Missão impossível: os 100 melhores filmes de todos os tempos

seg, 29/07/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Uma semana em que vi dois filmes sobre suicídio – “Oslo, 31 de agosto” (do norueguês Joachim Trier) e “Como na canção dos Beatles – Norwegin Wood” (do vietnamita Tran Han Hung) – talvez não seja a melhor ocasião para celebrar a grandeza do cinema. (Ou talvez, justamente pela sensibilidade desses dois filmes, essa grandeza deva ser celebrada – mas eu divago, e estamos só no começo…). Mas eu já estou há algumas semanas querendo falar da lista recém-publicada pela “Entertainment Weekly” dos “100 melhores filmes de todos os tempos” – então, aqui vai! No início de julho, a revista, uma espécie de “bíblia” contemporânea da cultura pop, embarcou num projeto ousado: não só essa lista, mas outras centenas duvidosas – os melhores livros, séries de TV e discos de todos os tempos (e ainda uma relação mais enxuta com as 50 melhores peças).

Cada um dessas seleções, claro, mereceria um post. A de música sobretudo (especialmente para mim) é particularmente provocadora. Aliás, como todas as listas desse tipo devem ser – eu que um dia ousei publicar aqui as minhas 1.000 músicas favoritas sei bem disso. Mas fiquei especialmente perturbado com a relação dos 100 melhores filmes de todos os tempos – e por motivos que explico a seguir, quis então sugerir uma brincadeira em cima dela.

O que me incomoda na lista é a falta de espaço para produções mais contemporâneas. Segundo a “EW”, qual década você acha que tem o maior número de “clássicos” do cinema? Se pensou nos anos 70, acertou: 20 filmes – quase todos inegavelmente sensacionais (“O poderoso chefão”, “Tubarão”, “Apocalypse now”, “Laranja mecânica”, entre outros) – foram lançados nessa época. Os anos 60 comparecem com 17 filmes – que vão de “007 contra Goldfinger” a “2001: Uma odisseia no espaço”. O mais antigo da lista é “Intolerância”, de 1916 (o único desta década), e os mais recentes, “Guerra ao terror” e “O cavaleiro das trevas”, ambos de 2008. Nenhum filme destes nossos anos 10 registram na lista elaborada pelos críticos da revista, Owen Gleiberman e Lisa Schwarzbaum.

Sou fã de ambos de longa data – especialmente de Schwarzbaum, que tem um gosto muito próximo do meu. Mas devo insistir que fiquei perturbado com os filmes que eles selecionaram. Tentando entender suas escolhas, fui pesquisar a idade desses críticos. Lisa nasceu em 1952 e Owen em 1959. Ora… Isso significa que eles estavam no auge da sua adolescência nos anos 60 – e na melhor parte da sua juventude nos anos 70. Hum. Exatamente na época em que a gente costuma – ou pelo menos costumava – ir mais ao cinema, uma diversão sempre barata para jovens sem muito dinheiro sobrando, e ainda estimulante. Ainda: foi nessa época, claro, que eles começaram a se interessar profissionalmente por cinema – e assimilar melhor tudo que viam. Logo… Isso pode ser uma explicação pela alta concentração de filmes dos anos 60/70 na lista que elaboraram.

Como bons críticos que são, olharam um pouco para trás para mostrarem respeito por alguns “Clássicos” – com “C” maiúsculo mesmo – adivinha qual é o filme número 1 da “EW”? “Cidadão Kane” (1941), claro. (Outras títulos recorrentes em listas do gênero também estão lá, de “…E o vento levou” a “Mágico de Oz”). Owen e Lisa ainda abriram espaço para décadas mais recentes. Há nove filmes dos anos 80 (“E.T.”, por exemplo), dez dos anos 90 (inclusive, para minha surpresa, “Tudo sobre minha mãe”), e apenas cinco do século 21 – aliás, só dos anos 00. Um monte de títulos ficaram de fora – o que é inevitável. Fazer justiça ao talento de inúmeros cineastas, atores, atrizes, e tantos outros profissionais envolvidos na produção de mais de cem anos de filmes é tarefa inglória. As homenagens simplesmente não cabem em uma centena.

Eu gosto de imaginar que a primeira lista que Lisa e Owen fizeram tinha mais ou menos mil títulos – e aí eles começaram a lapidar… E o fizeram muito de olho na própria credibilidade deles como críticos: para continuarem a ser respeitados, eles não podiam deixar de fora filmes como “O falcão maltês”, “Olympia”, “Ladrão de bicicletas”, “Cantando na chuva”. Mas o preço disso é ter que deixar de fora boa parte da produção recente – e qualquer pessoa que goste de cinema vai concordar comigo quando digo que o cinema contemporâneo vem nos oferecendo filmes estupendos. Mas será essa uma armadilha inevitável que o próprio cinema criou para seus fãs?

Na busca de uma alternativa, resolvi eu também fazer uma lista – um projeto, aliás, tão antigo quanto a tão relação das minhas 1.00o músicas favoritas. Eu também vou escolher 100 dos melhores filmes que eu já assisti no cinema – e o truque dessa vez está no próprio critério da lista. Por “filmes que já assisti no cinema”, entenda-se “títulos que foram lançados depois que eu passei a frequentar salas de projeção”. Colocando esse “filtro”, fico livre então da obrigação de citar os tais clássicos de sempre. Não que eles não sejam marcos importantes na história do cinema – quem sou eu para discordar de um coro sólido de cinéfilos? Mas selecionando entre os filmes que eu realmente assisti nos cinemas na época em que foram lançados eu não só me sinto mais à vontade de falar pela minha geração, como dou um tom mais contemporâneo à lista. E é exatamente isso que eu eu vou fazer agora.

Vou começar apenas com 10 hoje – e darei mais 30 a cada novo posts. Como sempre faço quando embarco num projeto desses, reforço que é uma seleção ultraidiossincrática e pessoal. Não pretende abalar os pilares dos acadêmicos de cinema, muito menos questionar o seu gosto particular – seja você da minha geração ou não. Este é um parágrafo que dedos mais nervosos para escrever um comentário me questionando (quando não insultando) certamente vão passar por cima (você vai ver nas reações que estou falando a verdade…), mas que mesmo assim acho importante escrever. Escolhi esses filmes por critérios que eu mesmo nem sei explicar – talvez, se tentar esboçar minhas razões, eu tenha usado minha memória do que senti quando saí das sessões dessas produções. Mas nem disso eu tenho certeza. É uma lista solta – um exercício de diversão e (superficial) reflexão sobre tantos anos como espectador.

Ainda, não é uma lista em ordem de preferência. Vou numerá-la apenas por uma questão de ordem, e não pelo valor que dou a cada escolhido. Todos esses filmes me impactaram de alguma maneira – e é isso que vou tentar descrever nos breves textos que acompanham cada título. Não vou entrar em detalhes de roteiro nem produção – apenas contar brevemente como cada um deles mexeu comigo. Pode ser divertido para você também. Ou pode ser que você fique ligeiramente incomodado – como eu fiquei com a “Entertainment Weekly”. De qualquer maneira, convido você a me acompanhar nessa experiência. Apague a luz e relaxe…

1) “Pulp fiction – Tempo de violência”, de Quentin Tarantino (1994) – os créditos acabam, as luzes começam a serem acesas, e você se pergunta: o que aconteceu? Até hoje eu não sei direito. Com uma narrativa totalmente imprevisível e uma iconografia que o próprio cinema preferia jogar para baixo do tapete (isto é, todo o universo dos filmes B de Hollywood), Tarantino pegou todo mundo de surpresa – até mesmo seu “astro ressuscitado”, John Travolta. O diretor já prometia (“Cães de aluguel”) e ainda iria se superar (“Kill Bill”, “Django livre”). Mas foi com “Pulp fiction” que ele provou que existia público para um cinema que fosse ao mesmo tempo “trash” e sofisticado. Sem contar que a influência dele pode ser sentida até hoje, de sucessos contemporâneos como “Tropa de elite” a pistas de dança de casamentos caretas, onde as pessoas que já beberam um “meia-de-seda” a mais do que deviam começam a se mexer como Uma Thurman e o próprio Travolta…

2) “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, de Michel Gondry (2004) – poucas coisas são tão satisfatórias quanto um filme que faz você achar que entendeu a sua história, só para destruir tudo na cena seguinte e provocar seu raciocínio infinitamente. “Brilho” faz exatamente isso – e quase pede para ser visto mais de uma vez. Não porque você não tenha captado alguma coisa da história mais que original, mas porque você quer entender melhor como sua mente foi levada a extremos tão improváveis. O roteiro (Charlie Kauffman) é simplesmente brilhante. O visual delirante. E a atuação de Jim Carrey e Kate Winslet está entre as melhores coisas que ambos já fizeram. Faz tempo que não revejo este filme… Eu acabo me esquecendo que como ele é um bom lembrete para que a gente não se vergue diante de histórias tolas e banais.

