O homem que caiu no museu

seg, 29/04/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Depois de quase um mês de lugares incríveis, experiências únicas e histórias inusitadas – uma combinação infalível para férias ideais – encerrei meu descanso da melhor maneira possível: passei por Londres e visitei a exposição “David Bowie is”, no Victoria & Albert Museum, na última quinta-feira. Foi um dia cheio: voltava de um destino insólito (mais sobre ele, em algum momento ainda oportuno), onde fiz um mergulho na natureza – uma espécie de licença poética para este viajante que tanto se orgulha de gostar de grandes cidades. Talvez eu estivesse mesmo precisando ficar num lugar isolado para marcar a passagem dos meus 50 anos – e foi de fato uma experiência enriquecedora. Mas depois de tanto tempo desconectado de tudo (não estou exagerando: eu só soube do atentado terrorista de Boston 48 horas depois de ele ter acontecido), acho que eu estava precisando de um “choque urbano” – que foi exatamente o que essa rápida passagem por Londres me proporcionou.

Com a ajuda de meu irmão e minha cunhada – que há um ano moram na capital inglesa –, consegui ingressos para nada menos que 4 exposições em quatro museus diferentes. Não foi meu recorde – como os leitores e leitoras mais frequentes aqui talvez se lembrem, já fiz 6 museus em 4 horas na mesma cidade. Mas foi intenso – e o que foi decisivo para isso foi a grandeza das próprias exposições que visitei.

A primeira delas foi a de Roy Lichtenstein, na Tate Modern – completa, compacta, instrutiva, e até surpreendente. Lichtenstein é daqueles artistas (como Andy Wharol) que você já viu tanto na sua vida – e não só dentro de museus – que a ideia de uma retrospectiva de seu trabalho imediatamente inspira um certo “déjà vu”. Ver de novo aquelas imagens de quadrinhos pop estouradas em telas gigantescas? Será mesmo necessário? Mas pense novamente: é totalmente necessário – até porque aquela forma de expressão foi apenas um ponto de partida para o artista. Os traços fortes, a retícula Ben-Day, as formas simplificadas, os contornos precisos – todos os elementos que tornaram a pintura de Lichtenstein famosa foram (quase sempre) brilhantemente reaproveitados pelo artista ao longo de sua carreira – lembrando que ele permaneceu ativo até sua morte, em 1997. O “quase sempre” tem a ver com uma ou outra fase de Lichtenstein que eu acho menos interessante – ou ainda, mais superficial –, como a que ele reinterpreta obras de outros pintores (refazer um Mondrian com retículas é não só constrangedor como uma subversão indesejada da própria ideia do artista original), ou aquela em que tenta flertar com a arte abstrata. Mas quando ele acerta – como, digamos, em seus “espelhos” ou na exploração das paisagens japonesas – é um delírio!

Embalado por esse bom começo, segui para a Hayward Gallery, onde uma exposição sobre artistas que trabalham com luz me esperava. Bem… Que artista não trabalha com luz? – você pode cinicamente perguntar. De Caravaggio ao próprio Lichtenstein (passando por Vermeer, Velázquez, Monet, Rothko – e quem mais você quiser), a história da arte é também uma história da relação das imagens e nossos olhos com a luz. Mas a mostra da Hayward é um pouco mais específica nesse sentido. Num espetacular trabalho de curadoria (esses caras da Hayward, na minha opinião, são os melhores do mundo nesse tipo de curadoria – a minha favorita foi uma exposição que eles fizeram, no ano passado, sobre o invisível, isso mesmo, arte invisível, e era genial, mas eu divago…), eles juntaram um punhado de artistas que usam a luz artificial como inspiração.

