Como assistir a “12 anos de escravidão” sem chorar

qui, 27/02/14
por Zeca Camargo |
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Em primeiro lugar, é importante que você seja branco. Branco como as pessoas que trabalham ao seu lado. Branco como o seu círculo de amizades. Branco como as pessoas que fazem parte do seu dia-a-dia. Branco como as pessoas que entraram para assistir a essa sessão do filme com você num shopping da zona sul da sua cidade. Branco como a imensa maioria das pessoas que você vê na mídia todo dia. Branco como a memória de quem defende que não há preconceito entre nós. Branco como as páginas que nunca foram escritas sobre a escravidão no Brasil.

Para não verter uma lágrima ao longo de “12 anos de escravidão”, o terceiro e mais contundente longa-metragem do diretor Steve McQueen – e provável vencedor do Oscar na festa do próximo domingo -, é preciso ainda que você esqueça que a história é baseada em fatos reais. É importante que você se proteja no universo da ficção, já que é muito mais fácil digerir eventos como aqueles que são retratados no filme como “frutos da imaginação humana”. Não importa que o livro escrito por Solomon Northup, um cidadão negro nos Estados Unidos em meados do século, seja um relato fiel de sua história. Pense que é tudo fantasia. Um exercício até fácil, para nós brasileiros, que mal aprendemos sobre a história da própria escravidão no nosso país – o último do ocidente a aboli-la. Afinal, tudo que lembramos dos livros do colégio é que houve uma tal “lei do ventre livre” (1871) e depois uma benevolente princesa decretou que não haveria mais escravos por aqui (1888).

Sim, é possível passar todo o filme de McQueen sem se emocionar, desde que você tenha certeza de que nunca abraçou nenhuma pessoa que não seja da sua cor – branca, claro. Ou, se o fez alguma vez, sem querer, isso já foi eficientemente apagado da sua memória. Bem como todas as histórias de preconceito que você leu um dia em algum jornal – ou algum site. Não vou nem sugerir que é fundamental também que você esqueça de alguma cena de preconceito que tenha visto com os próprios olhos, uma vez que, já que seu círculo social é primordialmente da mesma cor que você, as chances de você ter esbarrado com um episódio assim são mínimas.

É necessário também que você já tenha dito, pelo menos uma vez na vida, que tem amigos que não são da sua cor – não que seja verdade, mas que você tenha usado essa desculpa ainda que acidentalmente, só para poder contar uma piada racista sem culpa. Ainda no humor, vale acrescentar que as chances de você chorar em “12 anos de escravidão” ficam cada vez menores à medida que você vai se lembrando de outras piadas racistas que você já contou e/ou ouviu.

Ainda, se você geralmente defende que nossa sociedade não tem um problema de cor, e que o preconceito no Brasil tem raízes não na pele das pessoas, mas no nível social e econômico delas, pode ir ao cinema sem susto: é capaz até de você sair da sessão com um sorriso. Afinal, já que você tem essa convicção, o filme de McQueen, para você, fala de um passado da história dos Estados Unidos, que não tem nada a ver com o nosso. Ou que aquilo que o trabalho discute é uma questão que, se é que já fez parte da nossa discussão nacional, já foi resolvida há muito tempo, e que colocar o dedo numa ferida dessas – se é que um dia ela foi aberta – é coisa de americano.

Mas cuidado. Mesmo com todas essas certezas, há momentos em “12 anos de escravidão” que podem te abalar de uma maneira inesperada. Fique firme. Afinal, nada mais improvável, do ponto de vista de quem cabe na descrição que estou dando até agora, do que uma mulher bonita – Patsey, interpretada pela revelação da temporada, a belíssima Lupita Nyong’o – ter suas costas arrebentadas por um chicote só porque ela foi buscar um sabonete em outra fazenda, que não aquela em que ela era a campeã na colheita de algodão, sem nunca ter tido seu trabalho remunerado. Um sabão? Só porque ela se sentia fedida ou mesmo suja pelos ataques sexuais que recebia frequentemente do seu “senhor”? Isso só pode ser invenção? E quer algo mais fantasioso do que o senhor de todos os escravos, Edwin Epps (vivido pelo impecável parceiro de McQueen desde seu primeiro filme, Michael Fassbender) acordá-los no meio da noite para que tocassem música e dançassem com suas caras e corpos tristes? Se alguém fizer um paralelo disso com a festa mais popular do Brasil – que começa justamente depois de amanhã – essa pessoa só pode estar viajando.

Fique atento. Ao menor sinal de que você conhece alguém como a esposa do senhor dos escravos, uma pessoa emocionalmente mal resolvida, e que procura descontar seus problemas, com humilhações morais e físicas, em indivíduos que ela julga que sejam  inferiores simplesmente por não terem nascido da mesma cor que a dela – afaste estes pensamentos! Você só conhece pessoas generosas, não é mesmo? Pessoas cujo comportamento nem de longe pode ser comparado a de nenhuma pessoa do filme que seja da sua cor. Que, só lembrando, é branca.

Como um último conselho, proteja-se duplamente no final. A cena em que Solomon – estupendamente interpretado por Chiwetel Ejiofor – volta para a casa não pode nem deve, nem de longe, tocar seu coração. Afinal, você, que é tão branco, e que não pode nem imaginar o que é não ser capaz de circular por onde você quiser sem levantar suspeita, sem ser acompanhado de longe por olhares inquisidores (quando não assustados), sem ser encarado como alguém que não deveria estar ali – enfim, você que não faz ideia do que é não ter a liberdade de atravessar o caminho que for para ver as pessoas que são importantes na sua vida, você nunca vai acreditar nas lágrimas de Solomon quando ele pede desculpas pela sua aparência diante da sua família que não o vê há 12 anos.

Por tudo isso, então, eu digo: vá ver “12 anos de escravidão” sossegado. Se você se encaixa em pelo menos uma das situações que descrevi aqui hoje, esse vai ser o filme mais inofensivo que você vai ver em 2014 – e quem sabe pelos próximos anos.

Mas tem sempre a chance de você, ao contrário de alguém que se encaixa no que descrevi acima, ter resolvido há algum tempo olhar em sua volta para ver como é o mundo de verdade. Tem sempre a chance de você duvidar da história que ensinaram para você, e das ideias de igualdade “de mentirinha” que tentaram vender para você desde que você era pequeno. Nesse caso, eu não tenho como te ajudar – a não ser dizendo que é melhor você levar uma caixa de lenços de papel para o cinema. Porque você vai chorar – como eu chorei. E você vai sair da sala, olhar em volta, e chorar um pouco mais. E vai acordar todo dia torcendo para que o que você vê te faça chorar um pouco menos. E aí, com um pouco de sorte e muita inspiração, você vai começar a fazer diferença.

Ele e ‘ela’

seg, 24/02/14
por Zeca Camargo |
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Outra semana agitada: começou com um incrível show de samba, quando tive a oportunidade de ver Diogo Nogueira, Alcione, Martinho da Vila e Roberta Sá cantarem juntos um repertório impecável (de “O mundo é um moinho” a “E o mundo não se acabou”); e terminou em pizza – um programa que eu estou aos poucos retomando nas noites paulistanas de domingo. Mas no meio disso, claro, teve muita coisa – desde gravações incríveis do “Video Show” (a foto ao lado pode dar uma dica) ao um show de Tiago Abravanel e a Big Time Orchestra, que quase emenda no bloco Sovaco do Cristo, que passa na janela da minha casa no Rio… E ainda quase teve Elton John (fiquei preso num trabalho e não pude ir). Tudo isso, porém, descansa à sombra de um filme que vi esta semana e que “acabou” comigo. Veja bem: no melhor dos sentidos.