3) “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen (1985) – prepare-se para encontrar alguns filmes de Allen até o final desta lista. Mas eu tinha que começar com esse, nem que fosse pelo simples fato de que “Rosa púrpura” fala exatamente sobre o fascínio que o cinema é capaz de exercer sobre nós. Como Cecilia (a personagem impecavelmente vivida por Mia Farrow), nós temos vontade de voltar mais e mais ao cinema para rever aquilo tudo, e sentir tudo que sentimos de novo, como se fosse a primeira vez. Amigos que têm filhos pequenos não se cansam de comentar que já perderam a conta de quantas vezes as crianças pedem para assistir a “Carros” ou ao “Rei Leão”. Eu sou exatamente assim com este filme de Woody Allen – e com alguns outros que você vai saber nos próximos dias.

4) “Toy story 3″, de Lee Unkrich (2010) – chocado com a escolha? Então eu digo que você não tem coração. Boa parte das listas de melhores filmes (inclusive esta da “EW”) faz questão de incluir o primeiro “Toy story” entre eles. É genial, não vou discutir. Mas uma vez que nunca tive a experiência de assistir a ele quando era criança – já estava bem nos 30 anos quando da sua estreia – foi esse terceiro que falou mais comigo. Tem aventura – os brinquedos no triturador! Tem comédia – o que é aquele Ken mostrando seu guarda-roupas? E tem o final mais triste que já vi num filme que foi feito principalmente para crianças. Não falo de uma tragédia ou coisa parecida. Aliás, as crianças nem percebem que o final é triste. Mas nós, adultos, sabemos muito bem o que é perder a inocência de se divertir com seus brinquedos – e o quanto nos custa passar essa sabedoria para os nossos filhos. E é por isso que choramos no final de “Toy story 3″.

5) “Amnésia”, de Christopher Nolan (2000) – quando este filme foi lançado em DVD, veio com uma versão da história contada de maneira linear, com os fatos se sucedendo assim como na vida real, um atrás do outro. Não tem a menor graça – e eu diria até que nem faz sentido. A originalidade de “Amnésia”, que colocou Nolan no cenário mundial do cinema, está em jogar um quebra-cabeças para cima e apostar que o público vai ser capaz de encaixar todas as peças. É exatamente isso que acontece cada vez que vejo esse filme. E mesmo que você já saiba como vai ficar tudo no final, eu duvido que você não consiga sempre se surpreender.

6) “Nove rainhas”, de Fabián Bielinsky (2000) – o filme que apresentou o argentino Ricardo Darín para os brasileiros (e para o mundo) tem outros méritos. O maior deles, talvez, de ter um roteiro perfeito para te seduzir até o final – e quando você chega lá é descaradamente chamado de trouxa. E com prazer! Frenético (experimente piscar durante uma cena), espontâneo (Gastón Pauls é um parceiro perfeito para Darín), e divertido (de onde surgiram aqueles personagens?), “Nove rainhas” permanece injustamente um segredo para poucos. A morte prematura de seu diretor não ajudou – e Hollywood, que ousou fazer sua versão para um dos roteiros mais fascinantes que eu já vi, parece que não se deu bem. Cá entre nós, prefiro rever esse filme argentino até o fim dos meus dias…

7) “Boogie nights – Prazer sem limites”, de Paul Thomas Anderson (1997) – pegando uma forte carona em “Pulp fiction”, o “breakthrough” de Anderson faz um retrato dos anos 70 exatamente como eles eram – alucinantes e vazios. Num estilo que ele ainda iria aprimorar nos seus trabalhos seguintes, o diretor trabalha sua história como uma sinfonia – e tudo que podemos fazer é nos integrar a ela. “Boogie nights” pode ser descrito com um retrato do submundo da pornografia – numa época em que ela ainda tinha um certo verniz. Mas isso seria diminuir um filme cheio de nuances e ousadias narrativas – e não estou nem falando da prótese que Dirk Diggler (Mark Whalberg) ostenta em uma cena crucial…

8 ) “Ondas do destino”, de Lars von Trier (1996) – o diretor dinamarquês é uma usina de experimentação cinematográfica. Já fez filme mais desestruturados que esse (por exemplo, “Dogville”), mais torturantes (“Dançando no escuro”), e outros ainda mais melancólicos (o próprio “Melancolia”). Mas nada é tão perverso e arrebatador quando a história de amor entre Jan (Stellan Skarsgard) e Bess (Emily Watson definindo os limites da loucura na arte da interpretação). Curiosamente, minha lembrança é a de ter saído do cinema leve – quase que de alma lavada, sabendo que tem gente que passa por isso no amor (assim eu não preciso passar). Mas seu efeito é como o de uma bomba de hidrogênio – vem depois e vem feroz. Até hoje volto a “Ondas do destino” quando preciso de refúgio emocional.

9) “Eleição”, de Alexander Payne (1999) – provavelmente ninguém lembra deste filme. O que é uma pena. Com um roteiro relativamente simples – uma eleição em um colégio –, o filme é um retrato perfeito (e sujo) sobre a luta pelo poder. A carreira de Reese Witherspoon foi lançada aqui. A de Matthew Broaderick foi consolidada com “Eleição”. E Hollywood ganhou um diretor bastante original (cujo filme mais recente foi “Os descendentes”, com George Clooney). Muitos dirão que o filme não tem nada demais. Eu rebato dizendo que tudo está lá, sutil e inteligentemente colocado. É só assistir…

10) “32 curtas metragens sobre Glenn Gould”, de François Girard (1993) – antes de tudo sou grato a este filme por me apresentar às “Variações Goldberg”, de Bach. Tenho um conhecimento tão limitado quanto apaixonado pela música clássica, e sempre dependo do acaso para me identificar com alguma peça. “32 curtas” me deu esse presente – e mais: a cada vez que eu ouço as “Variações” cada um daqueles pequenos filmes me vêm à memória, com suas nuances, detalhes, discursos e – sendo Glenn Gould – ruídos. Algumas entrevistas são hilárias e outras tocantes. E algumas das imagens tão líricas, que descrevê-las aqui não faz justiça ao conjunto da obra (de que adianta saber que uma das variações é ilustrada apenas com imagens de raio-x?). Tem que ver tudo…

Continuamos na quinta?

 

refrão nosso de cada dia
“Don’t shake it”, Cornershop (com Bubble Kaur) (  https://m.youtube.com/watch?v=M01VjQRI7zo ) uma de minhas bandas favoritas, que não cito aqui faz tempo. Hoje fiquei a fim de lembrar deles para abrir bem a semana. Que alegria dessa música te acompanhe nesses dias em que o Papa veio, se foi, e deixou o espaço aberto para a gente se entender melhor…

O que você vai ser quando você crescer

qui, 25/07/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

A reação era quase previsível. Tentei argumentar que, mesmo com todo o talento, o último esforço de uma banda popular não estava à altura do próprio trabalho dela – e pronto: fãs de plantão responderam em uníssimo que eu não havia entendido nada… Típico. Mais típico ainda era a natureza das respostas defendendo a, hum, integridade da banda, como se tudo que eles precisavam saber sobre música pop estava contido ali mesmo, no próprio conjunto da obra dos garotos.

Tentei me imaginar com 14/15 anos, defendendo um artista que eu adorava. Donna Summer? The Clash? Blondie? (Aos que chegam agora, vale lembrar que sempre ressalto essa minha formação musical bipolar, uma vez que, na adolescência, gostava em partes iguais da “disco” e do punk). Dificilmente esses artistas dessa época precisavam de defensores. A música que eles faziam dizia tudo. Talvez um ou outro nome precisasse de uma força – estou pensando em um artista mais, hum, complicado, como Dee D. Jackson ou Classic Nouveaux. Mas eles são, claro, as exceções. Pode achar que estou distorcendo um pouco as coisas quando digo isso, mas sempre tive a sorte de gostar de músicas que eram boas por si só, sem que seus artistas precisassem ser pessoas incríveis, ter um belo coração, passar por desafios enormes a caminho do sucesso, ou simplesmente serem bonitinhos ou bonitinhas.

Se por acaso a palavra “sempre” lhe escapou no último parágrafo, eu quis dizer que era assim quando comecei a prestar atenção à música – e é assim até hoje. Quando ouvi “What makes you beautiful” pela primeira vez, logo vi que tinha encontrado o que costumo chamar de “ouro pop” – uma música genuinamente boa, espontânea, surpreendente, e que tinha aquela capacidade única de não sair mais da sua memória. Não muito diferente de outras coisas que eu ouvi na mesma época, mas que não tiveram a sorte (porque afinal, entre tantas coisas, o pop também é feito de sorte) de estourar. Deixar os ouvidos abertos para isso é um exercício diário. Foi assim que eu descobri, nos últimos dias, coisas tão boas quanto Young Fathers, David Lamaitre, Azelia Banks e… Ivo Mozart (que, insisto, é uma voz estupenda à procura de um repertório).