Essa é, evidentemente, uma abordagem recente na arte. O artista mais antigo no show da Hayward é Dan Flavin – um pioneiro no uso de lâmpadas fluorescentes nos anos 60. Mas o que a mostra deixa claro é que mais e mais artistas usam a luz como um brilhante (sem trocadilho!) e cativante meio de expressão. Numa coletiva tão rica, é quase leviano de minha parte citar apenas um ou outro trabalho, mas, por uma questão de espaço, vou destacar apenas a incrível instalação de James Turrel – um mestre em criar ilusões de ótica vertiginosas, mexendo com nossa noção de espaço; as cintilantes serpentinas de LED de Leo Villareal; o desenho de luz que usa o próprio visitante como material, de Anthony McCall; e as estonteantes “esculturas de água” que Olafur Eliasson montou em um quarto muito escuro: uma luz estroboscópica “congela” cada momento das fontes instaladas em uma bancada, criando momentos de uma beleza indescritível.

Precisava de uma pausa. Assim, antes de encarar Duchamp no Barbican Center, almocei com meu pequeno grupo de “peregrinos da arte” no próprio Barbican – que tem um ótimo restaurante de tapas, com chefs brasileiros! Revigorados, encaramos então “A noiva despida pelos seus celibatários”, do já citado Duchamp, que estava sendo apresentada com seus desdobramentos no trabalho de artistas americanos como John Cage, Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Talvez pelo vinho que tomamos no almoço, ou mesmo pelo meu baixo entusiasmo com relação aos artistas americanos (mas não, claro, a Duchamp), atravessei o Barbican sem grandes emoções. O que na verdade foi uma espécie de preparação perfeita, uma limpeza dos sentidos, para a exposição que fecharia o dia: justamente a de Bowie no V&A!

Vou logo falando que essa exposição me fez chorar – e olha que eu já havia sido avisado desse “perigo”… Uma amiga brasileira que passava a semana também em Londres (e que fez parte desse roteiro cultural com a gente) me contara que só na sala dedicada a “Space oddity” ela mesmo já tinha chorado como criança. Não deu outra… Se as lágrimas vieram fáceis, porém, a explicação para a origem delas provou ser um pouco mais difícil de alcançar. O que exatamente aconteceu comigo – e acontecia com tantas outras pessoas que visitavam aquelas galerias do V&A? (Embora eu não visse ninguém soluçando pelos cantos, era inegável que os rostos de todos ali eram pouco a pouco redesenhados pela emoção do que experimentavam).

Não dá para dizer que Bowie foi meu ídolo de infância – embora, cronologicamente eu pudesse contar essa vantagem. Como já contei aqui, meu “envolvimento” com sua música foi tardio. O primeiro disco de Bowie que comprei foi “Scary monsters (and super creeps)”, de 1980 – e só então, acometido de uma paixão fulminante, fui atrás de tudo que ele havia feito antes (e continuei a acompanhá-lo em tudo que ele fez depois). Mas de alguma maneira, ver ali na exposição tudo que Bowie significou para aquela geração que começou a ouvir música no final dos anos 60/comecinho dos 70, deixou-me extremamente abalado. Uma certa nostalgia foi inevitável: quem tem esse poder de mudar todas as regras hoje?, pensava eu logo na entrada da exposição. Claro que no nosso cenário atual não faltam artistas que se propõem a mexer com tudo – Lady Gaga talvez seja o exemplo mais óbvio, revendo preconceitos e pregando liberdade. Mas numa comparação superficial, no que diz respeito a quem teve uma influência maior no comportamento dos jovens, Bowie sai disparado na frente.

Suas roupas, atitudes, declarações (em janeiro de 1972, ele disse ao jornal musical “Melody Maker” que era gay – 1972!), músicas e seu comportamento em geral eram tão adiante de tudo que estava acontecendo, que o desenrolar de sua carreira, visto de longe, pode quase ser encarado como uma obra de ficção. Só que se tratava da vida real – e as pessoas (pelo menos as pessoas que tinham dificuldade em ver que tudo estava mudando a sua volta) tinham uma certa dificuldade de entender o que estava acontecendo. Num trecho precioso de um vídeo antigo (começo dos anos 70), um repórter da BBC, sobre imagens de Bowie passando batom dourado e pintando as unhas de “glitter” prateado, perguntava o que as meninas que se aglomeravam diante do lugar onde ele estava prestes a se apresentar viam naquela aberração… Eheh… O que elas viam, claro, era algo completamente diferente, ainda mais revolucionário, do que até mesmo os “loucos” anos 60 já haviam trazido. E o que elas (e eles, os fãs de todos os sexos e todas as idades) ouviam eram música pop da melhor qualidade. Que de lá em diante – e pelo menos até o início dos anos 90 – só foi melhorando.

