Uma breve história do tempo
(Parte 1)

seg, 25/03/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

30%. Essa é a cota que eu estabeleci para mim mesmo das coisas que tenho que me desfazer. Vou abrir mão de 30% de tudo que acumulei até hoje – livros, discos, vídeos, roupas, suvenires, fotos, escritos. Menos gente (embora, se eu realmente ouvisse conselhos, eu talvez devesse considerar os mesmos 30% nas minhas relações sociais, mas eu divago, e está cedo para isso). Tal projeto, claro, tem a ver com os 50 anos que se aproximam – que, aliás, estão assustadoramente perto. Mais precisamente, estamos a 15 dias de eles serem comemorados – e o leitor ou a leitora mais perspicaz já percebeu que o fato de eu ter usado a primeira pessoa do plural na frase anterior denota uma certa insegurança, como se eu não fosse capaz de suportar sozinho o fato. Na verdade, isso é mero recurso cômico – uma possível válvula de escape para outras questões do meu cotidiano que pulsam frementes nos últimos dias. Estou me enrolando, eu sei – e, pior, estou tentando te convencer que estou fazendo isso de propósito, quando na verdade estou mesmo preocupado com essa data (e me esforçando para mostrar que não estou). Tudo então tende a uma desproporcional divagação, que desafia até os padrões deste próprio blog – tudo porque eu talvez tenha receio de encarar o tema que eu mesmo me propus a escrever hoje aqui. Justamente, meus 50 anos. Bobagens…

Recomeçando então.

30%. Estou me livrando de 30% de todos meus bens materiais – e isso é uma meta que eu mesmo me coloquei para a chegada dos 50 – no próximo dia 8. Como você pode imaginar, de todas minhas posses, o que podemos chamar de “bens culturais” são as mais difíceis de eu me desprender… Por isso mesmo, se tudo der certo, conto até com sua colaboração num projeto que envolve minha coleção de CDs – mas eu estou obviamente tentando desviar mais uma vez do assunto principal… O fato é que não se faz uma “faxina pessoal” dessas sem remexer em tudo – e uso “tudo”, claro, como um eufemismo para o passado. Dá trabalho mexer nele, não dá? Primeiro, um trabalho físico: tirar as coisas do lugar, abrir caixas, desempilhar papéis, remover volumes, ganhar camadas de poeira nos dedos. Descobri esse aspecto desagradável muito real com o qual temos que lidar ao voltar ao passado quando decidi arregaçar as mangas e selecionar o que, desses últimos 49 anos, eu vou levar adiante para os próximos, hum… Ia dizer “os próximos 49″ anos, mas seria otimismo demais da minha parte querer acreditar nisso. Digamos então que a seleção tenha a ver com o que eu quero levar comigo para os próximos 25/30 anos, calculando com certa sensibilidade, esperança – e também um certo pé no chão – o tempo que eu ainda tenho para aproveitar, com saúde física e mental não comprometidas, tudo que eu mais adoro, que é a cultura pop.

Mas além desses obstáculos muito presentes num “balanço de vida” como esse que abracei, há ainda um aspecto, hum, abstrato do processo. Revisitar coisas do passado significa inevitavelmente voltar a muitos momentos que talvez tragam lembranças com as quais você não estava contando. Não são necessariamente lembranças ruins – pelo contrário. Algumas delas são tão boas, que têm a força evocar uma certa melancolia tamanha a saudade que a memória de um tempo bom é capaz de provocar. E justamente porque tenho muitas coisas boas para lembrar é que tenho atravessado esses últimos dias com um misto de excitação e medo.

Não se preocupe. Não vou fazer deste post um divã – repassando passagens forte da minha vida, amigos, amores, desafetos, família… Este não é o lugar para isso – quem sabe uma sempre prometida e nunca sequer esboçada biografia (que já tem até nome, “Muito tudo”, mas não um primeiro parágrafo). O blog é sobre cultura pop – estou muito certo disso, como deixei claro nos últimos seis anos e meio (!). Mas como a história da minha vida – não só profissional, mas pessoal também – é intrinsecamente ligada com essa cultura pop, não tem como eu não parar para pensar um pouco nisso também. A própria trajetória da minha carreira como jornalista se cruza o tempo todo com a evolução do pop nos últimos 30 anos – no Brasil e no mundo. E eu não poderia fazer um balanço desses sem ponderar sobre tudo isso aqui com você.

Já pensava em escrever sobre isso hoje, neste texto de duas partes – que é uma espécie de despedida antes das férias que irei tirar a partir do dia primeiro de abril. O que me faltava era uma imagem que pudesse “ancorar” essas memórias, que não fosse gratuita e ao mesmo tempo representasse simbolicamente um momento importante da minha vida. E eis que o acaso – celebrado lindamente por Caetano (que vi cantar ao vivo no último sábado, mais sobre isso daqui a pouco) no seu “Abraçaço”: Meu destino não traço, Não desenho, disfarço, O acaso é o grão-senhor… – enfim, o acaso como sempre veio me ajudar, fazendo com que eu encontrasse, na bagunça de uma das gavetas de lembranças esquecidas, minha “carteira de imprensa” que eu usava quando trabalhava em Nova York, em 1989 (um ano que eu aprenderia a celebrar ao longo de toda minha vida).

Sim, é ela que está no alto do post de hoje – e que nem tem muita coisa de especial. Lembro-me de tê-la tirado lá mesmo, em Nova York, num gélido dia de janeiro, logo que cheguei para trabalhar como correspondente “júnior” do jornal “Folha de S.Paulo” (em algum lugar aqui, tenho quase certeza, já contei que o correspondente “sênior”, na época, era um certo Paulo Francis, com quem tive não só uma relação de admiração como também de amizade que foi das mais preciosas que meu trabalho já me proporcionou – mas isso fica para outra hora…). Olhando hoje, parece um documento simples, até facilmente falsificável, ainda mais com os recursos que qualquer computador caseiro tem agora. Mas na época ele tinha um peso grande – uma autorização legal para eu trabalhar nas ruas de Nova York (podia até cruzar os isolamentos da polícia!). Lembro de sentir-me razoavelmente importante com aquilo no bolso, de ter saído do departamento da prefeitura que viabilizava tal documentação todo convencido comigo mesmo, exibindo-me para uma plateia invisível onde eu era o único que me aplaudia…

Permita-me tal vaidade… Eu era um “moleque” de 25 para 26 anos, na capital dos sonhos de quem sempre quis trabalhar com cultura pop! Assim, naquele inverno de 1989 eu realmente achei que estava podendo… E, talvez imbuído dessa euforia, lembro-me também de me atirar ao trabalho com uma vontade que é até hoje uma referência para mim quando estou justamente muito atolado de serviço: busco sempre na memória a energia daquele período da minha vida para ir em frente. Estimulado por tudo que eu tinha a minha volta, escrevia com um gosto e uma vontade de surpreender que eu mesmo não lembrava que tinha naquela época. Explico: cada vez que começo um texto aqui deste blog, você que visita sempre deve ter percebido que eu me esforço para te surpreender – para não abrir o post de uma maneira previsível, para não te aborrecer com ideias velhas, para estar atento à fluência e ao ritmo dos parágrafos, ou seja, para te apresentar um texto sempre bom e sempre fresco. Esse é meu compromisso velado – isso não é novidade. O que foi novidade para mim foi ter reencontrado essa mesma “veia” já nos meus tenros 20 anos.

Junto com meu “crachá nova-iorquino”, encontrei também fac-símiles de várias matérias que escrevi naquela época. Separei algumas para mostrar – ainda que só nas primeiras linhas – aqui para você. Começando por essa, de 19 de abril de 1989, sobre o que na época era chamada de “a febre dos remixes”:

“Para o desespero dos fãs e colecionadores do New Order, ‘Round & Round’, a faixa mais recente do último LP, ‘Technique’ (que sai no Brasil dia 8 de maio), foi lançado em 14 versões diferentes”.