Não tenho muita fé que as fãs de One Direction que correram em defesa da sua banda favorita tenham a curiosidade de explorar sequer um dos artistas que acabei de mencionar. A crueldade do pop é fazer as pessoas acharem que tudo que elas precisam elas já têm – tudo numa banda só. Nossos ouvidos são bem mais inteligentes e versáteis do que isso, mas só quando estamos fora desse “transe pop” somos capazes de usá-los em todo seu potencial. E acho que nesses 50 anos que ostento com orgulho, consegui manter esse canal desimpedido. Mesmo sem ter a pretensão de que alguém que me lê vá fazer o mesmo, afirmo que ouvi – e ouço – de tudo. E é exatamente isso que torna minha experiência do pop mais rica.

Aliás, isso é algo que eu poderia dizer em qualquer fase na minha vida. Ao contrário do que pode parecer, não foi a idade que me ensinou isso – essa abertura vem de longe. Ela fica cada vez mais interessante conforme os anos passam, é verdade. Mas em qualquer corte que você fizer na minha discoteca, vai achar bem mais de um exemplo de bom pop. 1977? 1986? 1992? 1999? 2003? 2010? 2013? Tenho um punhado de coisas fascinantes acumuladas em qualquer um desses períodos. E quero mais. Divirto-me com tudo. Até mesmo com as respostas de fãs que não entendem nada do que eu falo – simplesmente descartam minha opinião, com um dos argumentos mais fáceis e imediatos, especialmente quando você tem menos de 20 anos: é coisa de velho.

Como alguém que celebra a idade com toda a transparência, acho esse argumento um dos mais enigmáticos, se não hilário. Não tenho dúvidas de que ele é sempre usado no sentido de me desacreditar como porta-voz de cultura pop (uma contradição, uma vez que mesmo quem não concorda comigo vem até aqui para saber do que eu estou falando); ou, mais curioso ainda, de me ofender, como se eu tivesse vergonha desses 50 anos – que estão tão longe de ser motivo de constrangimento quanto a possibilidade de a carreira do One Direction chegar intacta a 2043 (o ano em que a maior parte de seus membros ganhará um bolo com 50 velinhas). Posso garantir que esse assunto não só não me ofende como me interessa muitíssimo. Tanto que estou escrevendo um livro sobre isso.

Devo lançá-lo no mês que vem, num formato exclusivamente digital (prometo mais detalhes quando a data se aproximar), com o título provável de “Cabeça, tronco, membros – e outros obstáculos aos 50″. Como você pode perceber, escrevi olhando para mim mesmo com altas doses de ironia. Comecei a rabiscar alguma coisa nas minhas últimas férias, quando estava sozinho na Islândia. Não havia inicialmente nenhum compromisso maior do que fazer anotações sobre o que estava acontecendo com meu corpo ao completar cinco décadas de existência. Mas, como sempre, comecei a divagar… E no final, acabei com um livro – que eu acho que pode interessar não apenas quem está na minha faixa etária, como a todos que um dia esperam chegar lá.

Sem contar o saudável exercício de olhar para dentro e refletir, o livro é, entre tantas coisas, uma celebração. Isso mesmo: chegar aos 50 deve sim ser uma celebração, jamais um lamento. Se você tiver a oportunidade de ler o livro, quando sair, vai entender perfeitamente o que estou dizendo. Aliás, para agradecer sua fidelidade – você que vem aqui sempre, e dedica seu tempo a essas nem sempre mal traçadas linhas – vou oferecer um trecho desse novo livro. São apenas alguns parágrafos, que selecionei da introdução – onde eu explico justamente porque resolvi escrevê-lo e, de maneira geral, minha relação com a idade que chegou. Mas esse trecho já dá o tom da minha reflexão – e, quem sabe, te convida a fazer o mesmo, mesmo que você nem tenha chegado ainda aos 20. Afinal, 50, como sugere o título do post de hoje, é o que você vai ser quando você crescer (e, mais uma vez, obrigado Renato – pela inspiração).

Aqui vai:

“Ou veja a questão da minha silhueta. Nem quando eu dançava, quando a barriguinha não era uma preocupação, mas sim algo que precisava – ó ironia – ser preenchida, nunca portei aquilo que se conhece por “tanquinho”. (Também nunca queria ter um, mas para você acreditar em mim vai ter que ler o capítulo sobre minha barriga). O que me incomodava agora, no entanto, era não a falta de um desenho, mas a linha que ela teimava em não retroceder: uma curva modesta, ainda que persistente, logo abaixo do umbigo: como uma lombada que suavizava seu olhar antes de chegar no ventre – ou ainda, um pedágio que você tinha que pagar para tentar se admirar (algo cada vez mais difícil). Obstáculos como esses começaram a pipocar: um tornozelo um pouco mais inchado; um torso que já não resplandece tanta firmeza; um pescoço que já não se alonga; uma respiração que por vezes não comparece. Mas nada disso me derrubou – até que um dia eu vi, ou melhor, eu percebi, aqueles pelos atrás do meu braço.

Como eles foram parar lá? – foi a pergunta que eu fiz, quase como um reflexo. Simplesmente brotaram? Claro que não. Mas se foram crescendo aos pouco, primeiro como uma comportada gramínea de tamanho moderado, até chegarem a esse estado de um cabelo de medusa rebelde, como eu não havia sido avisado disso? Não considerava justo chegar um dia, depois de esbarrar os olhos involuntariamente nessa região que era enxugada por uma felpuda toalha, e perceber que ali havia se instalado mais um insensível sinal de que eu estava ficando velho.

Vale aqui um breve esclarecimento quanto a minha relação com essa palavra. Não a uso no sentido pejorativo, uma vez que sempre aprendi a não ter outra coisa se não respeito às pessoas que, desde minha juventude, eu podia encaixar nessa categoria. Pelo contrário, sempre me diverti com pessoas mais velhas e mais moças – ou ainda, sempre me diverti com a mistura entre elas. Acho, há tempos, que a inteligência e a ironia que vêm com a idade são o complemento perfeito para a curiosidade e a ousadia da adolescência. Por isso, quando falo que estava começando a me sentir velho, não coloco nenhum juízo de valor: é mais como se eu tivesse ganho um novo carimbo no meu passaporte, depois de ter visitado um novo país. Islândia? Papua Nova Guiné? Tuvalu? Já conheci todos muito bem. Mas essa “terra distante” chamada Velhice agora se apresenta como um território a ser desbravado. Pegue a enxada, digo, a bengala e siga comigo!”

O refrão nosso de cada dia – “Deep”, East 17. Para encerrar o assunto e provar que eu não tenho problema nenhum com “boy bands”, desde que elas façam um bom pop, aqui vai uma das minhas músicas favoritas no gênero. Quando eles surgiram, no começo dos anos 90, os meninos do East 17 foram logo chamados de clones do Take That – outra banda que as mulheres de 40 anos hoje devem ter saudade. Mas com uma ótima produção musical, eles soltaram uma meia-dúzia de “singles” que até hoje não saem do meu “playlist”. E “Deep”, com seu baixo mortal (cuidado com suas caixas de som ao ouvir a música), é sem dúvida a melhor delas – e que refrão! Pergunto onde andará Tony Mortimer esses dias… Soube que, numa curiosa encruzilhada do destino, o East 17 fez recentemente uma participação especial no programa de onde vieram os garotos do One Direction, o “X Factor” – só que da Romênia! Mas eu divago

Pop!

seg, 22/07/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Pois é, explodiu. O pop explodiu – embora não exatamente da maneira que essa expressão poderia ser usada, digamos, nos anos 60, ou 80 (ou mesmo na década 00). Lancei esse assunto aqui mesmo na semana passada, mais como uma provocação. E hoje, depois de ter carinhosamente acompanhado o que está acontecendo nesse cenário, conclui, pesarosamente, que o pop finalmente explodiu. Ou ainda, implodiu – cumprindo, perversamente a profecia de uma banda chamada Pop Will Eat Itself (coisas dos anos 80, deixa pra lá).

Primeira evidência: a melhor música de todos os tempos finalmente foi anunciada esta semana e… ela não é nem a melhor música de 2013, que dirá da eternidade! Fãs do One Direction previsivelmente vão protestar, mas quando a banda “jovem” mais popular do planeta (pelo menos em julho de 2013) coloca o nome de “Best song ever” numa música, é melhor ela estar preparada para um certo toque de humor na avaliação do seu trabalho. Antes de você pensar em escrever uma resposta nervosa em defesa do One Direction, devo dizer que “Best song ever” não é ruim. Mas ela está bem aquém da capacidade dos garotos – ou do time por trás dos garotos –, que já ofereceram ao mundo “Gotta be you” (provavelmente o melhor uso de violinos no pop dos últimos 10 anos); “One thing” (que, na incrível versão acústica, encosta no que o próprio pop dos anos 60 tinha de melhor); e o insuperável tema de Nissim Ourfali (meia palavra basta?).