A mostra do V&A desenha essa evolução com um riquíssimo material do acervo do próprio Bowie e mais relíquias recolhidas em várias partes – gravadoras, colecionadores, arquivos. E a cada espaço que eu visitava, a mesma palavra me acompanhava: moderno, moderno, moderno! Raramente Bowie errou ao apontar uma tendência com sua música e suas ideias. Se olharmos especialmente ao longo de toda a década de 70, há um bom punhado de canções que são – todas – obras-primas: a própria “Space oddity” (tecnicamente de 1969); “Changes”; “Starman”; “Life on mars?”; “Rebel Rebel”; “Young americans”; “Fame”; “Sound and vision”; “Heroes” (“Heroes”!) – e não estou nem contando “Aladdin Sane”, que não foi “single”… Esses monumentos do pop iam se acumulando em cada espaço, cada vitrine, cada canto da exposição – e o efeito disso só poderia mesmo ser uma cascata de emoções.

Cascata essa que inunda a grande sala, já quase no final da exposição, onde dois enormes painéis reproduzem as magnéticas performances de Bowie no palco. Ali, como poucas vezes vi em templos religiosos, os visitantes admiram tudo em silêncio, com uma reverência geralmente reservada a divindades milenares. Sim, esse era o tom – não estou exagerando. Eu mesmo estava nessa exata frequência quando cheguei ali – e chorei mais uma vez. Desejei sem esperança, que um artista aparecesse hoje e tivesse o poder de mudar tudo como Bowie mudou – ou mesmo que alguém, aos 66, tivesse a ousadia de soltar um disco como o recém-lançado “The next day”. E num momento de fraqueza pensei nas pobres criaturas que assombram esta mesma internet onde você me lê e que acham que estão sendo subversivos soltando seus twitter e mensagens “sacanas” como se isso fosse a mais sofisticada forma de malandragem – e a eles desejei fortemente que escolhessem entre voltar para seu rodízio de pornografia virtual ou abrir um pouco mais seu horizonte e tentar entender, através do trabalho de Bowie, como poderiam inspirar uma verdadeira mudança.

Diante da futilidade desse pensamento, no entanto, retomei logo minha conexão com aquele artista que, décadas depois de provar que o mundo não precisa ser chato – e ter inspirado, sim, entre outros, o próprio Caetano Veloso, cujo título de um de seus livros acabei de citar –, ainda é não só presente, mas fundamental. “Vire-se e encare o estranho”, sugere Bowie em “Changes”. E mesmo que essa música mal registre pelas salas do V&A, esse me parece ser o comando maior desse homem que finalmente caiu no museu – para brincar com o título daquele que é talvez seu melhor filme (“O homem que caiu na Terra”). Mas longe de isso significar um ponto final na sua trajetória – quem disse que só pessoas que já morreram pertencem ao museu? –, “David Bowie is” é uma celebração da genialidade de um artista cujo maior talento é, arrisco, ter a ousadia de nunca ser o mesmo. Para continuar com “Changes”, não foi ele que disse: “O tempo pode me mudar, mas eu não posso desenhar o tempo”?