Este outro é da apresentação de um filme num dos mais importantes festivais de cinema de Nova York, de 27 de março:

“O convite que o filme do fotógrafo – e agora também diretor de cinema – Bruce Weber faz ao público não é difícil de ser aceito. ‘Let’s get lost’ (‘Vamos nos abandonar’) – que teve sua estreia neste fim-de-semana dentro do festival New Films/New Directors, organizado pelo Museum of Modern Art de Nova York, e pela Lincoln Society of Films – é um flerte ininterrupto durante seus 119 minutos de duração”.

Ainda em Nova York, depois de um encontro surreal com uma cantora chamada Yma Sumac (em 28 de fevereiro de 89):

“Yma Sumac, 61, está viva e chutando. Ou melhor, cantando. Ou melhor, gritando. Com uma temporada de três meses no Ballroom, uma casa de espetáculos em Nova York, ela reafirma seu título de ‘a lendária virgem do Sol’, enquanto decide que destino sua carreira irá tomar atualmente. Yma não sabe se vai fazer uma turnê pelos Estados Unidos, talvez até Brasil, ou se se aposenta de vez na Espanha (a verdadeira nacionalidade da cantora é peruana)”.

Para quê eu fui descobrir isso? Do instante em que achei esse calhamaço numa gaveta em diante, já sabia que minha tarde estaria perdida. Quer dizer… Perdida em termos… Acabei me encontrando com as coisas que eu escrevia nessa época e comecei a viajar – por outros períodos que não apenas aquele de Nova York. Veja o que escrevi, em janeiro de 1989, quando a vinda da Companhia de Dança de Martha Graham para o Brasil foi anunciada:

“As trombetas do Carlton Dance Festival anunciam sua primeira grande atracão. Martha Graham, 94, e companhia estão com presença confirmada na terceira versão do evento que acontecerá em abril próximo. Mãe (e pai) da dança moderna, Graham vai abrir a temporada em Belo Horizonte”.

Ainda antes de embarcar para Nova York, em janeiro de 89, eu anunciava assim uma “nova onda” de “dance music” – que incluía “novidades” como Bomb The Bass e S’Xpress:

“Nada de pé na estrada. A nova geração ‘beat’ só deve satisfações às pistas de dança, que não podem esvaziar. Insistentes, apesar da frieza com que eram tratados até o ano passado pela imprensa musical, alguns grupos conseguiram finalmente proclamar que, em 1898, as batidas por minutos (‘beats per minutes’, ou só bpm) de um sintetizador serão, de longe, mais interessantes que os decibéis que uma guitarra pode produzir”.

Mais adiante, em 11 de abril de 90 (eu tinha acabado de comemorar meus 27 aninhos) assim anunciei a “volta” de Sidney Magal:

“Magal tem uma confissão a fazer. Ele, que já foi Sidney, afirma que ficou enfraquecido, quando tentou um visual de cabelos curtos. ‘Acho que sou o Sansão da MPB’, diz o cantor, fazendo referência ao herói bíblico que perdeu as forças quando teve seu cabelo cortado por Dalila. Pois então, com o cabelo comprido, ele volta aos olhos do público cantando ‘Me chama que eu vou’ nada menos que o tema da recém-começada novela das 20h30 da Rede Globo, ‘Rainha da Sucata’. E isso depois de uma ausência de 5 anos.”

Ou ainda, mais perto do meu aniverário daquele ano, no dia 07, de abril, “apresentei” assim aquela que seria uma das artistas daquele ano, Sinéad O’Connor:

“Você provavelmente já leu uma daquelas críticas que começam dizendo ‘Se você tiver que comprar apenas um disco este ano, que seja este’. Só que dessa vez é sério. Sinéad O’Connor (pronuncia-se chainéd ocónor) gravou uma coleção de canções fundamentais para 1990, acima que qualquer modismo, acima de qualquer comparação, e acima inclusive de seu primeiro trabalho, ‘The lion and the cobra’, de 1988″.

Junto com essas, inaugurei mais de 50 dessas páginas, sob tópicos tão variados quanto Woody Allen, Mummenschanz, Jerry Adrianni, Andy Warhol, “Batman” (o primeiríssimo – de quando você nem tinha nascido!), Prince e até Xuxa! (Trecho da minha entrevista com ela em 16 de junho de 1990, sob o título “Xuxa só não pôs ‘x’ em ‘Lua de cristal’; de resto, ela rescreve tudo, inclusive ‘xuxesso’”: “Pergunta – Você quer ter filhos; Resposta – Não sei quando, mas quero. Queria gêmeos, que eu acho uma gracinha, tudo vestido igualzinho”). Aliás por falar em curiosidades, achei também uma matéria minha sobre “baixaria nas FMs”, ainda em 1990 (14 de fevereiro), que começava assim: “Da próxima vez que um pai preocupado perguntar para o filho ‘Onde você aprendeu esse nome feio?’, pode ser que a resposta seja simplesmente ‘No rádio pai’.” – os duvidosos pioneiros eram o “Café com bobagem”, da Band, e o sobrevivente “Transalouca”, da Transamérica (e depois tem gente dizendo que inventou o “novo humor nas rádios”… sim, eu divago…).

Não quero cair na armadilha da nostalgia… O que ressalto aqui, depois dessa mergulhada no passado – e estamos falando de 23/24/25 anos atrás -, é como o próprio mundo pop nunca deixa de ser interessante. Gênios do gênero, como David Bowie (sobre quem fiquei de escrever aqui na última quinta-feira, mas fui impedido por uma questão de saúde – devo e não nego!) e Caetano (que vi com esses olhos cantar para mais de uma geração anteontem no Circo Voador, Rio, celebrando que o mundo não é chato aos brados de “tudo mega bom giga bom tera bom”!), cabeças geniais que avançam com o tempo sempre nos ajudam a lembrar de que moderno mesmo não é o “hoje”, mas o “sempre”. E o pop é o sempre. Eu, como deixo claro aqui, sempre fui presa fácil desse universo – e é isso que, olhando pra esses 50 anos eu quero celebrar. Hoje foi apenas uma introdução, graças a esse “achado” dos meus arquivos. Mas quinta-feira vou adiante. Se você permitir…

O refrão nosso de cada dia

“Sound and vision”, Beck – por falar em moderno… Em sempre… Aqui está uma versão que Beck fez para o clássico de Bowie. Quer dizer, só Beck não… Dezenas de músicos que ele juntou para celebrar Bowie estão no vídeo também. Novamente, não com nostalgia – Bowie nunca esteve tão presente como neste de ano de 2013! -, mas com o presente da reinvenção. Que é, claro, como pensam as mentes brilhantes, sempre em se reinventar…

Então você acha que é engraçado?

seg, 18/03/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Poucas discussões são tão sem graça quanto uma sobre o que é realmente engraçado. Os argumentos são sempre os mesmos… Novos talentos com piadas velhas, velhos humoristas apontando o dedo para os novos dizendo que eles não inventaram nada, comediantes em pé achando que descobriram a pólvora – e por falar em “pólvora”, você não adora quando alguém acha que está, hum, renovando alguma coisa e bota uma roupa de mulher e sai fazendo uma rotina quase medieval?

Dentre as “pólvoras” mais recentemente descobertas, o humor com a imagem de pessoas públicas – gênero do qual eventualmente sou alvo (e mais eventualmente ainda até me divirto) – é talvez a “reinvenção” mais surrada de todas. Cito ela hoje, neste breve post (peço desculpas pela brevidade, pois estou realmente gripado), porque recentemente deparei-me com um vídeo no YouTube que é um bom exemplo de como fazer humor com uma celebridade – que não seja o caminho fácil de uma fantasia grotesca acompanhada de um sotaque exagerado em uma situação constrangedora. Ah! E fazer com que o esquete seja engraçado – um detalhe omitido com assustadora frequência.

