Uma breve história do tempo
(Parte 1)
30%. Essa é a cota que eu estabeleci para mim mesmo das coisas que tenho que me desfazer. Vou abrir mão de 30% de tudo que acumulei até hoje – livros, discos, vídeos, roupas, suvenires, fotos, escritos. Menos gente (embora, se eu realmente ouvisse conselhos, eu talvez devesse considerar os mesmos 30% nas minhas relações sociais, mas eu divago, e está cedo para isso). Tal projeto, claro, tem a ver com os 50 anos que se aproximam – que, aliás, estão assustadoramente perto. Mais precisamente, estamos a 15 dias de eles serem comemorados – e o leitor ou a leitora mais perspicaz já percebeu que o fato de eu ter usado a primeira pessoa do plural na frase anterior denota uma certa insegurança, como se eu não fosse capaz de suportar sozinho o fato. Na verdade, isso é mero recurso cômico – uma possível válvula de escape para outras questões do meu cotidiano que pulsam frementes nos últimos dias. Estou me enrolando, eu sei – e, pior, estou tentando te convencer que estou fazendo isso de propósito, quando na verdade estou mesmo preocupado com essa data (e me esforçando para mostrar que não estou). Tudo então tende a uma desproporcional divagação, que desafia até os padrões deste próprio blog – tudo porque eu talvez tenha receio de encarar o tema que eu mesmo me propus a escrever hoje aqui. Justamente, meus 50 anos. Bobagens…
Recomeçando então.
30%. Estou me livrando de 30% de todos meus bens materiais – e isso é uma meta que eu mesmo me coloquei para a chegada dos 50 – no próximo dia 8. Como você pode imaginar, de todas minhas posses, o que podemos chamar de “bens culturais” são as mais difíceis de eu me desprender… Por isso mesmo, se tudo der certo, conto até com sua colaboração num projeto que envolve minha coleção de CDs – mas eu estou obviamente tentando desviar mais uma vez do assunto principal… O fato é que não se faz uma “faxina pessoal” dessas sem remexer em tudo – e uso “tudo”, claro, como um eufemismo para o passado. Dá trabalho mexer nele, não dá? Primeiro, um trabalho físico: tirar as coisas do lugar, abrir caixas, desempilhar papéis, remover volumes, ganhar camadas de poeira nos dedos. Descobri esse aspecto desagradável muito real com o qual temos que lidar ao voltar ao passado quando decidi arregaçar as mangas e selecionar o que, desses últimos 49 anos, eu vou levar adiante para os próximos, hum… Ia dizer “os próximos 49″ anos, mas seria otimismo demais da minha parte querer acreditar nisso. Digamos então que a seleção tenha a ver com o que eu quero levar comigo para os próximos 25/30 anos, calculando com certa sensibilidade, esperança – e também um certo pé no chão – o tempo que eu ainda tenho para aproveitar, com saúde física e mental não comprometidas, tudo que eu mais adoro, que é a cultura pop.
Mas além desses obstáculos muito presentes num “balanço de vida” como esse que abracei, há ainda um aspecto, hum, abstrato do processo. Revisitar coisas do passado significa inevitavelmente voltar a muitos momentos que talvez tragam lembranças com as quais você não estava contando. Não são necessariamente lembranças ruins – pelo contrário. Algumas delas são tão boas, que têm a força evocar uma certa melancolia tamanha a saudade que a memória de um tempo bom é capaz de provocar. E justamente porque tenho muitas coisas boas para lembrar é que tenho atravessado esses últimos dias com um misto de excitação e medo.
Não se preocupe. Não vou fazer deste post um divã – repassando passagens forte da minha vida, amigos, amores, desafetos, família… Este não é o lugar para isso – quem sabe uma sempre prometida e nunca sequer esboçada biografia (que já tem até nome, “Muito tudo”, mas não um primeiro parágrafo). O blog é sobre cultura pop – estou muito certo disso, como deixei claro nos últimos seis anos e meio (!). Mas como a história da minha vida – não só profissional, mas pessoal também – é intrinsecamente ligada com essa cultura pop, não tem como eu não parar para pensar um pouco nisso também. A própria trajetória da minha carreira como jornalista se cruza o tempo todo com a evolução do pop nos últimos 30 anos – no Brasil e no mundo. E eu não poderia fazer um balanço desses sem ponderar sobre tudo isso aqui com você.
Já pensava em escrever sobre isso hoje, neste texto de duas partes – que é uma espécie de despedida antes das férias que irei tirar a partir do dia primeiro de abril. O que me faltava era uma imagem que pudesse “ancorar” essas memórias, que não fosse gratuita e ao mesmo tempo representasse simbolicamente um momento importante da minha vida. E eis que o acaso – celebrado lindamente por Caetano (que vi cantar ao vivo no último sábado, mais sobre isso daqui a pouco) no seu “Abraçaço”: Meu destino não traço, Não desenho, disfarço, O acaso é o grão-senhor… – enfim, o acaso como sempre veio me ajudar, fazendo com que eu encontrasse, na bagunça de uma das gavetas de lembranças esquecidas, minha “carteira de imprensa” que eu usava quando trabalhava em Nova York, em 1989 (um ano que eu aprenderia a celebrar ao longo de toda minha vida).
