Coutinho

seg, 03/02/14
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Talvez você seja um dos que se pergunta desde ontem quem é esse cineasta, “um tal” de Eduardo Coutinho, que está no noticiário, pelo triste fato de ter sido assassinado, aos 80 anos, por um de seus filhos? “Como assim?”, você tem se questionado, “Eu que vou sempre ao cinema, que não perco uma estreia, não tenho ideia de quem é Eduardo Coutinho – e agora todo mundo (inclusive este que vos escreve) está o chamando de gênio!”.

É provável sim que você nunca tenha assistido a um de seus filmes. Primeiro, porque ele se especializou num gênero que, no Brasil, ainda é ingratamente recebido pelo grande público: o documentário. E mesmo dentro deste nicho, Coutinho exigia um pouco mais do seu espectador do que a atenção fragmentada que uma simples colagem de entrevista e imagem de arquivo – a fórmula mais manjada de documentário – poderia oferecer. Não quero dizer que o trabalho de Coutinho era para poucos. Pelo contrário: tenho certeza de que um filme como “Cabra marcado para morrer” ou mesmo “As canções” (seu último trabalho lançado comercialmente) têm potencial para emocionar um público de milhões. Mas esses são os nossos tempos – dias em que trabalhos preciosos como esses dois títulos que citei (extraídas aleatoriamente de uma obra ainda maior) perdem-se em meio a uma cada vez mais estridente cacofonia de som e fúria. Não exatamente como Shakespeare definiu em “Macbeth”, mas eu divago…

Se algo de positivo pode sair de uma tragédia como essa morte, quem sabe a curiosidade de quem nunca havia ouvido falar dos filmes de Coutinho possa despertar um novo interesse em seu trabalho. Ontem mesmo, descansando em casa, assim que soube da notícia, revi um trecho de “Jogo de cena” – que é, para mim, não só o seu melhor trabalho (mais sobre ele daqui a pouco), mas também um dos melhores filmes de toda a antologia do cinema brasileiro. Quem sabe mais gente não tenha uma atitude como essa, e além de um trechinho, assista não só ao filme inteiro, como a todos os outros que Coutinho nos deixou.

Se você ainda está na dúvida se deve ou não conferir sua filmografia, deixe eu dar um último “empurrãozinho”: uma vez que você vê um trabalho de Coutinho, ele nunca sai da sua cabeça. Vou dar um exemplo recente para ilustrar isso: semana passada, saindo ligeiramente agitado de uma sessão de “O lobo de Wall Street”, achei que seria recomendável que eu acalmasse os ânimos com um filme japonês – no caso, o bem falado “Pais e filhos”, que está em cartaz em cinemas selecionados em algumas capitais brasileiras. (Eu ia falar sobre esses dois filmes aqui hoje, mas por conta do incidente com Coutinho, adiei o assunto para quinta-feira, e conto com sua compreensão). O filme de Hirokazu Koreeda é excepcional – daqueles que fazem você sair chorando do cinema, e seguir chorando enquanto está dirigindo até sua casa, aí chegar em casa, procurar um canto bem confortável, e continuar chorando.

Mas por uma curiosa associação de ideias, em algum momento da minha emoção, pensei que, em vários momentos, “Pais e filhos” parecia ser um documentário – e, se fosse um mesmo, pela sensibilidade das cenas escolhidas para entrar na edição final, poderia ter sido um documentário dirigido por Eduardo Coutinho. Porque ele tinha não só as ideias mais geniais para expandir os limites do gênero (e aí, insisto, “Jogo de cena” é uma obra definitiva), mas também um olhar de poeta sobre um material que é sempre precioso, mas nem sempre valorizado por outros autores: a vida.

Eu tinha acabado de sair da faculdade, no meio dos anos 80, quando assisti a “Cabra marcado para morrer” pela primeira vez. Se ver documentários já é um exercício excêntrico hoje em dia, imagine trinta anos atrás! O filme, no entanto, chamou a atenção deste jovem recém-formado pelo enorme barulho que fez na imprensa na época. E não por acaso: uma investigação sobre o assassinato de um líder camponês (morto em 1962), que foi interrompida em 1964 por conta do golpe militar de então, e retomada 17 anos depois? A premissa era irresistível. Como faço questão de frisar, vi “Cabra” com “olhos de universitário” e fiquei tão encantado que lamentei não ter nenhuma vocação para o cinema – pelo menos não a vocação suficiente para sair com uma câmera na mão fazendo documentários, um impulso que trabalhos como o de Coutinho são sempre capazes de inspirar.

Anos se passaram – quase duas décadas, aliás – até que um de seus filmes voltasse a chamar minha atenção. E ele foi, claro, “Edifício Master”. A escolha de Coutinho não poderia ser mais simples: desta vez, ele quis mostrar moradores de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro. E como ele resolveu mostrar esses moradores? Abrindo sua câmera e dando total liberdade a eles. Lembro-me de um cartaz da época (2002) que dizia: “Um filme sobre gente como você e eu” – e isso, claro, mexeu com minha imaginação. A frase – quase um slogan, um instrumento de marketing (se é um documentário brasileiro um dia já mereceu uma campanha dessas) – parece fácil, não fosse por um pequeno detalhe: o “eu”. “Um filme sobre gente como você” é mais fácil de vender – a gente quer se identificar com o que vê na tela, sempre. Mas o que aquele “eu” estava fazendo ali?

