O que eu leio quando leio Fernanda Torres
Sei… O cara fica reclamando que não tem tempo para nada e aí vem dizer que está lendo livro? Pois é… eu tenho esta mania: se eu estou parado (num táxi, numa carona, num avião – coisas que, claro, acontecem com boa frequência no meu dia a dia), eu não aguento e pego um livro para ler. De certa maneira, ler é uma atividade mais fácil de adaptar a uma rotina corrida do que, por exemplo, ver um filme. (Eu poderia escrever um post inteiro sobre como é mais simples interromper e continuar uma leitura do que fazer o mesmo com um filme – que, ao contrário de uma obra literária, é concebida para ser absorvida de uma só vez… mas você sabe o que acontece quando eu já divago no primeiro parágrafo…). Por isso, anuncio com orgulho que, ao mesmo tempo em que brinco que “nunca trabalhei tanto em minha vida” – a piada que faço com meus amigos agora é que, ao sair do “Fantástico” e abraçar o “Vídeo Show”, eu continuo fazendo um programa semanal… só que é diário! -, eu estou conseguindo ler alguns dos melhores lançamentos do ano, aqueles que as editoras espertamente esperam para lançar na época das compras de Natal.
E este ano os livros são apenas bons, no sentido mais “literário” do elogio. Eles estão cada vez mais bonitos – uma tendência que, na minha torcida, chegou para colocar o livro tradicional com certa vantagem sobre a versão digital. Alguns lançamentos são de encher os olhos. Como uma nova versão de “Decameron”, que a Cosac Naify lançou recentemente, e que resolveu um impasse da leitura moderna: como despertar o interesse de um leitor atual por uma obra do século 14? A solução foi convidar o artista plástico Alex Ceverny para fazer belíssimas ilustrações para os contos de Giovanni Boccaccio. Ou, se você quiser uma leitura que não seja de ficção, mas que fale também de tempos antigos, corra atrás de “A história do mundo em 100 objetos” – que finalmente foi lançada no Brasil (pela Intrínseca) e é um sonho para os olhos… e para a sua inteligência.
Acredite: este livro veio de uma série de rádio. Isso mesmo: lembra de rádio? Não serve só para tocar música – e a BBC 4 (que, como o número indica, não é nem a estação mais importante do conglomerado da comunicação britânica), em 2010, colocou no ar uma série incrível em que Neil MacGregor, diretor do British Museum, escolhia 100 objetos do acervo do museu (certamente um dos mais importantes do mundo). Foi um enorme sucesso – e isso sem mostrar nenhum dos objetos escolhidos (rádio, né?). Quando o livro foi lançado no Reino Unido, foi um “bestseller” – e merece repetir essa trajetória aqui no Brasil. É uma viagem fascinante: começa com a “múmia de Hornedjitef” (sim, Egito, ano 240 antes de Cristo) e termina com uma lâmpada e um carregador solar, produzido na China (Shenzen), em 2010. Parece simples, mas os outros 98 objetos que conhecemos ao longo dela transformam a jornada numa experiência incrível. Uma moeda de ouro da Turquia, um dragão de Jade da Ásia Central, relevos de pedra encontrados no norte do Iraque, um banco de madeira da República Dominicana… A lista é enorme e cativante. Imperdível!
E, ainda nos livros “caprichados”, não posso deixar de indicar “S.”, o primeiro livro de J.J. Abrams (Intrínseca). Escrito em parceria com Doug Dorst, ele é parte quebra-cabeças, parte “caça ao tesouro”, parte aventura literária. Incrível como o cara que nos fez viajar (e como!) visualmente – “Lost”, na TV, e “Além da escuridão – Star trek”, no cinema, para citar apenas alguns trabalhos – agora encara o desafio de nos encantar também apenas com esse objeto tão “arcaico” que é o livro. E se dá tão bem… (Em nome da transparência, devo dizer que “S.” não é para ler no carro ou no avião… se tem algo que me sequestra a atenção ultimamente quando estou em um raro momento quieto em casa é este livro exigente!).
Mas e o “bom e velho” livro – daqueles que você simplesmente abre e começa a ler? Respire aliviado: há uma boa safra deles nas prateleiras também, pode procurar. Comece com, por exemplo “Grande irmão”, de Lionel Shriver (Intrínseca). Inspirada pela história de obesidade mórbida de seu irmão, a autora do sensacional “Precisamos falar sobre o Kevin” conta a vida emocionante de alguém que simplesmente não consegue vencer a obsessão com comida. O assunto – em tempos de “Medida Certa”- já é interessante, mas com o talento de Shriver ele adquire uma outra dimensão: a de um narrativa brilhante.
