Em busca do perfeito “parapapá”
“Nî ni ni ní, ni ni ní, niníí / Ni ni ni ni, niní”. Confesse: você, como eu, já acordou mais de uma vez com esse refrão na cabeça – pelo menos algum dia das três ou quatro últimas semanas. Eu não tenho vergonha de admitir isso – muito menos de dizer, logo no primeiro parágrafo, que eu vou fazer mais um post cujo “gancho” (como a gente fala no jargão jornalístico para justificar uma pauta) é o incrível vídeo de Nissim Ourfali para o seu “bar mitzvá” (eu sei, no último post, eu escrevi a festa com “h”, mas agora me corrijo, depois de ter percebido, no próprio vídeo do Nissim, que ele prefere a grafia aportuguesada). Não quero, porém, tripudiar sobre o assunto – imagino que o garoto (e sua família: tenho relatos de filhos de amigos meus que estudam no mesmo colégio que sua irmã mais velha, que são de cortar o coração) já passou por bons bocados com seu vídeo que já está próximo dos dois milhões de acessos. O que me interessa aqui hoje é o poder de um refrão bem feito. E aí, claro, o mérito não vai para o Nissim nem para o time de produtores que cometeu o crime menor de expor o garoto a um papel constrangedor – seja em cima da baleia ou simulando uma tirolesa. Quem merece o duvidoso aplauso é a dupla sueca Carl Falk e Rami Yacoub. Quem?
Bem-vindo, bem-vinda, ao fascinante mundo dos verdadeiros criadores de sucessos: uma lista de nomes totalmente desconhecidos (a não ser que você seja “da indústria”, ou melhor, da indústria fonográfica) que, há anos, põem na boca de seus ídolos os sucessos que você acorda cantando sem pensar. Falk e Yacoub são os autores oficiais de “What makes you beautiful” – o “megahit” que foi a base para o bar mitzvá de Nissim e, “de quebra”, lançou a carreira do One Direction, o grupo que ressuscitou um gênero que mais de uma geração considerava morto e enterrado (até, acreditava, alguns, para o bem da humanidade): o das “boy bands”. N’Sync, Backstreet Boys, Take That, Westlife, New Kids on the Block, Menudo – você conhece os suspeitos. One Direction (como qualquer busca simples na internet vai te informar) surgiu da mente do grande cara por trás do programa da TV inglesa “X Factor” – aquele que o Sílvio Santos inventou há anos com o modesto nome de “Show de Calouros”, mas que foi repaginado e agora é um sucesso internacional (menos, ironicamente, por aqui) -, Simon Cowell. Foi ele que viu os garotos nos bastidores do seu show e achou que juntos eles dominariam o mundo. Bingo!
(Num artigo recente na “The New Yorker”, Sasha Frere-Jones, ao comentar sobre os garotos, tem a tirada mais cruel: “O que o One Direction realmente parece, no entanto, é um bando de garotas. A banda toca um tipo de pop rock que foi popularizado, nos últimos dez anos, por mulheres”. E segue dando exemplos como P!nk e Kelly Clarkson – sem esquecer, claro, de Kate Perry! Mas eu, já sei, divago…)
Ali nascia mais um veículo para canções totalmente pré-fabricada por profissionais que entendem do assunto e ganham milhões de dólares para cuspirem conquistadores de paradas de sucesso. Falk e Yacoub, apesar de eu tirar o chapéu para o êxito de “What makes you beautiful” (realmente todos os trechos dessa música são irresistíveis!), são pequenos jogadores num cenários de nomes que são ainda mais respeitados. Curiosamente (ou não, se você se lembrar da longa tradição daquele país no pop, que vai de Abba a Roxette a Ace of Base, e inclui até Peter Björn and John, Robyn, The Hives e The Cardigans – para satisfazer os mais alternativos) o maior mestre pop dos últimos dez, quinze anos, vem também da Suécia. O nome dele é Max Martin – e se você acha que eu estou exagerando, dê uma conferida na sua página da Wikipédia, e veja se você reconhece alguns artistas com quem ele já trabalhou. Se você quiser continuar na Escandinávia, tem uma dupla de da Noruega chamada apropriadamente de Stargate (“Portal das estrelas”), que já assinou hits para Rihanna e Wiz Khalifa. E a lista fica ainda maior quando atravessamos o Atlântico.