Admito que eu já fui preparado para gostar de “Ela”. Spike Jonze, gente! “Quero ser John Malkovich”, gente! “Adaptação”, gente! “Onde vivem os monstros”, gente! E não vou nem puxar a lista de vídeos aqui, para não me alongar (mas se você quiser dar uma espiadinha no que ele fez com Björk em “It’s oh so quiet”, ou mesmo nesta lista organizada pela revista “Paste”, fique à vontade). Mas quantas vezes você não foi conferir coisas que “sabe que vai gostar” e acaba se decepcionando? Sim, mesmo os grandes mestres podem vir às vezes com um trabalho menor…

Mas a expectativa para “Ela” era grande, não apenas por conta de Jonze, mas também por Joaquin Phoenix – que é, depois da inesperada morte de Philip Seymour Hoffman, alguns dias atrás, o número um da minha lista de atores favoritos de Hollywood (para reforçar meu argumento, leia aqui o que escrevi sobre sua participação em “I’m still here”). E depois ainda tinham os trailers – o que era aquilo que a gente estava vendo? Um cenário meio futurista, mas não tanto, onde Phoenix conversava com Scarlett Johansson (aquela voz só poderia ser de Scarlett Johansson!), mas através de um objeto que parecia ser – como li em algum lugar – uma cigarreira retrô? Eu estava contando os dias para ver isso no cinema.

Este dia chegou na semana passada. E qual é meu veredicto? É simplesmente o melhor filme dos últimos… 10 anos? 20 anos? Eu arriscaria, para ser mais preciso, o melhor filme dos últimos 15 anos – sim, isso mesmo, o melhor filme desde que “O show de Truman” foi lançado.

Guarde seu choque. Quando falo de “melhor filme” nesse caso, estou menos interessado em conquistas técnicas (Alfonso Cuarón, com seu “Gravidade“, cala todo o argumento recente sobre isso), em possibilidades narrativas (Kathryn Bigelow já chegou na frente nessa área), ou mesmo em maneiras de emocionar uma plateia (a honra aqui vai, claro, para Ang Lee). Mas fui buscar a referência de “O show de Truman” – que, visto com os olhos de hoje, nem é tão bom assim – porque, assim como este trabalho de Peter Wier (com Jim Carrey no papel principal), “Ela” é um filme presciente. Não apenas um filme do seu tempo, mas que olha ali na esquina e prevê, com absurda precisão (e uma boa pitada de ironia), como as coisas vão ser daqui a pouco.

No caso do “Show de Truman”, se sua memória precisa de um sacode, a grande “crônica social” do filme era a chegada – na época, ainda eminente – dos “reality shows”, que mudariam totalmente não só nosso universo do entretenimento como também a maneira que reagimos à sociedade. O grande estouro dos “realities” estava prestes a acontecer – aqui no Brasil, eu mesmo protagonizei, em 2000, um pequeno fenômeno chamado “No Limite”, que já veio de uma primeira onda de uma grande tendência na televisão europeia e americana. E “O show de Truman” antecipou – com inteligência, beleza, e até certa poesia – como nós todos passaríamos a olhar para a vida alheia (e para a nossa também!).

E como “Ela” capta o momento que estamos vivendo, ou melhor, como o filme faz o mesmo jogo entre nosso presente ridículo e um futuro ainda mais constrangedor? Colocando em evidência nossa relação cada vez mais superficial com outros seres humanos nessa era de redes sociais. Antes que você me chame de velho, gostaria de lembrar que estudos recentes apontam que até mesmo os adolescentes já estão rejeitando o Facebook. Em favor de novas (e ainda mais “interativas” e “rápidas” e “superficiais”) redes sociais – é verdade.

Mas quando celebro o poder da fina ironia de “Ela” não quero levantar bandeira nenhuma contra essas mesmas redes sociais que temos hoje. Se não faço parte de nenhuma delas, não é, como já me expliquei aqui, porque, para usar um argumento dos mais comuns na internet, “eu acho ridículo” (já reparou como, uma vez que não existe nuance numa “conversa” na internet, ou as pessoas “se amam” ou “se odeiam”? Ou elas conhecem “a pessoa da vida delas” ou então se acham no direito de te chamar de “ridículo” – para usar a expressão mais branda, que pode ser aprovada pelas leis de decoro deste espaço -, uma vez que estão protegidas pela falsa coragem que o anonimato do universo virtual proporciona? Mas eu divago…). Não estou nas redes sociais, insisto, porque não teria tempo de me dedicar competentemente a elas. Há uma boa chance de eu lançar, em breve, um Instagram – mas não quero criar falsas expectativas: quando isso acontecer mesmo, você saberá primeiro aqui!

Retomando: o que eu acho incrível em “Ela” é que Spike Jonze tem o poder de se dirigir às próprias pessoas que poderiam se encaixar no personagem de Phoenix – o solitário Theodore, que ganha a vida escrevendo cartas emocionantes para gente que não consegue exprimir suas emoções oferecerem a entes queridos – e, ao mesmo tempo, rir delas, ter pena delas, e olhar com candura esse destino tão infeliz que as aguarda. Sim porque “Ela” é sobre uma história de amor infeliz.

Não estou aqui contando o final – “brigada do spoiler”, pode baixar a guarda. Na verdade, o arco do romance de Theodore por Samantha é bem convencional e sem surpresas. Um namoro como esse já foi contado inúmeras vezes na tela do cinema – e deve estar acontecendo hoje à noite mesmo, em qualquer novela de televisão que você escolher para assistir. O único detalhe é que Samantha não é uma pessoa. É um OS. Traduzindo, “ela” é um “sistema operacional” – ou, para pegar emprestado a sempre boa definição do Wikipedia: “um programa ou conjunto de programas cuja função é gerenciar os recursos do sistema, fornecendo um interface entre o computador e o usuário”. No caso, Theodore é o usuário. E Samantha, o OS.

Quando ouvimos primeiro a voz de Theodore, por alguns segundos achamos que estamos escutando um OS. A tela do computador vai enchendo de frases ditadas por alguém que não vemos – e que poderia ser muito bem do próprio OS daquele terminal. Mas logo vemos o sempre surpreendente rosto de Joaquin Phoenix. Seu personagem mora numa Los Angeles estranha – que logo detectei que era Shangai -, veste-se de maneira estranha (quando calças com cintura tão alta entrarem na moda, eu me retiro dela com orgulho), e tem amigos estranhos. Tudo banhado por cores não menos estranhas, que são simultaneamente fortes e “pastéis”. Nossa reação a essa estranheza toda, no entanto, passa rápido. E logo nos acostumamos a ela – bem como a tudo de inesperado que vamos encontrando no filme.

Um dia Theodore compra um novo OS – o primeiro com inteligência artificial! – e imediatamente começa a conversar com Samantha (cuja voz, lembrando, é de Scatlett Johansson). Ainda se recuperando do final de seu casamento com “a mulher de sua vida”, Catherine (a sempre ótima Rooney Mara), ele é presa fácil para a sedução de Samantha – e que está lá principalmente para isso, para seduzir. Ou não? Jonze, com seu roteiro impecável, deixa no ar a questão tipo “ovo ou galinha”: terá Theodore provocado aquela paixão em Samantha ou “ela” com segundas intenções se aproveitou do coração fragilizado de Theodore? Como em uma boa história de amor, nunca vamos saber…

E também como numa boa história de amor, toda a paixão só é selada depois de uma grande noite de sexo! Novamente, contamos com a genialidade do texto de Jonze para que a cena não seja um esquete de humor fácil. A evolução do erotismo entre Samantha e Theodore é tão natural quanto a de dois adolescentes se descobrindo pela primeira vez – e não posso negar que tudo trouxe a mim mesmo algumas memórias antigas… Mas, melhor do que isso, ter transado com uma OS traz consequências não baratas, mas filosóficas. Samantha se perguntando o que significa ter um corpo que te dá prazer é um dos momentos mais sublimes de “Ela”. Parece estranho mas, como já coloquei, você se acostuma a tudo neste filme.

Jonze faz com que a gente entre fácil nesse universo absurdo – e ria dele não com deboche, mas com propriedade. Quando Theodore conta para sua melhor amiga, Amy (Amy Adams), que esta tendo um caso com sua OS, ela responde que sabe de várias histórias assim, até mesmo – na melhor piada do filme – o de uma amiga que já está um passo à frente: está traindo alguém com um OS! E quando o colega de trabalho de Theodore lhe apresenta sua nova namorada – em carne e osso -, e sugere que todos façam um programa juntos (o casal “de verdade”, mais Theodore e Samantha), o que vemos a seguir é uma adorável tarde onde os “quatro” se divertem como se o fato de um elemento da “turma” ser um OS fosse a coisa mais normal do mundo.

