Houston, nós não temos um problema

seg, 26/11/12
por Zeca Camargo |
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Ou melhor, até temos. As imagens que eu pretendia colocar para ilustrar o post anterior acabaram não “subindo”. Descobri isso, claro, no fim de uma quinta-feira excepcionalmente agitada – e dormi pensando em consertar esse problema logo cedo na sexta-feira. Mas acordei com outro pensamento: revendo o que me esperava no fim-de-semana, achei que qualquer correção poderia esperar este post, de segunda-feira – um post, diga-se de despedida. É uma despedida breve – caros “haters”, não se animem! (Aos verdadeiramente caros leitores que eventualmente sentirão a ausência, registro que serão apenas três posts que deixarei de escrever – dia 10 de dezembro estou aqui de novo). Saio para breves férias de duas semanas e, apesar de viajar com a certeza de que vou para lugares onde posso esbarrar em coisas que eu adoraria usar como tema aqui no blog, estou obrigando-me a ficar de fato longe de qualquer atividade que não seja o ócio. Mas não quero sair sem antes convidar você a uma reflexão talvez interessante, que tem a ver com as imagens que não entraram, e com as coisas que vivi nesta última semana. Sim, você já adivinhou: aqui vai mais daqueles textos que talvez não façam o menor sentido. Seja bem-vindo, seja bem-vinda – mas não se esqueça que você tem sempre a opção de abandonar-me a qualquer momento, ou então pagar o mico de ler até o fim uma coisa que você não está gostando, e ainda perder seu tempo escrevendo para me criticar. Mas, estou ciente, eu divago – e com coisas pequenas. Aceite, pois, o convite para vir comigo numa divagação maior.

As coisas que eu pensei para ilustrar o último post eram: a edição especial, lançada em CD, que comemora os 45 anos do disco “The Velvet Underground & Nico” – mais conhecido também, como o “disco da banana”; a capa do novo livro – se é que podemos chamar de livro – de Chris Ware, “Building stories”; e a primeira página de um artigo da edição da semana passada da revista “The New Yorker”: “Deadhead”, por Nick Paumgarten. O que unia essas três coisas, quando pensei em juntá-las num mesmo texto?

Conexões bastante estranhas, é a resposta. Eu queria falar sobre o acaso (mais uma vez), e como ele sempre conspira a nosso favor, para nos trazer coisas admiráveis – que, se não estamos abertas a elas, acabam passando, não nos provocando, e fazendo da nossa vida uma infinita repetição sem graça. Vou começar por Lou Reed – e para isso eu tenho que retornar ao último feriado de 15 de novembro, quando estava em São Paulo e fui convidado por uma amiga a ver “Lulu”, um trabalho do diretor Robert (Bob) Wilson junto com a Berliner Ensemble, com música de Reed, que estava sendo apresentado no teatro do Sesc de Pinheiros, em São Paulo. Não por coincidência (aperte os cintos, pois vem aí mais uma daquelas bizarras associações de ideias que você sabe que eu adoro), esse foi um dos assuntos que discuti com Lou Reed ao entrevistá-lo em setembro do ano passado – episódio já contado aqui. Na época, ele estava lançando a versão de “Lulu” com o Metallica – e fiquei ao mesmo tempo curioso e sem esperança de um dia ver tal espetáculo. Mas eis que ele estava aqui, com a presença do próprio diretor, numa montagem impecável! Fui conferir cheio de expectativas e voltei com todas preenchidas – algumas até transbordando, como a da performance da atriz Angela Winker (de 68 anos, no papel de uma jovem de menos de 20!).

Entusiasmado que estava, logo na saída fui providenciar entradas para ver também a ópera que Bob Wilson estrearia na sexta-feira seguinte no Teatro Municipal de São Paulo: “Macbeth”, de Verdi. Mas sobre isso, falo daqui a pouco. Quero voltar à saída de “Lulu”, mais precisamente ao momento em que cheguei em casa e encontrei um presente que um colega meu do “Fantástico” havia me trazido de viagem: a caixa comemorativa de “Velvet Underground & Nico”. Vibrei com a simples presença daquele objeto na mesa da minha sala: só de ouvir um clássico como esse remasterizado meus ouvidos já estavam salivando – se me permite uma certa liberdade poético-sinestésica. Porém, abordei o presente com precaução. Sou daqueles chatos que gostam de um álbum em seu estado puro: o disco como ele foi concebido. E a caixa especial – justamente para ser especial – vinha com outras versões, outros “takes” de várias músicas, o que me deixou desconfiado. Será que eu gostaria de ouvir um material como esse? Na “regra geral”, isso não me agrada, mas… Por que não dar uma chance ao Velvet Underground?

O resultado disso, como você pode imaginar, foi puro êxtase. E, ainda na semana passada, esse prazer, digamos, “relutante” foi seguido de outros dois na mesma linha. No caso de “Building stories”, de Chris Ware (cuja capa também deveria ter ilustrado meu texto de quinta), leitores e leitoras frequentes podem atestar que quadrinhos não constituem o forte deste blog. Já falei do próprio Ware quando seu primeiro livro foi lançado aqui, mas o assunto “graphics novels” (um adorável eufemismo que o mercado editorial americano inventou para vender quadrinhos como alta cultura) não é exatamente recorrente por aqui. Mas qualquer coisa que Ware faça merece sempre uma olhada – e foi por isso que eu encomendei esse seu último trabalho, que também chegou na minha casa na semana passada. Quando sugeri acima que não tinha certeza se poderia chamar aqui de livro, não estava exagerando. A caixa que recebi tinha mais de um objeto – e apenas uns dois ou três ali poderiam ser chamados de livros mesmo. Ou outros estavam mais para um pôster, um folheto, uma tirinha – adoráveis variações sobre um tema que, do pouco que aproveitei (são necessário dias e dias para se “mergulhar” de fato numa obra de Ware), me encheram de satisfação. Ou seja, mais uma coisa que eu acabei gostando – apesar de tratar-se de algo que eu não costumo gostar.
E só para reforçar essa ideia, eu ainda fui “dobrado”, quando recebi no meu smartphone a cópia da “New Yorker” da semana passada (a terceira ilustração que ficou faltando na quinta-feira), entre os artigos estava esse que já citei, escrito por Nick Paumgarten, sobre o Greatful Dead – uma banda que não só nunca passou no meu radar, como também me desperta uma certa antipatia. Contudo, li a longa reportagem inteirinha. E por quê? Porque era extremamente bem escrita! Mesmo! Era um daqueles textos que, de tão bom, você chega a esquecer qual é o tema principal dele, e acaba se envolvendo com o poder das palavras. Não virei um “deadhead” – com os fãs da banda são conhecidos. Mas me encantei com o poder de algo tão bem escrito.