Por exemplo, sabe qual foi a música do verão americano, não sabe? (Lembrando que o verão lá é agora, termina junto o nosso inverno, agora em setembro). “Call me maybe”, de uma canadense relativamente desconhecida chamada Carly Rae Jepsen. Múltiplos de 140 caracteres já foram gastos na internet para decidir se a música foi um sucesso apenas por conta do endosso de Justin Bieber (ele mesmo, alguém que não economiza em produtores para criar sucessos – e eventualmente até compô-los) ou se ela tem seus próprios méritos. Sem a pretensão de encerrar de vez o assunto, para mim está claro que “Call me maybe” seria um sucesso de qualquer maneira – por uma simples razão: seu refrão poderoso. E como Carly Rae conseguiu isso? Com a velha forma, acredito, de 1% de inspiração e 99% de transpiração.
Uma das coisas mais fascinantes do pop é justamente o quão pouco espontâneo ele é – e não estou falando dos anos mais recentes não, mas de um fenômeno que vem desde os primórdios da parada de sucesso, nos anos 50 e 60. Já ouviu falar da “fábrica da Motown”? Pois então, durante boa parte dos anos 60, Barry Gordy Jr. criou literalmente uma “usina” de sucessos, usando artistas tão talentosos – para citar apenas alguns – como The Supremes e um tal de Jackson 5… Se você for procurar os créditos de cada música, no entanto, vai sempre encontrar nomes recorrentes – e desconhecidos do grande público: “operários” do pop que estavam por trás de compor um sucesso atrás do outro.
Não estou aqui diminuindo o talento individual de artista nenhum. Do próprio Michael Jackson a Lady Gaga, o pop sempre teve prodígios suficientes para garantir o brilho de um trabalho autoral. Mas o que quero celebrar aqui hoje – e questionar também – é o dom que certas pessoas têm de colocar uma música no nosso ouvido para a eternidade. Celebrar, e ao mesmo tempo questionar: será que nós, brasileiros, habitantes do país da música, somos capazes de nos esforçar o suficiente para atender a demanda do mundo pop de hoje?
Por aqui, o talento para a música sempre foi algo que “tiramos de letra”. O Brasil, felizmente, é terra fértil de compositores, músicos e cantores – e os sucessos que emplacamos através das décadas (alguns deles internacionais) vieram como “presentes das musas”, algo que os deuses, de tão encantados com a beleza desta paisagem e a alegria deste povo, ofereciam “de mão beijada”. Desde que sou criança, vi essa queda musical ser comemorada com orgulho. O que era sucesso nunca pareceu fruto de um trabalho, mas de um natural desdobramento de qualidades criativas desses artistas. E talvez essa tenha mesmo sido a realidade, pelo menos até que a nosso gosto pop ficou um pouco mais internacional e os artistas (e compositores e produtores) começaram a perceber que, se o suor não superasse a imaginação, não ia ter música deles nas rádios, nas novelas, e na memória das pessoas.
Quando isso começou a acontecer? Eu tendo a achar que isso chegou aqui no início dos anos 80, por conta de um cara chamado Ritchie – um excelente músico inglês que se encantou com o Brasil e, ainda que de maneira indireta, ensinou esse povo aqui que o pop também é uma fórmula matemática. Para entender o que foi a febre de “Menina veneno” – o sucesso que lançou a carreira de Ritchie no Brasil – você tem que ter no mínimo uns 40 anos. Os mais jovens, lamento, vão ter que acreditar em mim ou fazer sua pesquisa na internet para acreditar que ele foi mesmo o responsável pelo primeiro “monstro pop” do nosso cenário. Coladinho nele vieram nomes como RPM e Cazuza – e hoje, Ivete, Teló (mais sobre ele daqui a pouco), Jota Quest, Gaby e até mesmo Los Hermanos e Maria Rita devem um pouco de seu sucesso ao caminho que Ritchie abriu.
Arrisco dizer que nenhum desses artistas – que eu admiro e eventualmente até já entrevistei – teria a lucidez de reconhecer isso. De certa maneira, acho que o “ranço da Musa” ainda assombra nossos compositores e artistas, como se a aceitação de que eles um dia quiseram intencionalmente criar uma coisa popular fosse uma espécie de pecado criativo. Usando com ironia a música de 1975 de Gilberto Gil, é como se o mantra “Essa é pra tocar no rádio” (que, ironicamente, é uma das músicas menos fáceis de tocar no rádio que esse grande músico já compôs) fosse uma transgressão a ser escondida e não uma confissão auxiliadora.