O “segredo” para tal realização é tão simples que o fato de ele não ser usado mais intensamente é algo que nos deixa perplexo: consiste em convidar a celebridade para contar a piada com você. O caminho mais fácil, claro, é outro: antagonizar a pessoa pública em uma situação pública – o que um humorista que respeito (pelo simples fato de que escreve e interpreta bem piadas) gosta de chamar de “fazer gol com a mão”. Mas chamar a celebridade para dividir a piada? Dá trabalho, né gente? Ou será que não dá?

O “Saturday night live” original (de Nova York) faz isso há anos – e talvez seja até por isso que Rafinha Bastos, apesar de não ter emplacado sua versão nacional para o programa, tenha nele buscado inspiração para, num recente momento inspirado, convidar o ator José de Abreu para participar de um “viral”.

Mas quero falar de um exemplo ainda melhor desse “humor colaborativo” – que, como a expressão sugere, depende da vontade de ambas as partes. Ele foi ao ar no mês passado na TV americana. O humorista é o mestre de cerimônias de um dos melhores “talk shows” atualmente em cartaz, “Late night with Jimmy Fallon”. E a pessoa pública? Ninguém menos do que a primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama. 

O que você vai ver no link abaixo nem exige muito contexto para você achar graça. Mas, explicando rapidamente, para promover uma campanha lançada por ela para que os americanos mexam-se mais (“Let’s move”), Fellow aproveitou uma ideia que ele mesmo tinha usado no seu programa no ano passado (mais sobre isso adiante) e chamou Michelle para participar de um quadro de menos de dois minutos chamado “A evolução da dança da mamãe”. Sem texto algum – a não ser pelas legendas que explicam qual é a coreografia que eles estão fazendo -, Fallon (sim, vestido como “mãe”) e a primeira-dama executam passos surreais e hilários. Muitos deles, tenho certeza, você presenciou sua própria mãe desenvolvendo naquela festa de casamento do seu primo… Para facilitar, logo abaixo do link a seguir, está a tradução dos nomes dos passos em português. Confira, e já continuamos.

A EVOLUÇÃO DA DANÇA DA MAMÃE (clique para assistir)

As danças (em ordem de execução):

- “Vá as compras, pegue mantimentos”

- “Levanta o teto”

- “Batida de quadril”

- “Regador de jardim”

- “Estaladora de dedos alegre”

- “Só a parte das mãos de ‘Single ladies’ ”

- “Cadê o sei pai? (Traz ele aqui!)”

- “Recolhe a corda”

- “Balança o quadril duas vezes pro mesmo lado”

- “Pulp fiction”

- “Meu Deus! Eu adoro essa música”

- “Dirigindo a van”

- “A escorregada elétrica fora de sincronia”

- “Dougie” (uma modalidade de dança hip-hop, que faz Fallon “desistir” e deixar Michelle sozinha em cena)

Viram como é fácil? Mas o bom humor não precisa depender de uma figura pública – como a maioria dos vídeos do “Porta dos fundos” pode demonstrar (se não me engano, a pessoa mais famosa que já apareceu em um de seus esquetes foi Jesus – e mesmo assim, apenas como citação; se bem que eu posso estar enganado, já que não posso garantir que conferi tudo que eles fizeram – você mesmo já deve ter passado por uma situação que eu vivo constantemente: um amigo ou uma amiga te “apresentar” um vídeo do “Porta dos Fundos” que você ainda não tinha visto… mas eu divago…).

Para encerrar brevemente (mais uma vez, peço desculpas pela minha saúde), aqui vai o link da ideia que Jimmy Fallon usou para fazer o quadro com Michelle Obama. Chama-se (adivinha!) “A evolução da dança do papai” – e foi ele mesmo que a interpretou em meados do ano passado. Novamente, tenho certeza de que você vai identificar seu pai em pelo menos dois ou três momentos “descontraídos” naquele churrascão de domingo… Abaixo do link, como antes, as traduções das danças que o “papi” executa…

A EVOLUÇÃO DA DANÇA DO PAPAI (clique para assistir)

As danças (em ordem de execução):

- “Bate palma quando você quiser”

- “Caroneiro com bossa”

- “Apontador aleatório”

- “Guitarra gigante”

- “Rebola aí!”

- “Rebola aí (até suas costas travarem)”

- “Agarra e puxa”

- “Andando de esqui”

- “Macarena errada”

- “Máquina de cotovelos”

- “Máquina de cotovelos (bônus: “Mordendo os lábios”)

- “Cobra escorregadia”

- “Bate palma e sacode”

- “YMUC” (confesso não ter ideia do que significa isso, que, no movimento é representado por mãos balançando para cima sem ritmo)

- “Tentativas de fazer a galinha de uma perna só”

- “Tentativas de fazer a galinha de uma perna só (até suas costas travarem)”

- “Eu vou pegar uma cerveja”

Viu como é fácil? Até quinta – quando falamos, então sim, de “The next day”.

O refrão nosso de cada dia

“A tooth for an eye”, The Knife – pensou que eu esqueci do nosso refrão? Que nada! Aqui vai uma “quentinha do forno”, enviada por mim por um colega tem o mesmo gosto musical eclético que eu! O The Knife, que andava sumido, é uma das mais criativas bandas de “dance” deste século. E “A tooth for an eye” é uma boa prova disso. Sem falar que o vídeo é sensacional…

Se eu tivesse Instagram…

qui, 14/03/13
por Zeca Camargo |
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Eu não sabia muito bem como reagir quando uma amiga próxima, há menos de dez dias, disse que me seguia no Instagram e que achava as fotos que eu postava “um pouco esquisitas”. Antes de negar que eu tinha uma conta na rede social que se destaca por ser basicamente um diálogo de imagens, fiquei curioso para saber porque ela tinha achado “minhas” fotos esquisitas. “Não combinam com você”, disse ela – e minha resposta veio de imediato: “Claro que não combinam – não sou eu que estou postando!”.

Minha amiga reagiu com um misto de surpresa e alívio. Por alguns segundos chegou a pensar até que minha resposta significava que eu não postava nada “pessoalmente”, mas que tinha alguém que fazia isso por mim – prática comum entre pessoas públicas. Mas logo concluiu: “Então tem alguém usando seu nome para postar?”. Bingo! Assim como no Facebook e no Twitter  – uma busca rápida vai levar você a mais de uma conta nessas duas redes sociais com o meu nome, nenhuma delas verdadeira -, também no Instagram, uma pessoa desocupada se dá ao trabalho de publicar fotos como seu fosse eu. E, pior: cerca de 17 mil pessoas a seguem, crentes de que estão fazendo parte do meu cotidiano! (Isto é, pior para essas pessoas, que são enganadas pelo autor ou autora da conta).

Essa minha amiga não foi a primeira a me falar sobre essa falsa conta de Instagram. Mas até então nunca tinha tido a curiosidade de ver do que se tratava. Muita gente, há tempos, insiste para que eu tenha uma, com o argumento de que “dá menos trabalho” do que manter uma conta do Face, e que é mais divertido – mas não me animei até agora (mais sobre o “ter ou não ter”, daqui a pouco). Por esse barulho todo fui  conferir então “minha” página de Instagram que estava no smartfone da minha amiga – e foi minha vez de levar um susto!

O que o “falso Zeca” publicava não passava de várias fotos de domínio público – sites de celebridades, colunas de TV, ou ainda este próprio blog que você agora lê – e algumas poucas garimpadas de outros Instagrans (de amigos ou pessoas que encontrei casualmente na rua) e que o “espertalhão” (ou a “espertalhona”) usou como se fossem dele (dela) – ou ainda, como se fossem minhas! (Eu sei, é confuso!).