Ficou um pouco mais claro agora o que eu queria dizer quando pretendia juntar os três assuntos na semana passada? Minha intenção era simplesmente a de mostrar que, muitas vezes, nossos próprios preconceitos não nos deixam aproveitar tudo a nossa volta – e, como consequência, nossa vida cultural vai ficando mais pobre… Eu “dei o braço a torcer” para três coisas que, de maneira geral, eu nunca achei que pudessem me interessar, e saí ganhando. E é a dificuldade que as pessoas têm (e eu também tenho, mas talvez com uma resistência menor) de se livrar desses “pré-julgamentos” que me inspira sempre a defender aqui a ideia do ecletismo e da abertura geral da sua curiosidade. Sei que esse é um tema… perigoso. De vez em quando, se toco em um assunto que envolve algum fanatismo na cultura pop (se citar nomes vou me desviar do assunto), sou imediatamente atacado por pessoas que, primeiro se sentem indignadas porque eu não gosto de alguma coisa que elas amam, e depois tentam me desmoralizar porque eu gosto de coisas tão diversas quanto, digamos, Sandy e Lars von Trier! A esses, hum, críticos, eu, do alto dessas experiências recentes, digo: sou eu que tenho pena de quem diminui suas perspectivas culturais porque acha que só um determinado conjunto de obras e artistas são capazes de encantar. Se você está comigo até agora, tenho certeza quase absoluta que este não é seu caso. Mas se for o contrário, se você veio até aqui para ler a “última bobagem que o Zeca ia escrever antes de sair de férias”, eu realmente lamento esses limites tolos que você impõe ao próprio gosto (e à imaginação).

Era isso que eu queria começar a discutir na quinta, e que a ausência de ilustrações aparentemente atrapalhou. Mas na verdade, não atrapalhou nada – e foi por isso que eu tentei subverter o velho clichê no título de hoje. Não, nós não tivemos um problema simplesmente porque as fotos não entraram. Nós simplesmente adiamos a discussão para hoje – e vamos levá-la adiante sempre que for possível. Porque o que não nos falta, nessa vibrante época em que vivemos, é uma enorme quantidades de mentes brilhantes e talentos criativos para nos seduzir. Se Velvet Underground, Chis Ware e Nick Paumgarten me ajudaram a comprovar isso na semana anterior, nos últimos dias, colecionei ainda mais exemplos brilhantes de opções culturais incríveis. Acho que já me fiz entender – e não quero estressar você com mais descrições. Mas apenas para ilustrar, conto aqui rapidamente o que conferi entre a última quarta-feira e o último sábado.

No dia 21, fui conferir a gravação do especial de fim de ano de Roberto Carlos, na TV Globo – um espetáculo, em si, já repleto de adoráveis contradições (se alguém duvida se haveria química entre Seu Jorge e o Rei, por exemplo, espere até dia 25 de dezembro para ter uma resposta definitivamente positiva). Não foi o primeiro espetáculo de Roberto que assisti – já escrevi aqui mesmo mais de uma vez sobre ele. Mas esse foi especialmente divertido – talvez até pela recepção carinhosa que recebi logo depois do show. Enfim, dois dias depois, eu estava na plateia do Teatro Municipal de São Paulo conferindo, então, a ópera “Macbeth” na mais nova versão de Bob Wilson. O que foi exatamente aquilo? Eu precisaria de mais um (ou mais) post(s) para tentar descrever. Mas, para não fugir do desafio, eu diria que foi uma das apresentações esteticamente mais poderosas que já tive o prazer de assistir – sem contar que foi um daquele raros momentos em que o aspecto sublime da ópera (de qualquer ópera) casa-se perfeitamente à visão genial de um exímio diretor. Wilson é às vezes criticado por se repetir demais – e parte dessa crítica talvez até tenha fundamento. Mas só de lembrar da cena “Macbeth” num banquete no castelo, onde um coral de convivas desenhava sombras ao fundo, enquanto uma mesa definida por duas magras linhas de neon servia para sustentar o rodízio dos solistas, eu imediatamente me esqueço de sequer pensar que qualquer ser humano – logo, qualquer criador – é passível de críticas…

Roberto Carlos e Robert Wilson – Bob & Bob – já seriam mais dois exemplos excelentes de diversidade cultural, mas no dia seguinte (sábado) juntei mais duas evidências: fui ver Missy Elliot no festival Back 2 Black, no Rio, e em seguida juntei-me ao samba, para conferir a coroação da exuberante Juliana Alves com Rainha da Bateria da Unidos da Tijuca! A tentação de me aprofundar em mais esses dois assuntos é enorme, mas eu tenho um avião para pegar daqui a pouco… Então vou só dizer que Missy, apresentando-se pela primeira vez no Brasil, enlouqueceu um público carente de boas apresentações de hip-hop – e eu diria até que “a grande mestra” do rap moderno saiu reciprocamente enlouquecida do evento. E que uma noite na Tijuca é sempre bom para fazer você lembrar porque é brasileiro e se orgulha tanto disso… Ali (re)encontrei toda a alegria e a animação que a exaustão imposta pela semana intensa ameaça me tirar na madrugada de domingo.

Cheguei em casa quase às 4h da manhã, quase sem forças, mas irrevogavelmente feliz de ter vivido (e aproveitado) tanta coisa diferente e incrível em tão pouco tempo. Estou de saída para esses dias de folga com a perspectiva de poder encontrar ainda mais coisas assim. Mas você não precisa ir para onde eu vou para ter tal experiências (vou ainda manter segredo dos meus destinos, quem sabe para um “Onde eu estou?” num futuro breve). Qual o segredo então? Fácil: é só abrir os olhos.