Como uma triste consequência, nosso pop permanece infinitamente aquém do seu potencial de nos hipnotizar como súditos. Sei, claro, de processos de criação de alguns álbuns contemporâneos que são extremamente cuidadosos e esforçados. Mas também já ouvi de vários artistas que a seleção do que gravar passa mais por um filtro intuitivo do que “técnico” – tipo, “se eu ouvir e achar que o povo vai gostar, é porque vale a pena entrar no disco” (com o fator “Musa” novamente tendo uma participação desproporcional nessa escolha). Ou, pior, temo que muitos lançamentos sejam feitos com base no critério de dois artistas “pop sertanejo” bem jovens (e, para mim, desconhecidos) que outro dia ouvi conversando durante um voo. “Terminou de gravar o novo CD?”, perguntava um deles. E o outro respondia: “Olha se naquilo que eu gravei essa semana, eu não deixei de cantar nenhuma letra e não tem erro de português, por mim, pode lançar!”. Pois é… Pelo menos ele se preocupava com os erros de português…
O mesmo não pode ser dito do novo sucesso – ou, melhor dizendo, da nova promessa de sucesso – de Michel Teló, “É nóis fazê parapapá”. Calma, não estou aqui de professor primário pegando no pé de uma concordância errada (preciso explicar?) – eu mesmo de vez em quando dou uma distraída aqui neste espaço (e corrijo assim que alguém me chama atenção). Minha questão com “Parapapá” não é essa, mas… Será que esses dois artistas, bons o suficiente para nos trazer dois dos maiores sucessos de todo o tempo do nosso pop – “Assim você mata o papai” e “Ai se eu te pego” (eu sei, eu sei, cada uma com seus devidos autores) – ao escolherem algo para cantar junto, esforçaram-se mesmo para escolher o melhor refrão… pra tocar no rádio, ou simplesmente pegaram o primeiro corinho fácil e saíram gravando logo antes que a temperatura de suas respectivas carreiras esfriasse?
Ouvi “Parapapá” algumas vezes – e fã que sou de “Papai” e “Te pego”, não consegui ver nada de diferente nela. Parece apenas uma variação da onda de músicas com eufemismos para sexo – “Tchun tcha”, “Lê lê lê”, e quejandos – sem o brilho e o entusiasmo dos sucessos anteriores. Uma solução fácil para uma carreira nada simples: a de astro pop. Será que vale a “lei” dos dois garotos que vi conversando no avião, “gravou, tá bom”? O ciclo de vida de um artista hoje é tão curto, que eu até consigo entender essa vontade de não sumir de cena – para não ser esquecido. Mas é bom lembrar que tudo tem um preço – e até mesmo as grande “boy bands” um dia desapareceram (longa vida ao One Direction!). E que se alguém não tomar cuidado, suas músicas logo vão deixar de ser grandes refrões que fazem a gente se apaixonar para se transformarem apenas num amontoado de sílabas que, hum, não fazem sentido.
Nesse cenário preguiçoso, Luan Santana me parece uma exceção. Outro dia ouvi seu novo trabalho, “Quando chega a noite”, inteirinho – e fiquei realmente surpreso com a preocupação do cantor em “acertar” cada uma de suas faixas, como se fosse uma lição de casa. Tudo, claro, sem perder a espontaneidade e o carisma que ele tem como artista. Mas me aprofundar nesse álbum significaria agora estender um pouco mais esse texto de hoje, que já está deveras longo. Aqui lanço então essas questões e encerro o post – esperando, quem sabe, que você contribua para o debate.
E enquanto você pensa o que responder, cante comigo: “Duas irmãs e um irmãozinho…”.
O refrão nosso de cada dia
“White light”, George Michael - surpreso ou surpresa de ver George Michael por aqui? Achei que num post sobre o poder da criação musical ele não poderia ficar de fora. Por isso, aqui vai sua mais nova música – que ninguém tem muita paciência de escutar, afinal esse é aquele cara que toca “Freedom” em noite de flashback, não é mesmo? Pois dê a você mesmo – ou a você mesma – essa chance. Além de ser uma ótima música para a pista de dança, este é um clipe lindo, que tem todo o imaginário da carreira de Michael desfilando, de top models a policiais. E até uma zebra! Apenas para registro, ele tem menos acessos do que o bar mitzvá do Nissim. São esses os tempos que vivemos…