trabalhar lá num primeiro momento – especialmente por que a empresa lhes oferece uma cobertura de saúde INCRÍVEL! Mas na medida em que Mae vai ficando mais envolvida com a empresa, ela também fica cada vez mais distante dessas pessoas. E o final de tudo isso… Bom, não quero tirar o prazer de quando você for ler o livro.

Eggers, mais uma vez, faz uma crônica impecável da vida moderna, que só tem uma falha: às vezes dá a impressão de ser escrita para um bando de imbecis. Sua narrativa é tão didática, e num certo sentido tão fabulosa (como nos contos de fadas), que em mais de uma passagem me senti irritado, como se aquele livro, pelo seu simplismo, não fosse para um leitor com ambições maiores. Mas aos poucos fui vendo isso como uma qualidade de “The Circle”: se Eggers quer que sua mensagem chegue para pessoas que estão acostumadas, já hoje em 2014, a se comunicar primordialmente com “emoticons”, é melhor ele manter a sua história bem simples – mas simples mesmo. Aliás, como um conto de fadas (e, no caso do Circle, de bruxas também!).

Pode-se até contra-argumentar, como Margaret Atwood sugere na sua brilhante resenha no “New York Review of Books”, que quem já está nesse estágio de conectividade (por exemplo, no Face!) certamente não passa nem perto de um livro como “The Circle”. E é verdade. Outro dia, apenas para ilustra, estava com um grupo de pessoas bastante esclarecidas, e um amigo de um amigo que estava lá. Na hora da “rodada clássica” da pergunta sobre o que cada um andava lendo ultimamente, esse cara respondeu na lata: “Olha, livro, livro mesmo… acho que eu nunca li nenhum”. Perguntei, por curiosidade a idade do garoto… 26 anos…

Mas eu não estou aqui para crucificar ninguém… Vai que eu faço isso e todo mundo me manda uma carinha franzida! Tudo que eu quero, modestamente, é sugerir uma boa leitura. Que possa te distrair enquanto você não está cercado – ou cercada – de amigos. Tridimensionais.

O refrão nosso de cada dia: “Nice weather for the ducks”, de Lemon Jelly – uma das bandas mais eletrônicas mais injustamente esquecidas do começo deste século, o Lemon Jelly tem bem mais de uma faixa hipnótica e genial. Se você não conhece, comece por aqui. Por que eu escolhi essa faixa? Porque de certa maneira o refrão que diz “all the ducks are swimming in the water” (“todos os patinhos estão nadando na lagoa”, em português), me fez lembrar os personagens do livro de Dave Eggers que fazem parte do Face – perdão, do Círculo…

 



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