Até a volta!

O refrão nosso de cada dia

“Knee play 5”, Phillip Glass – anos atrás (muitos anos atrás!), quando eu morava em Nova York, tive a chance de ver uma montagem de “Einstein on the beach” na Brooklyn Academy of Music. A ópera, como qualquer pesquisa na internet vai te mostrar, foi um marco na música contemporânea – e também no universo das artes cênicas. A direção trazia já a marca registrada de Bob Wilson (por essa associação de ideias com o texto de hoje lembrei de recomendar essa música agora). E a música já vinha também com a assinatura inconfundível de Philip Glass. A obra toda tem quase cinco horas – e é para os “corajosos e aventureiros”. Mas, apenas para dar um gostinho, convido você a escutar esses 5 minutos e 29 segundos de uma das sequências finais da ópera. Não tem exatamente um refrão – a menos que você considere os números que se repetem ao fundo como um coro. Mas, lá pelos 3 minutos e 35 segundos, entram os versos de amor mais lindos que eu já ouvi (se for o caso, procure uma tradução). Versos que eu já tive o prazer de repetir em voz alta. E que me fazem chorar toda a vez que eu lembro que fiz isso. “The impossible?, you say”…

Faltam-me as palavras

sex, 23/11/12
por Zeca Camargo |
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Por uma das coincidências que quem me acompanha aqui estes anos todos aprendeu a apreciar tanto quanto eu, esta semana fui exposto a três produtos bastante diferentes de cultura pop. Os três me deixaram totalmente fora do eixo – e, de uma maneira que eu convido você a decifrar agora, encontrei uma ligação bastante inesperada entre eles. Por hoje, como o título acima justifica, prefiro deixar você com as imagens abaixo. E na segunda, esclarecemos tudo – e partimos para novos enigmas… Até lá!

Histórias dentro de histórias

seg, 19/11/12
por Zeca Camargo |
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Um professor saca dinheiro da poupança para comprar presente para seus filhos no Natal e é assaltado. Sua mulher não acredita na sua história. Algum tempo depois, ela liga alarmada para o marido com outra má notícia: assaltantes entraram na casa deles e levaram seus bens mais preciosos – entre eles, uma câmera antiga e o velho equipamento de alpinismo, de inestimável valor sentimental. Os dias passam e o delegado da cidade inglesa onde eles moram liga: quer que o professor assista a umas imagens. Na delegacia, ele vê o registro de uma câmera de segurança em que sua mulher aparece entrando numa loja e vendendo as coisas que supostamente teriam sido roubadas da sua casa. Ele volta tranquilamente para seu lar, brinca com as crianças, janta com a mulher, transa com ela e tem um prazer tão grande que, como conclui no final da história é quase uma lembrança de dor.

Isso poderia ser um resumo de um livro, mas é o resumo de um conto – um conto que faz parte de um livro. Um livro que tem uma história fascinante, que é feita também de outras histórias tão boas quanto essa que contei acima. Falo de “Serena”, o mais recente trabalho do escritor inglês Ian McEwan (lançado aqui pela Companhia das Letras) – que acabei de ler esta semana no original, não sem um certo atraso. (Em inglês, o título do livro é “Sweet tooth”, ou algo como “queda para doces”, e até a última página eu me perguntava por que a edição brasileira não respeitou esse título, que é tão elegantemente relacionado com toda a trama; mas eu divago, e mesmo para um texto que vai comemorar a presença de uma ou mais histórias dentro da outra, acho que não posso me dar essa liberdade…).

Nesse seu mais recente toque de gênio, McEwan escreve pela primeira vez integralmente com a voz de uma mulher. Não que ele não trabalhasse bem seus personagens femininos – em um capítulo de “Reparação”, que considero um dos melhores de todos os livros que já li, ele descreve de maneira fascinante como a matriarca da casa, confinada em seu quarto escuro por conta de uma enxaqueca crônica, dá conta de tudo que se passa na vida de todos que estão na sua propriedade. Mas dessa vez o autor resolveu correr um risco maior: olhar tudo por uma perspectiva feminina – e saiu-se muito bem. Serena é uma jovem que, por ligações que a princípio nem mesmo ela entende muito bem, saiu de uma cidade pequena na Inglaterra do início dos anos 70 para trabalhar no serviço de secreto britânico. Duvidando da própria inteligência (ela era uma medíocre aluna de matemática que todos consideravam um “gênio”, e uma leitora de gosto limitado, mas que passava como amante da literatura contemporânea), ela acaba se envolvendo numa missão especial, que a coloca junto de um curioso jovem escritor, Tom Haley. O conto que resumi acima é dele – que, aliás, eu tirei também de um resumo, uma vez que McEwan é engenhoso demais para simplesmente “abrir aspas”, e prefere intercalar a história que criada por seu autor fictício, com as reações de sua leitora Serena (também fictícia, é claro!).

Haley é de fato um autor peculiar. Seu conto em que um excêntrico milionário se apaixona por um manequim da vitrine de uma loja – onde ele entra imediatamente e convence os vendedores que quer aquela mulher sem vida para ele, junto com um guarda-roupa completo de roupas caríssimas, fora as jóias – é uma delirante e cômica narrativa de amor. E mesmo seus textos de reportagens são interessantes o suficiente para justificar a existência de todo o livro “Serena”. A novela como um todo, reforço, é fascinante – na condução, no envolvimento do leitor, no desfecho surpreendente, e na prosa sofisticadíssima que é a marca maior de McEwan. Quem ainda não é seu fã tem tudo para se tornar um tão ardoroso quanto eu depois de ler, por exemplo, uma passagem como a que reproduzo abaixo (na minha tradução “extra”-oficial – pela qual peço desculpas, pois não tenho o livro em português aqui comigo…). Logo no início de “Serena”, a protagonista tem um relacionamento com um homem trinta (e muitos) anos mais velho que ela. E eis como ela descreve o corpo de seu amante:

“O maior órgão do corpo fica com o peso – os velhos não cabem mais nas suas peles. Ela fica pendurada nele, em nós, como um blazer de uniforme escolar que ainda tem ‘espaço-para-crescer’. Ou pijamas. E conforme a luz, se bem que isso poderia ser as cortinas do quarto, Tony tinha um ar amarelo, como um velho livro barato, daqueles que em que você pode ler vários infortúnios – de comida em excesso, cicatrizes de operações no joelho e no apêndice, um acidente escalando pedras, e um acidente na infância com uma frigideira de café da manhã, que o deixou desprovido de um parte de seus pelos pubianos”.

