Houston, nós não temos um problema
Ou melhor, até temos. As imagens que eu pretendia colocar para ilustrar o post anterior acabaram não “subindo”. Descobri isso, claro, no fim de uma quinta-feira excepcionalmente agitada – e dormi pensando em consertar esse problema logo cedo na sexta-feira. Mas acordei com outro pensamento: revendo o que me esperava no fim-de-semana, achei que qualquer correção poderia esperar este post, de segunda-feira – um post, diga-se de despedida. É uma despedida breve – caros “haters”, não se animem! (Aos verdadeiramente caros leitores que eventualmente sentirão a ausência, registro que serão apenas três posts que deixarei de escrever – dia 10 de dezembro estou aqui de novo). Saio para breves férias de duas semanas e, apesar de viajar com a certeza de que vou para lugares onde posso esbarrar em coisas que eu adoraria usar como tema aqui no blog, estou obrigando-me a ficar de fato longe de qualquer atividade que não seja o ócio. Mas não quero sair sem antes convidar você a uma reflexão talvez interessante, que tem a ver com as imagens que não entraram, e com as coisas que vivi nesta última semana. Sim, você já adivinhou: aqui vai mais daqueles textos que talvez não façam o menor sentido. Seja bem-vindo, seja bem-vinda – mas não se esqueça que você tem sempre a opção de abandonar-me a qualquer momento, ou então pagar o mico de ler até o fim uma coisa que você não está gostando, e ainda perder seu tempo escrevendo para me criticar. Mas, estou ciente, eu divago – e com coisas pequenas. Aceite, pois, o convite para vir comigo numa divagação maior.
As coisas que eu pensei para ilustrar o último post eram: a edição especial, lançada em CD, que comemora os 45 anos do disco “The Velvet Underground & Nico” – mais conhecido também, como o “disco da banana”; a capa do novo livro – se é que podemos chamar de livro – de Chris Ware, “Building stories”; e a primeira página de um artigo da edição da semana passada da revista “The New Yorker”: “Deadhead”, por Nick Paumgarten. O que unia essas três coisas, quando pensei em juntá-las num mesmo texto?
Conexões bastante estranhas, é a resposta. Eu queria falar sobre o acaso (mais uma vez), e como ele sempre conspira a nosso favor, para nos trazer coisas admiráveis – que, se não estamos abertas a elas, acabam passando, não nos provocando, e fazendo da nossa vida uma infinita repetição sem graça. Vou começar por Lou Reed – e para isso eu tenho que retornar ao último feriado de 15 de novembro, quando estava em São Paulo e fui convidado por uma amiga a ver “Lulu”, um trabalho do diretor Robert (Bob) Wilson junto com a Berliner Ensemble, com música de Reed, que estava sendo apresentado no teatro do Sesc de Pinheiros, em São Paulo. Não por coincidência (aperte os cintos, pois vem aí mais uma daquelas bizarras associações de ideias que você sabe que eu adoro), esse foi um dos assuntos que discuti com Lou Reed ao entrevistá-lo em setembro do ano passado – episódio já contado aqui. Na época, ele estava lançando a versão de “Lulu” com o Metallica – e fiquei ao mesmo tempo curioso e sem esperança de um dia ver tal espetáculo. Mas eis que ele estava aqui, com a presença do próprio diretor, numa montagem impecável! Fui conferir cheio de expectativas e voltei com todas preenchidas – algumas até transbordando, como a da performance da atriz Angela Winker (de 68 anos, no papel de uma jovem de menos de 20!).
Entusiasmado que estava, logo na saída fui providenciar entradas para ver também a ópera que Bob Wilson estrearia na sexta-feira seguinte no Teatro Municipal de São Paulo: “Macbeth”, de Verdi. Mas sobre isso, falo daqui a pouco. Quero voltar à saída de “Lulu”, mais precisamente ao momento em que cheguei em casa e encontrei um presente que um colega meu do “Fantástico” havia me trazido de viagem: a caixa comemorativa de “Velvet Underground & Nico”. Vibrei com a simples presença daquele objeto na mesa da minha sala: só de ouvir um clássico como esse remasterizado meus ouvidos já estavam salivando – se me permite uma certa liberdade poético-sinestésica. Porém, abordei o presente com precaução. Sou daqueles chatos que gostam de um álbum em seu estado puro: o disco como ele foi concebido. E a caixa especial – justamente para ser especial – vinha com outras versões, outros “takes” de várias músicas, o que me deixou desconfiado. Será que eu gostaria de ouvir um material como esse? Na “regra geral”, isso não me agrada, mas… Por que não dar uma chance ao Velvet Underground?