Ora, o “eu”, numa primeira interpretação, era o próprio Coutinho – que, de cara, se colocava no mesmo plano de quem estava sendo entrevistado. Só que as leituras possíveis – do “slogan” e do próprio filme – iam muito além. O “eu” podia ser quem estava filmando, mas também quem estava assistindo – ou mesmo quem estava dando um depoimento. Não era tudo a mesma coisa, um filme sobre todos nós? Um microcosmos de Copacabana nos sugerindo que o mundo inteiro é daquele jeito? Parte voyerismo, parte revelação, aquele conjunto de entrevistas mexe com qualquer espectador. E cada história, a princípio ordinária, vai aos poucos se revelando extraordinária – quase como uma ficção. Que é, diga-se, a ficção que nós mesmos vamos escrevendo a cada dia.

Depois de “Edifício Master”, Coutinho “rebateu” com um documentário sobre “companheiros” de luta do então recém-eleito presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. As aspas de “companheiros” não são gratuitas: Coutinho entrevistou metalúrgicos do ABC que foram figuras importantes no movimento grevista da virada da década de 70 para 80, mas que não seguiram uma fulgurosa carreira política como Lula. Esse dificilmente poderia ser chamado de um filme sobre gente “como você e eu”. Para a maioria dos espectadores, este era um filme sobre “o outro”. Mas um “outro” que você deveria conhecer melhor, porque é esse “outro” que estava mudando a sociedade que você vive.

Não vi até hoje “O fim e o princípio”, o trabalho seguinte de Coutinho – uma falha que devo corrigir em breve, mas o diretor já era um septuagenário quando nos apresentou “Jogo de cena”, sua obra-prima (novamente, na opinião deste modesto admirador). Chamo a atenção para a idade de Coutinho por pura provocação: quem acha que os melhores anos de um criador estão nas primeiras três décadas de sua vida, deveria ver mais os filmes de Eduardo Coutinho. Porque “Jogo de cena” é genial. Simplesmente genial. Escrevi sobre ele aqui mesmo neste espaço e, entre tantos elogios que fiz, o principal tinha a ver com o fato de ele conseguir tantas coisas com tão pouco. O “tão pouco” tinha a ver com o cenário simples de uma plateia vazia de teatro, onde todas as entrevistas eram gravadas. E as “tantas coisas” são as emoções que vivemos ao longo do filme – alegria, raiva, indignação, pena, uma incontrolável vontade de chorar, surpresa absoluta com o desfecho de quase todos os depoimentos…

Atrizes conhecidas (Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres) se revezam com caras familiares (possivelmente atrizes que vimos com menos frequência), e rostos totalmente desconhecidos. E todas têm uma história para contar. E que histórias… Você, como espectador, é um mero refém num labirinto onde o caminho da realidade e ficção se confundem. Ou ainda: aos longo das narrativas, a grande lição que Coutinho nos dá – de maneira mais contundente ainda do que em “Edifício Master” – é de que essa divisão é ridícula, quando estamos falando de seres humanos. Eu rogo: veja (ou reveja) “Jogo de cena”. Você nunca mais vai se sentar em uma sala de cinema da mesma maneira.

Só “reencontraria” Coutinho novamente em 2011, quando vi “As canções” – outra curiosa exploração entre realidade e ficção, ou melhor, um passo além na sua missão de mostrar que histórias inventadas e histórias vividas são, no final das contas, uma coisa só. As entrevistas desta vez eram em torno de músicas – músicas que marcaram as pessoas em determinadas épocas da sua vida. Coutinho habilmente pedia para que as pessoas falassem sobre essa intersecção entre arte (a música de um ídolo) e vida (a experiência pessoal), e o resultado é não só emocionante – como já era de se esperar – mas também instigante: em vários momentos do filme me peguei lembrando músicas que foram (e são) importantes para mim. E pensei: “danado esse Coutinho… ele conseguiu de novo…”.

Não sou capaz de imaginar ninguém que esteja fazendo algo que chegue sequer perto do que Eduardo Coutinho fez. Falar em lacuna, diante de uma morte tão bizarra e triste, é cometer não apenas o pecado do clichê como reduzir uma obra fenomenal a uma epígrafe simplista. Se não vamos mais ter seu olhar, prefiro deixar como últimas palavras em sua homenagem (e uma forma de agradecimento) um desejo de que ele inspire mais de uma geração de cineastas para que sigam na árdua e corajosa tarefa de nos confundir e ao mesmo tempo nos iluminar.

Cinema, né gente?

O refrão nosso de cada dia: “That’s how people grown up”, Morrissey – por falar naquela experiência que “As canções”, de Eduardo Coutinho, me fez passar, quero hoje deixar esta música de Morrissey aqui para você ouvir. Estive com ela na cabeça durante todo o fim de semana. Lembrando, ironicamente, de gente que, mesmo ouvindo essa música, dedicada com todo carinho, nunca soube realmente crescer…



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