O refrão nosso de cada dia

“GMF”, John Grant – seria fácil agora retomar este espaço com uma música de Bowie, ainda que fosse uma mais “obscura”. Mas para criar uma estranha associação de ideias, preferi oferecer a você esta faixa “enternecedora” desse curioso artista – que, aliás, tem uma curiosa conexão com o lugar onde passei parte das férias (sobre o qual vou falar em breve). Sou fã de Grant desde que ele fazia parte do semi-desconhecido The Czars. Sua carreira solo costuma tomar caminhos inesperados, com ótimos resultados, e seu mais recente álbum, “Pale green ghosts”, é mais uma prova disso. Atente seus ouvidos não só para o significado da abreviação “GMF”, mas também para os curiosos versos de toda canção – que, tenho certeza, o próprio David Bowie aprovaria com louvor (se já não aprovou…).

Interrompemos nossa programação de férias para um comunicado importante

ter, 23/04/13
por Zeca Camargo |
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Desta vez serei breve – mesmo. Afinal, estou de férias – e pretendo continuar assim até domingo! Num lugar incrível que, claro, a seu tempo, vou te convidar para adivinhar onde é. Mas o assunto agora é outro: uma continuação do meu projeto de diminuir em 30% tudo que eu tenho. Mais especificamente meus CDs… Percebendo que havia uma certa, digamos, receptividade da sua parte, caro leitor, cara leitora, à ideia de receber parte desse, hum, espólio, criei, junto com o pessoal do G1, uma maneira de distribuir 500 CDs da minha coleção! Estás a fim?

Antes de explicar como você pode participar, alguns esclarecimentos. Esses 500 CDs não são, de maneira nenhuma “sobras”. Mas, como todo mundo, estou “modernizando” meu acervo. Boa parte da minha música já está digitalizada e eu cada vez mais estou optando pra ficar mesmo apenas com os CDs “físicos” que são uma espécie de fetiche para minha história pessoal. Como para qualquer colecionador, desfazer-me desses itens não foi nada fácil… Mas decidi que seria uma questão de abrir espaço na minha casa – e de dar aquela “passada a limpo” nas minhas coisas, por conta dos 50 anos que acabei de celebrar (em tempo, muito obrigado pelas mensagens carinhosas que recebi aqui pelo aniversário).

Assim, separei 500 deles e vou distribuir em 50 pacotes de 10 CDs cada. Quer um deles? Fácil! Indique duas músicas de estilos bem diferentes, mas que juntas dão uma boa combinação – e escreva também uma breve justificativa para sua escolha! Mande o nome das músicas – até dia 03 de maio – por este link. Então, eu e uma equipe de Pop & Arte, aqui do G1, vamos escolher as 50 melhores combinações de músicas – dentro do espírito que este mesmo blog defende há quase sete anos (!), quanto mais inusitada for sua sugestão, melhor. O que queremos é que você nos indique músicas que aparentemente não têm nada ver entre si, mas que se o shuffle colocasse uma depois da outra você teria uma boa surpresa. Capriche – surpreenda-nos!

Cada premiado ou premiada terá minha palavra de que, entre os dez discos que serão entregues, você vai encontrar coisas também inesperadas juntas – lounge de Lisboa com música eletrônica mexicana? Por que não? Bossa nova tailandesa com rock alternativo inglês dos anos 90? E daí? Acid Jazz dos anos 80 com Tim Maia? Qual o problema? Cada pacote irá com uma anotação especial de próprio punho falando sobre a seleção. E espero que quem a receba tenha um gosto pelo diferente – e um ouvido aberto a aventuras…

Acho que é isso então… Sigo em férias por mais uns dias – ainda sob sigilo sobre onde estou… Tudo que posso contar é que, no caminho de volta para casa, vou parar em Londres e ver a exposição sobre David Bowie montada no Victoria & Albert Museum… Um assunto que, como sempre, dividirei com você aqui em breve! Boa sorte na escolha das músicas! Pegando mais uma carona no Bowie, eu diria que estou “waiting for the gift of sound and vision”…

 

