Um contentamento descontente

qui, 31/05/12
por Zeca Camargo |
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Há quem diga que Wagner Moura desafinou na noite do seu primeiro show com Marcelo Bonfá e Dado Villa-lobos – uma homenagem, claro, ao Legião Urbana, que foi transmitida ao vivo, na última terça-feira, pela MTV. Eu estava lá – e tendo a concordar. Mas o importante ali, naquela noite, não era isso. Você ficou muito preocupado ou preocupada com esse fato? Pelo que assisti, posso garantir que o próprio Wagner Moura não estava nem aí para isso. E digo isso justamente por ter visto aquela figura ensandecida no palco por quase duas horas elaborando com cuidado muito mais do que a nada simples tarefa de substituir um dos maiores cantores (e poetas e intérpretes) do nosso pop – Renato Russo. Para Moura aquilo não era apenas um show. Era um ritual. E ele o cumpriu com todo o respeito, todo o envolvimento, e com todo o afeto que os fãs do Legião podiam esperar. Afeto este que, aliás, nunca se encerra.

Eu hoje tinha me programado para escrever sobre o vídeo que mostrei aqui no último post – um registro de uma exposição das mais interessantes que vi recentemente, sobre “a criação do selvagem”. Mas, como você que já está acostumado ou acostumada com as flutuações deste blog sabe bem, de vez em quando acontece alguma coisa que quebra a nossa programação. E essa “alguma coisa”, desta vez, foi o tributo ao Legião Urbana. Fui convidado de última hora – e, por conta de uma viagem (estava fora de São Paulo até o início da noite de terça), achei que não fosse dar tempo de assistir. De fato, cheguei um pouco atrasado – na segunda música, segundo minha amiga que me convidou e já estava lá. Mas não perdi muita coisa. Depois de uma noite de enorme contentamento (vou deixar o “descontente” para mais tarde), achei que deveria falar sobre isso hoje neste espaço – prometendo então retomar “a criação do selvagem” na segunda-feira.

Como eu dizia então, Wagner Moura estava muito além da (naquela noite) relativamente fútil preocupação em acertar as notas musicais. Tudo naquela celebração tinha um sentido muito maior do que a mera reprodução das músicas do Legião – imortalizadas na memória de mais de uma geração pela voz de Renato Russo. Moura e Dado e Bonfá (e um bom punhado de convidados especiais – mais sobre eles daqui a pouco) estavam lá para transcender um repertório que todos nós conhecemos de cor. O objetivo maior, ouso dizer, era encantar. E isso, eles conseguiram com louvor.

Eu tinha bons motivos para me emocionar num evento desses. O primeiro deles, claro, é a própria música do Legião – que, como sugeriu Moura a certa altura, referindo-se à experiência dele mesmo, fez incontáveis garotos e garotas pensarem diferente quando ouviram aquelas canções pela primeira vez e tinham apenas as paredes do seu quarto como promessa de horizonte. Raras são as bandas capazes de fazer a gente gritar silenciosamente “é isso!” quando prestamos atenção ao que elas estão cantando. Renato e o Legião tinham esse dom – e cada adolescente que viveu isso estava sendo celebrado ali, naquele encontro, junto com quem estava no palco e na platéia.

Além dessa razão, eu tenho um envolvimento profissional com a banda que, quando chegou ao ponto alto – uma “antológica” entrevista com o Renato, no tempo em que eu ainda trabalhava na MTV –, muitas vezes misturava a definição do que era admiração pessoal e compromisso jornalístico. Geralmente eu não permitia que uma coisa interferisse na outra – como contei no meu livro “De a-ha a U2”, uma entrevista antiga com Michael Stipe (R.E.M.) ensinou-me logo no início da minha carreira a não confundir pauta com tietagem… Mas se uma vez ou outra deixei transparecer demais minha admiração por Renato e sua banda durante um encontro “oficial”, não foi por falta de zelo, mas talvez pelo incrível poder que o Legião tem sobre seus admiradores.

Some a esses dois bons motivos o grande prazer que tive de encontrar velhos amigos – da MTV e do próprio cenário musical – assistindo a tudo com o mesmo índice de êxtase que eu registrava. E mais o prazer secreto de estar numa noite “livre”, no meio de uma rotina de compromissos que está quase me sufocando. Pronto! Essa tinha tudo para ser uma grande noite. E foi!