O resultado disso, como você pode imaginar, foi puro êxtase. E, ainda na semana passada, esse prazer, digamos, “relutante” foi seguido de outros dois na mesma linha. No caso de “Building stories”, de Chris Ware (cuja capa também deveria ter ilustrado meu texto de quinta), leitores e leitoras frequentes podem atestar que quadrinhos não constituem o forte deste blog. Já falei do próprio Ware quando seu primeiro livro foi lançado aqui, mas o assunto “graphics novels” (um adorável eufemismo que o mercado editorial americano inventou para vender quadrinhos como alta cultura) não é exatamente recorrente por aqui. Mas qualquer coisa que Ware faça merece sempre uma olhada – e foi por isso que eu encomendei esse seu último trabalho, que também chegou na minha casa na semana passada. Quando sugeri acima que não tinha certeza se poderia chamar aqui de livro, não estava exagerando. A caixa que recebi tinha mais de um objeto – e apenas uns dois ou três ali poderiam ser chamados de livros mesmo. Ou outros estavam mais para um pôster, um folheto, uma tirinha – adoráveis variações sobre um tema que, do pouco que aproveitei (são necessário dias e dias para se “mergulhar” de fato numa obra de Ware), me encheram de satisfação. Ou seja, mais uma coisa que eu acabei gostando – apesar de tratar-se de algo que eu não costumo gostar.
E só para reforçar essa ideia, eu ainda fui “dobrado”, quando recebi no meu smartphone a cópia da “New Yorker” da semana passada (a terceira ilustração que ficou faltando na quinta-feira), entre os artigos estava esse que já citei, escrito por Nick Paumgarten, sobre o Greatful Dead – uma banda que não só nunca passou no meu radar, como também me desperta uma certa antipatia. Contudo, li a longa reportagem inteirinha. E por quê? Porque era extremamente bem escrita! Mesmo! Era um daqueles textos que, de tão bom, você chega a esquecer qual é o tema principal dele, e acaba se envolvendo com o poder das palavras. Não virei um “deadhead” – com os fãs da banda são conhecidos. Mas me encantei com o poder de algo tão bem escrito.
Ficou um pouco mais claro agora o que eu queria dizer quando pretendia juntar os três assuntos na semana passada? Minha intenção era simplesmente a de mostrar que, muitas vezes, nossos próprios preconceitos não nos deixam aproveitar tudo a nossa volta – e, como consequência, nossa vida cultural vai ficando mais pobre… Eu “dei o braço a torcer” para três coisas que, de maneira geral, eu nunca achei que pudessem me interessar, e saí ganhando. E é a dificuldade que as pessoas têm (e eu também tenho, mas talvez com uma resistência menor) de se livrar desses “pré-julgamentos” que me inspira sempre a defender aqui a ideia do ecletismo e da abertura geral da sua curiosidade. Sei que esse é um tema… perigoso. De vez em quando, se toco em um assunto que envolve algum fanatismo na cultura pop (se citar nomes vou me desviar do assunto), sou imediatamente atacado por pessoas que, primeiro se sentem indignadas porque eu não gosto de alguma coisa que elas amam, e depois tentam me desmoralizar porque eu gosto de coisas tão diversas quanto, digamos, Sandy e Lars von Trier! A esses, hum, críticos, eu, do alto dessas experiências recentes, digo: sou eu que tenho pena de quem diminui suas perspectivas culturais porque acha que só um determinado conjunto de obras e artistas são capazes de encantar. Se você está comigo até agora, tenho certeza quase absoluta que este não é seu caso. Mas se for o contrário, se você veio até aqui para ler a “última bobagem que o Zeca ia escrever antes de sair de férias”, eu realmente lamento esses limites tolos que você impõe ao próprio gosto (e à imaginação).
Era isso que eu queria começar a discutir na quinta, e que a ausência de ilustrações aparentemente atrapalhou. Mas na verdade, não atrapalhou nada – e foi por isso que eu tentei subverter o velho clichê no título de hoje. Não, nós não tivemos um problema simplesmente porque as fotos não entraram. Nós simplesmente adiamos a discussão para hoje – e vamos levá-la adiante sempre que for possível. Porque o que não nos falta, nessa vibrante época em que vivemos, é uma enorme quantidades de mentes brilhantes e talentos criativos para nos seduzir. Se Velvet Underground, Chis Ware e Nick Paumgarten me ajudaram a comprovar isso na semana anterior, nos últimos dias, colecionei ainda mais exemplos brilhantes de opções culturais incríveis. Acho que já me fiz entender – e não quero estressar você com mais descrições. Mas apenas para ilustrar, conto aqui rapidamente o que conferi entre a última quarta-feira e o último sábado.