Em um ou outro canto da música, há indícios de que ela poderia ser tão boa quanto esses outros sucessos. Mas, de certa maneira, o One Direction acabou sendo vítima do próprio sucesso internacional: a fim de agradar todo o mundo (literalmente), os produtores foram misturando tudo na mesma canção. “Best song ever” vai das guitarras pesadas ao som de balada – com toques de música latina, uma pitada de hip-hop, outra de gospel, um dedinho de Black Eyed Peas (alguém falou em “I got a feeling”?), generosas porções de k-pop, e o que mais você quiser incluir nessa receita. De certa maneira, uma nova música de uma banda poderosa como o One Direction, do jeito que as coisas funcionam hoje em dia, é obrigada a ser lançada quase que nos moldes dos grandes “blockbusters” de Hollywood: eles não são mais feitos apenas para o público americano, mas para as plateias mais cosmopolitas do mundo – com direito a elenco multiétnico, poucos diálogos, e a narrativa mais genérica possível. O problema com essa abordagem – como eu já assinalei neste espaço certa vez – é que, segundo o que eu aprendi um dia na faculdade de marketing que eu fazia, tudo que tem 1.001 utilidades não serve para nada. Tenho certeza de que essa não é a melhor música do próximo trabalho (a primeira faixa a aparecer de um disco inédito nunca é), mas mesmo que eles venham com tudo de bom, eu desconfio que o One Direction perdeu uma boa chance de ser a salvação do pop atual.

Segunda evidência: “Carioca girls”. Eu sei. Eu nem precisava falar desse que foi batizado, pelo menos no e-mail que chegou para mim, de “o Nissim carioca” – o que eu acho uma injustiça. Nissim não tinha a pretensão de estourar na internet, e muito menos a de ser um “popstar”. Foi o mundo que quis assim. Já Max sonha com altos voos. Enquanto Nissim chegou no máximo à Baleia (com uma escala em Israel), Max já foi a Disney e a Londres – e nem assim aprendeu nada sobre música pop. Não estou aqui para criticar o sonho de Max – que talvez um dia venha a pleitear uma carreira tão brilhante quando à do P9. O problema é que quando você tem 13 anos e sua referência para tentar se dar bem no pop é “California gurls”, de Katy Perry (e não, digamos, Rebecca Black), mesmo seu melhor resultado vai ser constrangedor. Com pouco mais de um milhão de reproduções – e duas piscadelas embaraçosas no final de sua exibição – “Carioca girls” não chega a ser uma ameaça ao pop. Mas também não é um reforço.

Tem gente boa fazendo música pelo mundo – pense em Daft Punk –, e inclusive no Brasil – cito Luan Santana, por exemplo, quase que como reflexo (e não precisa torcer o nariz nem achar que eu estou querendo fazer média). Mas artistas como esses já estão num outro patamar, são bem estabelecidos, quase inquestionáveis. O pop é feito disso sim, mas também de novidades, de coisas inesperadas, de bizarrices divertidas e despretensiosas – mas que de alguma maneira capturam a nossa atenção. E não vejo nem ouço nada disso atualmente. Acha que eu estou exagerando? Dê uma rodada no seu dial e ouça com seus próprios ouvidos. Eu mesmo fiz esse exercício este fim de semana e a única coisa razoavelmente interessante que ouvi – não, fãs de Anitta, não foi “Show das poderosas”, que é bom, mas dificilmente “fresco” – foi… “Vagalumes”, de uns garotos totalmente desconhecidos que atendem pelo nome de Pollo (com a participação do ainda mais desconhecido Ivo Mozart, que, diga-se, tem uma voz sensacional que soaria ainda melhor se viesse acompanhada de um repertório à altura). Pegando emprestado de uma certa Banda Mais Bonita da Cidade, “Vagalumes” oferece um refrão irresistível (se você não prestar atenção à letra) e uma batida que, se não é das mais originais, pelo menos não é ordinária. Além do que, mais de 33 milhões de acessos não podem estar errados! (Até podem, mas eu divago…).

Tendo arrumado então alguns problemas com os fãs de todos esses artistas já citados, eu apresento agora minha terceira e última evidência de que o pop explodiu: “Power, corruption & lies”. Se você tem menos de 40 anos e não reconheceu esse nome, não tem problema. Afinal, este álbum foi lançado há 30 anos, em maio de 1983, e, a não ser que você tivesse um irmão mais velho bem antenado, dificilmente você teria ouvido esse trabalho do New Order nessa época. Eu tinha 20 anos em 83, e quero dizer, com orgulho, que pop, no meu tempo, era feito de discos como esse. Era feito também de Pretenders, de Police, de Culture Club, de Eurythmics, de Prince, de Adam Ant (também era feito de Taco, Kajagoogoo, Eddy Grant, Journey, Toto – mas não vamos confundir as coisas!). Mas acima de todas as coisas havia “Power, corruption & lies”.

Fui ouvi-lo de novo (há tempos não fazia isso), para poder escrever sobre isso hoje – e levei um susto: sua reputação está intacta, contrariando até mesmo uma das letras mais memoráveis de toda a história do pop, incluída no próprio álbum: “Pensamento que não muda, permanece uma mentira estúpida” (“A thought that never changes / remains a stupid lie”, os dois primeiros versos de “Your silent face”). Desde os dez primeiros segundos de “Age of consent”, a faixa de abertura de “Power”, você é capturado por um turbilhão sonoro, do qual você será refém para o resto de sua vida.

Não quero fazer uma comparação fácil – e injusta. Estou pegando o que está longe de ser o melhor no pop de 2013 e colocando ao lado do que havia de superior neste mesmo pop em 1983. Também não quero defender demais a qualidade desse pop de 30 anos atrás, para não parecer discurso de um cinquentão que não gosta de coisas novas – uma acusação da qual quem me acompanha nesses quase sete anos de blog sabe que eu já me absolvi. Estou apenas convidando você a ouvir as duas coisas e comparar. Em que época você acha que já vivemos um pop mais criativo e saudável?

Temos saída para isso? Acho que sim, mas quando estamos em crise, custa-nos muito vislumbrar uma solução. Toda explosão, porém (pop!), conduz inevitavelmente a um renascimento – big bang, essas coisas. Sou otimista. Sempre tem gente boa fazendo música. Tenho fé que as coisas vão melhorar. Porque também, se nada disso acontecer, pelo menos eu tenho algumas décadas de boa música pop para ouvir nos meus arquivos. De Madness a Backstreet Boys; de TLC a Portishead; de R.E.M. a Cazuza; de The Cure a White Stripes; de Soft Cell a Britney; de Lulu a Missy Elliot; de Primal Scream a M.I.A.; de Moby a Aztec Camera; de Bonde das Maravilhas a Snoop Dogg; de Tricky a Saint Etienne; de Chemical Brothers a Shakira – um acervo para me sustentar até que eu perca a própria audição!

Está estranhando o tom? Você pode até achar que eu tenha acordado meio mal humorado. Ou que eu esteja simplesmente cansado do pop. Mas estou sendo honesto e transparente. Quero ouvir coisas boas e não consigo. Se quiser me ajudar, traga-me bons exemplos de pop que estão agora no ar. Ou então não traga nada. Finja que não entendeu nada do que eu escrevi e mande já seu comentário desaforado defendendo seu artista favorito. Em minha (contra)defesa, vou recorrer mais uma vez a “Power, corruption & lies” – citando novamente, aliás, “Your silent face”. E dessa vez, sem tradução…

“You’ve caught me at a bad time / so why don’t you piss off?”.

Ou como diria Thiaguinho: “Desencana, facilita, deixa eu viver em paz”… (Não estou provocando, juro!)

O refrão nosso de cada dia – “Bubble butt”, Major Lazer. Aviso: as imagens do vídeo de hoje podem ofender os olhos mais sensíveis. Mas se for necessário, tire as imagens da tela, e ouça apenas a música. Resisti o que pude a esse segundo disco do Major Lazer, mas finalmente me rendi. Também, com um som desses… Para criar um pouco mais de caso, eu queria um funk brasileiro (não precisa ser carioca) que quisesse ganhar o público não só com uma letra forte – ou, no caso do “rap ostentação”, engraçadinha –, mas com um som totalmente inovador como esse. Tudo bem que o Lazer tem o DJ Diplo por trás deles, mas seria tão complicado assim tentar fazer uma coisa diferente por aqui?