Da escolha do repertório – que incluiu até duas músicas do idiossincrático “A tempestade” – aos já mencionados convidados especiais, tudo foi cuidadosamente elaborado para agradar aos fãs, e às pessoas que estavam no palco também… Afinal, como explicar a presença de Andy Gill ali ao lado de Dado Villa-lobos senão um capricho do guitarrista? Trazer uma figura ao mesmo tempo tão importante e tão obscura da história do pop alternativo foi mais que uma ousadia: foi uma revelação. Justamente porque a surpresa maior parecia ser não a de quem assistia, mas a do próprio Gill, expressa quando ele disse, discretamente emocionado, que no tempo em que criava suas músicas (nos idos dos anos 70/80) “lá no norte do Reino Unido”, não podia imaginar que tinha um punhado de fãs ouvindo suas canções aqui do outro lado do mundo…

Para os que nasceram depois de 1980, vale explicar que Gill é o guitarrista do Gang of Four – uma espécie de divindade para quem foi criado aprendendo a gostar do melhor do cenário independente inglês justamente dos anos 80. Eu mesmo fiquei bastante impressionado com a presença dele ali – e quando, no meio de “Ainda é cedo” (que inda teve a participação especial de Bi Ribeiro, dos Paralamas), eles salpicaram os inconfundíveis acordes de “Love will tear us apart”, o clássico do Joy Division, eu não vou esconder que estive à beira do choro.

O que me segurou foi a percepção de que aquela não era exatamente uma noite para lágrimas. Não. A emoção negociada ali era de outra estirpe. Não tinha nenhuma pieguice – tinha uma vibração diferente, difícil até de colocar em palavras, mas que encontrou a sua melhor tradução no gestual de Wagner Moura. Descontando-se algumas escorregadas – algumas delas, do pouco que entendo de transmissão de shows ao vivo em TV, culpa do próprio esquema dessa operação (que prioriza o áudio do show para quem está assistindo em casa, e não quem está lá ao vivo) –, se fosse para dar um veredicto baseado apenas nessa performance (nunca tive a oportunidade de ver seu projeto musical, curiosamente batizado de Sua Mãe), eu diria que Moura canta bem. Mas dança ainda melhor.

O momento mais significativo, nesse sentido, foi quando eles tocaram “Quase sem querer” – na minha opinião, a canção mais próxima dos Smiths, que o Legião jamais fez (uma proximidade que era, arrisco, o sonho secreto de Renato – mas eu divago…). No sensacional final da música, quando guitarra e bateria tentam juntar os cacos do coração de quem estava ouvindo (coração esse que foi triturado por versos como “Já não sou mais tão criança a ponto de saber tudo”, ou “Sei que às vezes usos palavras repetidas, mas qual são as palavras que nunca são ditas”?), Moura fez exatamente o que eu e milhares de fãs já fizeram sozinhos no quarto: deixou de comandar seus movimentos e foi intuitivamente traduzindo o transe que a música incita em desenhos com seus braços e pernas – numa curiosa e convidativa mistura de Jim Morrison, Ian Curtis, Ney Matogrosso, Morrissey e Mick Jagger. Além do próprio Renato, claro…

E foi aí justamente que eu percebi que Moura não estava muito ligando para o que as pessoas poderiam achar dele naquela noite. A festa ali era dele – e ele estava tendo a generosidade de oferecer para quem quisesse compartilhar. Minha queridíssima (e saudosa) avó Wanda, com quem passei incontáveis (e adoráveis) tardes de domingo na infância e na adolescência assistindo ao “Programa Silvio Santos” – ela, uma fã incondicional do “Silvio”, como ela o chamava com intimidade – tinha uma frase ótima que ela usava para explicar o sucesso do apresentador: “O programa dele é bom porque o Silvio faz a festa e ele que dança!”. E foi dela, dessa “sabedoria” da minha avó, que eu me lembrei ao ver Wagner Moura ali, feliz, feliz, dançando e fazendo, ainda que por tabela, a felicidade de quem quisesse vir.

O saldo não poderia ser outro – uma noite feliz. Ou, como já escrevi, de contentamento. Um “contentamento descontente”, é verdade – para citar Camões, por sua vez citado por Renato Russo, na belíssima “Monte Castelo”. E o “descontente” fica por conta da irreparável ausência do próprio Renato – de seu insubstituível vozeirão, de seu relutante carisma, de tímida e grandiosa dança, de seu imprevisível humor, de sua necessidade de amor jamais preenchida. Ele deveria estar lá – era o pensamento que cruzava mais de uma mente naquela noite (e com certeza na noite seguinte, quando eles repetiram o concerto). Mas não estava. E essa falta era sim a única nota descontente numa celebração que, de tão feliz, faltou pouco para chegar à perfeição. E por falar nela…