Novamente pensei naquelas 17 mil pessoas que estavam seguindo aquele Instagram. Será que elas acham mesmo que tudo que eu podia esperar de uma ferramenta visual tão rica era que eu a usasse para, hum, me promover? Bom, a julgar pela média do que circula nas próprias redes sociais – um jogo de espelhos que, se o próprio Narciso tivesse tudo a chance de conhecer, jamais teria se jogado no lago que refletia sua imagem (pela qual se apaixonou perdidamente) -, essa possibilidade existe. “Todo mundo” – e as aspas é para ironizar a afirmação adolescente (mesmo de quem não é adolescente) que denota horror em quem descobre que você não faz parte dessa ou daquela rede social – faz isso hoje em dia, não é mesmo? A maior parte do que circula pelas redes não passam de ricochetes narcisistas que sequer ajudam as pessoas a melhorar sua auto-imagem (muitos deles até jogam contra… mas eu divago…).

Bem, essa é justamente a razão pela qual não tenho nenhum interesse em me juntar a elas. Sinceramente, precisar de um instrumento desses para se promover sempre me pareceu um gesto um pouco desesperado. Mas será que seria assim também com o Instagram? Como meus amigos insistem há tempos, postar apenas fotos, sem compromisso com texto, é mais fácil e mais divertido. E você pode filtrar quem você quer que te siga, dizem todos – um argumento que me parece tolo: se eu um dia tiver um Instagram, o legal, penso, é que todo mundo tenha a acesso a ele. Só que, se for assim, eu acho que vai dar trabalho – e acredite: eu não preciso inventar mais coisas que me dão trabalho (sobretudo às vésperas de completar 50 anos!).

Como você vê, são muitos prós e muitos contras. E é por isso que eu ainda não decidi se devo ou não ter um Instagram. Mas uma coisa eu sei: se um dia eu tiver, vou colocar a mim mesmo umas regras básicas para usá-lo:

- jamais usar foto onde eu mesmo apareça (a não ser indiretamente, num reflexo de uma superfície que cobre o que eu quero mostrar)
- jamais usar outra celebridade para “bombar” minha página, simplesmente pelo fato de que eu tirei uma foto do lado desse ou daquele artista (uma foto especial de um show, por exemplo, poderia entrar por uma questão estética)
- jamais mostrar uma foto gratuita de alguma coisa que estou prestes a comer (a não ser que o esteja no meu prato seja incrivelmente bonito ou enigmático)
- jamais colocaria uma legenda – afinal, que sentido faz você mesmo dar pistas do que determinada imagem significa quando o grande barato do Instagram é deixar o olho viajar?
- jamais ser vulgar

Com isso em mente, resolvi fazer um teste. Selecionei algumas fotos do meu smartfone tiradas nos últimos doze meses e resolvi postar isso aqui hoje. Será que elas dariam um bom Instagram? Vou deixar você mesmo julgar. Quem sabe até eu finalmente me decida mesmo por abrir uma página – nem que seja para resgatar aquelas pobres 17 mil almas que estão sendo enganadas por um impostor (ou uma impostora). Quem sabe? Prometo pensar no assunto. Mas por enquanto, aqui vai o que a gente aqui na TV chama de “piloto”!

Se eu tivesse mesmo um Instagram no último ano, era isso que você teria visto…

Algo mais forte do que aquelas fotos

seg, 11/03/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“Todos os não se agitam
Toda adolescência acata
E a minha mente gira
E toda ilusão se acaba”

Ira!

Você sabe de que fotos eu estou falando. Uma tem um corpo estendido de bruços, no chão, com a imagem fora de foco como se isso conferisse um mínimo de dignidade ao que está sendo mostrado. Outra tem o mesmo corpo em situação ainda mais “digna”, oculto dentro de um saco plástico cinza. No resto delas, como você viu, não tem ninguém – só as marcas de alguém, da sua fúria, do seu desespero, do seu sangue. Ah, você não viu essas fotos? Viu sim. Mas foi um ato tão impensado que você nem lembra que viu. Talvez as fotos tenham se apagado “sem querer” da sua memória. Ou talvez você mereça esse crédito mesmo – não esbarrou nessas imagens apesar de ter navegado com frequência na internet procurando notícias sobre seu ídolo que morreu. Ou talvez ainda ele não seja seu ídolo, mas mesmo assim, você foi atrás de notícias dele – afinal, não estava todo mundo falando disso? E aí, de repente, você viu aquelas fotos – só faltou coragem para você assumir que teve a curiosidade mórbida de observá-las por um tempo. Tudo bem.

Tudo bem mesmo. Não sou moralista. A coisa mais fácil seria eu desfilar aqui um rosário de repreensões na linha “quem teve a coragem de olhar (para não falar a de publicar) essas fotos?”. Eu não seria nem o primeiro… Acontece que não tenho vocação para isso e você não precisa de mais um texto assim – se você quiser muito ler alguma coisa nesse sentido, para revalidar sua própria moral, é só procurar: aqui mesmo na internet há uma enxurrada de comentários que adoram apontar dedos para “coisas erradas” – dedos que curiosamente nunca se lembram de apontar para o próprio dono – ou a própria dona – da mão que acusa. Eu também vi as fotos – como você já deve ter concluído pelas minhas descrições acima. Tinha até a desculpa que fui olhá-las por “obrigação jornalística”, mas tenho de admitir que cheguei nelas pelo mesmo motivo que você: uma inércia sensacionalista, que inexplicavelmente envolve todos que se entregam aos grandes lutos coletivos que são tão característicos desses tempos que vivemos – Kurt Cobain, Mamonas, Lady Di, você faz uma lista fácil.

Não quero julgar quem viu – nem quem não viu (e por isso mesmo se sente superior) – as fotos que mencionei, mas apenas registrar o desequilíbrio atual entre essa curiosidade superficial e o verdadeiro interesse pelo trabalho que uma mente criativa deixou depois de uma tragédia. Há não muito tempo, o sensacionalismo (que nem de longe é fruto do nosso tempo, mas persiste desde que nos tornamos uma civilização) tinha seu espaço, mas o que sobressaía era  sempre a lembrança do que tal pessoa – artista, atleta, cientista, amigo, irmão – deixou de bom. Nossa dor era reflexo da perda, da consciência de que alguém que admirávamos tanto não estaria mais aqui para nos oferecer mais do seu brilho. Não mais. O barulho de uma morte como a do Chorão, que acordou o Brasil na última quarta-feira, mal deixou espaço para lembrar do que ele significava como artista – poeta, músico, ídolo. E isso é muito estranho.

Não falo isso como fã dedicado, mas justamente como alguém que seguiu de longe a trajetória do Charlie Brown Jr e, no momento de uma tragédia como a que se revelou por trás da morte de seu líder, queria saber mais sobre alguém que era tão adorado. Não cheguei a registrar isso nos primeiros dias depois que ele foi encontrado em seu apartamento paulistano – estava envolvido demais na cobertura que faria sobre ele para o domingo. Mas fiz um teste hoje de manhã. Uma busca na internet pelo simples “Chorão” traz: 1) declaração da ex-mulher de que “fez tudo para salvá-lo”; 2) depoimento do segurança do cantor sobre sua reação ao ter encontrado o corpo; 3) seu colega roqueiro (e evangélico), Rodolfo (ex-Raimundos), diz que Chorão “precisava de Deus”. O quarto item é a página do cantor na Wikipédia – ufa! Mas logo em seguida o circo continua: mais links para depoimentos da viúva e, bizarramente, notícias sobre um apresentador de TV que teria confundido o Chorão com um cantor chamado Charlie Brown e teria se perguntado no ar: “Será que o Carnaval da Bahia será o mesmo para o ano?”. Incrível…

Mas sobre a música do Chorão mesmo, algo que eu imaginaria que fosse interessar as pessoas logo após sua morte, nada… Eu mesmo, como já anunciei acima, queria mais informação desse tipo. Confesso que parei de acompanhar de perto a banda depois de “100% Charlie Brown Jr – Abalando a sua fábrica” – que ainda permanece um dos meus favoritos, nem que seja pela faixa “Lugar ao sol”, que preciosamente rima “criança” com “responsa”. De lá para cá, cruzava com ela nos sucessos que Chorão nunca deixou de emplacar nas rádios – “Dias de luta, dias de glória”, “Céu azul”, você conhece… Mas então, com a morte do seu líder – e como alguém que sempre gostou de pop -, você quer saber se perdeu alguma coisa importante nesses últimos anos, ou mesmo relembrar de alguma coisa boa deles que te marcou. Mas para chegar perto disso na internet você tem que atravessar um mar de “desinformação” – e, claro, as tais fotos também. E mais de uma vez me perguntei: onde está a música do cara nisso tudo?

