O homem que caiu no museu
Depois de quase um mês de lugares incríveis, experiências únicas e histórias inusitadas – uma combinação infalível para férias ideais – encerrei meu descanso da melhor maneira possível: passei por Londres e visitei a exposição “David Bowie is”, no Victoria & Albert Museum, na última quinta-feira. Foi um dia cheio: voltava de um destino insólito (mais sobre ele, em algum momento ainda oportuno), onde fiz um mergulho na natureza – uma espécie de licença poética para este viajante que tanto se orgulha de gostar de grandes cidades. Talvez eu estivesse mesmo precisando ficar num lugar isolado para marcar a passagem dos meus 50 anos – e foi de fato uma experiência enriquecedora. Mas depois de tanto tempo desconectado de tudo (não estou exagerando: eu só soube do atentado terrorista de Boston 48 horas depois de ele ter acontecido), acho que eu estava precisando de um “choque urbano” – que foi exatamente o que essa rápida passagem por Londres me proporcionou.
Com a ajuda de meu irmão e minha cunhada – que há um ano moram na capital inglesa –, consegui ingressos para nada menos que 4 exposições em quatro museus diferentes. Não foi meu recorde – como os leitores e leitoras mais frequentes aqui talvez se lembrem, já fiz 6 museus em 4 horas na mesma cidade. Mas foi intenso – e o que foi decisivo para isso foi a grandeza das próprias exposições que visitei.
A primeira delas foi a de Roy Lichtenstein, na Tate Modern – completa, compacta, instrutiva, e até surpreendente. Lichtenstein é daqueles artistas (como Andy Wharol) que você já viu tanto na sua vida – e não só dentro de museus – que a ideia de uma retrospectiva de seu trabalho imediatamente inspira um certo “déjà vu”. Ver de novo aquelas imagens de quadrinhos pop estouradas em telas gigantescas? Será mesmo necessário? Mas pense novamente: é totalmente necessário – até porque aquela forma de expressão foi apenas um ponto de partida para o artista. Os traços fortes, a retícula Ben-Day, as formas simplificadas, os contornos precisos – todos os elementos que tornaram a pintura de Lichtenstein famosa foram (quase sempre) brilhantemente reaproveitados pelo artista ao longo de sua carreira – lembrando que ele permaneceu ativo até sua morte, em 1997. O “quase sempre” tem a ver com uma ou outra fase de Lichtenstein que eu acho menos interessante – ou ainda, mais superficial –, como a que ele reinterpreta obras de outros pintores (refazer um Mondrian com retículas é não só constrangedor como uma subversão indesejada da própria ideia do artista original), ou aquela em que tenta flertar com a arte abstrata. Mas quando ele acerta – como, digamos, em seus “espelhos” ou na exploração das paisagens japonesas – é um delírio!
Embalado por esse bom começo, segui para a Hayward Gallery, onde uma exposição sobre artistas que trabalham com luz me esperava. Bem… Que artista não trabalha com luz? – você pode cinicamente perguntar. De Caravaggio ao próprio Lichtenstein (passando por Vermeer, Velázquez, Monet, Rothko – e quem mais você quiser), a história da arte é também uma história da relação das imagens e nossos olhos com a luz. Mas a mostra da Hayward é um pouco mais específica nesse sentido. Num espetacular trabalho de curadoria (esses caras da Hayward, na minha opinião, são os melhores do mundo nesse tipo de curadoria – a minha favorita foi uma exposição que eles fizeram, no ano passado, sobre o invisível, isso mesmo, arte invisível, e era genial, mas eu divago…), eles juntaram um punhado de artistas que usam a luz artificial como inspiração.
Essa é, evidentemente, uma abordagem recente na arte. O artista mais antigo no show da Hayward é Dan Flavin – um pioneiro no uso de lâmpadas fluorescentes nos anos 60. Mas o que a mostra deixa claro é que mais e mais artistas usam a luz como um brilhante (sem trocadilho!) e cativante meio de expressão. Numa coletiva tão rica, é quase leviano de minha parte citar apenas um ou outro trabalho, mas, por uma questão de espaço, vou destacar apenas a incrível instalação de James Turrel – um mestre em criar ilusões de ótica vertiginosas, mexendo com nossa noção de espaço; as cintilantes serpentinas de LED de Leo Villareal; o desenho de luz que usa o próprio visitante como material, de Anthony McCall; e as estonteantes “esculturas de água” que Olafur Eliasson montou em um quarto muito escuro: uma luz estroboscópica “congela” cada momento das fontes instaladas em uma bancada, criando momentos de uma beleza indescritível.