Sim, é ela que está no alto do post de hoje – e que nem tem muita coisa de especial. Lembro-me de tê-la tirado lá mesmo, em Nova York, num gélido dia de janeiro, logo que cheguei para trabalhar como correspondente “júnior” do jornal “Folha de S.Paulo” (em algum lugar aqui, tenho quase certeza, já contei que o correspondente “sênior”, na época, era um certo Paulo Francis, com quem tive não só uma relação de admiração como também de amizade que foi das mais preciosas que meu trabalho já me proporcionou – mas isso fica para outra hora…). Olhando hoje, parece um documento simples, até facilmente falsificável, ainda mais com os recursos que qualquer computador caseiro tem agora. Mas na época ele tinha um peso grande – uma autorização legal para eu trabalhar nas ruas de Nova York (podia até cruzar os isolamentos da polícia!). Lembro de sentir-me razoavelmente importante com aquilo no bolso, de ter saído do departamento da prefeitura que viabilizava tal documentação todo convencido comigo mesmo, exibindo-me para uma plateia invisível onde eu era o único que me aplaudia…
Permita-me tal vaidade… Eu era um “moleque” de 25 para 26 anos, na capital dos sonhos de quem sempre quis trabalhar com cultura pop! Assim, naquele inverno de 1989 eu realmente achei que estava podendo… E, talvez imbuído dessa euforia, lembro-me também de me atirar ao trabalho com uma vontade que é até hoje uma referência para mim quando estou justamente muito atolado de serviço: busco sempre na memória a energia daquele período da minha vida para ir em frente. Estimulado por tudo que eu tinha a minha volta, escrevia com um gosto e uma vontade de surpreender que eu mesmo não lembrava que tinha naquela época. Explico: cada vez que começo um texto aqui deste blog, você que visita sempre deve ter percebido que eu me esforço para te surpreender – para não abrir o post de uma maneira previsível, para não te aborrecer com ideias velhas, para estar atento à fluência e ao ritmo dos parágrafos, ou seja, para te apresentar um texto sempre bom e sempre fresco. Esse é meu compromisso velado – isso não é novidade. O que foi novidade para mim foi ter reencontrado essa mesma “veia” já nos meus tenros 20 anos.
Junto com meu “crachá nova-iorquino”, encontrei também fac-símiles de várias matérias que escrevi naquela época. Separei algumas para mostrar – ainda que só nas primeiras linhas – aqui para você. Começando por essa, de 19 de abril de 1989, sobre o que na época era chamada de “a febre dos remixes”:
“Para o desespero dos fãs e colecionadores do New Order, ‘Round & Round’, a faixa mais recente do último LP, ‘Technique’ (que sai no Brasil dia 8 de maio), foi lançado em 14 versões diferentes”.
Este outro é da apresentação de um filme num dos mais importantes festivais de cinema de Nova York, de 27 de março:
“O convite que o filme do fotógrafo – e agora também diretor de cinema – Bruce Weber faz ao público não é difícil de ser aceito. ‘Let’s get lost’ (‘Vamos nos abandonar’) – que teve sua estreia neste fim-de-semana dentro do festival New Films/New Directors, organizado pelo Museum of Modern Art de Nova York, e pela Lincoln Society of Films – é um flerte ininterrupto durante seus 119 minutos de duração”.
Ainda em Nova York, depois de um encontro surreal com uma cantora chamada Yma Sumac (em 28 de fevereiro de 89):
“Yma Sumac, 61, está viva e chutando. Ou melhor, cantando. Ou melhor, gritando. Com uma temporada de três meses no Ballroom, uma casa de espetáculos em Nova York, ela reafirma seu título de ‘a lendária virgem do Sol’, enquanto decide que destino sua carreira irá tomar atualmente. Yma não sabe se vai fazer uma turnê pelos Estados Unidos, talvez até Brasil, ou se se aposenta de vez na Espanha (a verdadeira nacionalidade da cantora é peruana)”.
Para quê eu fui descobrir isso? Do instante em que achei esse calhamaço numa gaveta em diante, já sabia que minha tarde estaria perdida. Quer dizer… Perdida em termos… Acabei me encontrando com as coisas que eu escrevia nessa época e comecei a viajar – por outros períodos que não apenas aquele de Nova York. Veja o que escrevi, em janeiro de 1989, quando a vinda da Companhia de Dança de Martha Graham para o Brasil foi anunciada:
“As trombetas do Carlton Dance Festival anunciam sua primeira grande atracão. Martha Graham, 94, e companhia estão com presença confirmada na terceira versão do evento que acontecerá em abril próximo. Mãe (e pai) da dança moderna, Graham vai abrir a temporada em Belo Horizonte”.
