A mulher que inventou o beijinho no ombro
Janeiro de 2044. O Rio de Janeiro para por conta de uma grande estreia no palco da multi arena recém-inaugurada sobre o arquipélago das Cagarras, na frente do que era a praia de Ipanema – hoje, o maior complexo de entretenimento que a cidade já viu. O musical, anunciado como o mais incrível evento de entretenimento desta metade de século (ou quase isso), custou cerca de meio bilhão de reais, e promete contar a saga da cantora que revolucionou a música popular brasileira lá pela década de 2010. Os ingressos são disputados a tapa – afinal, quem não quer saber a verdadeira história de Valesca Popozuda, a grande agitadora cultural que apresentou ao mundo o “Beijinho no ombro”?
Essa era uma das várias ideias perversas que povoavam minha cabeça pouco depois de eu sair do incrível espetáculo “Elis – a musical” (não, o artigo feminino não foi erro de digitação, mas uma esperta brincadeira dos criadores do show), atualmente em cartaz no Rio. Sábado à noite é o momento da semana em que, nessa minha nova rotina de estúdio, eu brinco com os amigos que vou para uma CTI e fico internado por 24 horas até recuperar a energia de ter gravado seis programas. Mas estimulado pelos elogios entusiasmados de pessoas cujo gosto eu confio plenamente – um comentário típico nas rodas de conversa deste começo de ano no Rio era a pergunta quase acusatória: “Você ainda não foi ver o musical da Elis?” – resolvi superar meu cansaço e enfrentar as mais de três horas de duração de “Elis”. O que acabou sendo o melhor antídoto para minha exaustão.
Embalado não só pelas músicas estupendas (mais sobre isso daqui a pouco) como por um elenco inacreditavelmente afinado e impecável, consegui, ainda que sentado ali numa cadeira da plateia, repor todas as energias para a semana seguinte. Porque é assim que acontece quando você vai ver algo que gosta muito não é? Você se enche de alegria, exerce sua admiração por pessoas cheias de talento, e renova sua esperança de que a arte tem mesmo um poder restaurador. Tudo isso acontece quando você vê “Elis – a musical”.
Primeiro de tudo, temos de falar de Laila Garin, a baiana mais gaúcha que o teatro brasileiro já viu. Gaúcha, claro, porque ela está fazendo o papel de Elis, mas numa conversa rápida depois do espetáculo descobri que ela tem vários sotaques e nacionalidades dentro dela (seu sonho era fazer o papel de Edith Piaf!). Todo mundo fica impressionado com as performances musicais de Laila – e não tem como concordar de que são não apenas fiéis às originais, mas também transcendentais. Mas o que mais me deixava atordoado era sua atuação como Elis – ela mesma: conversando, discutindo, rindo, e eventualmente xingando! A “encarnação” é tão perfeita que, durante todo o primeiro ato eu fiquei curioso para saber se ela usava uma prótese para reproduzir aquele sorriso de Elis (como logo descobri, ela não usa nada).
Escrito por Patricia Andrade e Nelson Motta (e dirigido por Denis Carvalho), o musical escapa da armadilha fácil da estrutura “esquete/música/esquete/música” – que já está virando quase um clichê nesta bem-vinda onde de musicais brasileiros – para dar uma coerência um pouco maior a uma personagem da vida real tão complexa como era Elis. No lugar de uma mera colagem de momentos, vemos “janelas” do comportamento quase sempre imprevisível daquela que é talvez a maior estrela da música que o Brasil já teve. Se eu quisesse muito achar um defeito, eu diria que a narrativa é linear demais, mas claro que a opção por uma cronologia ordenada é sempre a que vai mais facilitar a vida do público. Isso, porém, é detalhe.
Do momento em que Elis deixa Porto Alegre rumo ao Rio em busca de uma carreira que ela praticamente já sabe que tem pela frente, as coisas começam a ficar realmente interessantes. O caminho, como sempre, é o da música – e, neste sentido, Elis teve uma sorte danada: cantou e gravou o que havia de melhor naquela que já foi chamada de “época de ouro da MPB”. Mas será que foi só sorte mesmo? Pelo que a Elis de Laila nos deixa perceber, a “Pimentinha” sabia muito bem o que queria, que som estava procurando, o que exatamente ela deveria cantar. De um breve momento de insegurança no início de sua carreira, ela já passa à frente assumindo o controle da sua imagem e da sua voz – ainda que, como descobrimos já na segunda metade do espetáculo, ela não se sentisse assim tão dona de seus talentos, uma vez que seus dois casamentos foram com produtores musicais (Ronaldo Bôscoli e César Camargo Mariano) que, de certa maneira, deram um rumo a sua música. Esse “drive” de Elis, essa busca pelo novo, pelo bom, pela qualidade, era sim uma de suas marcas. O que nos leva novamente à Valesca Popozuda, mas eu estou adiantando as coisas.