“Venha! Meu coração está com pressa”…

O refrão nosso de cada dia

“Independece”, Gang of Four – se você ainda está confuso com a presença de Andy Gill no tributo ao Legião Urbana, aqui vai um pouco de “História” (do pop). Foi com o álbum que inclui a sensacional “Independence” que eu conheci o Gang of Four. Qualquer fã da banda vai concordar que este não é o melhor trabalho dela – eu mesmo fui atrás dos álbuns anteriores (sobretudo o irreparável “Entertainment!”) e acabei gostando mais ainda deles. Mas “Independence” é o que eu chamaria de uma boa introdução para quem não conhece o Gang of Four. A partir daí, siga ouvindo outras coisas – e você vai ver que muita coisa que você já escutou nesses anos todos (do próprio Legião ao The White Stripes) começa a soar estranhamente familiar…

Respeitável público

seg, 28/05/12
por Zeca Camargo |
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Antes de desenvolver o assunto desta semana, vou pedir para você assistir ao curto vídeo que estou postando aqui hoje – e, mais do que adivinhar, tentar entender do que se trata. Não vou dar muitas pistas, a não ser dizer que se trata de um registro de uma, hum, “forma de entretenimento” muito popular na Europa em meados do século 19 – mas que perdurou até as primeiras décadas do século 20 (sim, o século em que você provavelmente nasceu!), como o próprio (e raro) registro em filme atesta. Você faz ideia de que espetáculo é esse? A resposta, mais que chocante, é reveladora – e na quinta-feira você vai descobrir que as conexões disso com uma certa fatia do entretenimento que temos hoje são maiores e mais assustadoras do que podemos imaginar…

Nós, humanos, uma espécie tão evoluída…

O refrão nosso de cada dia

“Sweater weather”, The Neighbourhood – ontem mesmo, uma amiga minha que trabalha no “estrangeiro” (e está chegando ao Brasil) me mandou este vídeo dizendo que era sua aposta para a música do verão (no hemisfério norte, claro) de 2012. As forças da máquina no pop americano certamente vão jogar contra essa previsão tão otimista. Mas gostei tanto da banda (que não conhecia), que faço minhas as suas palavras.

Donna Summer me ensinou tudo que eu queria saber sobre sexo e tinha medo de perguntar

qui, 24/05/12
por Zeca Camargo |
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Não era fácil a adolescência de quem gostava de “disco” e de punk. Ao mesmo tempo. De dia, trancado no quarto, tentando entender o que acontecia com minha cabeça quando eu ouvia pela enésima vez “The Clash” – o álbum de estreia de uma das bandas mais influentes de todos os tempos. De noite, tentando convencer algum porteiro que eu não tinha só 14 anos e merecia entrar nessa ou naquela discoteca para ouvir o último sucesso de Andrea True Connection – acredite: houve mais de um.

Como já disse em várias entrevistas – e martelei à exaustão no meu livro “De a-ha a U2” – minha formação musical foi um tanto bipolar. Se na infância e pré-adolescência eu era submetido a impulsos sonoros tão variados como as coletâneas de Ray Conniff, os batuques de Clara Nunes, o bizarro arranjo de Waldo de los Rios para a Sinfonia 40 de Mozart (!), Chico e Caetano ao vivo, e a trilha sonora de “Sacco e Vanzetti” (que recomendo aqui numa rara gravação ao vivo por Joan Baez) – isso para dar apenas alguns exemplos dos LPs que figuravam na coleção de discos dos meus pais –, quando pude escolher o que queria ouvir, vi-me diante de decisões tão ecléticas quanto essas primeiras audições. Que de certa maneira – e isso, não tenho dúvidas, é algo a comemorar – acabou orientando toda a minha curiosidade musical nesses nem tão cansados assim 49 anos.

Hoje em dia, claro, não tenho o menor problema em declarar descaradamente meu amor equiponderado por, digamos, Gaby Amarantos e Brittany Howard (a vocalista do Alabama Shakes!). Ou minha admiração infinita por Racionais MC, Lady Gaga, Arctic Monkeys, e El Robot Bajo el Água – na mesma intensidade. Não foi um aprendizado fácil, mas, depois de décadas, posso dizer que você só tem a ganhar quando deixa de lado as imposições do seu próprio gosto e decide, como um dia cantou Lou Reed, “dar um passeio pelo lado selvagem” da música. Ou mais…

