Dissonâncias cognitivas
Sem programa para sábado, depois da novela? Como dizia o velho bordão das Organizações Tabajara, “seus problemas acabaram”! Talvez você até já tenha visto, mas um episódio recente do “Porta dos fundos” (“Porta na TV”) anuncia que ele “finalmente chegam” à telinha! Uma provável resposta aos eternos rumores de que eles estão sendo sempre sondados pela TV aberta – ou até mesmo, arrisco, uma esperta resposta à provocação que este blog fez há poucas semanas -, o esquete é um desastroso (e hilário) retrato do que seria o humor do “Porta” se fosse feito nos padrões tradicionais de como a TV trata o humor até hoje, com seu tripé (já bastante discutido aqui) de bordões, caretas e caricaturas.
O alvo principal da sátira é o “Zorra total” – um descendente direto de um grande sucesso do rádio dos anos 50: o “Balança mas não cai”. Mas, como uma boa característica darwiniana que conseguiu sobreviver por várias gerações – e agora, pelas mesmas regras darwinianas tem que lutar para sobreviver – ela pode ser vista em mais de uma atração da TV aberta (e mesmo da TV a cabo). Mas mais do que discutir os caminhos de humor (que é um assunto recorrente aqui), o que queria hoje, brevemente (como sempre) era chamar a atenção para quando produtos da cultura pop nos oferecem dissonâncias cognitivas.
Não se assuste. A primeira vez que ouvi essa expressão foi na faculdade de propaganda que fazia – e se estou falando do meu período universitário, lá se vão trinta anos! Um professor o usava para descrever a decepção que um consumidor tem ao comprar um produto e não conseguir corresponder à expectativa que ele tinha elaborado com relação àquela aquisição. “Dissonância cognitiva” é muito mais que isso no seu amplo sentido psicossocial, mas para nossa discussão de hoje, vamos ficar com a interpretação “mercadológica” que trouxe da sala de aula: vemos o “Porta dos fundos” fazendo “Zorra total”, nossa percepção entra em parafuso. O resultado disso poderia ser apenas um deboche grosseiro – quantos não optam pelo caminho mais preguiçoso de pegar um quadro ou um personagem famoso da TV e simplesmente fazer uma caricatura dele? Mas como estamos falando do “Porta”, o que vemos é um esquete não só inteligente, como também engraçado. Ah! E debochado também – no sentindo de que vai fundo na crítica à fórmula de humor que eles pretendem (se já não conseguiram) renovar.
Poderia listar aqui uma série de exemplos. Música? Pense em Strokes fazendo “brega brasileiro” (e se dando muito bem) em “One way trigger” – aliás, num dos melhores clipes do ano, que se você ainda não vou, tire o atraso aqui. Literatura? Pense em uma escritora respeitada como Jennifer Egan (“A visita cruel do tempo”) escrevendo uma história brilhante num formato de Twitter em “Caixa preta”. E no cinema? Imagine que Brad Pitt é capaz de fazer um filme de ação que você consegue assistir até o final sem se sentir um imbecil. E que um diretor alternativo que chamou atenção por um trabalho inovador é capaz de te decepcionar.
Primeiro, Brad. Ou melhor, “Guerra mundial Z”. Na preparação para uma entrevista com o astro aqui no Brasil que não aconteceu – contei os bastidores disso no post anterior - assisti ao filme com boa antecedência. E, embora seja difícil de acreditar, confesso que fui assistir à superprodução sem ter ideia de que se tratava de uma história sobre zumbis. Sério! Viu o primeiro trailer do filme? A palavra zumbi nem é sugerida – a não ser pela letra “Z” do título. E as imagem – que são incríveis – não dão uma pista de quem são aquelas “pessoas” correndo e destruindo tudo. Sabia, justamente por conta do trailer, que seria um filme de ação e terror. Não tinha lido o livro – e nem sabia que o autor, numa das notas mais curiosas sobre a história, era filho do comediante Mel Brooks com a atriz Anne Bancroft! Mais material sobre “Guerra” seria entregue nessa sessão especial, exibida só para mim. Assim, encarei o filme sem viés.
Quando a projeção começou, na pequena mas bem equipada sala do QG da distribuidora, no centro do Rio de Janeiro – uma espécie de miniatura daqueles grandes cinemas antigos (como é bom estar rodeado por gente que ainda adora filmes!) -, logo entraram mais duas pessoas que ali trabalhavam para assistir também. A princípio fiquei incomodado por eles terem me roubado o privilégio de estar sozinho num lugar como aquele. Mas em menos de dez minutos eu agradeci que tinha companhia. Pois esse é o tempo que leva para você começar a sentir medo. Muito medo. E com zumbis! Reforço isso porque, como já expressei aqui algumas vezes, se tem duas coisas que eu tenho o maior bode em ficção – pode ser nos livros, no cinema ou na TV -, elas são zumbis e vampiros. Leitores e leitoras mais frequentes talvez tenham notado que, nos quase sete anos de existência deste blog, não me aprofundei em nenhum desses assuntos. Resisti a qualquer comentário sobre uma série bem popular como “Os mortos vivos” – e, com mais dificuldade ainda, consegui passar batido pela saga “Crepúsculo”, apesar de ela ter sido um enorme sucesso. E o motivo disso é o mesmo: não tenho o menor interesse por nenhum dos assuntos. Se Brad Pitt (com uma ajuda boa da escritora Anne Rice e do diretor Neil Jordan) não conseguiu me inspirar na tentadora história de sugadores de sangue que participou (“Entrevista com o vampiro”), será que ele me convenceria a ver mais de duas horas de perseguições de zumbis? Pode apostar.