Foto: AP Photo/Star Tribune, Jeff Wheeler

Longe da música

qui, 18/07/13
por Zeca Camargo |
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O melhor disco de 2013 que ouvi até agora foi lançado por um cara de 45 anos. O nome dele é Tricky – e se você nunca ouviu falar dele, pergunte ao seu irmão mais velho. Ou talvez ao seu tio. Ou simplesmente clique aqui - mas prometa antes não ficar ofendido ou ofendida com uma letra que diz, às vésperas da chegada do Papa Francisco ao Brasil: “Jesus morreu pelos pecados dos outros mas não dos meus”. Ou, se não quiser confusão, clique aqui. Ou aqui.

E se quiser retomar a confusão, clique aqui. O nome do disco é “False idols” – ou, ídolos falsos em português – e eu não poderia imaginar um nome mais apropriado para descrever o que está acontecendo no pop hoje.

Esta semana mesmo, acompanhei com certo temor o anúncio dos principais indicados no Video Music Awards 2013 – não confundir com o Video Music Brasil, que, se você ainda não percebeu, não terá uma nova edição este ano, ou mesmo neste século. Os artistas indicados em mais categorias? Justin Timberlake – o “novo” Michael Jackson, lembra? -, com a megainsossa “Mirrors”. E Macklemore e Ryan Lewis, com “Thrift shop” – essa sim, pelo menos, presença constante nas rádios e iPods de todos. (Talvez você não esteja associando o nome de Macklemore e Ryan Lewis à música mais conhecida deles, mas, antes de recorrer à internet, puxe pela memória: é aquela que sampleia o que parece ser uma vuvuzela desafinada – com o perdão do possível pleonasmo – e cujo refrão “Only got 20 dollars in my pocket” é um dos mais irritantes e ao mesmo tempo eficientes que o hip-hop americano lançou nos últimos dez anos).

Timberlake e Macklemore? Sério?

Eu sei que tenho um viés – ou, se você lembrar dos meus 50 anos, mais de um. Eu cobri alguns VMAs no início dos anos 90, quando alguns artistas na competição eram Nirvana, Prince, e R.E.M. – mas faz tempo, reconheço. Mesmo assim…

Este é um post curto. Bem curto – já está terminando. Até porque preciso pesquisar melhor para escrever o desabafo que gostaria sobre o pop de hoje – quem sabe na segunda-feira. Mas não quis deixar passar essa oportunidade de lançar para você mesmo a questão: é impressão minha ou estamos numa fase realmente ruim do pop? Respostas – ou pelo menos honestas tentativas de responder a essa pergunta – na segunda-feira.

O refrão nosso de cada dia: “I heard”, Young Fathers – no último refrão que indiquei, terminei ironicamente escrevendo: “Pergunta se eu ouvi outra coisa além dele (David Lamaitre) desde que cheguei de Paris…”. A Cristiane, no seu comentário, brincou replicando a pergunta. E aqui está a resposta. Fora o brilhante álbum de Lamaitre, “Latitude”, eu só tenho ouvidos para “Tape two”, do Young Fathers. E essa faixa, “I heard” é uma das melhores justificativas que eu posso dar…

 

Keith em Paris

seg, 15/07/13
por Zeca Camargo |
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Até conhecer Keith Haring, arte para mim era coisa de museu. Não uso essa expressão de maneira pejorativa, mas ilustrativa. Como qualquer adolescente que teve sua iniciação cultural no Brasil antes de a internet poder trazer o mundo para dentro de casa, a noção do que era arte tinha que ser construída com frágeis fragmentos que iam das parcas coleções particulares timidamente apresentadas em museus aos coloridos cartões de um jogo de tabuleiro chamado “Leilão de Arte” – eu sempre brigava para comprar um quadro de Hércules Barsotti, mesmo que eu soubesse que era uma falsificação (só quem já jogou “Leilão de Arte” vai entender o que estou falando, o que significa, claro, que eu divago…). Só quando comecei a viajar para fora do Brasil é que tive acesso aos grandes museus – Metropolitan em Nova York, Louvre em Paris, British Museum em Londres – e pude ver de perto obras magníficas e entender o fascínio que elas provocam nos nossos olhos e na nossa imaginação. E essa era referência quando eu pensava em arte: aquelas coisas que eu tinha visto só no museu.

Aí, no começo dos anos 1980, eu comecei a perceber na imprensa, imagens de uns rabiscos que apareciam de noite para o dia em murais de publicidade vazios espalhados pelas estações de metrô de Nova York. O nome por trás desses grafites – um termo que ainda era relativamente novo, pelo menos na sua associação com arte – era o de Keith Haring, uma estranha e tímida figura, que por trás de um óculos digno de cartoon escondia um talento revolucionário. O adjetivo não é exagerado. Os desenhos de Haring eram tão cativantes que sua carreira deslanchou de maneira meteórica: em dois anos – um espaço de tempo que a maioria dos artistas leva para conseguir a primeira exposição numa galeria respeitada –, ele já tinha ficado amigo de Andy Warhol, tinha murais espalhados pelas cidades mais interessantes pelo mundo, viu os preços de seus trabalhos dispararem, foi convidado de honra de importantes bienais, e virou um herói informal da causa homossexual e, em seguida, da luta contra a Aids. E, de quebra, deixou o mundo mais bonito.

Sua notoriedade durou pouco mais de dez anos – Haring morreria em 1990, por complicações relacionadas ao vírus HIV. Mas o impacto da suas imagens e da sua arte foi tão forte que dura até hoje – algo que pude conferir de perto semana passada, numa rápida passagem por Paris, a trabalho. Tive apenas um dia de folga e, como você que sempre me acompanha aqui sabe, fiz o possível para aproveitar minhas horas livres na cidade. Uma das prioridades era justamente ver a exposição de Keith Haring no Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris – um museu que fica estrategicamente ao lado do “templo” da arte contemporânea na capital francesa, o Palais de Tokyo, onde pude conferir uma enorme coletiva sob o título ligeiramente irônico de “Nouvelles vagues” (ou “Novas ondas”, em português), numa óbvia referência ao que foi talvez a última manifestação artística relevante (no caso, no cinema) que veio da França; foi lá que tirei a foto que postei semana passada, numa sala dedicada ao artista brasileiro Henrique Oliveira e seu trabalho “Baitogogo” (como destemidos leitores conseguiram desvendar), uma obra tão fascinante que, na impossibilidade de convidar todos que passam por aqui para visitá-la, indico ao menos esse breve vídeo para quem quiser ver como ela foi feita.

“Nouvelles vagues”, como toda exposição ambiciosa, é uma bagunça recheada de achados estupendos, como o próprio “Baitogogo” – que fizeram com que eu me sentisse instigado mais de uma vez. (Um outro artista genial que descobri foi Ivan Argote, presente com um vídeo em que dança “Close to me”, do The Cure, em frente ao quadro “Cruz preta”, de Kazimir Malevitch, que você pode conferir no site do artista, onde ele é o projeto de número 9, ou direto aqui na galeria que o representa em Paris, Perrotin – mas eu divago novamente…). Mas ali em frente, no Musée d’Art Moderne eu explorei algo que me deixou ainda mais entusiasmado: a retrospectiva de Keith Haring – que, oportunamente ganhou o título de “The political line” (em inglês mesmo – ah, esses franceses…). Traduzindo grosseiramente, poderíamos chamar a mostra de “Os limites do político”, uma vez que desde o início o trabalho de Haring fez questão de ser engajado – e não só na questão homossexual. Como a exposição não cansa de lembrar ao visitante, ele “comprou briga” com o racismo, com as injustiças sociais, com a sociedade de consumo americana, contra a própria cultura da celebridade que o abraçou (e que, nos idos dos anos 1980 era ainda incipiente, se comparada aos dias de hoje). Incansável, sua linha – que parecia interminável – cobriu tudo que era superfície possível, do muro de Berlim ao corpo de Grace Jones, e deu credibilidade a todo um time de aristas que até então era considerado marginal: o pessoal da “street art” (ou, arte de rua).

Do supervalorizado Banksy aos orgulhosamente onipresentes OsGemeos, mais de uma geração de grafiteiros deve muito a Keith Haring por ter aberto esse caminho pioneiro. Mas você não precisa saber de nada disso para vibrar com seus trabalhos. Ali no Musée d’Art Moderne eu tentava constantemente afastar essas referências – que acumulei em anos de admiração e observação sobre a arte contemporânea – e me colocar na posição de um simples visitante que tinha o potencial de ficar fascinado apenas com o que seus olhos viam. Assim como Andy Warhol (e de maneira ainda mais veloz que o “pai da arte pop”), Haring tratou de espalhar seu traço não apenas pelas galerias de arte, mas também pelo nosso cotidiano – hoje vemos seus desenhos por todo lugar, de pranchas de skate a babadores; de figuras autocolantes para a parede a camisetas; de tênis de passeio a capas de iPhone (que nem existiam quando o artista morreu). Com isso, sua iconografia – bebês radioativos, cachorros latindo, corpos entrelaçados, bonecos alados, computadores – é tão familiar (até para gerações vieram depois do seu apogeu e nem suspeitam que aquelas figuras são de um artista tão importante), que quase corremos o risco de assimilá-las sem no emocionar. Mas por isso uma exposição como essa é tão importante: para nos lembrar que a origem de tudo é a mente de um artista – para um belo passeio virtual pela mostra, clique aqui.