E é, não é? Ou estamos muito perto de que seja normal uma coisa dessa. E este é o poder de “Ela”. Jonze fez uma brilhante crítica social – que em vários momentos me lembrou o último livro de Dave Egger, já comentado aqui - sem nenhum escracho, sem nenhum sarcasmo. Pegando emprestado de Nelson Rodrigues, essa é a vida como ela vai ser – já já. Não necessariamente mais alegre ou mais triste – pergunte às pessoas que você conhece (ou até a você mesmo, se for o caso) se os relacionamentos virtuais estão melhorando a vida delas ou as deixando mais tristes: aposto que você vai ter um bom equilíbrio de respostas boas e ruins. Por que a vida é assim – e essa é a vida que temos agora. Boa sorte.

Aliás, boa sorte para “Ela” também, que concorre a cinco Oscars, na festa do próximo domingo, mas que provavelmente só vai levar um – o de roteiro original. Por mim levava os cinco – inclusive o de melhor filme. E eu ainda dava um para Scarlett Johansson pela melhor interpretação fora das câmeras de todos os tempos. E mais um Oscar pela visão plasticamente mais bonita de um futuro próximo. E outra estatueta por ser o filme que melhor nos faz chorar sem melodrama. E um prêmio ainda maior por respeitar a inteligência de quem o assiste e ainda nos fazer pensar dias e dias depois de sair do cinema. E o Oscar de todos os Oscars para Jonze e sua elegante maneira de nos dizer que os dias que virão serão ainda mais solitários do que esses que vivemos…

 

O refrão nosso de cada dia: “Song to siren”, This Mortal Coil - na mais pura associação de ideias, “Ela” me fez lembrar desse clássico da minha juventude. Mas mesmo que você não tenha os meus 50 anos, nem as minhas lembranças dos primeiros amores, eu duvido que não vai se emocionar com essa música. “Sail to me, sail to me, let me enfold you”…

O paraíso?

seg, 17/02/14
por Zeca Camargo |
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Foi minha primeira vez na Bolívia. Eu sei… Aqui do lado – e eu ainda não conhecia? Pois é, justamente porque é aqui do lado, eu sempre ficava adiando uma visita. Mas agora eu estou no meio de um projeto que quero acabar antes do meu aniversário, em abril – ou ainda, em nome da transparência, até eu completar 51 anos. O projeto, como talvez você que me conhece bem já pode imaginar, tem a ver com viagens. Mais especificamente, quero completar 100 países visitados – e logo! A Bolívia foi o nonagésimo-oitavo. Ou seja, faltam apenas dois para eu fechar a lista – e começar a pensar no centésimo-primeiro… (brincadeira!).

Para completar essa missão, a Bolívia veio bem a calhar. Afinal, está aqui do lado, não é? De fato, somos países vizinhos, mas chegar lá não é tão simples. Para começar, não existe voo regular direto para La Paz saindo de Rio ou São Paulo (as cidades de onde ficaria mais fácil para mim partir do Brasil). Meu trajeto foi no mínimo “tortuoso”: saí de Guarulhos para Santiago, fiz escala em Iquique (ambas no Chile) e só então cheguei à capital boliviana, no domingo retrasado. Para voltar também não foi simples: La Paz, Santa Cruz, Lima (Peru) – e então São Paulo! Não que eu não esteja acostumado com isso – quem já deu mais de uma volta ao mundo não se incomoda com ziguezagues como esse. O que lamento é que, com essa dificuldade, os brasileiros talvez desanimem de visitar um país que é interessantíssimo – não só pela cultura, que é o principal motivo das minhas viagens, mas também por sua natureza.

Mais uma vez já disse aqui – e em inúmeras palestras que faço pelo Brasil – que, na hora de escolher um destino de viagem, minha primeira opção é pela vida urbana. Eu gosto de cidade! Natureza, claro, é legal. Mas talvez por ter crescido num país que excede neste quesito, eu sempre me encantei pelo oposto. Quando a Natureza entra num roteiro que eu faço, é como um bônus. Em algumas viagens, confesso, ela era a atração principal – como aquela para Papua Nova Guiné, que você acompanhou aqui mesmo neste espaço. Em outras, porém, ela é apenas uma consequência. Como foi desta vez na Bolívia.

Eu queria conhecer La Paz – explorar um pouco a cidade cujas calçadas misturam “cholas” (aquelas mulheres com roupas típicas, saias longas, tranças, e uma adorável miniatura de chapéu coco!) com skatistas; onde é possível saborear uma “salteña” no meio da rua (uma espécie de empanada local) e jantar num restaurante cujo dono também está por trás de uma das melhores mesas do mundo (o Noma, em Copenhagen); e descobrir, no meio do “mercado de las brujas”, blusas de alpaca feitas à mão que custariam uma fortuna em qualquer loja da Europa (ou de São Paulo…) por menos de R$ 200,00. Esse era o plano inicial, conhecer a capital e voltar. Mas já que eu estava lá…

Descobri também que um pulinho no Salar de Uyuni era menos complicado do que eu imaginava. Há algum tempo, quando ouvia relatos de amigos ou lia artigos de jornalistas que já haviam passado por lá, era sempre com a ressalva de que o trajeto por terra (que incluía estradas que só podiam ser desbravadas com carros 4×4 e lentas viagens de trem) levava quase um dia inteiro – seja vindo do Chile (Atacama) ou saindo por La Paz. Mas um aeroporto recém-inaugurado tinha mudado tudo: depois de apenas 45 minutos dentro de um avião, você já podia passar o dia por lá, numa das paisagens mais estupendas do planeta. Pelo menos era isso que todos os convites turísticos para Uyuni diziam – e eu agora tinha então uma chance de conferir isso de perto.

Assim depois de dois dias cheios em La Paz – onde, além de me encantar com uma cidade que parece estar brigando com a topografia (se você parar para pensar, aquela região de picos tão íngremes nunca deveria ter dado origem a uma cidade tão grande!), tive de lutar para fazer com que meu corpo se acostumasse com o ar rarefeito e a menor concentração de oxigênio (sabe o que é acordar no meio da noite como se estivesse tendo uma crise de apneia?) -, enfim, depois de explorar bem a capital, segui para Uyuni a fim de conhecer então o tal salar. Que é – sempre é bom explicar – um vasto campo de… sal! Isso mesmo: um enorme espaço aberto onde o sal se concentra e se espalha por uma superfície de mais de dez mil quilômetros de extensão. Mas esta era a definição que a gente via nos guias e nos sites da internet. O que me esperava era algo bem mais poderoso que essa simples descrição.

Cheguei bem cedo a Uyuni – meu voo saía de La Paz às 6h da manhã! Tão cedo que, segundo Betto, um boliviano da região que era meu guia, não valia a pena nem me registrar no hotel (o quarto certamente não estaria liberado a essa hora) nem ir direto ao salar – cuja paisagem fica realmente interessante depois que o sol já está bem mais alto. Assim, fui levado por ele até uma pousada no centro da pequena Uyuni (população, segundo Betto, de cerca de 3.500 habitantes) para um café da manhã – que, diga-se, foi extremamente aconchegante. Ele viria me buscar dali a duas horas – tempo suficiente para explorar uma cidade que, francamente, não tem muita coisa a ser explorada. Mas o sol estava generoso pelas calçadas de Uyuni e aquecia a temperatura em torno dos 12 graus (lembrando que ainda é verão por lá!).

O movimento no “pueblo” se revezava entre as mães levando as crianças na escola e os grupos de turistas que, animados, se aglomeravam em frente às casas de turismo, que vendem “pacotes de aventura”. Para minha surpresa, eles eram, em sua maioria, japoneses! Havia uns tantos europeus – mas poucos. Um punhado de latino-americanos (chilenos e argentinos), outro de australianos. Brasileiro, não vi nenhum – pelo menos não nesse momento da chegada. O frenesi desses visitantes, todos superequipados para suas programações radicais, colaborou para que eu também ficasse um pouco ansioso: queria ir logo ao salar, mas o relógio me lembrava que ainda não era hora. Paciência: sentei-me num banco ali da “avenida Ferroviária” e fiquei vendo Uyuni acordar.