Precisava de uma pausa. Assim, antes de encarar Duchamp no Barbican Center, almocei com meu pequeno grupo de “peregrinos da arte” no próprio Barbican – que tem um ótimo restaurante de tapas, com chefs brasileiros! Revigorados, encaramos então “A noiva despida pelos seus celibatários”, do já citado Duchamp, que estava sendo apresentada com seus desdobramentos no trabalho de artistas americanos como John Cage, Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Talvez pelo vinho que tomamos no almoço, ou mesmo pelo meu baixo entusiasmo com relação aos artistas americanos (mas não, claro, a Duchamp), atravessei o Barbican sem grandes emoções. O que na verdade foi uma espécie de preparação perfeita, uma limpeza dos sentidos, para a exposição que fecharia o dia: justamente a de Bowie no V&A!
Vou logo falando que essa exposição me fez chorar – e olha que eu já havia sido avisado desse “perigo”… Uma amiga brasileira que passava a semana também em Londres (e que fez parte desse roteiro cultural com a gente) me contara que só na sala dedicada a “Space oddity” ela mesmo já tinha chorado como criança. Não deu outra… Se as lágrimas vieram fáceis, porém, a explicação para a origem delas provou ser um pouco mais difícil de alcançar. O que exatamente aconteceu comigo – e acontecia com tantas outras pessoas que visitavam aquelas galerias do V&A? (Embora eu não visse ninguém soluçando pelos cantos, era inegável que os rostos de todos ali eram pouco a pouco redesenhados pela emoção do que experimentavam).
Não dá para dizer que Bowie foi meu ídolo de infância – embora, cronologicamente eu pudesse contar essa vantagem. Como já contei aqui, meu “envolvimento” com sua música foi tardio. O primeiro disco de Bowie que comprei foi “Scary monsters (and super creeps)”, de 1980 – e só então, acometido de uma paixão fulminante, fui atrás de tudo que ele havia feito antes (e continuei a acompanhá-lo em tudo que ele fez depois). Mas de alguma maneira, ver ali na exposição tudo que Bowie significou para aquela geração que começou a ouvir música no final dos anos 60/comecinho dos 70, deixou-me extremamente abalado. Uma certa nostalgia foi inevitável: quem tem esse poder de mudar todas as regras hoje?, pensava eu logo na entrada da exposição. Claro que no nosso cenário atual não faltam artistas que se propõem a mexer com tudo – Lady Gaga talvez seja o exemplo mais óbvio, revendo preconceitos e pregando liberdade. Mas numa comparação superficial, no que diz respeito a quem teve uma influência maior no comportamento dos jovens, Bowie sai disparado na frente.
Suas roupas, atitudes, declarações (em janeiro de 1972, ele disse ao jornal musical “Melody Maker” que era gay – 1972!), músicas e seu comportamento em geral eram tão adiante de tudo que estava acontecendo, que o desenrolar de sua carreira, visto de longe, pode quase ser encarado como uma obra de ficção. Só que se tratava da vida real – e as pessoas (pelo menos as pessoas que tinham dificuldade em ver que tudo estava mudando a sua volta) tinham uma certa dificuldade de entender o que estava acontecendo. Num trecho precioso de um vídeo antigo (começo dos anos 70), um repórter da BBC, sobre imagens de Bowie passando batom dourado e pintando as unhas de “glitter” prateado, perguntava o que as meninas que se aglomeravam diante do lugar onde ele estava prestes a se apresentar viam naquela aberração… Eheh… O que elas viam, claro, era algo completamente diferente, ainda mais revolucionário, do que até mesmo os “loucos” anos 60 já haviam trazido. E o que elas (e eles, os fãs de todos os sexos e todas as idades) ouviam eram música pop da melhor qualidade. Que de lá em diante – e pelo menos até o início dos anos 90 – só foi melhorando.