Sou um apaixonado por autores portugueses – sempre volto de Lisboa com alguns quilos a mais na bagagem depois de passar nas incríveis livrarias do Chiado (sem falar na Cotovia, do Bairro Alto…). E agora a editora Leya parece ter ouvido minhas preces – e vem lançando, dentro de um selo chamado “Novíssimos”, uma série de novos autores portugueses. Comecei escolhendo pelo título: como resistir a um trabalho chamado “No meu peito não cabem pássaros”? Seu autor, Nuno Camarneiro, não conta apenas uma história, mas três, aparentemente independentes, mas inesperadamente conectadas. Se você nunca lei um livro português – nem mesmo “Equador”? – comece então por esse para entender minha paixão pelos autores da “Terrinha”. De Novíssimos, já li também “Para cima e não para o norte”, de Patrícia Portela, e agora estou devorando “O teu rosto será o último”, de João Ricardo Pedro. Estou exatamente no momento em que ele descreve um lugar ordinário, a barbearia Playboy, mas que é frequentada senhor Walter, cuja calvície era difícil perceber se era devida a “uma precoce queda de cabelos” ou ao “permanente e desmesurado crescimento da caixa craniana”… Estou encantado com João Ricardo Pedro – e lamentando o fato de não ter conseguido passar por Lisboa este ano: acompanhado de “O teu rosto”, teria sido uma viagem e tanto…
Num ritmo bem mais lento, estou encarando também aquele que talvez seja o livro de não-ficção mais interessante do ano: “Longe da árvore”, de Andrew Solomon (Companhia das Letras). Com suas mais de 800 páginas (e mais 200 de referências), ele está mais para “livro de cabeceira” do que algo que você leva na mala de mão… Mas esse estudo impressionante sobre filhos que não saem, digamos, como seus pais esperam – prodígios, esquizofrênicos, gays, surdos, anões… – é mais que um exercício “voyerista”: é uma belíssima reflexão sobre aceitação, e sobre a própria essência da família, e da relação entre pais e filhos. Se preferir ficção – e não tiver medo de segurar um volume de quase 500 páginas – meu conselho é que você passe um bom tempo com “A arte do jogo”, de Chad Harbach (Intrínseca), que li em inglês sem a menor expectativa no ano passado – só me interessei por um livro sobre beisebol porque as críticas eram muito boas – e que foi uma grata surpresa. Por isso, agora que ele foi lançado aqui, faço questão de adicioná-lo às minhas recomendações de fim de ano (e não deixe o tema desanimar você não: eu venci essa barreira e me dei bem!).
Mas OK, digamos então que você anda meio sem tempo para tomos “pesados” como estes que acabei de sugerir… Então mergulhe na boa safra de autores brasileiros. Acabei de ler “Barreira”, de Amilcar Bettega (Companhia das Letras), que me encantou muito além do que minha já conhecida paixão por Istambul poderia esperar. E estou, por recomendação de um amigo em cuja opinião confio, encarando “O drible”, de Sérgio Rodrigues (Companhia das Letras) – se me surpreendi com um livro sobre beisebol, por que não um sobre futebol? O esporte, porém, é só um belo (belíssimo) pano de fundo para a reconstrução de uma história entre pai e filho. Não estou nem na metade, mas já dou o meu aval!
E Fernanda Torres, onde fica em tudo isso? Não, usar o nome dessa atriz conhecidíssima – e reconhecidíssima – não foi só um truque para atrair mais leitores (considerando a dispersão de atenção dos internautas, jamais conseguiria fazer com que eles chegassem até este parágrafo apenas com a força do nome de Fernanda!). Deixei “Fim” (Companhia das Letras) para o final do texto – e não apenas para tirar vantagem de um trocadilho infame. Quis falar de sua estreia na ficção por último para reforçar uma tecla em que bato já há algum tempo – e que a qualidade de “Fim” só vem reforçar: a de que não existe limites para o talento.
Mesmo depois de colecionar elogios como cronista (as evidências estão espalhadas pela “Folha de S.Paulo”, “Veja Rio” e “piauí”), não duvido que haja gente que tenha perguntado: mas o que esta atriz está fazendo se metendo a escrever livros? É natural. Para dar um exemplo em outra escala, enfrentei um questionamento parecido quando deixei o jornalismo de lado por um tempo e fui fazer um programa de entretenimento. Não, não estou falando do momento atual, quando troquei o “Fantástico” pelo “Vídeo Show”, mas quando fui apresentar um certo programa chamado “No Limite”, há mais de 12 anos! Quem esse jornalista pensa que é? – eu lia com frequência. Ora, alguém que tem vontade de experimentar outras coisas – e investir seu talento em novas áreas, ajudado pela competência que já conquistou em outras.