Betto reapareceu antes das 10h – um bom sinal – e seguimos para a primeira parada: um “aperitivo” antes do salar. Depois de breves 15 minutos de estrada, chegamos ao cemitério de trens de Uyuni – sim, o lugar da foto que postei na semana passada (que eu mal poderia imaginar que seria tão óbvio assim – quando resolvi escolher aquela imagem para perguntar “Onde estou?”, juro que achei que não seria fácil responder, mas os mais de 50 comentários foram quase unânimes em revelar qual era minha locação!). É engraçado pensar nisso como uma atração turística. De fato, é uma “visão” curiosa – aquele monte de carros, locomotivas e ferragens amontoados de maneira aleatoriamente artística. É ainda um “playground” para quem quer tirar boas fotografias. Mas é, acima de tudo, um cemitério – um retrato de uma época que já foi mais promissora, em que o transporte de minérios prometia alguma coisa para aquele canto tão desolado do mundo.

Meu guia me explicava que Uyuni já tinha recusado uma proposta de 30 milhões de dólares (do Canadá) para vender todo o material para reciclagem – só que o valor dos trens como atração turística, aparentemente, era mais importante. Mas o turista mais racional, como este que vos escreve, não podia deixar de pensar que aquela grana iria fazer uma bela diferença na vida daquelas pessoas – e que, como chamariz, o próprio salar que eu estava prestes a visitar era um atrativo muito maior. Mas lá estava eu divagando, em plena manhã ensolarada em Uyuni – até que Betto teve a presença de me chamar de volta à realidade, rumo ao salar.

A primeira visão dele – tenho que ser honesto – foi decepcionante. Eu nem sei direito o que imaginava, mas sabia que não era aquele mar de água turva. Eu estava ciente de que não estava visitando numa das épocas mais concorridas – parece que a maioria dos turistas prefere o inverno, quando não há água no salar e tudo que se vê uma enorme branquidão por todos os lados. Mas eu também havia visto imagens lindas daquela paisagem com um espelho d’água – só que não era aquilo que eu tinha diante de mim. Meu guia não parecia incomodado com a evidente decepção estampada no meu rosto. Ajudou-me com as primeiras fotos e logo insistiu para que eu entrasse no carro e seguisse “mar adentro” para ter uma visão diferente do local. Obedeci suas instruções – e senti que tudo estava igual naqueles primeiros 10 ou 15 minutos. Então, de repente…

Não sei exatamente como tudo mudou, qual foi o exato ponto de transição. Só sei que eu estava percorrendo um caminho diferente agora, que só podia ser descrito como uma estrada no meio do paraíso. A tal água amarronzada deu espaço a uma fina camada líquida transparente. Se no início eu só enxergava o chão do salar – sólidas placas salinas por onde o carro passava – quando os pneus deixavam suas marcas, agora toda a superfície era visível, da janela do meu banco de passageiros, até… até o infinito. Era, logo percebi, uma das paisagens mais diferentes e gloriosas que eu havia visto na minha vida – e olha que, como já lembrei acima, a Bolívia era o nonagésimo-oitavo país que eu visitava! Eu estava no meio do infinito, literalmente além do horizonte, onde a linha que separa céu e terra simplesmente não existia mais. E no lugar dela, um grande reflexo desses dois mundos – e eu (e nós), mais que nunca, pequeninho(s) ali naquela paisagem gigantesca.

De tempos em tempos parávamos para tirar algumas fotos, mas nenhuma delas – nem mesmo essas que reproduzo aqui, que são algumas das melhores – consegue representar a desorientação que seus olhos sentem num lugar como o salar de Uyuni. Mas aos poucos íamos avançando, cada vez mais adentrando aquele espaço, até que a perda de referência foi total. Não havia a menor chance de eu saber o que era norte ou sul, de onde tínhamos vindo, qual era a saída. Era tudo imensidão – e em dobro, já que era tudo um reflexo. Os poucos elementos sólidos que os olhos captavam pareciam flutuar nesse éter – pequenas figuras humanas posando para fotos; carros desfigurados como esculturas distorcidas; distantes montanhas que pareciam imensas gotas sólidas se evaporando no ar.

Lembrei-me das recomendações para que o salar fosse visitado primordialmente quando estivesse seco – mas isso só fez com que eu reafirmasse a certeza de ter tido a melhor das visões agora, no verão, quando ele está levemente alagado. É a água que faz com que as formações de sal se transformem em pisos de cristal, duplicando as nuvens como convidativos (e inacessíveis) travesseiros. Talvez eu até queira voltar na época da seca – talvez seja mesmo uma paisagem ainda mais surpreendente. Mas estava feliz de poder ter visto aquilo tudo – e fiquei mais ainda quando, depois de um breve descanso, já no hotel, Betto veio me buscar para ver o pôr do sol do meio do salar.

Veja bem: se eu já tive dificuldade em procurar palavras que não fossem banais para descrever o que tinha visto até então, no crepúsculo eu fiquei completamente mudo. Era tudo lindo demais. Eu só queria aproveitar. Olhar. Meditar. Agradecer. E tentar tirar uma foto para fazer a imaginação de quem me leu até aqui passear comigo por aquele mesmo lugar…

O refrão nosso de cada dia: “Vertiente”, El Robot Bajo el Água - esta era a única música que eu queria ouvir no meio do salar de Uyuni. Uma escolha estranha aqui para esta coluna, já que ela não tem um refrão; ou melhor, já que ela é apenas um refrão, de dois minutos, vinda de um gênio argentino chamado Nicolás Kramer (o nome por trás de Robot – entre tantos outros projetos). E assim o fiz. “Vertiente” tocando em “loop” no meu iPod, o tempo todo no salar. E repetindo: “no permitas que nadie opaque el brillo de tu diamante, ahorcate antes de pertenencer a la horda de imitadores triunfantes”…

Onde estou?

qui, 13/02/14
por Zeca Camargo |
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As mãos de Eva Wilma

seg, 10/02/14
por Zeca Camargo |
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Adriana Esteves gravou um programa comigo no último sábado. Como se não bastasse a honra e o prestígio de ter uma das atrizes mais queridas e, depois do estrondoso sucesso de “Avenida Brasil”, também uma das mais importantes figuras da nossa TV no nosso palco, eu ainda fui presenteado com um sincero agradecimento. E mais: um elogio que, desde que comecei a comandar o “Vídeo Show” é sempre esboçado pelos nossos convidados, mas na voz de Adriana Esteves tomou ainda uma forma mais concreta e carinhosa – a certeza de que o artista sai dali homenageado no seu trabalho e na sua carreira.

Sábado foi realmente um dia especial. Além de Adriana – que nos ajudou a lembrar por que gostávamos tanto não só de sua Carminha, como de tantos outros personagens para quem ela emprestou seu talento – recebi também Ney Latorraca e Betty Gofman. Gravamos programas não menos que intensos (que você vai ver em breve no ar), com Ney generosamente revivendo uma de suas criações mais famosas (o Barbosa da “TV Pirata” – quem disse que eu conseguia segurar o riso durante a entrevista quando ele começou a repetir todas as últimas palavras das coisas que eu perguntava, como o bom velhinho de “Fogo no rabo”?); e Betty, animada como sempre, encarnando logo na abertura do programa a Dona Bela, por sua vez, uma encarnação impagável de Zezé Macedo, a personagem que Betty soube tão bem levar ao teatro, no sucesso “A maldição do espelho”.

Fiz esse corte deste fim de semana por acaso. Ou ainda, para não dizer que eu não penso em datas, escolhi abrir esse texto de hoje com Adriana, Ney e Betty porque eles marcam três meses desde que começamos a gravar o novo formato da atração – e três meses de um programa diário, acredite, é quase um aniversário! Mais de sessenta convidados ilustres – ilustríssimos – já passaram pelo novo “Vídeo Show” (e muitos ainda virão!), fazendo com que eu, inevitavelmente, com minha capacidade já bem conhecida por quem frequenta este espaço de “divagar”, decidisse então olhar para esses primeiros meses com a mesma lente que enxerga tudo que passa por este blog: a da cultura pop.

Nem preciso fazer uma reflexão muito profunda para concluir que nunca estive tão envolvido com pessoas importantes, dessa nossa cultura pop – gente que, com seu talento e brilho, dominam nossa imaginação com seu trabalho na TV. Claro que eu já cobria isso quando apresentava o “Fantástico”. Foram muitas e muito especiais as entrevistas que eu fazia com personalidades do “show bizz”, nacional e internacional (mais sobre isso daqui a pouco). Mas a pauta do “Fant” (como, já contei aqui um dia, o programa é carinhosamente chamado nas internas) é bem mais variada, pela sua própria natureza.