Uma breve história do tempo
(Parte 2)

ter, 02/04/13
por Zeca Camargo |
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Poucas coisas são tão constrangedoras nessa vida quanto abrir um caderno de poesias adolescentes. Especialmente se o caderno for seu, se as poesias forem suas, se o adolescente que as escreveu for você. No entanto foi exatamente isso que fiz alguns dias atrás. Como um inesperado efeito colateral da “faxina” que faço no meu acervo pessoal (já apresentada aqui na semana passada) por conta dos meus vindouros 50 anos, eis que esbarro em mais de um caderno cuja caligrafria que os preenchia me era estranhamente familiar. A letra, claro, era minha, mas escrevi “estranhamente” porque não foi sem uma certa relutância que admiti que eu mesmo tinha escrito aquelas coisas. Não eram só poesias: também diários de viagens, trechos de livros copiados, pensamentos soltos – tudo parecia sair de um longo período de hibernação para, enfim, me constranger à medida que eu lia e me via obrigado a admitir que aquilo também era parte da minha história.

De repente me senti numa espécie de, digamos, “vácuo etário”. Da mesma maneira que tinha dificuldades em reconhecer que eu fui aquela pessoa que escreveu poesias baratas quando jovem, eu também não aceitava facilmente que estava fazendo 50 anos. O problema, no segundo caso, não era o que as pessoas geralmente imaginam – uma espécie de “crise dos 50″, como se eu chegasse a essa altura da minha vida e percebesse horrorizado que 5 décadas já se passaram. Não, eu não tenho nenhum problema com isso – posso garantir que vivi esses anos todos com uma plenitude que, quero achar, é rara no ser humano. Tive muitas tristezas e decepções, é verdade, mas quando eu olho para as coisas que conquistei (e sobretudo para as pessoas que amei) tenho certeza de que vivi 50 anos bem vividos.

Por que a inquietação então? De onde vinha a “dissonância cognitiva” – uma expressão que uso livremente para definir algo que não é o que parece? A culpa é do próprio registro que eu tinha – e certamente trago até hoje – de como uma pessoa com 50 anos deveria ser. O retrato mais forte, claro, era o do meu pai. Eu tento me lembrar dele com a idade que completo agora e o choque é inevitável: eu não sou como ele era com 50. E a discrepância não é exatamente física: ele mesmo sempre pareceu mais jovem do que seu passaporte indicava. O que mais incomodava era o fato de eu ter a certeza de que, hoje, eu não penso como um homem de 50 anos deveria pensar. Uma reflexão que me leva automaticamente à outra: e como um homem (ou uma mulher) de 50 anos deveria pensar?

A resposta mais fácil e reconfortante é que não existe uma regra para isso. Felizmente ninguém escreveu essa apostila até hoje. Mas também ninguém te avisa que você nunca vai ter um manual para saber como se comportar… Mesmo as coisas que penso e escrevo hoje, ainda que (como constato em muitos comentários – algo que me deixa muito preenchido) elas inspirem muitas pessoas, não são grande exemplo para nada. Elas serviram para mim – e mais: em momentos muito específicos da minha vida.

As próprias poesias que reencontrei agora – e que me causaram o tal constrangimento – eram extremamente verdadeiras quando foram escritas, mas não mais aí. Para mim, resumiam tudo que eu estava sentindo – e mais: eram isso. Eram ainda uma perfeita válvula de escape para emoções que eu não podia (pela estupidez que sempre acompanha a adolescência) experimentar plenamente. Como nunca devo ter tido a pretensão de que estava escrevendo para a posteridade, as poesias desse caderno que encontrei não trazem a data. Mas arrisco cravar que elas foram escritas entre meus 16 e 19 anos (1980/83), o período em que estava na faculdade. As pistas que me fazem concluir isso são os momentos e paixões que elas descrevem, e a influência “descarada” de um outro poeta, este sim, um dos bons: Cacaso – que era irmão da minha mãe e meu padrinho -, que eu finalmente absorvia em toda sua complexidade (ou simplicidade, como defendem alguns) durante esses meus anos universitários.