E isso é só um trecho… Você não precisa estar à beira dos 50 anos como eu para se emocionar diante de uma parágrafo como este. Mas o que quero hoje aqui não é me desdobrar mais uma vez em elogios a Ian McEwan. Você quem vem aqui sempre sabe como eu venero esse autor – que é uma recomendação permanente sempre que alguém me pergunta sobre boas leituras. O que me interessa no caso de “Serena” é como o autor usou de maneira brilhante um dos meus recursos favoritos: a arte de colocar uma história (ou mais) dentro de uma história. Nós leitores sempre gostamos de ver isso: livros sobre livros – mas não só isso. Nós vibramos quando livros, histórias, outras narrativas, são quase personagens da própria história que estamos lendo. É um sinal de que o próprio autor – seja McEwan ou David Mitchell (mais sobre ele daqui a pouco) – quer se lançar ao desafio de escrever de mais de um jeito, ou ainda, quer propor um novo desafio ao próprio leitor. Tenho certeza de que você já se deparou com um livro assim. Numa lista rápida que faço de cabeça, posso citar “Possessão”, de A.S.Byatt; “Fogo pálido”, de Nabokov; “Se um viajante numa noite de inverno”, de Italo Calvino; e, claro, “A viagem”, de David Mitchell.

Como já escrevi aqui antes, dei esse nome ao livro, que ainda não foi lançado no Brasil (nos Estados Unidos, saiu em 2004), por conta da adaptação para o cinema – que deve chegar aqui até o final do ano. “A viagem” é o nome que está no trailer facilmente encontrável na internet – uma bizarra adaptação para “Cloud atlas” (literalmente, “Atlas de nuvens”). Não sei até hoje se o livro vai ganhar mesmo uma tradução – não encontrei nada sobre isso, nem no site da Companhia das Letras, que “Menino de lugar nenhum”, do mesmo autor. Se isso não acontecer, os leitores brasileiros só sairão perdendo, uma vez que o filme, ao que parece, jogou para o ar e misturou as seis histórias que Micthell espertamente encaixou uma na outra. Mas vamos deixar para analisar o filme assim que ele chegar nas nossas salas. O que me interessa agora, novamente, é o uso que Mitchell faz do recurso de contar histórias dentro de histórias, de um jeito que ao mesmo tempo homenageia e supera o próprio “Se um viajante numa noite de inverno”.

Tudo começa com um diário de bordo de um viajante americano de um navio que está voltando de uma grande jornada pelo pacífico, no século 19. Mas quem está lendo isso é um compositor aspirante de música clássica, que, nos anos 30 do século 20, está ajudando um outro compositor, mais consagrado e belga, e conta suas desventuras em cartas para seu amante, que ficou na Inglaterra. Essas cartas, por sua vez, estão sendo lidas por uma repórter investigativa, personagem, ela mesma, de um livro publicado nos anos 70. Nos dias de hoje, um agente literário está lendo as aventuras dessa repórter, quando é internato involuntariamente num asilo com regras muito rígidas – impossível de escapar. Sua história vira um filme, que um clone humano, programado para trabalhar num restaurante num futuro próximo, admite que viu durante uma confissão que grava para um robô interrogador, logo depois de ter sido presa como pivô de uma revolução contra os humanos. Por fim, seu depoimento é visto por habitantes de uma Terra totalmente destruída, desenganados num mundo pós-selvagem, num futuro bem distante.

Você ainda está comigo? Pois bem, depois de nos convidar para passar por tudo isso, Micthell faz o caminho de volta – isto é, vai fechando uma história depois da outra, até voltar para aquele navio, no século 19. Só isso já seria um exercício e tanto de virtuoso, mas o autor capricha ainda mais quando muda radicalmente o estilo de cada uma dessas narrativas – chegando até a elaborar um vocabulário todo próprio no caso do futuro longínquo. Os leitores, claro, vão ao delírio – além da minha própria experiência, troquei ideia com várias pessoas que se divertiram também com o original em inglês, e a opinião é unânime: trata-se de uma obra-prima. Que, aliás, o cinema parece ter estragado…

Isso mesmo: os irmãos Wachowski (com a colaboração do diretor do cultuado “Corra Lola, corra”, Tom Tykwer) parecem ter estragado toda a concepção de David Mitchell, embaralhando todas as histórias em vários fragmentos, apostando que o espectador seria capaz de juntar tudo… Eu também sempre acredito na capacidade do público (muitas vezes insultada por vários filmes) de entender uma trama complexa. Mas parece que eles passaram um pouco da conta – e com isso, jogaram fora justamente o maior trunfo de “A viagem”, que é de conter uma história dentro da outra (e que, na verdade, é uma história só…). Nem por isso eu estou com menos vontade de ver o filme quando ele estrear por aqui.

A temporada de produções interessantes já está começando – e semana passada eu fui ver uma das novas apostas para o próximo Oscar. Um filme que quero apenas registrar rapidamente antes de terminar o post de hoje, por um simples motivo: ele também usa uma história dentro da outra para contar uma aventura sensacional. O filme é “Argo”, e a aventura é nada menos do que o resgate de um grupo de americanos de uma Teerã (capital do Irã) nervosa, num de seus períodos mais turbulentos: o da queda do Xá e da ascensão de aiatolá Khomeini. Eu mencionei que é uma história verídica?