Quando recebi então o convite para reformular (ao lado do diretor de núcleo Ricardo Waddington) um programa que era exclusivamente de variedades, vi nisso uma oportunidade única de mergulhar ainda mais nesse universo – uma guinada boa, quando não “cósmica” (como diria Baby do Brasil!), para alguém que estava então completando 50 anos e procurando novos desafios. Mas isso já é notícia antiga – nem me lembro quantas entrevistas dei no final do ano passado (em função da estreia do novo formato) falando sobre a importância dessa mudança para mim. Só retomei essa história para reforçar minha surpresa, três meses depois, com relação ao nível de envolvimento que estou tendo com esse universo incrível de talento que agora é meu cotidiano.

Minha experiência em entrevistar estrelas do entretenimento – no Brasil e no mundo – já havia me ensinado que por trás da celebridade existem pessoas bem mais interessantes do que a fama que as envolve pressupõe. Mas, como disse há pouco, eu entrevistava uma Madonna aqui, um Paul McCarteny acolá, e essa observação geralmente ficava perdida. Agora no “Vídeo Show”, porém, não tem como negar que o fluxo de carisma que passa por mim é muito mais intenso – e a gratificação que vem junto com ele é quase indescritível.

Comecei a pensar mais especificamente nisso há alguns dias quando, no meio de uma noite de autógrafos do meu livro virtual “50, eu?” (e-galáxia), um repórter de um site me entrevistou sobre este trabalho e aproveitou para fazer algumas perguntas sobre o “Vídeo Show”. Coisas de sempre, repercussão não de coisas que ele apurou, mas de rumores que ele colheu de fontes nem sempre confiáveis na internet (a mais divertida de todas, como sempre, a fantasia de que meu salário foi triplicado, assunto que já abordei com muito bom humor aqui mesmo). Depois desse inócuo exercício, ele veio com uma pergunta de fato original, que então ligou uma centelha em mim.

Pouco confortável (numa atitude típica de quem está fazendo uma pergunta “de encomenda” do editor – acredite, já estive do outro lado, sei o que é isso -, ele me questionava sobre uma possível saudades que eu poderia ter do meu tempo de “Fantástico” quando eu então entrevistava (sic) celebridades como Madonna, e agora eu não tinha mais essa possibilidade, ou ainda, o que eu tinha diante de mim para entrevistar era outro cenário: elencos de novela.

Num primeiro momento achei engraçado alguém que cobre justamente televisão (vamos combinar que ele não estava lá no lançamento do meu livro como “repórter de literatura”) achar que esse é um universo menor para cobrir – a não ser que ele fosse o mais masoquista dos jornalistas (uma categoria que, como observo por experiência, já tem essa tendência) e se deliciasse em fazer reportagens sobre um assunto que ele tem em tão baixa conta… (Esta é uma contradição que noto em vários comentários sobre minha mudança de rumo profissional, sempre de pessoas que justamente cobrem… televisão! – mas, eu, claro, divago…).

Pensei em retrucar com um questionamento neste sentido, mas fiquei com medo de fugir do assunto. Procurando uma resposta rápida, pensei nos grandes artistas que já haviam passado pelo palco do “Vídeo Show” (e eu ainda nem tinha gravado com esse time com quem estou abrindo texto de hoje) e disse: “Mas hoje eu tenho oportunidade de entrevistar Lilia Cabral, Marcos Caruso, tanta gente que talvez seja tão ou mais interessante que Madonna… Quantas pessoas não gostariam de ter este privilégio?”. Inclusive ele mesmo, que estava ali falando comigo – mas eu apenas pensei nisso, não disse por elegância…

Ao longo desses três meses, acostumei-me a encontrar reações como essa – e até a me divertir com elas. Sim, divertir. Afinal, elas são exatamente o reforço que eu preciso para ter a certeza de que, ao explorar novos formatos, estamos no caminho certo. A estranheza é sempre um desafio – e, para mim, quase um combustível. Alguns dirão que é sempre mais fácil fazer o mesmo programa por anos e anos. Deve ser. Mas e onde fica o risco da aventura – e a própria necessidade da televisão de se renovar? É isso que está me entusiasmando. E, tenho certeza, é nisso que estamos acertando – é isso que comemoramos.

Novamente, deixando o estúdio depois de um programa glorioso com Adriana Esteves, olhei para a última semana e comemorei novamente. Não apenas por conta dos bons programas que fizemos, mas por uma semana em que colocamos no ar um programa totalmente experimental, com sucesso. Falo, claro, de um “Vídeo Show” que fizemos em homenagem ao pop dos anos 80, misturando o melhor das novelas daquela época com o “fino” da música que tocava nas rádios. E foi uma delícia – para nós, de fazer; e para o público, de assistir.

Este era um formato totalmente diferente, no qual o programa, com muitas atrações e “flashbacks”, se desenrolava quase que integralmente no palco. Já tínhamos feito uma experiência também ousada no início do ano, montando um “tribunal” em cena para fazer um “julgamento” do Félix – o impagável personagem que Walcyr Carrasco criou para Mateus Solano em “Amor à vida”. E também saímos felizes com o resultado. Outros formatos virão – programas que incluam viagens, entrevistas fora do estúdio (não vejo a hora de poder fazer isso, por exemplo, com Paulo José, algo que já está programado há tempos), outros “flashbacks”, homenagens a atores e atrizes que já se foram, e por que não até um programa ancorado só com o “nosso Walcyr”? Tudo é possível, como aliás já havia sido anunciado naquela primeira entrevista coletiva que demos em novembro de 2013 – um tempo muito distante, de fato, para alguém que só escreve (e lê) na velocidade da internet possa se lembrar…

São todas essas possibilidades que eu celebro hoje aqui com você – e mais essa felicidade que tenho de estar, finalmente, no meu habitat natural: a cultura pop! É só lembrar quem já passou por lá (Suzana Vieira, Marcelo Adnet, Alexandre Borges, Arlete Sales, José de Abreu, Sandy, Beth Faria – uma lista longa demais para eu fazer justiça aqui!). E vem mais aí, nos próximos programas, Claudia Leitte, Preta Gil, Juliana Alves – e isso só para falar das convidadas que vêm para esquentar o clima do Carnaval. Tem também outros artistas queridos, desde as grandes estrelas atuais como os figurões que são a história da TV – e, em última análise, em parte a história também da nossa imaginação. Como Ângela Vieira, que também esteve por lá e, junto com seu marido, o excelente cartunistas Miguel Paiva, me deu o presente que reproduzo ao lado. Mas vou parar por aqui porque não quero tirar o prazer de você se surpreender com o convidado do dia – pelos comentários de pessoas que me encontram na rua, e espontaneamente demonstram sua alegria de ver este “Vídeo Show”, elas gostam de ter a surpresa de descobrir “quem o Zeca vai entrevistar hoje”…

Mas eu só queria encerrar esse agradecimento – se você não percebeu, este é sim um agradecimento não só a quem me assiste, como também aos astros e estrelas que vão me emprestar um pouco do seu brilho -, enfim, queria encerrar assinalando que, em breve, você vai poder conferir um dos programas mais emocionantes que já gravei: um com Eva Wilma. Depois de sua passagem pelo meu palco, eu costumo responder para quem me pergunta “como foi?” que Eva Wilma veio como uma espécie de “Sá Marina”: fez o povo inteiro chorar. Chorei eu em alguns momentos; chorou a plateia com coisas lindas que ela disse na entrevista; chorou o pessoal que fica de fora do estúdio, na sala de controle acompanhando a gravação; até ela chorou – primeiro quando lembramos de uma de suas últimas cenas com Carlos Zara, e depois quando chamamos ao palco duas “figuras” para lhe fazer uma surpresa (que, claro, não vou contar aqui…).