No dia 21, fui conferir a gravação do especial de fim de ano de Roberto Carlos, na TV Globo – um espetáculo, em si, já repleto de adoráveis contradições (se alguém duvida se haveria química entre Seu Jorge e o Rei, por exemplo, espere até dia 25 de dezembro para ter uma resposta definitivamente positiva). Não foi o primeiro espetáculo de Roberto que assisti – já escrevi aqui mesmo mais de uma vez sobre ele. Mas esse foi especialmente divertido – talvez até pela recepção carinhosa que recebi logo depois do show. Enfim, dois dias depois, eu estava na plateia do Teatro Municipal de São Paulo conferindo, então, a ópera “Macbeth” na mais nova versão de Bob Wilson. O que foi exatamente aquilo? Eu precisaria de mais um (ou mais) post(s) para tentar descrever. Mas, para não fugir do desafio, eu diria que foi uma das apresentações esteticamente mais poderosas que já tive o prazer de assistir – sem contar que foi um daquele raros momentos em que o aspecto sublime da ópera (de qualquer ópera) casa-se perfeitamente à visão genial de um exímio diretor. Wilson é às vezes criticado por se repetir demais – e parte dessa crítica talvez até tenha fundamento. Mas só de lembrar da cena “Macbeth” num banquete no castelo, onde um coral de convivas desenhava sombras ao fundo, enquanto uma mesa definida por duas magras linhas de neon servia para sustentar o rodízio dos solistas, eu imediatamente me esqueço de sequer pensar que qualquer ser humano – logo, qualquer criador – é passível de críticas…
Roberto Carlos e Robert Wilson – Bob & Bob – já seriam mais dois exemplos excelentes de diversidade cultural, mas no dia seguinte (sábado) juntei mais duas evidências: fui ver Missy Elliot no festival Back 2 Black, no Rio, e em seguida juntei-me ao samba, para conferir a coroação da exuberante Juliana Alves com Rainha da Bateria da Unidos da Tijuca! A tentação de me aprofundar em mais esses dois assuntos é enorme, mas eu tenho um avião para pegar daqui a pouco… Então vou só dizer que Missy, apresentando-se pela primeira vez no Brasil, enlouqueceu um público carente de boas apresentações de hip-hop – e eu diria até que “a grande mestra” do rap moderno saiu reciprocamente enlouquecida do evento. E que uma noite na Tijuca é sempre bom para fazer você lembrar porque é brasileiro e se orgulha tanto disso… Ali (re)encontrei toda a alegria e a animação que a exaustão imposta pela semana intensa ameaça me tirar na madrugada de domingo.
Cheguei em casa quase às 4h da manhã, quase sem forças, mas irrevogavelmente feliz de ter vivido (e aproveitado) tanta coisa diferente e incrível em tão pouco tempo. Estou de saída para esses dias de folga com a perspectiva de poder encontrar ainda mais coisas assim. Mas você não precisa ir para onde eu vou para ter tal experiências (vou ainda manter segredo dos meus destinos, quem sabe para um “Onde eu estou?” num futuro breve). Qual o segredo então? Fácil: é só abrir os olhos.
Até a volta!
O refrão nosso de cada dia
“Knee play 5”, Phillip Glass – anos atrás (muitos anos atrás!), quando eu morava em Nova York, tive a chance de ver uma montagem de “Einstein on the beach” na Brooklyn Academy of Music. A ópera, como qualquer pesquisa na internet vai te mostrar, foi um marco na música contemporânea – e também no universo das artes cênicas. A direção trazia já a marca registrada de Bob Wilson (por essa associação de ideias com o texto de hoje lembrei de recomendar essa música agora). E a música já vinha também com a assinatura inconfundível de Philip Glass. A obra toda tem quase cinco horas – e é para os “corajosos e aventureiros”. Mas, apenas para dar um gostinho, convido você a escutar esses 5 minutos e 29 segundos de uma das sequências finais da ópera. Não tem exatamente um refrão – a menos que você considere os números que se repetem ao fundo como um coro. Mas, lá pelos 3 minutos e 35 segundos, entram os versos de amor mais lindos que eu já ouvi (se for o caso, procure uma tradução). Versos que eu já tive o prazer de repetir em voz alta. E que me fazem chorar toda a vez que eu lembro que fiz isso. “The impossible?, you say”…