Falei que essa minha “obra” me constrangeu agora ao reencontrá-la, mas nem tudo era tão ruim assim. A maioria das poesias era medíocre, mas consegui salvar um ou dois pares de versos. Como esses (como qualquer poeta “sério”, dava títulos às minhas composições!):

HÁBITOS E COSTUMES

Os meus
São os seus

Ou talvez essa outra (você não imagina como é difícil dividir elas com você aqui agora):

A DIFERENÇA

Antes eu queria morrer e você nem sabia que eu te amava

Hoje eu sei que você sabe, e é pior, muito pior

E, se eu merecer ainda sua atenção, aqui está minha favorita:

A METADE

Metade das coisas que você fala
Eu não acredito

A outra metade
Você não fala

Com qual delas eu fico?

Bem, eu falei que elas eram constrangedoras… Ou não! Quem disse que eu não sou capaz de “emocionar” alguém com meus versos? Afinal, não é isso que todo “poeta” – até eu! – almeja? Vejamos.

Em 1995, quando trabalhava na “Capricho”, tive a oportunidade de fazer um curso oferecido pela redação da revista com o músico e professor de literatura brasileira José Miguel Wisnik. Um não – dois: um sobre as “Primeiras histórias”, de Guimarães Rosa (se me lembro bem, não avançamos muito além de “O recado do morro”, só ele em si uma obra fascinante) e outro sobre Fernando Pessoa. (Se você está se perguntando o que um bando de jornalistas que trabalhavam na revista “Capricho” estavam fazendo em cursos sobre Rosa e Pessoa, minha explicação tem um nome: Mônica Figueiredo, que era a diretora da revista na época e que tinha sacadas incríveis como essa – tudo para investir na sua equipe… olha que luxo!).

Mas então, numa das aulas sobre Pessoa, Wisnik, com seu jeito ao mesmo tempo suave e definitivo, resumiu em um pensamento muito simples o que é uma boa poesia. As leitoras da “Capricho” na época (e, imagino, até hoje) escreviam cadernos e cadernos de poesia – que, claro, nunca passavam de desabafos adolescentes (não muito diferente dos meus que apresentei acima). Por isso, uma editora perguntou ao nosso palestrante o que separava aqueles versos dos de Pessoa. A resposta, que reproduzo aproximada, de memória, tinha a ver com a universalidade daquilo que a pessoa escrevia. Esmiuçando: as poesias das leitoras eram muito verdadeiras sim, a pura expressão do que elas estavam sentindo – mas no fim do dia só serviam a elas. Ao passo que os versos de Pessoas (entre tantas outras qualidades) podiam falar aos corações e mentes de muito mais gente – na verdade, suas palavras são tão fortes e poderosas que são capazes de tocar qualquer um. E o que vale para a poesia…

Recentemente participei de a edição do programa “Encontro”, com Fátima Bernardes, e sem querer acabei “papagaiando” o que tinha aprendido com Wisnik – adaptando a ideia para a música. O assunto do programa eram os ídolos da música brasileira que “foram cedo demais”, por conta da morte de Chorão. (Uso as as aspas no porque, como falei no encontro, quando a gente gosta muito de alguém e quando esse alguém diz/escreve/canta coisas que são importantes para nós, a morte sempre vem cedo demais, não importa se aos 20, 30, 40, 50, ou além – mas eu divago…). Inevitavelmente, o assunto se encaminhou para as causas da morte – um tópico delicado, sobretudo porque, como escrevi aqui mesmo, ao analisar apenas o comportamento do cantor (seja Chorão, Elis, Cássia Eller, quem for) e não sua música você cria um viés que distrai as atenções do que realmente importa: a obra desses artistas! O que eu disse mais ou menos no programa é que o que deve ficar é sempre a sua música – aquela canção que você ouve e fala: “Ele (ou ela) tá cantando isso pra mim! Como pode?”.