Assim como não me propus hoje aqui a fazer discurso moralista, também não quero cair na pieguice de tantos comentários – e twitters oportunistas – que automaticamente competiram desde a última quarta-feira para ver quem dava um depoimento mais “doloroso”. Gosto da música do Charlie Brown Jr no contexto do árido pop rock brasileiro: os caras encontraram um ótimo nicho (o duvidoso “skate rock”) e dali criaram um universo musical bastante particular e interessante, que permitiu ao Chorão não apenas uma válvula de escape para seus “demônios interiores”, como também um canal de rara honestidade lírica para uma geração que já estava quase aprendendo a crescer sem um poeta. Talvez não fosse uma praia que eu quisesse visitar com frequência, mas era sem dúvida uma paisagem que merecia admiração. Mas para admirá-la agora eu precisava encontrá-la na internet – uma missão quase impossível no meio dos links que associavam o cara a tudo, menos à música. (Um bom oásis nesse deserto foi um texto de André Barcinski, que colocou divertida e corajosamente sua cabeça a prêmio ao chamar Chorão de “ídolo ‘punk’ do pop brasileiro”, uma brilhante pegadinha de gêneros musicais feita para enganar internautas apressados em seus comentários, que aliás caíram como patinhos na armadilha – mas eu divago…).

Fui encontrar conforto, nesse sentido, só quando entrevistei a banda, no último sábado. Foi, como já esperava, um encontro emocionante – e que, só para variar, celebrou não só o músico, mas também o amigo (deles), o Chorão. Não sou de me impressionar diante de uma situação assim nem de ajoelhar-me facilmente apenas por um interesse profissional. A premissa da situação não era das mais confortáveis – uma lembrança póstuma. Para não deixar dúvidas, no final da conversa, Champignon deixou explícita a ironia de a banda, depois de tanto tempo, só ter conseguido espaço no “Fantástico” por conta da tragédia – num comentário irônico que foi rapidamente reprimido com uma cotovelada leve de Thiago Castanho (episódio que conto mais para ilustrar o clima do encontro do que para um “acerto de contas”). Aquele era um momento delicado para todo mundo: para a banda, que por instantes suspendeu todos seus conflitos internos (inclusive as incertezas sobre o futuro); e para mim, que queria cumprir meu papel de jornalista sem cair na arapuca da emoção barata. No entanto, ambas as partes entraram ali num acordo velado e espontâneo para celebrar a memória de alguém que era a força gravitacional da vida de muita gente – daqueles colegas de banda, sem dúvida, mas também dos fãs que eu tinha a consciência de que esperavam uma homenagem justa no programa que apresento. E tenho certeza de que quem nos regia naquela hora era uma entidade maior chamada Música.

Com letra maiúscula sim! Pois é ela que deve sempre ser mais forte que tudo num momento desses – e é ela que sempre prevalece. Ter a consciência disso enquanto se está numa conversa com músicos é fácil – acredite: tenho um bom par de décadas de experiências com artistas para poder afirmar isso. Mas a Música se fez presente além dessa conversa com os membros do Charlie Brown Jr na tarde do último sábado. Na seqüência da entrevista com a banda, falei então com o Fábio Abrão, um dos irmãos de Chorão, que hoje cuida do espaço de skate que o cantor criou em Santos. Nosso papo era mais sobre a reação do seu irmão com a família, a forte ligação que ele tinha com a mãe, e a extrema atenção que tinha com todos. Foi um depoimento mais emocionante do que eu estava preparado para ouvir e, a certa altura, como que para quebrar o clima, perguntei a ele sobre uma pilha de discos de vinil que estava encostada na parede do escritório de Chorão – um espaço que, como era possível imaginar, misturava discos de ouro da banda com pranchas de skate e mais uma bagunça inclassificável e imediatamente relacionada à figura do cantor.

Fábio me contou então que aquela era uma coleção de um amigo do Chorão que havia falecido – e que ele havia ganhado de presente, e que tinha muito carinho por ela. Louco por vinil como sou (ainda tenho uns 300 na minha coleção), comecei a dar uma olhada – e, entre tantos tesouros, fiquei admirado com um deles. Tanto que cheguei até a fazer um comentário com o irmão do Chorão, tipo: “Não acredito nisso aqui, olha que raridade…” – ao que ele, que é DJ e também apaixonado por música, respondeu com um sutil abano de cabeça, um provável momento de fuga de seu pensamento que, há três dias não sossegava tentado juntar os acontecimentos a sua volta para que eles fizessem sentido. Seguimos com a conversa, nos deparamos com mais alguns momentos de emoção, até que me despedi para voltar a São Paulo, onde Alexandre, o filho de Chorão, me esperava para a última entrevista do dia.

Quando já havia descido as escadas, procurando por um banheiro, encontrei novamente com o Fábio, que vinha então com o disco que eu tinha mencionado, dizendo que eu tinha que ficar com aquilo. E “aquilo” era um compacto do Ira! – de 1984, com a música “Pobre paulista”, cujos versos (que imediatamente me remeteram à mente sempre em ebulição do artista que o Brasil tinha acabado de perder) abrem o post de hoje. Foi um gesto muito simples, de um cara que eu não conhecia e com quem eu tinha conversado apenas alguns minutos num contexto bastante extraordinário. Mas ali, naquele ato de generosidade, estava implícita a força maior que mencionei antes – a Música.

Obrigado Fábio. Obrigado Charlie Brown Jr. Obrigado Chorão. Que seja sempre a Música – e não fotos oportunistas, choros encenados, palavras gratuitas, abraços frouxos – que fale por todos nós.

Do bom e do melhor

qui, 07/03/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

São dois livros que escondem (e eventualmente revelam) segredos indizíveis. Só isso já seria motivo suficiente para ler “Garota exemplar”, de Gillian Flynn (lançado no Brasil pela editora Intrínseca) e “The dinner”, de Herman Koch (ainda sem tradução por aqui). Mas o prazer que tive nessas duas leituras recentes foi muito além da revelação das surpresas que suas engenhosas tramas nos fazem aguardar. As duas obras, além desse elemento fundamental para uma boa leitura – na verdade, para um bom entretenimento em qualquer formato -, ainda são escritas de maneira astuta, elegante (um mais que o outro, mas já falamos disso), e sobretudo faz o que, não há muitos dias atrás, eu coloquei como regra fundamental para que aprecie um filme: respeitar nossa inteligência.

Um segredo, como você sabe bem, é fundamental na nossa existência. Mesmo as pessoas que se declaram as mais transparentes do universo, têm o seu – quando não “os seus”. Longe de ser algo condenável, manter um segredo sobre algo de nossas vidas é essencial para que nos mantenhamos alertas. Como humanos – inevitavelmente indivíduos que têm um fraco pelo ato de se relacionar com os outros -, vivemos um cotidiano em que estamos constantemente driblando os nossos segredos. E o dos outros também. O quão saudável isso pode ser vai depender apenas da gravidade daquilo que você deixa de revelar. Pequenas manias, pequenas paixões e – sendo até um pouco elástico – pequenos delitos são não apenas perdoáveis, como necessários para termos uma vida mais interessante. O problema é quando trocamos de adjetivo: do “pequeno” passamos para o “grande” – e o segredo então torna-se algo perigoso, nocivo, ameaçador. Seja uma mania, uma paixão ou um delito, o ideal seria que eles existissem em tamanho ampliado apenas no plano da ficção. Assim, eles não só deixariam de estragar vidas – as das pessoas que os guardam bem como as daqueles que tais segredos envolvem -, como também seriam uma fonte inesgotável de boa ficção.