“Argo” é tão bom que você sai da sala de projeção se perguntando se as outras produções que você viu este ano realmente poderiam qualificar como “cinema”. Ali tem tudo: um ótimo roteiro; boas interpretações (e quase todas elas de atores pouco conhecidos – mesmo Ben Affleck, a não ser que você seja uma das duas dúzias de pessoas que viram “Gigli”, deve ser só uma imagem sem foco na sua memória); ótima direção (do próprio Affleck, que ressuscita sua carreira de uma vez por todas, ainda que por trás das câmeras); e uma história que, apesar de floreada (afinal, isso é Hollywood!), dá um banho em qualquer roteirista de ficção dessas bobagens de filmes de ação que temos visto ultimamente. E o que está por trás dessa história? Uma outra história – totalmente inventada.

Explico: para tirar os americanos da então cidade mais vigiada do universo, Tony Mendez (Affleck), um agente do serviço secreto americano, cria um plano – inventar um filme de ficção científica que teria algumas cenas filmadas nas ruas de Teerã. Mendez seria o produtor e, quando chegasse lá, daria passaportes falso para os seis americanos escondidos na casa do embaixador canadense. E todos iriam embora como membros da equipe de filmagem – diretor, cenógrafo, diretor de fotografia etc. Plano maluco? Pode apostar! Dá certo? Bem, se você procurar aqui mesmo na internet vai saber o desfecho dessa operação que, de fato, existiu. Mas eu prefiro recomendar que você viva o suspense da incerteza. E que se divirta, sobretudo, com o roteiro de “Argo”, que teve que ser todo trabalhado como se fosse virar uma produção de verdade.

Esse é o poder de uma história dentro de outra – vai desde encantar sua imaginação, até salvar vidas. De verdade.

O refrão nosso de cada dia
“C’est la vie”, Khaled – acho que nunca indiquei um músico algeriano aqui… Então vamos começar com Khaled. Conheço-o há anos – e graças aos franceses que, por força da imigração, adotaram o “raï”, o ritmo musical mais forte da Argélia, como uma das correntes do seu pop há quase três décadas. Sou fã de Khaled, repito, há muito tempo, mas outro dia vi que ele tinha lançado uma nova música. E é essa que indico hoje aqui para você!

 

 

O dia em que Lady Gaga chorou

seg, 12/11/12
por Zeca Camargo |
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Não foi nada combinado – e nem poderia ser, afinal, quem controla o tempo? Mas com a chuva que realmente não deu descanso na noite da última sexta-feira no Rio, Lady Gaga cantou por cerca de duas horas com água caindo do céu quase sem parar. O “modesto” público (mais sobre esse “modesto”, daqui a pouco) que foi até o Parque dos Atletas – “Cidade do Rock”, para os íntimos – não teve dúvida: vestiu-se com uma proteção daquelas de plástico fino, numa pálida tentativa de não se molhar (demais). E com isso, criou um efeito inesperado: ao levantarem os braços para acompanhar um gesto da poderosa cantora que estava no palco, ou simplesmente para se mexerem em resposta a uma música favorita, os fãs de Gaga criavam, com o opaco translúcido das capas de chuva que capturavam a forte iluminação dos refletores voltados para a plateia, a ilusão de uma película que cobria todos os corpos num desenho onírico, como se todos ali estivessem dançando com a alma. Como já observei, o efeito foi mais que inesperado – impossível de ser ensaiado, muito menos coreografado. Mas de certa maneira veio muito a calhar para corresponder à atitude de Gaga que, pelo menos naquela noite que conferi, não colocou outra coisa no palco se não a sua própria alma.

Mas, se você não estava lá, dificilmente vai acreditar no que escrevi acima – especialmente se você só leu as, hum, manchetes de boa parte das, hum, repercussões de, hum, críticos na internet, que estavam mais ocupados em destacar o, hum, fracasso de público da passagem de Gaga pelo Brasil, do que em desfrutar da presença de uma verdadeira estrela do pop internacional por aqui. As vendas de ingressos não corresponderam à expectativa dos organizadores, é verdade. Eu mesmo, entre amigos, brinquei que aqueles que integrassem um grupo que eu estava organizando para ver o show do Rio concorreriam a um pacote de viagem para o réveillon 2012! Mas, sem entrar no “jogo de culpas”, entendo que esse resultado tem a ver mais com um erro de cálculo justamente de quem estava trazendo Gaga do que com a capacidade da cantora de vender ingressos. Essa suposta decepção na escala da turnê “Born this way” no Rio, como foi largamente alardeado na internet, diz respeito a um público “modesto” de 40 mil pessoas. Você gosta de números? Então vamos dar uma relativizada – com informações que pesquei aqui mesmo, na internet. A escala imediatamente anterior ao Rio, foi Bogotá, na Colômbia – onde Gaga colocou 25 mil pessoas no estádio “El Campin”. Antes disso, ela cantou em San Juan, Porto Rico, para um público total de 15 mil pessoas. Voltando um pouco mais no tempo, na despedida da perna europeia da turnê, um show em Nice (França) bateu 9 mil pessoas. Em Barcelona, foram 20 mil. Berlim, 15 mil. Tudo bem que em Paris Gaga juntou 71 mil pessoas. E tudo bem que o Parque dos Atletas estava na sexta com “apenas” metade da sua capacidade total de 80 mil pessoas – afinal, ele foi projetado para abrigar nada menos do que o maior evento de música, o Rock in Rio. Mas olhando esses números, no geral, dificilmente você poderia chamar o show do Rio, com seu público de (lembrando) 40 mil pessoas, de um “fracasso” – ainda mais quando você olha todo o contexto de uma volta ao mundo que totaliza nada menos de 113 concertos (“Born this way” termina só dia 16 de março de 2013 com uma apresentação em Miami, Florida). Porém, o que são fatos diante do “prazer” de digitar uma alfinetada deliciosa direcionada a uma celebridade? Essa, infelizmente, é a lógica distorcida do mundo virtual.

Não quero, com essa ponderação, defender a “pobre” Lady Gaga – que, diga-se, não precisa de defesa nenhuma. Como todos que vêm aqui com certa frequência sabem bem, sou fã de suas músicas, e tornei-me um admirador pessoal depois de ter feito duas entrevistas com ela – a mais recente delas, em abril do ano passado. Como contei aqui mesmo neste blog , na ocasião ela foi divertida e generosa o suficiente para ultrapassar com folga os 10 minutos protocolares que geralmente marcam esses encontros com celebridades: “Estou gostando dessa conversa, vamos em frente”, disse-me ela então. Mas isso não significa que tenho automaticamente um viés para avaliar um bom show quando me deparo com um deles. O que quero assinalar é que na noite do último dia 9 eu estava presenciando mais um grande momento do pop: Lady Gaga no Brasil.