Foi um programa lindo, que tenho certeza de que vai emocionar você também, mas que me pegou de um jeito que eu não esperava, já que acabei chorando por causa dele alguns dias depois de ele ser gravado. Chegando ao PROJAC para a reunião de produção semanal (talvez a parte da minha nova rotina que eu mais gosto: a criação), deparei-me com algumas “lajotas” de cimento guardadas – os registros dos últimos programas para a “Calçada da Fama” (um quadro que criamos para o “Vídeo Show”). No topo da pilha estava uma com as mãos de Eva Wilma, e alguma coisa ali chamou minha atenção.

A repetição sempre nos faz deixar de focar nos detalhes. Todo programa, convidamos o artista que está no palco com a gente para deixar um autógrafo e, depois, as marcas das suas mãos no cimento frio. É sempre divertido, cada um brinca com esse momento de uma maneira diferente. Para Eva Wilma, no lugar de pedir para ela abaixar, criamos um suporte na altura de suas mãos – estávamos ali, afinal, com uma mulher de 80 anos! Ela cumpriu o ritual, feliz, e seguimos com o roteiro. Nada ali me pareceu diferente. Foi só quando, dias depois, eu me deparei com o registro disso, que eu fiquei emocionado.

Porque as mãos que Eva deixou ali com a gente tem os dedos tortos. Não estou falando de um defeito, mas de uma marca da idade, uma registro inevitável dos anos vividos por essa grande atriz, que mesmo do alto de toda sua carreira incrível, encontra tempo e disposição para vir ao nosso programa. E ser celebrada como deve ser – graças a um formato inovador, executado de maneira impecável por uma equipe que é sensacional. Ali, naquelas mãos “tortinhas” de Eva no cimento, mãos de alguém que teve (e ainda terá) uma vida cheia, preenchida, e inspiradora, encontrei mais uma justificativa para meu trabalho. Eu agora, entre tantas coisas que tenho na minha carreira para me orgulhar, também tenho o privilégio de conhecer melhor esses artistas incríveis. E, sobretudo, dividir isso com você.

O refrão nosso de cada dia: “Common people”, Pulp, – na recém-publicada lista de 500 melhores músicas de todos os tempos que o “NME” soltou (um exercício de terrorismo cultural que eles fazem de tempos em tempos – e que será certamente comentada aqui em breve), entre as dez primeiras colocadas, quase todas são escolhas previsíveis. Por exemplo, vai discordar de “Smells like teen spirit”, do Nirvana, no topo da lista? Outras são surpreendentes, mas fáceis de justificar – como “I feel love”, de Donna Summer, na posição de número 3! Mas, escolhida como a sexta melhor música da história do pop, o “NME” colocou “Common people”, do Pulp – uma banda dos anos 90, muito boa, seminal para os ingleses, mas muito mais importante para eles do que para o resto do mundo. Essa foi a única escolha que me incomodou no topo da lista (várias outras me deixaram perplexos entre as outras 490 músicas, mas isso é para discutir mais para frente), e por isso mesmo resolvi ouvi-la de novo, e sugerir que você faça o mesmo agora. “Do you really want to live like common people?”. “Well”…

Iscas de Oscar

qui, 06/02/14
por Zeca Camargo |
categoria Todas
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Ontem tentei achar no site mais popular de compra de ingressos  o que ia entrar em cartaz nesta sexta-feira. Não tive sucesso. Há menos de um mês da maior festa do cinema americano, um endereço que deveria estar festejando a data oferece ingressos para estreias da semana anterior, que nem sequer foram cogitados para a premiação (ainda bem!) – como “47 ronins”, “O herdeiro do diabo”, e “A menina que roubava livros”. Ok, “A menina” está indicado para melhor  trilha sonora original, mas você entende o que eu quero dizer?

“12 anos de escravidão”, “Filomena”, “Ela”, “Nebraska”, “Trapaça”, “Clube de compras Dallas” (se é que o título em português de “Dallas Buyer’s Club” é este mesmo!) – se você quiser alguma informação sobre a chegada dessas filmes nas nossas telas, boa sorte… Não, não sou tão atrapalhado assim com internet a ponto de não conseguir saber essas datas, se eu realmente fuçar: “12 anos” chega depois do Carnaval, dia 28; “Trapaça” deve estrear amanhã (embora você não descubra isso no site de ingressos…); “Ela” estará nas telas dia 14 etc. Mas por que tanto mistério?

Eu ainda desconfio que as distribuidoras consideram o período de janeiro e fevereiro como férias escolares – o que é verdade (a não ser pelo fato de este ano elas terem sido abreviadas nesta época por conta dos jogos da Copa do Mundo). Com isso, a melhor “janela” para assistirmos a filmes que estão concorrendo ao Oscar é desperdiçada com produções “para toda a família”, tipo “Caminhando com dinossauros” e “Tarzan – a evolução da lenda” (pode imaginar uma criança pedindo para os pais para ver um filme que tem a palavra “evolução” no título?).

Não que estejamos totalmente “na seca” com relação ao Oscar. “Gravidade” – que é um bom concorrente – já foi visto por muita gente por aqui. Idem “Capitão Phillips”. E “O lobo de Wall Street” (do qual já vou falar mais) está enchendo salas pelo Brasil. Mas outros seis dos nove títulos indicados a melhor filme aguardam as idiossincrasias das distribuidoras, como se eles estivessem realmente esperando o melhor palpite da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para maximizar o número de salas para um possível filme campeão…

Eu diria que eles estão perdendo um enorme público potencial. E não falo apenas dos cinéfilos obcecados com premiações – categoria na qual me incluo -, mas também de uma legião de pessoas que poderiam escolher o ar-condicionado do cinema como um refúgio para essas tardes de verão, as mais quentes desde … (complete com a informação mais recente do seu noticiário favorito). Estou aqui fazendo uma pequena confissão: eu mesmo, prostrado de calor na última segunda-feira (minha folga), procurei um complexo de cinema que me permitisse assistir a pelo menos dois filmes em salas refrescantes!

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E foi assim que fui ver “Gloria” e “Fruitvale station – a última parada”. Nessa ordem – que, como avaliei depois, não foi a melhor escolha. Nenhum dos dois filmes é excelente. São bons trabalhos, com performances estupendas de seus atores principais. Mas no “corpo a corpo”, “Gloria” é um filme mais interessante, com um final meio mal resolvido, mas com uma atuação magistral de Paulina Garcia. Michael B. Jordan é também um ator incrível, mas faz um papel bem mais fácil que o do filme chileno. Viver uma vítima de preconceito racial em Los Angeles já é quase um clichê (o que não diminui em nada a importância da história – real – que é contada em “Fruitvale”). Agora, interpretar uma mulher mais velha (mais velha que a própria atriz que a está vivendo) que tem que lidar com a solidão, o tédio, e ainda driblar um “adolescente” de 60 anos (seu pretendente, na velha escola dos homens que nunca deixam de ser cafajestes)? Isso sim, merece um Oscar.

Um Oscar que, aliás, Paulina nunca vai ganhar… Como Fernanda Montenegro – mais merecedora ainda na época, por “Central do Brasil” – não ganhou. Isto não é um protesto – seria tolo de minha parte ficar lamentando aqui que artistas estrangeiras não tem vez. O Oscar, para que ninguém esqueça, é a festa do cinema americano, e é isso que eles sempre vão promover. Se por ventura algum prêmio sair muito distante dessa galáxia – como raras vezes acontece (pense em Penélope Cruz) – é porque a própria Hollywood tem interesse em trabalhar com aquela pessoa. Se não… Bem, mas eu divago!

De volta a “Gloria”, o filme é Paulina Garcia. Seu rosto – que em vários momentos me fez lembrar da Tootsie, de Dustin Hoffmann – é um poço de expressões sutis. A minha favorita é quando, no aniversário de seu filho, ela vê seu ex-marido tentar um contato físico com a filha e ser rejeitado por ela: Gloria desloca o mínimo de músculos do seu rosto para demonstrar um extremo desconforto com a situação. Mas esta é apenas um dos meus momentos prediletos (o da “vingança do paintball” é certamente outro, bem como o sorriso que Gloria dá quando é abordada pela primeira vez por Rodolfo). Dirigido com simplicidade e elegância por Sebastián Lelio (“Sagrada família”), “Gloria” é mais um ótimo exemplo de que o melhor do cinema latinoamericano atualmente está vindo do Chile.