Há pouco comentei aqui sobre “Serena”, de Ian McEwan – um grande livro sobre segredos que, como bônus, ainda espera o último momento (literalmente o último parágrafo) para revelar o que realmente estava escondido por trás de toda a história. Mas os exemplos na literatura são abundantes – em várias épocas e vários estilos. Pense em “Os miseráveis”, de Victor Hugo – que muitos talvez descubram com um choque que trata-se de um livro, e não apenas um musical com Anne Hattaway. Valjean, seu herói duvidoso, atravessa décadas (e centenas de páginas) carregando um segredo sobre seu passado que nem os gestos mais nobres que a vida lhe ensinou a abraçar permitem que ele conte para a própria filha. Ou pense em “Dom Casmurro” – um inegável clássico da literatura brasileira (se não o maior deles). O segredo de Capitu – sobre o qual, diga-se, nunca teremos certeza (será que a “brigada do spoiler” vai reclamar de eu contar o final de uma história de Machado de Assis?) – é o que nos conduz por toda a brilhante prosa de seu criador.

Já leu “A tragédia da Rua das Flores”, de Eça de Queirós? Seu desfecho é tão surpreendente, que tenho certeza que desafia até os melhores roteiros de suspense que vemos hoje sair de Hollywood. “Lolita”, de Nabokov, não teria o mesmo apelo se Humbert Humbert não guardasse um pequeno segredinho… A primeira parte do genial “2666″, de Roberto Bolaño é uma dança de segredos. “Psicopata americano”, um reconhecido clássico contemporâneo da literatura americana, assinado por Bret Easton Ellis, alterna o cotidiano mais ordinário possível de um americano yuppie morando na Nova York do final dos anos 80 e começo dos 90, com passagens inimagináveis da vida de seu protagonista Patrick Bateman. O recente “O sentido de um fim”, de Julian Barnes gira em torno de um segredo tão bem construído que, quando ele finalmente vem à tona, obriga o leitor a voltar a vários trechos e se perguntar: “Como eu não percebi isso antes?”. E o último livro de Daniel Galera, “Barba ensopada de sangue”, negocia o tempo todo um segredo sobre o avô de seu personagem principal para nos convencer a prosseguir na sua narrativa hipnótica.

Eu poderia dar outros exemplos, assim como eu tenho certeza de que você poderia contribuir com mais alguns. Mas vou me concentrar agora nos dois livros que citei lá em cima – dois outros incríveis guardiões de bons segredos. Tanto “Garota exemplar” quanto “The dinner” têm em sua construção a habilidade de revelar suas histórias aos poucos, surpreendendo o leitor com pistas e informações inesperadas, terminando um ou outro capítulo com um gancho que faz você ter vontade de dizer em voz alta: “Eu tenho que ler só mais um pouquinho!”. Ambos nos contam histórias de mentes “ligeiramente” desequilibradas – e conseguem instalar na nossa imaginação aquele estranho fascínio por personagens que o bom senso nos diria para ficar longe. E, como disse anteriormente, fazem tudo isso sem nos chamar de burros – sem truques mirabolantes, coincidências improváveis, ou forçados esforços de imaginação. E por isso eu quis escrever sobre eles hoje – para recomendá-los a você que gosta de uma boa história.

Os dois livros são excepcionais e eu diria que o que os separa é apenas o estilo. No caso de Flynn, a autora de “Garota”, talvez por estar inserida num contexto da cultura de massa americana – o livro foi incluído em varias listas de “melhores de 2012″ (inclusive na da revista “Entertainment Weekly”, onde ela já havia trabalhado) – minha única crítica é a de que sua trama é “bem explicada demais”, como se, para falar com o grande público, a autora optou por esmiuçar cada detalhe da sua história para não deixar nenhum leitor com dúvidas. O que não deixa de fazer de “Garota” um livro muito bom. Mas “Dinner” é ainda melhor – e estranho é que o segredo disso é que seu autor (que é holandês e também um ator) conta menos para o leitor, e não mais.

Justamente pelos segredos que envolvem ambas histórias, quanto menos se disser dos livros, melhor. Mas para aguçar sua curiosidade, vou começar com uma breve descrição daquele que é “apenas” bom, “Garota exemplar” – e deixar “Dinner”, o melhor, para a sobremesa (para usar justamente a metáfora gastronômica do livro). A garota criada por Flynn é Amy – e ela é sim exemplar. Ao menos foi criada para isso: foi ela a inspiração para uma série de livros escrita por seus pais, com uma personagem com seu próprio nome, e que é sobre uma menina… perfeita! Sentimos isso logo ao ler as primeiras linhas do seu diário, onde ela conta como encontrou seu marido Nick. Tudo parece realmente incrível, até a manhã do quinto aniversário de casamento deles, quando Amy desaparece misteriosamente – de uma hora para a outra. É aí que começa a narrativa de Nick (ela vai o tempo todo se intercalar com a de Amy), que passa a ser também o principal suspeito nas investigações.

Como logo percebemos, o “mundo de felicidade” que Amy inspirava talvez não fosse tão feliz assim. E Nick, de parceiro ideal que todas as mulheres querem ter, transforma-se rapidamente em um vilão nacional – à medida em que o sumiço ganha dimensão de evento jornalístico nacional e passa a ser o combustível principal de programas sensacionalistas. (Se você lembrar que esta semana mesmo o Brasil inteiro aguarda sem respirar o desfecho do caso de um certo goleiro, já pode imaginar bem o circo que o livro descreve – mas eu divago…). Com habilidade, Flynn vai aos poucos complicando mais e mais sua história, revelando a conta-gotas pistas que deixam a imaginação da opinião pública salivando: uma amante, maus tratos, problemas financeiros – e a situação de Nick cada vez pior. Mas então…

Eu teria que ser alguém tão cruel quanto o leitor supõe que Nick seja para ir em frente com a sinopse e roubar o seu prazer de ler “Garota exemplar”. Mas basta dizer que de uma hora para outra o quebra-cabeças parece estar invertido – como se você o estivesse montando de cabeça para baixo -, e tudo fica ainda mais interessante. Eu não tive nenhum problema em me entregar para uma trama tão envolvente assim. Flynn usa com sabedoria aquela mistura letal de mentiras e vingança – e com isso tem enorme êxito em nos fazer ficar grudados às suas páginas (li “Garota” em três dias, ou melhor, três dias bem atribulados em que um monte de coisas estava acontecendo na minha vida, e nem por isso eu conseguia largá-lo). Porém, na segunda metade da trama, quando algumas coisas começam a se encaixar, passei a ficar um pouco incomodado com a quantidade de detalhes que eram… “perfeitos” (como Amy).

Isso, claro, é um mérito de qualquer livro bom – mas é que eu tive a impressão de que a autora fez isso menos para tornar a história convincente do que para dar tudo mastigado a um público que, cada vez mais disperso, talvez não compreendesse uma ficção tão mirabolante. A culpa talvez nem seja de Flynn, mas de seu editor que, ao detectar um grande potencial de vendas, optou por deixar a novela explícita demais. Estrategicamente, foi um acerto – “Garota” foi um grande “best seller” nos Estados Unidos e tem tudo para ser um sucesso internacional (e já se fala, como você pode imaginar, numa adaptação para o cinema, com Bradley Cooper e Jennifer Lawrence – e eu estou obviamente sendo irônico ao sugerir este elenco!). No entanto, talvez porque eu tinha acabado de ler “The dinner”, acho que prefiro minhas porções de suspense menos bem servidas…

No jantar imaginado por Koch, dois irmãos se encontram, acompanhados de suas respectivas esposas, para discutir “as crianças” – seus filhos. Mas nós só descobrimos o motivo do jantar depois de um terço do livro – depois de termos sobrevivido a descrições de pratos propositalmente estúpidas e detalhadas. Nessa primeira parte de “The dinner”, tive a impressão de estar sendo testado com tantas minúcias – não apenas sobre iguarias que chegam à mesa, mas também quanto às características físicas e psicológicas de quem está em torno dela (num restaurante que é anunciado como o mais “transado” da cidade, com uma lista de espera de até seis meses!). São eles: Serge e Babette (ele, o provável novo primeiro-ministro da Holanda, a ser escolhido nas eleições eminentes e sua “esposa-enfeite”); e Paul e Claire (o irmão de Serge e sua “esposa-cúmplice”).