Desenvolver um longo argumento aqui a favor do show não vai converter quem não é fã da cantora. Eu poderia destacar a criatividade “trash” dos figurinos – eram 18 mesmo? Poderia elogiar os sucintos e eficientes novos arranjos de sucessos, que permitiu que virtualmente todos eles marcassem presença no “set list” – meu favorito foi “Just dance”, mas eu divago… Poderia exaltar a energia (e também uma certa teimosia) da própria Gaga, que não se intimidou com a chuva nem por um segundo. Poderia ampliar deliciosos detalhes visuais da performance – como a cara aumentada da cantora, que de vez em quando aparecia enorme dentro de um prisma de neon. Poderia até aplaudir os discursos (talvez um pouco ensaiados demais) em favor das diferenças e da liberdade de expressão – que são sua marca e não ficaram de fora, claro, na passagem pelo Brasil. Mas acho que, para dar uma ideia do que aconteceu ali na, hum, Cidade do Rock na estreia brasileira da artista, o melhor é eu me concentrar em apenas um momento: aquele em que Lady gaga chorou.

Foi naquela parte em que ela chama alguém do público para subir ao palco – algo que está longe de ser novidade em apresentações de grandes estrelas (lembra de Bono fazendo isso?), mas que naquela noite funcionou como nunca. Enquanto recuperava o fôlego, e ajudada por dois bailarinos, ela escolhia quem seriam os privilegiados desse ritual (que ela vem repetindo pelo mundo) entre aqueles que estavam mais próximos do palco. Um dos sortudos foi um garoto chamado Leonardo, de 18 anos, que mora em Teresópolis (região serrana do Rio de Janeiro). Você deve ter visto seu rosto – em vários clipes “piratas” facilmente encontráveis na internet da hora em que ela cantava “Hair” no palco, ele está sentado à direita de Gaga. Ou melhor, você deve ter visto o rosto de Leonardo aos prantos, fracassando a cada momento em que tentava controlar a emoção de estar ao lado de seu ídolo supremo. Era demais para seu “coraçãozinho”. Aliás, foi demais para o “coraçãozinho” da própria Gaga!

Foi ali, com ele e mais dois fãs ao seu lado, que ela, às lágrimas, cantou e fez uma espécie de declaração de amor ao Brasil. Reconheço: dizer que o show de determinada noite é “o mais incrível/emocionate/surpreendente” de uma turnê é um dos mais surrados lugares-comuns do mundo do show business. Mas ali, naquela hora, o depoimento de Gaga pareceu-me dos mais genuínos. Depois de algumas poucas horas intensas no Rio, alguma coisa forte “bateu” na artista – e ali estava ela tentando traduzir o que tinha sentido. Suas palavras não transcenderam um nível muito superior a um punhado de clichês, mas eu tive a impressão de que a expressão do seu rosto dizia mais sobre o que acontecia com o coração de Gaga do que a própria voz que saía da sua boca. Falando sobre troca, sobre generosidade, sobre honestidade, sobre carinho, ela tentava definir o que tinha acontecido com ela aqui no Brasil. Mas eram suas lágrimas que davam uma explicação mais honesta do que se passava dentro dela. Seus súditos então – ou como ela mesma prefere chamá-los, seus “monstrinhos” – entenderam tudo. E se emocionaram também.

No momento em que concluo este texto, não tenho notícias ainda de como foi sua passagem por São Paulo, na noite de ontem. Tampouco posso prever o que vai acontecer amanhã em Porto Alegre. O que sei é que sua apresentação no Rio, para aqueles “magros” 40 mil espectadores foi coisa de Artista – com “A” maiúsculo mesmo, que, como eu costumo brincar de vez em quando é diferente de artista com “a” minúsculo. E que ali, em cima daquele palco, cantando numa noite que alguns tentaram vender como “flopada”, Lady Gaga fazia mais bem para o mundo do que meia dúzia de “descolados” sentados em casa com seu smartphone na mão soltando gracinhas sobre um show que não viram – e se escondendo atrás de uma “poker face”…

E eles ainda pensam que estão fazendo uma revolução… Revolução para mim é o que Gaga faz – aliás, ela e um bom punhado de artistas competentes que me dão prazer e orgulho de viver nos tempos que vivo.

O refrão nosso de cada dia

“The robots”, Kraftwerk – Kraftwerk? Que escolha mais óbvia – você já está pensando? Mas será que você já ouviu mesmo essa música com atenção? Se esse é o caso, ouça de novo, com uma provocação que quero propor agora: se não fosse essa música, Lady Gaga jamais existiria hoje, concorda?

Será que eles não aprendem que a música sempre ganha?

qui, 08/11/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Já tive minha “fase Bruce Springsteen”, mas, admito, não sou um grande fã do artista – especialmente de seu trabalho recente. Mas dias antes das eleições presidenciais americanas, quando vi estas fotos de Bruce com Obama, fiquei meio aliviado. Não que o resultado final das urnas fosse uma fonte pessoal de ansiedade – no fim do dia, quem governa a nação mais poderosa do mundo não faz diferença alguma no meu dia-a-dia. Mas saber que um cara menos conservador do que Mitt Romney vai ocupar esse cargo por quatro anos me dá a sensação de que a gente pode se ocupar com outras coisas – afinal, o bom-senso é fundamental nesses tempos difíceis em que vivemos, e se alguém com uma boa dose dele está “lá em cima”, temos uma preocupação a menos.

Mas voltando a Bruce e Obama, inspirado por estas fotos, fui ver quem mais estava apoiando a reeleição “do cara”. Uma lista breve inclui: Madonna, Beyoncé, Chris Martin, Rihanna, David Byrne, Snoop Dogg, Lenny Kravitz, Elton John, e Lady Gaga – mais sobre ela, daqui a pouco (para uma lista mais completa, clique aqui). Fiz o mesmo com Mitt – quem no meio artístico estaria apoiando sua campanha? Tive dificuldade em identificar alguns nomes (esta é a lista completa) – mas aqui vão alguns deles facilmente reconhecíveis: Meat Loaf, Genne Simmons, Kid Rock, Vanilla Ice (!), e Lynyrd Skynyrd. Bem digamos que se fossem dois festivais de música, para qual deles você compraria um ingresso?