A mostra do V&A desenha essa evolução com um riquíssimo material do acervo do próprio Bowie e mais relíquias recolhidas em várias partes – gravadoras, colecionadores, arquivos. E a cada espaço que eu visitava, a mesma palavra me acompanhava: moderno, moderno, moderno! Raramente Bowie errou ao apontar uma tendência com sua música e suas ideias. Se olharmos especialmente ao longo de toda a década de 70, há um bom punhado de canções que são – todas – obras-primas: a própria “Space oddity” (tecnicamente de 1969); “Changes”; “Starman”; “Life on mars?”; “Rebel Rebel”; “Young americans”; “Fame”; “Sound and vision”; “Heroes” (“Heroes”!) – e não estou nem contando “Aladdin Sane”, que não foi “single”… Esses monumentos do pop iam se acumulando em cada espaço, cada vitrine, cada canto da exposição – e o efeito disso só poderia mesmo ser uma cascata de emoções.
Cascata essa que inunda a grande sala, já quase no final da exposição, onde dois enormes painéis reproduzem as magnéticas performances de Bowie no palco. Ali, como poucas vezes vi em templos religiosos, os visitantes admiram tudo em silêncio, com uma reverência geralmente reservada a divindades milenares. Sim, esse era o tom – não estou exagerando. Eu mesmo estava nessa exata frequência quando cheguei ali – e chorei mais uma vez. Desejei sem esperança, que um artista aparecesse hoje e tivesse o poder de mudar tudo como Bowie mudou – ou mesmo que alguém, aos 66, tivesse a ousadia de soltar um disco como o recém-lançado “The next day”. E num momento de fraqueza pensei nas pobres criaturas que assombram esta mesma internet onde você me lê e que acham que estão sendo subversivos soltando seus twitter e mensagens “sacanas” como se isso fosse a mais sofisticada forma de malandragem – e a eles desejei fortemente que escolhessem entre voltar para seu rodízio de pornografia virtual ou abrir um pouco mais seu horizonte e tentar entender, através do trabalho de Bowie, como poderiam inspirar uma verdadeira mudança.
Diante da futilidade desse pensamento, no entanto, retomei logo minha conexão com aquele artista que, décadas depois de provar que o mundo não precisa ser chato – e ter inspirado, sim, entre outros, o próprio Caetano Veloso, cujo título de um de seus livros acabei de citar –, ainda é não só presente, mas fundamental. “Vire-se e encare o estranho”, sugere Bowie em “Changes”. E mesmo que essa música mal registre pelas salas do V&A, esse me parece ser o comando maior desse homem que finalmente caiu no museu – para brincar com o título daquele que é talvez seu melhor filme (“O homem que caiu na Terra”). Mas longe de isso significar um ponto final na sua trajetória – quem disse que só pessoas que já morreram pertencem ao museu? –, “David Bowie is” é uma celebração da genialidade de um artista cujo maior talento é, arrisco, ter a ousadia de nunca ser o mesmo. Para continuar com “Changes”, não foi ele que disse: “O tempo pode me mudar, mas eu não posso desenhar o tempo”?
O refrão nosso de cada dia
“GMF”, John Grant – seria fácil agora retomar este espaço com uma música de Bowie, ainda que fosse uma mais “obscura”. Mas para criar uma estranha associação de ideias, preferi oferecer a você esta faixa “enternecedora” desse curioso artista – que, aliás, tem uma curiosa conexão com o lugar onde passei parte das férias (sobre o qual vou falar em breve). Sou fã de Grant desde que ele fazia parte do semi-desconhecido The Czars. Sua carreira solo costuma tomar caminhos inesperados, com ótimos resultados, e seu mais recente álbum, “Pale green ghosts”, é mais uma prova disso. Atente seus ouvidos não só para o significado da abreviação “GMF”, mas também para os curiosos versos de toda canção – que, tenho certeza, o próprio David Bowie aprovaria com louvor (se já não aprovou…).