De cara, sabemos que Paul odeia seu irmão – e tudo que ele representa. Quando recebe o convite para jantar, ele não tem ideia do assunto que o futuro primeiro-ministro quer discutir. Mas o encontro tem um propósito muito específico sim – e só quem não sabe exatamente o que está acontecendo é o próprio Paul. Ao contrário de “Garota exemplar”, em que os narradores dominam toda a história e a vão entregando aos poucos para o leitor, em “Dinner” você está na mesma posição que seu narrador – com pouquíssimas pistas do que está acontecendo. E mesmo quando um ou outro fato (todos eles hediondos) são descortinados, você não tem a noção completa de tudo que está acontecendo: como Paul, você tem que juntar os pontos.

Num outro ponto em comum com “Garota”, “Dinner” demora um pouco para “engrenar”. Mas quando você descobre (horrorizado) o que está por trás daquele jantar, tudo está desculpado: os detalhes das azeitonas que vêm junto com os drinques da casa, a aborrecida listagem dos hábitos de Serge, a sufocante atmosfera do próprio restaurante. É como se uma bomba com silenciador explodisse no local onde você está lendo – e o melhor que você tem a fazer então é juntar os cacos. Koch, nesse sentido, é bem mais elegante que Flynn. Ele não entrega tudo. Paul é surpreendido constantemente por pequenos torpedos (em mais de um sentido) que chegam da sua esposa, de seu filho, de seu irmão e de sua cunhada. E – por que não? – até mesmo do noticiário da TV. Enxuto (“Dinner” na edição americana, tem quase 100 páginas a menos que “Garota” – mas mesmo eu que o li na versão digital o achei breve, a ponto de devorá-lo em um dia e meio) e universal (todos nós conhecemos famílias como aquelas, não conhecemos?), “Dinner” merece o sucesso internacional que está tendo – e que deve se repetir por aqui, já que acho impossível que nenhuma editora nacional não tenha se interessado por ele.

E você, como bom leitor que me acompanhou hoje até aqui, merece se divertir com todas  os segredos que esses dois autores até agora menos conhecidos estão prontos para nos oferecer – nesses e em seus futuros trabalhos.

O refrão nosso de casa dia

“Get down”, Amplify Dot – cara nova, rima nova, batida nova e um vídeo que vai fazer você olhar para seu próprio olho de maneira diferente. Renda-se!

Coisa de museu

seg, 04/03/13
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“Não me abandone jamais”, o livro de Kazuo Ishiguro (editado no Brasil pela Companhia das Letras), é – como quem me acompanha aqui sabe bem – um dos livros mais impressionantes que li na minha vida. Se você por acaso viu sua adaptação para o cinema sabe mais ou menos do que estou falando, mas para experimentar toda a angústia dessa estranha historia de ficção científica ler a obra original é fundamental. Não só pelo estilo elegante de Ishiguro – um autor que me conquistou desde “Os vestígios do dia” -, mas também pelo profundo envolvimento que o leitor conquista com as pobres vítimas do livro: crianças e adolescentes que são criados apenas para “doar” seus órgãos a humanos ricos o suficiente para pagarem o precioso transplante.

O livro é muito mais que isso, claro. Mas para o que quero dizer aqui hoje, vamos ficar apenas nessa questão: o dilema que “Não me abandone jamais” coloca. Será que alguém criado com o propósito de ser apenas uma usina de órgãos (as crianças e adolescentes, claro, morrem depois de 3 ou quatro retiradas de órgãos), desde pequeno ciente de que essa é sua missão na vida, tem uma alma? Uma das coordenadoras comprimento acredita que sim. Seu argumento a favor disso? Que as crianças eram capazes de produzir arte – pequenas peças de papel e cerâmica que ela fazia questão de colecionar em suas visitas cada vez mais raras ao “colégio” onde elas eram criadas.

Isso mesmo: ela começou a se sentir mal pelas vidas que eram ali sacrificadas porque, através da arte, lá reconhecia que as crianças tinham alma. Raras vezes vi na literatura uma justificativa tão simples e eficiente com essa para a existência de uma obra de arte. O que muitos preguiçosamente aceitam que seja apenas um pedaço de papel, de tecido, de madeira, pendurado numa parede é, mais do que um objeto feito para enfeitar um ambiente ou mesmo representar alguma coisa – levando-se em consideração que muitas vezes é isso mesmo que eles fazem – é, acima de tudo, a maior prova de que podemos transformar alguma coisa com nossa criação – que temos alma.

Mesmo antes de ter lido “Não me abandone jamais” (o livro é de 2005), eu já imagina que essa era a relação que as pessoas deveriam ter com a arte. O que Ishiguro fez para mim foi sintetizar – com a beleza de sua escrita – um exemplo irrefutável de que é isso que procuramos em cada obra de arte: uma evidência de que somos humanos, capazes de produzir coisas que, muito além de todos seus possíveis significados, quer simplesmente assinalar que seu autor ou sua autora está lá, existe, tem uma presença nesse mundo, e que, uma vez traduzida num traço, numa pintura, numa forma, essa obra de arte, apenas por ter sido criada, já disse ao que veio – pode durar por anos, por séculos (quem sabe milênios), mas o simples fato de ela ter vindo ao mundo já é uma afirmação de que nós vamos existir para sempre.

Antes que isso se torne um ensaio barato sobre o que significa uma obra de arte – não tenho competência para entrar sequer de forma superficial neste assunto, muito menos abraçar uma abordagem mais acadêmica sobre ele – só quero deixar claro que fiz essa introdução (pegando carona em Ishiguro) para tentar entender mais uma vez porque tanta gente tem “medo” da arte – e considera qualquer contato mais próximo com ela uma experiência fora do seu alcance. Pensei bastante nisso nesses últimos dias, quando estive envolvido na abertura de um novo museu no Rio de Janeiro, o MAR – Museu de Arte do Rio, inaugurado oficialmente na última sexta-feira (o público vai poder começar a visitá-lo a partir de amanhã).

Sim, foi lá, do teto de sua estrutura moderna e arrojada, que tirei a foto do post da última quinta-feira. E quando digo que estive envolvido na sua abertura não quero nem de longe insinuar que tive parte na sua sofisticada e engenhosa elaboração – gente muito mais gabaritada que eu, entre elas o curador Paulo Herkenhoff, cuidou muito bem disso. Eu apenas fiz algumas reportagens por lá, e ainda tive a honra de ser o mestre de cerimônias da festa de inauguração – que contou, entre tantas presenças ilustres, com a de nossa presidente Dilma Rousseff. Aliás, foi ela mesma que, no seu discurso semi-improvisado reforçou minhas elucubrações recentes sobre o papel das obras de arte – e dos museus – na nossa vida.

Depois de fazer uma referência emocionante ao prédio que fica ao lado do MAR (na praça Mauá, no cento do Rio) – onde funcionava a Polícia Federal que ali manteve presa nossa atual governante -, Dilma elegantemente calou os que protestam enfadonhamente que temos coisas mais importante com que nos preocupar – sobretudo quando olhamos o contexto geral de um país como o Brasil – do que com um punhado de quadros e esculturas numa instituição tão tradicional quanto um museu. Não me lembro de suas palavras exatas, mas todo o poder oratório de Dilma convencia qualquer um, com um mínimo de esforço, de que inaugurar um lugar como aquele era tão importante quanto dar à população uma grande obra de infraestrutura – e ainda: que celebrar a possibilidade de oferecer às pessoas um acesso à cultura como esse é sinal não de elitismo, mas de que crescemos como sociedade, uma sociedade que, além de garantir a dignidade básica para qualquer um de seus indivíduos, quer ter também o orgulho de poder oferecer a esses mesmos indivíduos uma experiência que lhes permita lembrá-los de que eles têm uma alma.