Não escrevo isso para provocar os fãs de Meat Loaf ou Kid Rock – nem os de Vanilla Ice. Tampouco para diminuir quem se alinha politicamente ao conservadorismo de Mitt Romney. Tudo que quero é que você pense nessa curiosa relação entre a (boa) música pop e – com o perdão da pieguice – “um mundo melhor”. Recentemente, você que acompanha o noticiário de cultura (e, eventualmente, o político também) talvez tenha visto pequenos atentados à liberdade criativa e à expressão artística pelo mundo. Um deles foi a constrangedora prisão das meninas do Pussy Riot – uma banda punk russa que teria “ofendido” o dirigente maior do Kremlin, Vladimir Putin –, numa clara indicação de que o controle da informação (na verdade, o controle de tudo que se refere à vida dos pobres cidadãos russos) está cada vez mais forte. (Na última atualização que conferi, duas garotas da banda ganharam uma sentença de dois anos de prisão por “blasfêmia”). Outra “má notícia” nesse sentido, eu encontrei nas páginas do jornal inglês “The Guardian”. Sob o título “Mali: sem ritmo nem razão depois que militantes declararam guerra à música” , o jornalista Andy Morgan relata, de maneira chocante, a cruzada contra a música que militantes islâmicos radicais no norte daquele país iniciaram há apenas alguns dias. Isso mesmo: guerra contra a música! E num país que notoriamente é um celeiro maravilhoso de talentos musicais – se você tem dúvidas, pergunte a Damon Albarn (Blur). (Em nome da transparência, devo assinalar que a Andréia mandou um comentário recente aqui para o blog sobre esse assunto também). A “revolta” – que se reflete em instrumentos sendo queimados e destruídos, e nos artistas proibidos de se apresentar (e não vamos nem falar de festas!) – é só mais um dos inúteis esforços para reprimir uma manifestação artística que não só é uma das coisas mais maravilhosas que nos definem como humanos (justamente, a capacidade de criar – e ter prazer com –música), mas é também uma das forças mais positivas de mudança social que essa “coisa” que criamos chamada civilização gerou.

Esses dois atos absurdos – tenho certeza de que muitos outros parecidos estão acontecendo pelo mundo agora – não chocam apenas pela sua estupidez, que nos remete a séculos de retrocesso cultural. O mais bizarro para mim é a própria “inocência” (se é que podemos chamar assim) dos líderes (ou supostos rebeldes, como no caso do Mali) de achar que medidas como essas podem tolher a criatividade humana – ou pior, anular nossa necessidade de nos expressarmos inteligentemente frente ao mundo em que vivemos. Será que eles não aprendem nada com a história? Das exposições de “arte degenerada”, organizadas pelo Terceiro Reich às vésperas da Segunda Guerra Mundial, à censura que a nata da nossa música popular brasileira sofreu durante a ditadura militar – nenhum movimento repressor conseguiu terminar de vez com essa nossa capacidade de criar (e protestar) com arte.

Ouça a música de Cuba. As bandas de rock iranianas. Os moleques que inventaram o punk inglês. Os artistas do apartheid. Chico Buarque. E responda: quem é que sai ganhando no final?

Obama então foi reeleito – não exclusivamente por conta do apoio dos artistas (não sou tão ingênuo assim), mas por conta de uma corrente de inteligência e progresso que, excepcionalmente colocando-me aqui politicamente, é o que eu acredito que é melhor para todo mundo. Não sei se tudo vai ficar melhor, mas certamente vamos ter uma música melhor celebrando essa vitória.

E, entre elas, as canções de uma certa artista que está no Brasil agora – e cujo show eu vou conferir amanhã no Rio de Janeiro. Sim, Lady Gaga, que quase virou motivo de chacota porque teve a venda de seus ingressos “encalhada” (muito mais por conta de uma projeção de bilheteria infeliz da parte dos produtores do evento no Brasil do que pelo apelo e carisma da cantora, como eu tenho certeza de que os fãs estão entendendo a questão). Mas que, sobrevivendo às gracinhas, está, pelo menos neste fim-de-semana, roubando as atenções, mandando beijos de biquíni, e cumprindo sua palavra: a de que está aqui por amor aos seus monstros. Se você é um deles, o baile é seu – aproveite! Mas se esse não for o caso, não perca o grande show de consolação que os artistas que apoiaram Mitt Romney vão fazer para dar um apoio moral para o candidato republicano. Mais informações, aqui mesmo neste espaço!

Curti

qui, 01/11/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Supostamente, Baby do Brasil é uma lembrança de uma piada. Para uma geração que se acostumou a ler, no máximo, legendas de fotos (na verdade, para uma ou duas gerações que vieram antes dessa, e prepararam o terreno para a atual, que adora achar que é revolucionária – quando o ato mais subversivo que seus representantes conseguem exercer é disparar gracinhas na internet com duas ou três palavras ofensivas, de preferência com erros de ortografia e/ou concordância), enfim, para essas gerações que, se já ouviram a expressão “contexto histórico”, acham que ela quer dizer “twitters de mais de 140 caracteres”, Baby do Brasil talvez soe mesmo como uma piada. Afinal de contas, ela é tudo que quem ri dela morre de medo de ser: livre, desencanada, corajosa, curiosa, criativa, feliz – e cósmica. Já encontrei mais de uma pessoa que pensa assim e, quando meus sólidos argumentos (geralmente de cunho musical) em defesa de Baby não são suficientes para convencê-las do contrário, eu gosto de contar uma história dos meus tempos de MTV Brasil – ou seja, de quase 20 anos atrás.