Neste momento atual da minha carreira, esse questionamento dúbio ameaçou um retorno, mas acho que meu entusiasmo com o novo projeto deixou logo claro que a opção era minha – e abraçada com vontade! Sim, é possível fazer bem coisas que as pessoas não esperam de você. Mas deixo aqui esse paralelo para voltar a falar do ponto de partida dele: Fernanda Torres, escritora. Eu não diria que sua conquista a este leitor foi fácil. Talvez eu mesmo tivesse dúvidas quanto ao que ela – que já tinha provado ser não só competente na interpretação, como extremamente popular (e divertida) nas suas criações – tivesse a oferecer no que diz respeito às palavras que saíam não de sua memória, emprestada de outros autores, mas de sua inspiração genuína. Mas aos poucos fui ficando encantado com seus textos – e quando “Fim” chegou não hesitei em adquiri-lo.
Comecei a lê-lo ontem e, mesmo cansado como estava (pensa que é mole gravar 5 programas em dois dias?), atravessei meu domingo em sua companhia – ou melhor, na companhia de Álvaro, Neto, Ciro, Ribeiro e Sílvio… e mais uma galeria de personagens riquíssimos que orbitavam em torno desse clube de amigos. “Fim” é divido em cinco partes – mais um epílogo necessário e ao mesmo tempo inesperado. Cada um deles foca em um desses amigos às vésperas de ele encarar a morte. Mulherengos e devassos (mesmo o Ribeiro…), cada um à sua maneira, eles constroem o retrato de uma geração que talvez a própria autora só tenha conhecido por tabela – quem sabe até por alguns de seus “velhos” a quem Fernanda dedica os livros. Mas são personagens muito vivos – apesar da decadência. E entrelaçados de uma maneira esperta, envolvente.
Não deixa de chamar a atenção também o fato de ser uma mulher que dá voz a esses homens tão ordinariamente especiais. As mulheres de “Fim” – e elas são muitas, e importantes (inclusive uma certa Maria Clara, bem no final) – vão surgindo com seus coloridos enredos atormentados, mas raramente independentes de seus homens. Só uma vez ou outra ouve-se um sotaque genuinamente feminino – como quando Ruth, a mulher que Ciro literalmente enlouqueceu, perdeu a virgindade:
“Sérgio lhe levara o hímen, é certo, mas não arranhara em nada a inquietação. É a paixão que deflora as mulheres, é ela que desperta os sentidos, o olfato, o tato, o paladar, a visão, o arrepiar dos ouvidos. Ruth permanecia intocada. Quem a iria resgatar?”
Todas as história de “Fim” são trágicas, como é trágica a vida miúda. A das calçadas sobre as quais um velho (Álvaro) não consegue andar. A das sarjetas onde outro velho – este, tarado (Sílvio) – não acredita que vai morrer. A do vôlei na praia. A do homem vestido de mulher na televisão, que assusta o telespectador dos anos 70. A das salas de necrotério. A vida da gente. Por tudo isso, li “Fim” com um prazer imenso. Mas a lembrança de que a autora ali é uma atriz famosa estava sempre a rondar.
E eu me perguntava: o que estou lendo quando leio um livro dessa atriz? Um “divertissement”? Uma proposta “séria”? Uma derivação de seu trabalho nos palcos e na TV? Uma inspiração passageira? Ou simplesmente um bom livro? Não estamos nunca livres das nossas próprias referências. Nosso inconsciente se acostuma a ver uma pessoa de um jeito e dá um trabalho enorme encará-la de outra maneira. Mas é por isso que insisto que maior do que a história de quem faz um produto cultural, é o próprio resultado que finalmente chega a você. Só se concentrando nele você pode aproveitar o que está sendo oferecido sem um viés. E, no caso de “Fim”, o que você tem finalmente nas mãos é um dos melhores livros que eu consegui ler nessa temporada tão intensa da minha vida.
O refrão nosso de cada dia – “Girlfriend”, Icona Pop - em algum lugar do mundo pop, Kate Perry está se perguntando: por que eu não gravei esta música antes? Querida Kate, que eu gosto tanto: as meninas do Icona Pop – que talvez tenham feito o disco mais dançante de 2013 – chegaram lá antes… Se liga…