O mérito de “Guerra Mundial Z” não é apenas do ator. Mesmo sem ter lido, sei que o material original (o livro de Max Brooks) é interessante. E o diretor, que já tinha feito um bom James Bond (“Quantum of solace”, menos apreciado do que merecia), deu sua contribuição. Por isso, digo sem medo de errar que “Guerra” tem sequências genuínas de puro suspense – especialmente o final que, ao que parece, foi reescrito um zilhão de vezes. E mesmo as cenas de ação – a tomada de Jerusalém, a mais impressionante delas! – trazem novidades (e mais suspense, quando não terror) para o gênero. Ao contrário daquelas destruições gratuitas – de pessoas e de cenários – que vemos em filmes de super-heróis (“Os vingadores” é o exemplo mais escandaloso disso, e pelo que li, “Homem de aço” vai pelo mesmo caminho), cada uma das minicatástrofes de “Guerra” é brilhantemente coreografada. Das pirâmides humanas – ou melhor, pirâmides de mortos-vivos – às vigorosas cabeçadas nos carros (que causam pânico nas primeiras imagens), tudo me pareceu original, a ponto de fazer eu encarar com frescor um gênero que já é batido – e que, só esforçando, eu detesto.
Para minha surpresa maior, o final nem é feliz. Quer dizer, sem contar muito (se não a “brigada do spoiler” me crucifica), até é feliz, mas o problema dos zumbis ameaçando a raça humana de extinção está longe de ser resolvido quando entram os créditos finais. E isso cria mais uma dissonância cognitiva: um filme de Hollywood que não acaba bem? Será isso mesmo? Pois é! E quem sai ganhando é você. “Guerra mundial Z” é um dos primeiros lançamentos do ano que eu gostaria de ver de novo – nem que seja para prestar atenção aos efeitos especiais (e levar todos aqueles sustos de novo – não foi uma vez apenas que eu pulei da cadeira). E já que estou recomendando cinema, vá ver também “O lugar onde tudo termina”. Apesar de ter me decepcionado um pouco, o novo filme do diretor de “Namorados para sempre”, Derek Cianfrance, é bastante instigante. O único problema é que ele cai na mesma armadilha da qual “Guerra” escapou: tem um final feliz demais para ser verdade. E isso quase estraga tudo.
“O lugar” é um filme estranho – exatamente o que você espera de um diretor que contou uma das histórias de amor mais lindas no cinema do século 21. (Não vou “Namorados para sempre” ainda? está esperando o quê?). Até boa parte dele, você fica achando que trata-se na verdade de duas histórias: a primeira, do motoqueiro rebelde (Luke, interpretado por Ryan Gosling) que não sabia que tinha um filho – fruto de um romance com Romina (Eva Mendez) – e, quando descobre, resolve mudar radicalmente de vida, para pior; a outra, é a história de um policial correto, Avery (Bradley Cooper), que virou um herói depois de ter denunciado um grande esquema de corrupção na cidade em que mora. Antes disso, porém, ele já era considerado um herói, justamente por seu envolvimento com Luke – mas explicar exatamente como eles se “conheceram” é estragar um bom gancho do filme.
Fato é que as duas histórias são bem contadas, mas à primeira vista você fica meio sem entender como elas vão se encontrar no final. Como já tinha demonstrado em “Namorados”, o diretor é bom de fazer a gente conhecer um personagem intimamente – e todos os de “Lugar”, inclusive os periféricos (como o segundo marido de Romina), são bem construídos. Eu estava bastante seduzido pela narrativa do filme, até que aquele “velho truque” apareceu escrito na tela: “15 anos depois…”. No momento em que a história dá esse salto, você entende o que vai acontecer, como Luke e Avery vão se “encontrar” de novo – com resultados desastrosos. Mesmo com essa previsibilidade toda, dei crédito a Cinafrance – mas ele o desperdiçou quando, bem no final… tudo termina bem.
A gente espera mais de um diretor que levantou nossas expectativas com um trabalho tão original como “Namorados para sempre”. Mas eu acabei saindo do cinema com mais uma dissonância cognitiva para minha coleção…
Será que “Porta dos fundos” vai um dia para a TV aberta – aumentando o meu acervo?
O refrão nosso de cada dia: “Desa suci”, M. Osman & Les Fentômes – você vai me perguntar por quê? E eu vou responder apenas que estou nadando nas águas da minha fase de pop da Malásia e Cingapura dos anos 60. Quer dar um mergulho?