“Fruitvale” é um filme que já nasceu premiado. Seu assunto é irresistivelmente emocionante: uma história real, de um jovem (22 anos) que foi assassinado pela polícia de Los Angeles numa noite de reveillon, numa estação de metro (Fruitvale) . Como todo o incidente foi registrado por câmeras de celulares, de vários passageiros que estavam dentro dos vagões (uma dessas imagens abre o filme), o trabalho cuidadoso do diretor Ryan Coogler foi reconstruir as últimas 24 horas da vida da vítima, Oscar Grant. E isso ele fez com enorme sensibilidade.

Coogler “deu sorte”. Oscar teve não apenas um fim trágico, mas também tinha uma história recente emocionante – da sua filha pequena, que o adora, à decisão de deixar de vender drogas. Some a isso o aniversário de sua mãe (interpretada pela sempre ótima Octavia Spencer), que era justamente no dia 31 de dezembro – e pronto! Pode preparar o lenço, porque você vai chorar – mesmo sabendo o desfecho da história. No entanto, para um público brasileiro, um destino absurdo como o de Oscar é uma triste rotina, que bateu duro aqui neste espectador. Claro que fiquei emocionado com a mini saga, mas o que mexeu mesmo comigo foi a própria iniciativa de contar a história do Oscar num filme.

Por uma estranha conexão, lembrei-me de uma notícia do dia (era segunda-feira), sobre a manifestação de Rihanna com relação à morte de um fã seu brasileiro, assassinado em Sergipe. Para quem não viu, Rihanna mostrou-se indignada, pelo seu Twitter, com a morte de Tiago Sobral Valença, de 14 anos de idade. Fiquei pensando como aquela notícia primeiro chegou até Rihanna (sim, o amigo de Tiago mandou, mas mesmo assim, esse percurso é longo), e depois na reação da cantora. Engajada, ela mandou uma mensagem breve e carinhosa, como se fizesse questão de dizer: “Isso é um absurdo!”.

E é mesmo. Quando alguma coisa tão brutal assim acontece nos Estados Unidos, as pessoas saem nas ruas, cantam canções, fazem filmes – tipo “Fruitvale”. Aqui? Essa é só mais uma notícia que quase ninguém registra, antes de ouvir sobre o futebol… Porém, mesmo depois dessa reflexão toda, não fiquei muito envolvido com o filme. Será que ando meio insensível? Em minha defesa digo que a mesma temporada de Oscar que me anima, também funciona como uma espécie de anestesia, com filmes previsivelmente concebidos para brilhar no grande prêmio.

Caso em questão: “O lobo de Wall Street”. Direção? Martin Scorsese! Estrelando? Leonardo DiCaprio! Sobre o quê? Sexo, drogas e muito dinheiro (não estranhe, ninguém mais faz um filme com “rock n’roll” no final dessa trilogia há muito tempo…). A combinação é totalmente poderosa e… previsível. Tudo calculado nos mínimos detalhes para que “O lobo” fosse uma boa isca de Oscar. Ainda não vi “Trapaça”, mas tudo indica que ele faz parte desse mesmo grupo. Todo ano tem um ou dois – ou três – filmes assim. Tudo bem.

O que a gente não pode achar é que isso é o que se está fazendo de melhor no cinema americano. Veja bem, “Lobo” é um ótimo entretenimento. Se eu mesmo fizesse parte da Academia, eu brigaria para dar a ele, no mínimo, o Oscar de melhor edição – uma categoria para a qual, ironicamente, ele nem está indicado. Scorsese mais uma vez mostra que é muito bom no que faz, mas será que merece ser premiado por esse filme?

Vejamos. Primeiro, ele é longo demais – mas isso não é exatamente um obstáculo para este blogueiro que tanto gosta de textos longos. Por exemplo, vi “Azul é a cor mais quente” e não tiraria nem um minuto das suas mesmas três horas. Mas a narração é por vezes insuportável – e cenas e diálogo se arrastam muito tempo depois de justificarem sua inclusão. DiCaprio se esforça para não ser Gatsby – ou Hoover, ou Howard Hughes – mas em cada close o que vemos é aquela cara conhecida, talvez já um pouco marcada pelo tempo. Com Scorsese, ele trabalha em uma zona de conforto – como um ator de novela que volta sempre ao mesmo personagem. E nós, que aprendemos a gostar dele depois de anos de exposição, dificilmente questionamos sua atuação. “Lobo” é um bom momento para você avaliar isso – e meu palpite é que você vai encontrar o “bom e velho Leo” por trás da máscara de Jordan Belfort.

Ele é o personagem principal de “Lobo de Wall Street”, e chega às telas com um “timing” impressionante: bem na hora que todo mundo está odiando aquela categoria de profissionais que faz dinheiro de um jeito só: mexendo com o dinheiro dos outros. E, no caso de Jordan, jogando esse mesmo dinheiro pela janela. Não foi ontem mesmo que um punhado de pessoas se batizaram de “Occupy Wall Street”?

Pois é, mas algo de muito estranho acontece ao longo de “Lobo”: nós vamos ficando fascinados com aquele personagem. E aos poucos ele é um objeto não de escárnio, mas de inveja. Isso mesmo: antes mesmo de ele se tornar mega milionário, já queremos seu estilo de vida. Está errado – sua consciência vai logo te lembrar. Mas é assim que nós somos. E acho que não preciso de um filme como “O lobo de Wall Street” para me lembrar disso. É divertido? É. Serve como isca de Oscar? Serve. Mas é bom mesmo? Bom, isso é com você.

Eu mesmo prefiro filmes que fiquem comigo mais tempo do que os minutos que separam a sala de cinema do estacionamento do shopping. Filmes como “Pais e filhos”, por exemplo, do japonês Hirozaku Koreeda. Incrível como toda vez que penso em falar neste filme, já escrevi demais… Mas de todos que comentei aqui hoje, este é realmente o único que eu recomendo. Pelo menos até “Ela” estrear. Ah se eu pudesse descobrir quando, naquele site de ingressos…

O refrão nosso de cada dia: “Do it like a robot”, Princess Superstar – para sair do “piloto automático” (a tal “isca de Oscar” que falei hoje), nada melhor que essa doida, que é a rapper mais injustamente desconhecida que eu conheço. A música original já é boa. Mas remixada por DJ Hell, assume contornos de obra-prima. Tudo que ela não está fazendo é repetindo as coisas como um robô… Como todo mundo adora fazer…

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Coutinho

seg, 03/02/14
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Talvez você seja um dos que se pergunta desde ontem quem é esse cineasta, “um tal” de Eduardo Coutinho, que está no noticiário, pelo triste fato de ter sido assassinado, aos 80 anos, por um de seus filhos? “Como assim?”, você tem se questionado, “Eu que vou sempre ao cinema, que não perco uma estreia, não tenho ideia de quem é Eduardo Coutinho – e agora todo mundo (inclusive este que vos escreve) está o chamando de gênio!”.

É provável sim que você nunca tenha assistido a um de seus filmes. Primeiro, porque ele se especializou num gênero que, no Brasil, ainda é ingratamente recebido pelo grande público: o documentário. E mesmo dentro deste nicho, Coutinho exigia um pouco mais do seu espectador do que a atenção fragmentada que uma simples colagem de entrevista e imagem de arquivo – a fórmula mais manjada de documentário – poderia oferecer. Não quero dizer que o trabalho de Coutinho era para poucos. Pelo contrário: tenho certeza de que um filme como “Cabra marcado para morrer” ou mesmo “As canções” (seu último trabalho lançado comercialmente) têm potencial para emocionar um público de milhões. Mas esses são os nossos tempos – dias em que trabalhos preciosos como esses dois títulos que citei (extraídas aleatoriamente de uma obra ainda maior) perdem-se em meio a uma cada vez mais estridente cacofonia de som e fúria. Não exatamente como Shakespeare definiu em “Macbeth”, mas eu divago…

Se algo de positivo pode sair de uma tragédia como essa morte, quem sabe a curiosidade de quem nunca havia ouvido falar dos filmes de Coutinho possa despertar um novo interesse em seu trabalho. Ontem mesmo, descansando em casa, assim que soube da notícia, revi um trecho de “Jogo de cena” – que é, para mim, não só o seu melhor trabalho (mais sobre ele daqui a pouco), mas também um dos melhores filmes de toda a antologia do cinema brasileiro. Quem sabe mais gente não tenha uma atitude como essa, e além de um trechinho, assista não só ao filme inteiro, como a todos os outros que Coutinho nos deixou.