É por isso que a poesia de Pessoa “bate” em tanta gente. Porque fala para todos e para cada um. O mesmo vale para as canções de Renato Russo. E os livros de Machado. E os filmes de Woody… Esses são trabalhos de artistas maiores, que, com o perdão do clichê, atravessam gerações e falam “diretamente” com quem está lendo/ouvindo/vendo. Com um pouco de sorte, as magras poesias que compartilhei acima talvez digam alguma coisa para você – ou para outra pessoa que passar por aqui. O importante, se posso fazer esse balanço do alto dos meus 50 anos, é seguir produzindo alguma coisa, na esperança de que sempre alguém vai se identificar com aquilo. E não precisa ser para sempre não.

De certa maneira até acho graça das coisas que escrevi – dos amores e tormentos que eu tentava exprimir no meu “caderno de poesias”. As coisas que são importantes num determinado momento da sua vida são facilmente esquecidas num outro. Ou superadas. Ou arquivadas.

Posso exemplificar isso com filmes que vi nessas cinco décadas. Houve um tempo em que eu que o melhor filme jamais feito era “Os embalos de sábado à noite”. Aí veio “O expresso da meia-noite” – e eu achei que era uma obra prima. Depois “Xanadu”. Depois achei que fosse “Hair” – quando abracei a causa hippie com um certo atraso. Depois “Manhattan”. Depois, “O estado das coisas”. Depois “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. Depois “Crimes e pecados”. Depois “Poderosa Afrodite”. Depois “Sexo, mentiras e videotape” (a cronologia pode estar um pouco maluca aqui, não repare, escrevo de cabeça). Depois “Tudo sobre minha mãe”. Depois “Irreversível”. Depois “Fale com ela”. Depois “A arvore da vida”… Cada fase da minha vida aparentemente me trouxe um “filme da minha vida”…

Com música não é diferente… Numa breve – brevíssima – recapitulação, as “músicas da minha vida” (também numa ordem que desafia a cronologia) já foram… “I feel love”; “Heroes”; “London calling”; “The model”; “Ashes to ashes”; Rock lobster”; “Everything has gone green”; “Your silent face”; “Caterpillar girl”; “This charming man”; “How soon is now?”; “Shakespeare’s sister”; “Panic”; “Ask”; “Girlfriend in a coma”; “Faith”; “Like a prayer”; “Come together”; “Groove is in the heart”; “Losing my religion”; “Smells like teen spirit”; “Paranoid android”; “Sour times”; “Makes me wanna die”; “If you tolerate this then your children will be next”; “Wonderwall”; “Song 2″; “Palmito’s Park” – “Palmito’s Park”? A lista é minha… Com licença…

Enfim, estou brincando aqui com todas essas referências – das minhas poesias “meia bomba” a verdadeiros clássicos do pop – só para poder concluir que, à beira dos 50 anos (no próximo dia 08 – e pode cumprimentar pois arianos gostam de parabéns!) eu não tenho certeza de nada – nem do que já gostei nem do que ainda vou gostar. E é justamente com essa incerteza que eu quero continuar a explorar o mundo – e mais amiúde o mundo pop!!

Ter feito essa “faxina” toda, ao contrário de ter me deixado melancólico, acabou me revigorando. E agora eu quero mais! Mas antes… Antes vou sair de férias! Comemorar meu aniversário numa das cidades que eu mais amo no mundo, com vários amigos, e depois partir para duas semanas num lugar mais distante, para ficar “só comigo mesmo”… Mas estou adiantando as coisas. Na volta teremos muito assunto – inclusive o destino dos 30% da coleção de CDs que eu vou liberar. Eram esses discos que estavam estampados na foto do post de ontem, sob o título “Vem aí”. A brincadeira com a nova campanha da TV onde trabalho era proposital – e quis fazer mesmo correndo o risco de ser acusado de ter sido “obrigado” a dar uma força pro “Vem aí”… Ai ai ai… Entre as vantagens de se fazer 50 anos uma das melhores é poder não ligar mais para as bobagens que os outros falam. E me concentrar só nas coisas que eu gosto e nas pessoas que realmente gostam de mim. Torça para você chegar logo nessa idade. Você vai ver como é bom…

Até a volta – no final de abril!

Vem aí

seg, 01/04/13
por Zeca Camargo |
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