Como assistir a “12 anos de escravidão” sem chorar
Em primeiro lugar, é importante que você seja branco. Branco como as pessoas que trabalham ao seu lado. Branco como o seu círculo de amizades. Branco como as pessoas que fazem parte do seu dia-a-dia. Branco como as pessoas que entraram para assistir a essa sessão do filme com você num shopping da zona sul da sua cidade. Branco como a imensa maioria das pessoas que você vê na mídia todo dia. Branco como a memória de quem defende que não há preconceito entre nós. Branco como as páginas que nunca foram escritas sobre a escravidão no Brasil.
Para não verter uma lágrima ao longo de “12 anos de escravidão”, o terceiro e mais contundente longa-metragem do diretor Steve McQueen – e provável vencedor do Oscar na festa do próximo domingo -, é preciso ainda que você esqueça que a história é baseada em fatos reais. É importante que você se proteja no universo da ficção, já que é muito mais fácil digerir eventos como aqueles que são retratados no filme como “frutos da imaginação humana”. Não importa que o livro escrito por Solomon Northup, um cidadão negro nos Estados Unidos em meados do século, seja um relato fiel de sua história. Pense que é tudo fantasia. Um exercício até fácil, para nós brasileiros, que mal aprendemos sobre a história da própria escravidão no nosso país – o último do ocidente a aboli-la. Afinal, tudo que lembramos dos livros do colégio é que houve uma tal “lei do ventre livre” (1871) e depois uma benevolente princesa decretou que não haveria mais escravos por aqui (1888).
Sim, é possível passar todo o filme de McQueen sem se emocionar, desde que você tenha certeza de que nunca abraçou nenhuma pessoa que não seja da sua cor – branca, claro. Ou, se o fez alguma vez, sem querer, isso já foi eficientemente apagado da sua memória. Bem como todas as histórias de preconceito que você leu um dia em algum jornal – ou algum site. Não vou nem sugerir que é fundamental também que você esqueça de alguma cena de preconceito que tenha visto com os próprios olhos, uma vez que, já que seu círculo social é primordialmente da mesma cor que você, as chances de você ter esbarrado com um episódio assim são mínimas.
É necessário também que você já tenha dito, pelo menos uma vez na vida, que tem amigos que não são da sua cor – não que seja verdade, mas que você tenha usado essa desculpa ainda que acidentalmente, só para poder contar uma piada racista sem culpa. Ainda no humor, vale acrescentar que as chances de você chorar em “12 anos de escravidão” ficam cada vez menores à medida que você vai se lembrando de outras piadas racistas que você já contou e/ou ouviu.
Ainda, se você geralmente defende que nossa sociedade não tem um problema de cor, e que o preconceito no Brasil tem raízes não na pele das pessoas, mas no nível social e econômico delas, pode ir ao cinema sem susto: é capaz até de você sair da sessão com um sorriso. Afinal, já que você tem essa convicção, o filme de McQueen, para você, fala de um passado da história dos Estados Unidos, que não tem nada a ver com o nosso. Ou que aquilo que o trabalho discute é uma questão que, se é que já fez parte da nossa discussão nacional, já foi resolvida há muito tempo, e que colocar o dedo numa ferida dessas – se é que um dia ela foi aberta – é coisa de americano.
Mas cuidado. Mesmo com todas essas certezas, há momentos em “12 anos de escravidão” que podem te abalar de uma maneira inesperada. Fique firme. Afinal, nada mais improvável, do ponto de vista de quem cabe na descrição que estou dando até agora, do que uma mulher bonita – Patsey, interpretada pela revelação da temporada, a belíssima Lupita Nyong’o – ter suas costas arrebentadas por um chicote só porque ela foi buscar um sabonete em outra fazenda, que não aquela em que ela era a campeã na colheita de algodão, sem nunca ter tido seu trabalho remunerado. Um sabão? Só porque ela se sentia fedida ou mesmo suja pelos ataques sexuais que recebia frequentemente do seu “senhor”? Isso só pode ser invenção? E quer algo mais fantasioso do que o senhor de todos os escravos, Edwin Epps (vivido pelo impecável parceiro de McQueen desde seu primeiro filme, Michael Fassbender) acordá-los no meio da noite para que tocassem música e dançassem com suas caras e corpos tristes? Se alguém fizer um paralelo disso com a festa mais popular do Brasil – que começa justamente depois de amanhã – essa pessoa só pode estar viajando.
Fique atento. Ao menor sinal de que você conhece alguém como a esposa do senhor dos escravos, uma pessoa emocionalmente mal resolvida, e que procura descontar seus problemas, com humilhações morais e físicas, em indivíduos que ela julga que sejam inferiores simplesmente por não terem nascido da mesma cor que a dela – afaste estes pensamentos! Você só conhece pessoas generosas, não é mesmo? Pessoas cujo comportamento nem de longe pode ser comparado a de nenhuma pessoa do filme que seja da sua cor. Que, só lembrando, é branca.
Como um último conselho, proteja-se duplamente no final. A cena em que Solomon – estupendamente interpretado por Chiwetel Ejiofor – volta para a casa não pode nem deve, nem de longe, tocar seu coração. Afinal, você, que é tão branco, e que não pode nem imaginar o que é não ser capaz de circular por onde você quiser sem levantar suspeita, sem ser acompanhado de longe por olhares inquisidores (quando não assustados), sem ser encarado como alguém que não deveria estar ali – enfim, você que não faz ideia do que é não ter a liberdade de atravessar o caminho que for para ver as pessoas que são importantes na sua vida, você nunca vai acreditar nas lágrimas de Solomon quando ele pede desculpas pela sua aparência diante da sua família que não o vê há 12 anos.
Por tudo isso, então, eu digo: vá ver “12 anos de escravidão” sossegado. Se você se encaixa em pelo menos uma das situações que descrevi aqui hoje, esse vai ser o filme mais inofensivo que você vai ver em 2014 – e quem sabe pelos próximos anos.
Mas tem sempre a chance de você, ao contrário de alguém que se encaixa no que descrevi acima, ter resolvido há algum tempo olhar em sua volta para ver como é o mundo de verdade. Tem sempre a chance de você duvidar da história que ensinaram para você, e das ideias de igualdade “de mentirinha” que tentaram vender para você desde que você era pequeno. Nesse caso, eu não tenho como te ajudar – a não ser dizendo que é melhor você levar uma caixa de lenços de papel para o cinema. Porque você vai chorar – como eu chorei. E você vai sair da sala, olhar em volta, e chorar um pouco mais. E vai acordar todo dia torcendo para que o que você vê te faça chorar um pouco menos. E aí, com um pouco de sorte e muita inspiração, você vai começar a fazer diferença.