Os mais cínicos dirão que estou escrevendo um texto como este simplesmente pelo fato de o MAR ser uma extensão das iniciativas culturais da empresa onde trabalho – uma acusação que não só é inócua (como se estas humildes linhas tivessem o poder de alavancar a visitação de um museu), mas também gratuita, uma vez que desconfia da própria importância que o tema dos museus tem para mim. Visitas a eles foram sempre uma parte importante da minha formação – nunca como uma obrigação, mas sempre como possibilidades de descoberta. Por isso mesmo, antes até de exaltar as qualidades do MAR, quero lembrar alguns momentos seminais que tive nesses (quase) 50 anos em museus pelo mundo.

É impossível colocar essas experiências em ordem de importância – elas são incomparáveis no seu impacto e subjetividade, isto é, na maneira como esta ou aquela obra de arte teve um impacto sobre mim (ou em qualquer pessoa que interage com ela). Assim, sem nenhum motivo especial – que não, talvez, o cronológico – começo pelo dia em que estava vagando pelo Centre Georges Pompidou, em Paris, cerca de trinta anos atrás (na verdade, na minha primeira visita ao Beaubourg), quando me deparei com o “Quadrado negro”, de Kazimir Malévich.

Na época, meu francês era bem ruim. Porém, atraído por uma pequena multidão que se concentrava diante dessa obra de arte – um pequeno paralelepípedo branco de pouco mais de 35 x 35 cm, onde um quadrado negro havia sido pintado – fui me aproximando e descobrindo muito mais do que eu imaginava sobre ele. Juntando retalhos do que minha compreensão da língua podia me oferecer então, soube que aquele não era o “quadrado negro” original – que era ligeiramente maior, pintado numa tela -, mas uma variação tardia da proposta suprematista de Malévich. “Suprematista?”, pensei comigo, “Como assim?”… E por longos minutos fui entendendo melhor o que o artista queria transmitir com aquele quadrado queria dizer – e, mais importante de tudo, o que ele queria dizer para mim. Como não fazia parte daquele grupo que aproveitava a excursão guiada do museu, continuei diante do “Quadrado” depois que ele se moveu para outra obra de arte – e fiquei admirando aquela pedra por mais uns 10 ou 15 minutos.

Vale a pena lembrar, nesta mesma visita, vi de perto outras coisas incríveis: Matisses vibrantes, Delaunays explosivos, Légers vertiginosos, Picassos provocantes – entre tantas e tantas obras. Mas foi “esse quadradinho” que sequestrou a maior parte da minha atenção – e qualquer tentativa de explicar melhor por que isso aconteceu será certamente frustrada. Parte do fascínio dessas experiências num museu tem a ver justamente com isso – com o indizível. E é isso que eu procuro até hoje cada vez que entro em um deles. Mesmo que eu já o tenha visitado anteriormente.

No Metropolitan de Nova York, por exemplo, eu faço sempre questão de ver um Buda com seu robe esvoaçante na sessão de artes orientais. Na mesma cidade, faço da visita ao MoMA (o museu de arte moderna) um ritual: eu simplesmente não posso sair de lá sem ver “A dança”, de Matisse – um dos poucos quadros que já me fez chorar (foi quando a obra do MoMA se juntou à sua “irmã” que estava emprestada do Hermitage, na Rússia, para uma enorme retrospectiva de Matisse que o museu nova-iorquino organizou em 1992, mas eu divago…). No ano passado, quando tive a felicidade de visitar Madri por duas vezes, nas duas fui ao Prado e dediquei um bom tempo à sala das “pinturas negras” de Goya. E uma visita ao Tate Modern, em Londres, nunca estará completa se eu não passar para ver “Three studies for figures at the base of a crucifixion”, de Francis Bacon, na coleção permanente.

Não precisa ser um museu grande, não. Lembro-me de ter sido transformado pelos filmes de Shirin Neshat certa vez na pequena Serpentine Gallery, em Londres (se quiser ter uma amostra disso, e tiver nove minutos do seu ocupado dia para se dar o luxo de entregar-se a uma obra de arte, confira “Turbulent”). Ainda na capital inglesa, em outra incrível experiência acústica, numa visita inesperada à compacta Whitechapel Gallery, fiquei maravilhado com o que Janet Cardiff e George Bures Miller fizeram com a magnífica “Spem in alium”, de Thomas Tallis (se você tiver mais dez minutos livres hoje…) – uma peça para 40 vozes, cada uma delas gravada separadamente pela dupla de artistas. No P.S.1 de Nova York, perdi a conta do tempo que fiquei deitado no quarto de James Turrell – que usa o próprio céu como tela. E mesmo “aqui do lado”, no Malba, em Buenos Aires, faço questão de passar sempre para ver um certo “Abaporu”, de Tarsila do Amaral.

Terminei essa enxuta lista com Tarsila de propósito, pois foi justamente essa artista que me saltou aos olhos na minha primeira visita ao MAR. Quando pensamos em Tarsila, uma das mais importantes pintoras brasileiras do século 20, quase sempre a imagem que nos vem à memória é a do “Abaporu” – que é, de fato, uma de suas obras mais simbólicas. Mas ali no MAR, nas exposições que foram montadas temporariamente para sua inauguração, tive a chance de ver (se contei direito) outros nove trabalhos sobre os quais nunca havia pousado os olhos – pinturas que até então estavam guardadas em coleções particulares. Você não pode imaginar o bem que isso me fez. E que certamente fará a você também!

As Tarsilas são, claro, apenas uma parte do que está exposto atualmente no museu. Quatro mostras distintas convidam agora o visitante a passear pela história do Rio de Janeiro, pela mente de um colecionador (Jean Boghici), pela “vocação construtivista” do Brasil (não precisa se assustar!), e pela relação dos artistas, sobretudo contemporâneos, com os espaços para morar nas cidades grandes. (Para saber mais sobre essas exposições e o museu em geral, clique aqui). Em cada uma delas, posso garantir, você vai descobrir pelo menos uma coisa que vai prender o seu olhar – seja um pequeno Aleijadinho ou a “espaçosa” instalação do Projeto Morrinho (na qual garotos de uma comunidade no Rio reproduzem seu cotidiano com tijolos e bonecos improvisados – uma trabalho que inesperadamente conversa bem com um espaço de Hélio Oiticica, “Nas quebradas”‘ de 1978).

Foi conversando com alguns desses garotos do Morrinho para uma entrevista, que mais uma vez me lembrei de “Não me abandone jamais”. Ainda digerindo o fato de o Morrinho ser o destaque de um museu tão importante, os garotos oscilavam entre a excitação da instalação e a inocência da criação. Eles são mesmo artistas? Talvez sim. Sentiam-se como tais? Ainda não tinham certeza. Davam provas de que ali estavam suas almas? Disso, ninguém tinha dúvida.

Por isso insisto: vá ao museu. Não só ao MAR, mas a qualquer museu que você passar perto. Não é preciso entender de arte, muito menos fazer algo que se possa chamar disso para você aproveitar uma visita dessas. Como disse brilhantemente o curador Herkenhoff na entrevista que fiz com ele, tudo que você precisa para se envolver é ter um olhar. E, permito-me aqui acrescentar, um pouco de alma. Que eu tenho certeza que você tem.

O refrão nosso de cada dia
“A little soul”, Pulp – uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos, num dos meus remixes favoritos de todos os tempos (assinado por Kid Loco). Ah! E um lindo apelo para quem tem alma – nem que seja das pequenas…



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