Baby não é a protagonista dela, mas sim o Sepultura. Isso mesmo: o Sepultura – uma banda que não é exatamente fraca de atitude. Pois bem, no início dos anos 90, quando a MTV do B foi gravar com eles uma reportagem na Disneylândia, em Los Angeles, a direção do parque, sempre preocupada com a imagem do estabelecimento, viu os braços tatuados dos integrantes da banda e exigiu: se eles quisessem circular por ali e registrar tudo; teriam que usar camisetas de manga comprida, justamente para esconder suas tattoos. E o que o Sepultura fez? O Sepultura – radical, irado, animal! – fez o quê? Comprou camisetas de manga comprida (com os personagens Disney estampados – não me lembro de todos, mas com certeza um deles levava o Pateta no peito) e foi em frente com a gravação. O que essa história tem a ver com Baby do Brasil? Para ser breve: quando ela – e seu então companheiro, o sensacional guitarrista Pepeu Gomes, viram-se diante de uma situação semelhante, no mesmo parque de diversões, o que eles fizeram? Deram as costas, foram embora, e gravaram uma música chamada “Barrados na Disneylândia”! Se isso não for “atitude”, então não sei mais o que essa palavra significa.

Para minha leve decepção, “Barrados” não foi incluída no repertório que Baby cantou na última quarta-feira num show que fui conferir no Rio de Janeiro. Mas foi, garanto, uma decepção menor, superada, de longe, pelo prazer de perceber que eu sabia cantar quase todas as músicas – aliás, todas, menos uma – que ela e seu filho, Pedro Baby, escolheram para esse retorno, hum, secular. Esclarecendo resumidamente, “secular” pode ser considerado como o contrário de “religioso”. Como você sabe, há mais de uma década, Baby do Brasil segurou na mão de Deus – e foi. A transformação, de “porra loca” a “casta ovelha”, serviu de mais munição para quem sempre a insistia a fazer dela uma piada. Mas você acha que ela estava muito preocupada com isso? No coração de Baby, não há dúvidas. “Papai do céu” – a quem ela evoca com essas mesmas palavras, num tom menos lúdico do que carinhoso – é quem a guia desde então, e tudo que faz na vida, inclusive a decisão de estar novamente num palco cantando seus velhos sucessos “pagãos” (que, diga-se, como percebeu espertamente seu filho, nem estão tão longe assim de um bom gospel). Como ela me contou numa entrevista antes do show, quando Pedro Baby chegou com a ideia de resgatar o repertório antigo da mãe, a primeira providencia dela foi orar, para sentir se o todo-poderoso abençoaria tal decisão. E, generoso como ele só, Deus sentiu que boa parte de seus fiéis celebrariam esse retorno como se um coro angelical descesse dos céus entoando as mais pias cantatas de Bach! E Baby então disse sim. Amén!

Assim, ontem no palco montado no Jóquei Clube carioca, logo depois de uma sessão ao ar livre do filme “De volta para o futuro” – que, segundo Baby, era exatamente o que ela estava fazendo, voltando “para o futuro” -, aquela figura tão “estranha”, desta vez com os cabelos pintados de roxo (para combinar com sua saia?), fazia as vezes de uma pastora acidental, cantando para um punhado de convertidos, sucessos como “Um auê com você”, “Dia de índio”, “Mexe comigo”, e… “Telúrica”! “O pensamento das flores… Significado das cores”… Que prazer ouvir aquilo de novo de sua boca. Foi o nirvana na Terra! Teve também, claro, “Menino do Rio”, que foi (e, suspeito, ainda é) o hino da minha geração, interpretada em parceria com Caetano Veloso – que, sentado ao lado de Baby, a ouviu contar, plena primeira vez, que quando escutava o próprio Caetano no rádio, ainda criança, virava-se para seu pai e dizia: “Eu queria ser amiga desse pessoal aí, eles tem tudo a ver comigo”… Caetano, com uma deixa preciosa dessas, sorriu largo. E os dez anos que os separam – ele, com 70 recém-completos, e ela com seus 60 (“de planeta Terra”, como faz questão de frisar) – dissolveram-se num momento de feliz de adolescência atemporal. Em outro flash de ternura, não apenas dez anos, mas uma geração inteira tornou-se irrelevante quando Baby deu o microfone para Pedro, seu filho, cantar com ela. Como idealizador do “revival”, ele estava radiante de alegria. E com razão: teria sido muito fácil para Pedro, sendo filho (de pai, Pepeu, e mãe) de quem é, colar na genética e tentar uma carreira musical. Mas como todo bom artista teimoso, ele foi buscar um caminho próprio – que passou, entre tantas colaborações felizes, por trabalhos com Gal Costa e Marisa Monte, que, presente na plateia da noite de ontem, aprovava tudo com um sutil mas genuíno gingado, que insinuava ao mesmo tempo admiração e saudade.

Saudade essa que estava presente em todos nós, pelo menos em todos nós que tivemos a chance de ouvir as rádios quando as canções de Baby eram tão tocadas quanto os “parapapás” de hoje. Saudade que estranhamente reverberava também em gente muito mais nova, que sequer era nascida quando Baby já era iluminada por todas as cores do arco-íris – esbarrei com mais de um filho (uma filha) de amigos por lá, em encontros que, ao contrário de serem constrangedores, eram felizes certificados de que éramos todos testemunhas de um espetáculo transcendente.

Ali na frente, do palco, Baby sorria com uma alegria que só não era maior do que a de seu filho. E devolvendo a cada espectador essa emoção, ela desfilava tudo aquilo que, os mais míopes sempre enxergaram como motivo de piada – a voz solta, as cores livres, os versos loucos, o riso fácil. E justamente por tudo isso, ainda deve ter gente rindo dela até hoje – que gente mais sem humor… Explicar para essas pessoas a beleza de ter Baby novamente no palco é um exercício fútil. Aos acostumados à preguiça de resumir todas as opiniões a simples símbolos (“Curti!”), os parágrafos que deixei aqui hoje são uma mera somatória de esforços inúteis. A esses, basta a mãozinha indicando que… curti o show dela. Mas para você que veio até aqui comigo, quem sabe, tudo isso que escrevi não faz tanto sentido quanto o mantra que serve de refrão a uma das músicas mais lindas que Baby já gravou?

“Cósmica, a claridade das manhãs / Cósmica, o infinito lá no céu / Cósmica, como toda a Natureza”…



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