Tenho que falar ainda de todo o elenco – todo o elenco mesmo. De Felipe Camargo fazendo o papel de Ronaldo Bôscoli. De Caike Luna como Miéle. De Ícaro Silva como Jair Rodrigues (que remelexo é aquele?). De Claudio Lins como César Camargo Mariano. De Danilo Timm como Lennie Dale. De Leo Diniz como Tom Jobim. De todos, na verdade – todos os nomes que estão ali no palco ajudando a contar uma história que ninguém será capaz de superar. Primeiro por conta da própria personalidade de Elis. Não a conheci pessoalmente – sua morte veio muito antes de eu sequer pensar em trabalhar com jornalismo cultural. Mas todas as entrevistas e todos os materiais que descubro sobre ela – vários deles numa exposição itinerante que cruzou o Brasil – indicam que ela era realmente uma pessoa difícil, no melhor dos sentidos: aquele que faz com que alguém use sua energia para canalizar um talento criativo. Tendo a achar que foi isso que a fez “esbarrar” em tanta gente boa, que só acrescentou ao seu trabalho.
O período em que ela amadureceu sua carreira é, sem dúvida, um outro fator. Eu tenho certeza de que, mesmo hoje, tem gente fazendo boa música popular brasileira. O problema é que isso não é o que as pessoas querem ouvir – estou novamente tentado a falar de Valesca, mas peço paciência ao meu leitor, a minha leitora. O que Elis cantava – no rádio, na TV, nos palcos – era não só “o fino da bossa”, mas o fino da nossa história musical. Era essa música que tocava nas rádios, na TV e nos palcos. E levava as pessoas ao delírio – não porque era “melhor”, “mais sofisticada”, mas porque era boa, bem feita, bem construída, bem arranjada. E bem interpretada, claro.
“Arrastão”. “Upa neguinho”. “Águas de março”. “Canção da América”. “Como nossos pais”. “O bêbado e a equilibrista”. Junte aqui qualquer outra música que você lembra que Elis interpretou – eu mesmo perdi a conta no espetáculo, mas acho que são quase 40! Desafio qualquer um a contestar que esse conjunto é um dos melhores de todos os tempos. E, como bônus, é um repertório que ainda nos remete – às vezes direta, às vezes indiretamente – a própria história que vivíamos no nosso país. Quem hoje em dia pode bater no peito e dizer que faz algo parecido? O cenário do nosso país é outro, mas não menos “cantável”. Se não há a censura, que obrigava nossos compositores a serem ainda mais poetas, há sempre a mentira, que merece ser cantada. E os talentos para compor tais músicas não faltam – vemos sinais deles espalhados cá e lá em discos que são sempre quase bons, mas que nunca vão além de um conjunto bonitinho de canções.
Terão mudados os ouvidos então? É sempre mais fácil – muito mais fácil – acusar os ouvintes do “pecado da música ruim”. Outro alvo fácil é o termo genérico “a mídia”, que qualquer um que escreve adora apontar como grande vilã – como se ele ou ela, ao escrever, não estivesse justamente fazendo parte desta mídia. Mas quem quer olhar mais fundo, como eu tento fazer de vez em quando para entender o que está acontecendo, não encontra resposta para uma pergunta tão simples: por que nossa música popular não é mais “música”, é só “popular”?
Qual é o acervo musical que estamos criando para vermos, daqui a uns 30 anos (Elis morreu em 1982, num episódio que também foi resolvido elegantemente no musical) – enfim, para vermos daqui a 30 anos um espetáculo da altura deste que está fazendo o maior sucesso (e deve excursionar o país a partir de março, começando por São Paulo)? Será que podemos pegar uma das músicas mais executadas neste verão de 2014 e fazer essa projeção? Foi exatamente isso que eu fiz brincando no início do texto de hoje. Já imaginou? Um musical baseado na vida e obras de Valesca Popozuda?
Se você é uma das 2.763.661 pessoas que já acessaram (até agora, quando escrevo isto) o vídeo de “Beijinho no ombro”, não fique chateado ou chateada comigo. Eu também fui lá, umas duas vezes – a primeira, por mera indicação, quase que por reflexo, depois que alguém me mandou o link; a segunda, por pura fascinação, quando assisti aos mais de sete minutos dessa superprodução com um encantamento que, para explicar melhor, eu tenho que recorrer a “Atrás da porta”, uma das músicas que Laila/Elis canta no espetáculo que hoje comento: vi “Beijinho no ombro” novamente porque estava o “adorando pelo avesso”.
É impressionante o circo montado em volta da música para mostrar quem late mais alto – a começar pela longuíssima introdução de mais de um minuto (queridos, desculpe, isso não é “Thriller”!). A música, como pop, está longe de ser ruim – ainda que eu implique com o segundo verso que, como vários outros, não cabe muito bem na música (“Pra que elas vejam cada dia mais nossa vitó…” – o “ria” fica sempre sobrando). Em alguns momentos ela chega a esbarrar no surreal – como não aplaudir “Keep calm e deixa de recalque” (ou mesmo a parnasiana “Aqui dois papos não se cria e nem faz história”). Mas no final, é, como diria o bardo, muito barulho por nada.
Um fuzuê incrível para dizer que você está mandando mandando bem, passando por cima de quem é medíocre, e apostando no seu próprio talento e arte? Desculpe, mas eu aconselho ouvir de perto uma certa Elis Regina, que muito antes de todos, e sem precisar fazer o gesto, já tinha mostrado ao mundo o que é um verdadeiro beijinho no ombro…
Vá ver “Elis – a musical”. E sinta pena das “invejosas de plantão”.
O refrão nosso de cada dia: “Listen to the music”, The Doobie Brothers, é o recado perfeito para o post de hoje. Eles são dos anos 70, da Califórnia. E atualmente tem cerca de 300 mil acessos a menos no YouTube do que Valesca e seu “Beijinho”. Não quer ajudar a mudar isso?
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