Vi trabalhos que nunca tinha encontrado esses anos todos em museus. Grafites originais, feitos nas paredes do metrô nova-iorquino, estavam lá, ao lado de pequenos trabalhos colaborativos entre Haring e Warhol (uma reprodução de uma capa do jornal “New York Post” com aspas de Madonna dizendo que não tinha vergonha de nada foi particularmente reveladora). Um sarcófago todo rabiscado é apresentado logo depois de um lindo biombo que nos remete, claro, à arte japonesa. E há pequenas obras-primas que quase passam despercebidas, como um simples desenho de paparazzi, ou uma inesperada tela em cores fortes (rosa, azul-turquesa, amarelo) com dezenas de macacos nos galhos de uma árvore gigantesca. E inevitavelmente pensei o que ele estaria fazendo hoje se ainda estivesse vivo.

Com minha bizarra tendência a divagações (os dois exemplos de hoje falam por si só), fiquei pensando em quão pouco as artes plásticas e os artistas em geral traduzem algum sentimento social. Não que o mundo tenha deixado de ter coisas interessantes pelo que brigar (pelo contrário!), mas parece que as pessoas não acham mais que vale a pena essas causas serem abraçadas pela arte. Será isso mesmo? Pensei nas manifestações populares recentes – e lembrei que nos idos dos anos 60, o que o povo reclamava nas ruas era imediatamente repercutido pelas artes (não só plásticas, mas na música e no teatro, por exemplo). Alguém consegue me dizer quem é o artista que está tratando das causas que tiraram milhões de suas casas recentemente?

Pensei também em outros artistas que usam o grafite como expressão atualmente e não me lembrei de nenhum que tivesse o impacto ou a força de Haring no seu tempo. Do pouco que vejo, o grafite tornou-se, mais de 30 anos depois, um exercício estético (e vazio). Dos que costumo acompanhar no Brasil, apenas Zezão – que começou a pintar em bueiros até chegar às galerias – tem alguma mensagem que não seja superficial. E do pouco que vejo lá fora (alguns até estavam representados na exposição “Nouvelles vagues”), tudo me parece tão vazio quanto as latas de tinta em aerossol depois de usadas no concreto de um muro.

Diante dessas divagações achei que deveria celebrar Keith Haring saindo por Paris à procura de um vinho que definisse tudo que aquela exposição me despertou. E foi num daqueles restaurantes cujo cardápio de oito pratos assinados por um chef “quente” custa menos do que uma noite de pizza em São Paulo que encontrei tal bebida. A sensação de tomá-la, depois de um dia com Haring, estava descrita no próprio rótulo com seu nome – que reproduzo abaixo, para quem sabe inspirar você para a semana…

O refrão nosso de cada dia: “Megalomania”, David Lemaitre – um forte candidato para artista do ano (ou para os melhores discos de 2013 que você não ouviu – volte aqui em dezembro para conferir). Já havia lido sobre ele, e quando passei numa loja de discos agora em Paris, com apenas 15 minutos para escolher alguma coisa antes de correr para o aeroporto, não tive dúvidas. Além de uma boa meia dúzia de novidades, coloquei David Lamaitre no pacote. Pergunta se eu ouvi alguma outra coisa além dele desde que cheguei…

Onde eu estou?

sex, 12/07/13
por Zeca Camargo |
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Filmes que ninguém quer ver

seg, 08/07/13
por Zeca Camargo |
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Éramos quatro. Eu e mais três pessoas numa sala de cinema. A sessão, admito, não era das mais convidativas: a noite da última segunda-feira, gelada, em São Paulo – 21h30. Mas o filme era muito convidativo. Tanto que eu o via já pela terceira vez. Na quinta-feira, éramos um grupo um pouco maior. No final da tarde, eu e mais cinco pessoas, também em São Paulo, assistíamos a um outro filme, que em comum com o outro tinha apenas a ousadia da criação – e a escolha de representá-la em branco e preto. Já ontem, no Rio de Janeiro, na primeira sessão de domingo, num cinema de shopping, voltamos a ser só quatro – quatro espectadores atentos a imagens que eram mais coloridas e não menos criativas, numa outra produção que fechou minha semana de filmes que ninguém quer ver.

Quando me propus a escrever sobre isso hoje, a primeira coisa que me perguntei é: se ninguém quer ver esses filmes, será que alguém quer ler sobre eles? Historicamente, aqui neste espaço, o cinema só não é menos popular que os livros, no que diz respeito à repercussão dos posts – o que não significa, claro, que eles um dia terão o espaço menor aqui (pelo contrário, você que vem aqui há tempos sabe bem que escrevo ao sabor de um único norte: minha inspiração). Por esse raciocínio, fui em frente e resolvi discutir esse estranho “fenômeno de nicho”. Se você não aguenta mais aqueles textos sobre os “dias finais de Hollywood”, deixe-me chamar sua atenção para um problema que é só aparentemente menor: o declínio do interesse pelo cinema de arte.

A expressão é ruim, eu sei. Tenho certeza de que várias pessoas pararam de ler no parágrafo anterior ao se depararem com ela. “Cinema de arte” imediatamente remete a um conceito besta e antigo de uma produção elitista, que quase sempre tinha que se cobrir de pretensão para validar sua própria existência. Mas não foi sempre assim. Até meados dos anos 70, quando os “blockbusters” começaram a aparecer (“Tubarão”, de Spielberg, considerado um marco dessa nova era, é de 1975), tudo era mais ou menos cinema. Claro que já havia o chamado “cinema de arte” – defendido por raros acadêmicos americanos (e críticos pioneiros, como Andrew Sarris e Pauline Kael) e celebrado por mais de uma geração de jornalistas e estudiosos na França (pense em “Cahiers du Cinema”, provavelmente a publicação mais respeitada sobre o assunto, que existe desde os anos 50). Mas era tudo cinema – quero dizer, as linhas que separavam os gêneros eram menos rígidas. E então vieram “Tubarão” e “Guerra nas estrelas” e mudaram tudo.

Se essa cisão não foi anunciada de maneira formal na época, ao longo das últimas décadas ficou claro que o cinema se dividiu entre o puro entretenimento e a pura exploração de novas ideias – duas vertentes que raramente se cruzam (e não, “O cavaleiro das trevas” não é uma dessas exceções; “Matrix” é). A ponto de hoje se manifestar quase como uma rivalidade entre essas facções. Aqui mesmo, sempre que cometo o pecado de não gostar de uma “maravilha” como “Os vingadores”, sou brindado com convites para usar melhor meu tempo assistindo a “fracassos de língua estrangeira”, como se a própria origem de um filme definisse sua qualidade. No caminho inverso, um certo ranço acadêmico impede mais de uma geração de bons críticos de considerarem títulos como o já citado “Matrix”, ou mesmo “A origem”, como genuínos trabalhos de inovação – não apenas nos efeitos visuais, mas também na estrutura e linguagem. Tudo bobagem. Como se estivesse com meu juízo suspenso numa era pré-“Tubarão”, teimo em desconsiderar essa divisão. Como vários exemplos que já dei aqui no blog, existem “filmes-cabeça” chatíssimos e “trabalhos de mestres” menores (pense em Almodóvar – aliás, basta ver “Os amantes passageiros”, que está atualmente em cartaz pelo Brasil, para entender o que quero dizer com isso). E também bons “blockbusters” que não trata a plateia como um bando de imbecis – pergunte a Tim Burton e James Cameron.

Mas sou a exceção – eu e os meus três “companheiros” na última segunda, os cinco da quinta, e aqueles outros três de domingo. Uso aspas porque não se tratavam de companheiros de verdade, mas outras almas corajosas que se motivaram a sair de casa para assistir a – respectivamente – “Tabu”, “Branca de neve”, e “A espuma dos dias”. A baixíssima frequência que presenciei nessas salas (uma delas em um shopping center – na mesma sala que, segundo uma amiga, estava lotada na última sessão de sábado, mas eu tendo a achar que é porque tinha gente que foi para ver outra coisa e não quis perder a viagem…) me fez pensar que já quase ninguém quer mesmo ver esses filmes – filmes que, em vez de terem sido bombardeados por uma massiva campanha publicitária (da qual, em nome da transparência, o programa que apresento na televisão também às vezes faz parte), receberam pequenas resenhas em jornais influentes mas de alcance restrito e blogs idiossincráticos como esse que você lê agora.