Ainda antes de embarcar para Nova York, em janeiro de 89, eu anunciava assim uma “nova onda” de “dance music” – que incluía “novidades” como Bomb The Bass e S’Xpress:
“Nada de pé na estrada. A nova geração ‘beat’ só deve satisfações às pistas de dança, que não podem esvaziar. Insistentes, apesar da frieza com que eram tratados até o ano passado pela imprensa musical, alguns grupos conseguiram finalmente proclamar que, em 1898, as batidas por minutos (‘beats per minutes’, ou só bpm) de um sintetizador serão, de longe, mais interessantes que os decibéis que uma guitarra pode produzir”.
Mais adiante, em 11 de abril de 90 (eu tinha acabado de comemorar meus 27 aninhos) assim anunciei a “volta” de Sidney Magal:
“Magal tem uma confissão a fazer. Ele, que já foi Sidney, afirma que ficou enfraquecido, quando tentou um visual de cabelos curtos. ‘Acho que sou o Sansão da MPB’, diz o cantor, fazendo referência ao herói bíblico que perdeu as forças quando teve seu cabelo cortado por Dalila. Pois então, com o cabelo comprido, ele volta aos olhos do público cantando ‘Me chama que eu vou’ nada menos que o tema da recém-começada novela das 20h30 da Rede Globo, ‘Rainha da Sucata’. E isso depois de uma ausência de 5 anos.”
Ou ainda, mais perto do meu aniverário daquele ano, no dia 07, de abril, “apresentei” assim aquela que seria uma das artistas daquele ano, Sinéad O’Connor:
“Você provavelmente já leu uma daquelas críticas que começam dizendo ‘Se você tiver que comprar apenas um disco este ano, que seja este’. Só que dessa vez é sério. Sinéad O’Connor (pronuncia-se chainéd ocónor) gravou uma coleção de canções fundamentais para 1990, acima que qualquer modismo, acima de qualquer comparação, e acima inclusive de seu primeiro trabalho, ‘The lion and the cobra’, de 1988″.
Junto com essas, inaugurei mais de 50 dessas páginas, sob tópicos tão variados quanto Woody Allen, Mummenschanz, Jerry Adrianni, Andy Warhol, “Batman” (o primeiríssimo – de quando você nem tinha nascido!), Prince e até Xuxa! (Trecho da minha entrevista com ela em 16 de junho de 1990, sob o título “Xuxa só não pôs ‘x’ em ‘Lua de cristal’; de resto, ela rescreve tudo, inclusive ‘xuxesso’”: “Pergunta – Você quer ter filhos; Resposta – Não sei quando, mas quero. Queria gêmeos, que eu acho uma gracinha, tudo vestido igualzinho”). Aliás por falar em curiosidades, achei também uma matéria minha sobre “baixaria nas FMs”, ainda em 1990 (14 de fevereiro), que começava assim: “Da próxima vez que um pai preocupado perguntar para o filho ‘Onde você aprendeu esse nome feio?’, pode ser que a resposta seja simplesmente ‘No rádio pai’.” – os duvidosos pioneiros eram o “Café com bobagem”, da Band, e o sobrevivente “Transalouca”, da Transamérica (e depois tem gente dizendo que inventou o “novo humor nas rádios”… sim, eu divago…).
Não quero cair na armadilha da nostalgia… O que ressalto aqui, depois dessa mergulhada no passado – e estamos falando de 23/24/25 anos atrás -, é como o próprio mundo pop nunca deixa de ser interessante. Gênios do gênero, como David Bowie (sobre quem fiquei de escrever aqui na última quinta-feira, mas fui impedido por uma questão de saúde – devo e não nego!) e Caetano (que vi com esses olhos cantar para mais de uma geração anteontem no Circo Voador, Rio, celebrando que o mundo não é chato aos brados de “tudo mega bom giga bom tera bom”!), cabeças geniais que avançam com o tempo sempre nos ajudam a lembrar de que moderno mesmo não é o “hoje”, mas o “sempre”. E o pop é o sempre. Eu, como deixo claro aqui, sempre fui presa fácil desse universo – e é isso que, olhando pra esses 50 anos eu quero celebrar. Hoje foi apenas uma introdução, graças a esse “achado” dos meus arquivos. Mas quinta-feira vou adiante. Se você permitir…
O refrão nosso de cada dia
“Sound and vision”, Beck – por falar em moderno… Em sempre… Aqui está uma versão que Beck fez para o clássico de Bowie. Quer dizer, só Beck não… Dezenas de músicos que ele juntou para celebrar Bowie estão no vídeo também. Novamente, não com nostalgia – Bowie nunca esteve tão presente como neste de ano de 2013! -, mas com o presente da reinvenção. Que é, claro, como pensam as mentes brilhantes, sempre em se reinventar…