Se você ainda está na dúvida se deve ou não conferir sua filmografia, deixe eu dar um último “empurrãozinho”: uma vez que você vê um trabalho de Coutinho, ele nunca sai da sua cabeça. Vou dar um exemplo recente para ilustrar isso: semana passada, saindo ligeiramente agitado de uma sessão de “O lobo de Wall Street”, achei que seria recomendável que eu acalmasse os ânimos com um filme japonês – no caso, o bem falado “Pais e filhos”, que está em cartaz em cinemas selecionados em algumas capitais brasileiras. (Eu ia falar sobre esses dois filmes aqui hoje, mas por conta do incidente com Coutinho, adiei o assunto para quinta-feira, e conto com sua compreensão). O filme de Hirokazu Koreeda é excepcional – daqueles que fazem você sair chorando do cinema, e seguir chorando enquanto está dirigindo até sua casa, aí chegar em casa, procurar um canto bem confortável, e continuar chorando.

Mas por uma curiosa associação de ideias, em algum momento da minha emoção, pensei que, em vários momentos, “Pais e filhos” parecia ser um documentário – e, se fosse um mesmo, pela sensibilidade das cenas escolhidas para entrar na edição final, poderia ter sido um documentário dirigido por Eduardo Coutinho. Porque ele tinha não só as ideias mais geniais para expandir os limites do gênero (e aí, insisto, “Jogo de cena” é uma obra definitiva), mas também um olhar de poeta sobre um material que é sempre precioso, mas nem sempre valorizado por outros autores: a vida.

Eu tinha acabado de sair da faculdade, no meio dos anos 80, quando assisti a “Cabra marcado para morrer” pela primeira vez. Se ver documentários já é um exercício excêntrico hoje em dia, imagine trinta anos atrás! O filme, no entanto, chamou a atenção deste jovem recém-formado pelo enorme barulho que fez na imprensa na época. E não por acaso: uma investigação sobre o assassinato de um líder camponês (morto em 1962), que foi interrompida em 1964 por conta do golpe militar de então, e retomada 17 anos depois? A premissa era irresistível. Como faço questão de frisar, vi “Cabra” com “olhos de universitário” e fiquei tão encantado que lamentei não ter nenhuma vocação para o cinema – pelo menos não a vocação suficiente para sair com uma câmera na mão fazendo documentários, um impulso que trabalhos como o de Coutinho são sempre capazes de inspirar.

Anos se passaram – quase duas décadas, aliás – até que um de seus filmes voltasse a chamar minha atenção. E ele foi, claro, “Edifício Master”. A escolha de Coutinho não poderia ser mais simples: desta vez, ele quis mostrar moradores de um prédio em Copacabana, no Rio de Janeiro. E como ele resolveu mostrar esses moradores? Abrindo sua câmera e dando total liberdade a eles. Lembro-me de um cartaz da época (2002) que dizia: “Um filme sobre gente como você e eu” – e isso, claro, mexeu com minha imaginação. A frase – quase um slogan, um instrumento de marketing (se é um documentário brasileiro um dia já mereceu uma campanha dessas) – parece fácil, não fosse por um pequeno detalhe: o “eu”. “Um filme sobre gente como você” é mais fácil de vender – a gente quer se identificar com o que vê na tela, sempre. Mas o que aquele “eu” estava fazendo ali?

Ora, o “eu”, numa primeira interpretação, era o próprio Coutinho – que, de cara, se colocava no mesmo plano de quem estava sendo entrevistado. Só que as leituras possíveis – do “slogan” e do próprio filme – iam muito além. O “eu” podia ser quem estava filmando, mas também quem estava assistindo – ou mesmo quem estava dando um depoimento. Não era tudo a mesma coisa, um filme sobre todos nós? Um microcosmos de Copacabana nos sugerindo que o mundo inteiro é daquele jeito? Parte voyerismo, parte revelação, aquele conjunto de entrevistas mexe com qualquer espectador. E cada história, a princípio ordinária, vai aos poucos se revelando extraordinária – quase como uma ficção. Que é, diga-se, a ficção que nós mesmos vamos escrevendo a cada dia.

Depois de “Edifício Master”, Coutinho “rebateu” com um documentário sobre “companheiros” de luta do então recém-eleito presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. As aspas de “companheiros” não são gratuitas: Coutinho entrevistou metalúrgicos do ABC que foram figuras importantes no movimento grevista da virada da década de 70 para 80, mas que não seguiram uma fulgurosa carreira política como Lula. Esse dificilmente poderia ser chamado de um filme sobre gente “como você e eu”. Para a maioria dos espectadores, este era um filme sobre “o outro”. Mas um “outro” que você deveria conhecer melhor, porque é esse “outro” que estava mudando a sociedade que você vive.

Não vi até hoje “O fim e o princípio”, o trabalho seguinte de Coutinho – uma falha que devo corrigir em breve, mas o diretor já era um septuagenário quando nos apresentou “Jogo de cena”, sua obra-prima (novamente, na opinião deste modesto admirador). Chamo a atenção para a idade de Coutinho por pura provocação: quem acha que os melhores anos de um criador estão nas primeiras três décadas de sua vida, deveria ver mais os filmes de Eduardo Coutinho. Porque “Jogo de cena” é genial. Simplesmente genial. Escrevi sobre ele aqui mesmo neste espaço e, entre tantos elogios que fiz, o principal tinha a ver com o fato de ele conseguir tantas coisas com tão pouco. O “tão pouco” tinha a ver com o cenário simples de uma plateia vazia de teatro, onde todas as entrevistas eram gravadas. E as “tantas coisas” são as emoções que vivemos ao longo do filme – alegria, raiva, indignação, pena, uma incontrolável vontade de chorar, surpresa absoluta com o desfecho de quase todos os depoimentos…

Atrizes conhecidas (Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres) se revezam com caras familiares (possivelmente atrizes que vimos com menos frequência), e rostos totalmente desconhecidos. E todas têm uma história para contar. E que histórias… Você, como espectador, é um mero refém num labirinto onde o caminho da realidade e ficção se confundem. Ou ainda: aos longo das narrativas, a grande lição que Coutinho nos dá – de maneira mais contundente ainda do que em “Edifício Master” – é de que essa divisão é ridícula, quando estamos falando de seres humanos. Eu rogo: veja (ou reveja) “Jogo de cena”. Você nunca mais vai se sentar em uma sala de cinema da mesma maneira.

Só “reencontraria” Coutinho novamente em 2011, quando vi “As canções” – outra curiosa exploração entre realidade e ficção, ou melhor, um passo além na sua missão de mostrar que histórias inventadas e histórias vividas são, no final das contas, uma coisa só. As entrevistas desta vez eram em torno de músicas – músicas que marcaram as pessoas em determinadas épocas da sua vida. Coutinho habilmente pedia para que as pessoas falassem sobre essa intersecção entre arte (a música de um ídolo) e vida (a experiência pessoal), e o resultado é não só emocionante – como já era de se esperar – mas também instigante: em vários momentos do filme me peguei lembrando músicas que foram (e são) importantes para mim. E pensei: “danado esse Coutinho… ele conseguiu de novo…”.

Não sou capaz de imaginar ninguém que esteja fazendo algo que chegue sequer perto do que Eduardo Coutinho fez. Falar em lacuna, diante de uma morte tão bizarra e triste, é cometer não apenas o pecado do clichê como reduzir uma obra fenomenal a uma epígrafe simplista. Se não vamos mais ter seu olhar, prefiro deixar como últimas palavras em sua homenagem (e uma forma de agradecimento) um desejo de que ele inspire mais de uma geração de cineastas para que sigam na árdua e corajosa tarefa de nos confundir e ao mesmo tempo nos iluminar.

Cinema, né gente?

O refrão nosso de cada dia: “That’s how people grown up”, Morrissey – por falar naquela experiência que “As canções”, de Eduardo Coutinho, me fez passar, quero hoje deixar esta música de Morrissey aqui para você ouvir. Estive com ela na cabeça durante todo o fim de semana. Lembrando, ironicamente, de gente que, mesmo ouvindo essa música, dedicada com todo carinho, nunca soube realmente crescer…



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