Olhando esse cenário, chego a achar incrível que certos títulos cheguem às nossas telas – e faço aqui até um “mea culpa”: mais de uma vez critiquei aqui as distribuidoras de filmes, quando certas temporadas, em hiatos inexplicáveis, nos inundam só com produções extremamente comerciais. Mas há, entre esses mesmos executivos, boas almas que pensam não apenas no retorno comercial, mas no prestígio de lançar um filme diferente – talvez para validar seus interesses genuínos por aquilo que, num dos clichês mais tolos jamais inventados, já foi considerado a sétima arte (sabe me dizer rapidamente, sem ir ao Google, quais são as outras seis? – sim, eu divago…). E a eles dedico esse texto de hoje, e faço um agradecimento oficial por terem deixado felizes alguns gatos pingados espalhados numas salas escuras.

Se você quiser prestigiar essas iniciativas também, tente assistir a um desses filmes. Sei das dificuldades de encontrá-los em cartaz fora das grandes capitais brasileiras – ou mesmo da dificuldade de encontrá-los nas grandes capitais brasileiras. Mas, se você tem uma paixão ainda que pequena por cinema, faça um esforço. Ele será recompensado. Sobre “Tabu” eu talvez não deva acrescentar mais nada além do que já foi escrito aqui, para não correr o risco de você não achar que eu tenho participação na bilheteria. (Só vou acrescentar uma informação que me escapou, mesmo na primeira vez em que escrevi sobre o filme do português Miguel Gomes: além do afiado elenco luso, e dos incríveis Carloto Cotta e Ana Moreira, o ator que interpreta o terceiro vértice do triângulo amoroso da história é um ator brasileiro, Ivo Müller – que também merece destaque).

Então deixe-me recomendar hoje aqui “Branca de neve” – que não é exatamente um filme para você levar seu irmãozinho mais novo ou sua filha pequena. Assinado pelo diretor espanhol Pablo Berger, trata-se da “velha” história que você conhece sim. Mas imagine que os sete anões são toreiros. E que a própria Branca de Neve só anda vestida de bailarina de flamenco em noite de gala. E que a história se passa num tempo perdido entre a primeira metade do século 20, na Espanha. Ah! E que é sem diálogos e em branco e preto. Pois é… quem quer ver um filme assim? Pois eu digo que é justamente essas suas características inesperadas que fazem desse “Branca de Neve” um espetáculo sensacional. Como explicar o prazer de ser apresentado a uma história que você conhece de cor como se fosse uma novidade? De ser surpreendido por uma narrativa que está enraizada em sua memória? De torcer para que a trama acabe bem, mesmo já sabendo “de velho” que é isso que vai acontecer? Melhor você reservar um horário esta semana para descobrir essas respostas – e vá logo, pois dos três filmes que cito hoje, esse é o que tem menos chances de continuar em cartaz depois de sexta-feira (vem aí… “Homem de aço”!).

“A espuma dos dias”, que estreou recentemente, pode ter uma sobrevida – nem que seja pelo pedigree que seu diretor, o francês Michel Gondry, impõe sobre o filme. Quem gosta de música sabe facilmente identificá-lo em clipes revolucionários como “Around the world” (Daft Punk), “Let forever be” (Chemical Brothers), “Come into my world” (Kylie Minogue), “Knives out” (Radiohead), e “Crystalline” (Björk). Sua criatividade exuberante, porém, vazou para a tela grande quando ele se associou ao genial roteirista Charlie Kaufman para fazer “Brilho eterno de uma mente se lembrança”- o filme que todo mundo gosta de citar quando a conversa sobre cinema durante um jantar sobe de patamar. Aliás, com justiça. É assustador imaginar que “Brilho eterno” já tem quase dez anos e nada de tão interessante foi feito desde então no cinema americano. Se você não viu, corra para tirar o atraso e regozije-se com esse que talvez seja o trabalho mais acessível de Gondry até hoje.

De lá para cá, ele só enlouqueceu ainda mais nos seus filmes – com resultados irregulares. Eu até gosto de “Sonhando acordado”, mas “Rebobine, por favor” é apenas interessante – e por favor não me provoque com o “Besouro verde”. Em “A espuma dos dias” ele retoma o delírio dos primeiros trabalhos – o que é uma boa notícia –, mas a serviço de uma história surreal – o que pode ser perigoso para um longa-metragem. Levar um dos livros surrealistas mais famoso, assinado por ninguém menos que o francês Boris Vian, para as telas é um risco que Gondry quis correr – e só por isso eu já o admiro. Mas as duas horas do filme não são das mais fáceis de passar.

Mesmo com todas essas ressalvas eu sugeriria que você fosse vê-lo. Afinal, sempre é mais interessante ter sua imaginação estimulada por um doido que exagera do que por um conservador que se repete. “Espuma” tem coisas irritantes e desnecessárias – o ratinho que segue por toda a história é inexplicável! Mas tem também momentos belíssimos – como o “biglemoi”, a dança das pernas longas que Nicolas (o mega carismático Omar Sy) ensina ao personagem principal, Colin (Romain Duris); ou a central de redação que escreve todas as histórias, inclusive a de Colin, com suas máquinas de escrever circulando como em uma linha de montagem; e isso para citar apenas duas coisas memoráveis. Eu prefiro ficar com esse saldo positivo. Afinal, é apenas uma história de amor – e ainda por cima uma em que a paixão do nosso herói padece de uma doença causada por um nenúfar no seu pulmão (a flor foi estranhamente traduzida do original francês como “flor de lótus”, que é uma possibilidade, mas eu acho mais bonito envolver um nenúfar na história…). E quem não quer ver uma história de amor?

Na verdade os três filmes que citei aqui hoje são histórias de amor. Mas abandonados pelo público são só registros de corações que não sabem muito bem por que bater…

O refrão nosso de cada dia: “Chloe”, Duke Ellington – o que posso fazer se não uma singela homenagem a Vian, Gondry e Sy, juntando os três nessa mini obra-prima fascinante de Ellington? Se você precisar entender porque escolhi essa música hoje, vá ver “A espuma dos dias”… E se quiser experimentar uns passos de “biglemoi”, abra um link de tradução do francês para o português e siga as instruções abaixo, que você encontra também no divertido site original do filme.

Vendo o que o americano fez (e revendo o único filme que você realmente precisa assistir em 2013)

seg, 01/07/13
por Zeca Camargo |
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Será que você é tão jovem assim que não se lembre de quando o Silvio, depois de uma atração brasileira no palco do seu programa convidava: “Vamos ver o que o americano fez”? Não minta para mim… Mas digamos que você não tenha mesmo idade para ter visto isso: eu adorava quando Silvio (Santos, se você acha que é mesmo necessário) dizia essa frase. Era sempre numa sugestão de que “o americano” fazia alguma coisa melhor – sempre melhor – nem que fosse um número de calouro! Peguei a expressão para o meu repertório, sempre como uma brincadeira: se aqui está bom, imagina nos Estados Unidos. E lembrei-me dela novamente quando, no último sábado, conferi a primeira performance “holográfica” do pop brasileiro: o show “Renato Russo Sinfônico”, no renovado estádio Mané Garrincha, em Brasília.

Depois de uma sucessão de homenagens – que iam de Jerry Adriani a Ivete Sangalo, estava prometida uma “aparição” de Renato para cantar uma música especial – que era mistério até momentos antes do show (foi só circulando nos bastidores, no próprio sábado, enquanto fazia uma reportagem para o “Fantástico” de ontem, que vi, num “set list” pregado no palco, que o ídolo “voltaria” para cantar “Há tempos”). Era, na verdade, uma grande celebração – e esse era o clima. Mesmo com falhas de ritmo (em alguns momentos, a troca de artistas criava desnecessárias “barrigas” que incomodavam os fãs que foram lá para o show), a noite tinha um atmosfera especial – e eu diria até que o carisma de Fabrício Boliveira, que sempre que possível subia ao palco para “costurar” a performance, ajudou também nisso (Fabrício, se você tem a sorte de estar entre o milhão e meio de espectadores que já assistiram ao filme “Faroeste caboclo”, interpretou João de Santo Cristo na adaptação da música do Legião para o cinema). E tinha também um “grande momento”: aquele em que Renato Russo reapareceria em três dimensões no palco – exatamente como o americano fez!

O “americano”, no caso, era Tupac Shakur, que no festival de Coachella do ano passado (na Califórnia) “ressuscitou” para cantar no palco com Snoop Dogg e Dr. Dre – para o delírio dos fãs, que foram pegos de surpresa com a homenagem. Eu não estava lá – Coachella, que nunca consegui ir, está definitivamente na minha lista de desejos –, mas os relatos são de que foi um efeito e tanto. Mais que isso, a atração aprecia abrir um novo caminho no mundo do entretenimento: num futuro próximo não será preciso nem se preocupar com novos artistas – os ídolos já consagrados estariam eternamente disponíveis para shows virtuais . Um possibilidade, diga-se, assustadora. Mas enquanto esse “admirável mundo novo” não chega, que mal tem em aproveitar alguns momentos de pura nostalgia com alguns dos maiores nomes do pop. Um ídolo nosso, 100% nacional, estava prestes a ser testado na noite de sábado. Será que ele também iria emocionar?

Não assisti à apresentação de Renato do melhor lugar – estava no “fosso” onde ficavam os músicos clássicos (da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro), que colaboraram bem em vários arranjos. Mas não tive uma boa impressão – pelo menos não a de que eu estava diante de uma imagem tridimensional. Minha percepção foi a de que era, no máximo, uma boa projeção. Mas a julgar pelo silêncio que tomou conta do estágio na hora de “Há tempos”, o objetivo principal foi alcançado: Renato emocionou. Dificilmente seria diferente – as pessoas já estavam lá para a catarse (lembrando: esse era o mesmo estádio onde o Legião se apresentou em 1988, a última vez que a banda tocou em Brasília, numa noite que, como qualquer bom fã sabe, terminou em confusão). Porém, quem acha que essa tecnologia está aqui para destruir a força de uma performance ao vivo, pode respirar aliviado.

Mesmo em tempo onde as narrativas se confundem, um simulacro de show não ameaça (ainda) o poder de um artista realmente carismático. Emociona sem dúvida – pergunte aos fãs de Tupac que estavam no Coachella, ou aos de Renato Russo em Brasília. Mas não substitui nada. Talvez uma geração futura, acostumada com isso desde pequena, comece a gostar de uma realidade assim – e só assim. Por enquanto, tudo que podemos é nos divertir com essas histórias sobre histórias, uma representação de alguma coisa que aconteceu de verdade. A questão não é nova: desde que alguém escreveu o primeiro livro (ou ainda, desde que alguém contou a primeira história), ela já se colocava – aquilo era algo que realmente tinha acontecido, ou a versão de alguém sobre o que tinha realmente acontecido?

Cinema, literatura – a própria pintura e as artes em geral sempre exploraram isso. E recentemente encontrei bons exemplos dessa discussão. Dois deles em livros – um do chileno Alejandro Zambra, um do brasileiro Godofredo de Oliveira Neto. O outro é um filme – sobre o qual já falei aqui neste espaço, mas vale a pena reforçar, já que agora ele estreou no Brasil. Vamos nessa ordem.

Zambra já é conhecido no Brasil pelo seu livro “Bonsai”, publicado aqui pela Cosac Naify (que também lançou, recentemente, seu “A vida privada das árvores”) – ele até já participou de uma edição da Flip, no ano passado. Esse seu último trabalho, “Formas de volver a casa” ainda não ganhou uma tradução para o português – e, ironicamente, li em inglês. Mas é genial, mais até que “Bonsai”, e coloca a questão da narrativa de maneira brilhante. Na primeira parte do livro, um garoto, durante o terremoto de 1985 no Chile, conhece uma garota chamada Cláudia, que lhe dá uma “missão”: vigiar o vizinho Raúl. Isso, claro, é só o começo – você, como leitor experiente, logo sente. Mas, de repente, a história é interrompida pelo próprio autor que a está escrevendo (o próprio Zambra?), e o foco é o processo de escrevê-la.

A certa altura, numa conversa com a irmã, que pergunta por que ela não está no livro, o autor (que pode ou não ser o garoto da primeira parte) responde: “Para te proteger”. E prossegue:

“É melhor não ser o personagem de alguém”, eu digo. “É melhor não estar em livro nenhum”.

Será mesmo? Descontando o privilégio de estar dentro de uma trama inteligente do próprio Zambra (e tantos outros autores geniais), talvez seja melhor não ser personagem de nenhum livro mesmo. Afinal, nem quando você conta a sua história é possível ter certeza de que ela está sendo relatada da melhor maneira. Esse obstáculo está elegantemente descrito em “Formas” (que, na edição americana chama-se “Ways of going home”). E Godofredo de Oliveira Neto, no seu recém-lançado “A ficcionista” (Ímã Editorial) leva a questão ainda mais adiante – e também de maneira fascinante.

Sua estrutura é relativamente simples: um autor (que pode ou não ser um repórter) entrevista uma curiosa figura – meio bandida, meio rebelde, meio missionária messiânica – para escrever um livro sobre ela. Mas o que está realmente em jogo é a mesma pergunta: quem é dono daquela história? A personagem em si, Nikki, nem é tão interessante assim – parece uma mescla de clichês que a imprensa sensacionalista adora explorar em indivíduos que se colocam à margem da sociedade: prostitui-se por dinheiro, tirava dos ricos para dar para os pobres, mexeu com drogas, tem visões… Porém, o que realmente interessa, a construção de uma história, está presente o tempo todo, nas dez entrevistas que o autor faz com Nikki. Ao mesmo tempo em que Godofredo convida o leitor a montar a trajetória solta dessa protagonista, ele está constantemente discutindo quem está no poder. Sempre de maneira discreta, até que no final do livro vem a pergunta escancarada:

“Você tem dúvida sobre a existência de um mundo ficcional, Nikki?
Claro que não, mas o dito e o relatado até agora são a pura verdade. E quem garante que você, como leitor, não vai entrar na minha história e modificá-la? E quem garante a transcrição fiel da minha narração?”

A resposta triste, somos capazes de responder quase que automaticamente: “Ninguém, Nikki, ninguém garante uma transcrição fiel…”. Talvez por isso, reforçando o que dizia o autor de Zambra, não seja bom ser personagem de um livro – os riscos são muito altos. A possibilidade de um desastre é enorme. Felizmente há sempre a alternativa da arte: de uma história ser (re)contada num contexto de pura interpretação poética. Assim é com o filme “Tabu”, do português Miguel Gomes – que assisti no começo do ano durante uma viagem, e que agora finalmente estreou em algumas salas brasileiras. Esse é o filme a que me refiro no título do post de hoje – e reforço: não deve estar fácil de achar um cinema onde ele esteja passando (certamente não no multiplex que está com os “blockbusters” da temporada do verão americano em cartaz…), mas se você tiver que assistir apenas um filme este ano, que ele seja “Tabu”.

Quando escrevi sobre ele em janeiro passado, foi num outro contexto. Destaquei o aspecto surreal do filme, e hoje, além de celebrar seu lançamento por aqui, uso “Tabu” para defender a tese de que uma história dentro de outra história, quando bem contada, pode ser até perdoada por pequenos deslizes e omissões…

“Tabu” tem duas partes bem distintas. A primeira delas, na Lisboa contemporânea – onde atrizes veteranas dão um show de interpretação (e o diretor aproveita para dar um show de estética). Essa longa introdução serve para nos remeter a uma outra história: a de Aurora, interpretada magistralmente por Laura Soveral. Se bem que… quem conta a história dela é Ventura, que com suas memórias, abrem uma tela para o passado: a Moçambique que começa a querer ficar independente de Portugal, entre final dos anos 60, início dos 70. Mas isso é pano de fundo: a história que nos transporta é a de um amor proibido, justamente entre Aurora e Ventura.

O filme continua no passado, ainda em branco e preto, mas percebemos que a textura é diferente. É como se fosse um filme mudo, mas a narração em off é quase um diálogo. E vemos cena após cena de extrema beleza e poesia – sem nunca sabermos se essa é mesmo a versão dos fatos. Mas quando quem está na tela é um casal tão sensual quanto Ana Moreira (Aurora) e Carloto Cotta (Ventura), quem está ligando para a realidade? Você vai embora na história, seja pela incrível química dos dois, seja pelo virtuoso cinematográfico, seja pela sedução do romance, seja pela exuberância das imagens –mas você vai embora! Eu garanto. E não quero nem posso falar mais para não tirar o seu prazer de ver o melhor filme do ano. E depois, claro, contar a sua versão do que viu…

O refrão nosso de cada dia: “We carry on”, Portishead – se você gosta de música como eu talvez você esteja acompanhando o que acontece lá naquela ilha agitada esses dias – a Grã-Bretanha. Mais precisamente num lugar chamado Glastonbury, onde todo ano acontece o melhor festival do hemisfério norte. Uns tais de Rolling Stones parece que tocaram lá outro dia. E também um tal de Portishead. Fala sério! Como se já não fossem meus ídolos, eles ainda vieram com um set de enlouquecer – cujo destaque, “We carry on”, divido aqui hoje com você? Eu achava que Beth Gibbons estaria internada num manicômio, mas que bom que alguém abriu os portões…

Foto: Guto Zafalan



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