Quisera eu ter essa sabedoria nos anos 70. Naquela época, ciente do conflito que uma declaração aberta dos meus gostos musicais pudesse causar na minha imagem – e o que mais preocupa a gente na adolescência do que a nossa imagem? –, eu tentava separar as coisas. E, ainda franzino por culpa de um metabolismo que teimava em atrasar, eu via minhas chances de me divertir na incipiente vida noturna que se abria diante de mim sempre maiores se eu abraçasse a “disco” do que o punk. Não obstante, os dois gêneros continuavam a me encantar e a me mostrar as possibilidades do universo musical. Sobre o punk, e a influência que ele teve sobre mim, ainda devo um post (já honrei o desdobramento “natural” do punk, a “new wave”, aqui mesmo neste espaço, e cheguei a falar um pouco mais especificamente do punk quando da morte de Malcolm McLaren; mas ainda devo uma homenagem decente ao gênero, eu sei). Sobre a “disco” – que também já apareceu aqui pegando carona em um ou outro assunto –, a morte de Donna Summer inevitavelmente inspirou-me a falar sobre esse período que muitos só conhecem por duvidosas “noites do flash back”, ou por esporádicas aventuras em antigas coletâneas empoeiradas nas casas de parentes e amigos mais velhos.

Para quem tem menos de 40 anos (ou talvez menos de 50… tenho que me conformar com isso), é difícil imaginar hoje que um som que faz parte do nosso “ouvido coletivo” um dia soou como inovador e excitante. Injustamente rotulado de “divertido, mas sem conteúdo”, o “disco sound” foi imediatamente relegado ao plano hedonista mais superficial do convívio social – a busca por um prazer sem compromisso, que, não surpreendentemente, era a tônica dos anos 70. Mas que longe de ser chato, era sensacional – e transgressor. Quando vejo uma reportagem atual sobre jovens que viram a noite e se divertem em baladas que muitas vezes extrapolam o que se poderia chamar de diversão saudável, eu tenho vontade de chamar essa “galera” que se acha muito louca e contar algumas das histórias dos anos 70… Mas eu divago…

Em nome da transparência, devo dizer que eu era dos mais comportados nessa época. Talvez prejudicado por uma entrada precoce no colégio – que me colocava cerca de 2 anos abaixo da faixa etária dos meus amigos de classe (um “abismo” irrelevante depois dos 25 anos, mas que é temerário quando seus anos ainda começam com o algarismo 1) – eu nem sempre era incluído nas “baladas” de então. Mas eventuais escapadas, e inúmeros relatos (quase todos parcialmente mentirosos, mas mesmo assim…) de festas e noitadas sonorizadas pelo estado de espírito descuidado do final dos anos 70, iam me permitindo montar um retrato de uma época que, se não foi das mais enlouquecidas do século passado, certamente foi uma das mais divertidas.

Parte dessa minha sensação de não pertencer ao grupo com que eu convivia – ou mesmo à época em que vivia – tinha a ver com meu atraso (certamente atrelado ao tal atraso do meu metabolismo) em descobrir as possibilidades eróticas e de atração e sedução do meu corpo. Novamente, fica difícil para meninos e meninas de 14 anos hoje em dia, que geralmente não pensam das vezes antes de mandar um detalhe de sua intimidade por foto no whatsapp para seu namorado ou namorada “firme” (de cerca de duas semanas), banhados em pornografia acessível em menos de dois cliques em qualquer “smartphone” – enfim, fica difícil para essa geração atual imaginar que a sensualidade adolescente um dia já foi realmente uma descoberta, um processo perigoso, assustador e extremamente prazeroso, que dependia muito mais de ousadias internas do que de uma rede social virtual.

Nos meus distantes 14 anos, tudo que eu queria saber sobre sexo eu tinha realmente medo de perguntar – como sugeria o livro “clássico” dos anos 60, assinado pelo médico americano David Reuben (adaptado livremente para o cinema por Woody Allen, em 1972) –, todas as dúvidas que meu corpo nem sempre sutilmente me fazia começaram a ser respondidas quando eu ouvi, pela primeira vez, “Love to love you baby”, na voz de Donna Summer.

Naquela época – pasme! –, quando a gente ouvia uma música nova, era no rádio (como a própria Donna Summer gravaria em ou outro “hit” de sua carreira). Essa primeira vez com “Love to love you baby” foi provavelmente nas ondas da Rádio Excelsior (“A máquina do som” – e se você tiver minha idade, tenho certeza de que deu um sorrido quando leu isso… mas eu divago). Fui pego totalmente de surpresa com a reação que a música provocava a princípio nos meus ouvidos – e, mais tarde, alhures. Mais que o refrão (o próprio título, repetido “ad infinitum”), o que ficou na minha cabeça foi a estranha impressão que o rádio do carro não era um lugar adequado para se ouvir “aquilo”. Meu quarto, no escuro, parecia ser uma opção bem mais adequada. E foi lá que fui ouvir meu primeiro LP de Donna Summer – comprado, claro, na Hi-Fi da rua Augusta, em São Paulo.

Só muito tempo depois fiquei sabendo que “Love to love you baby” havia sido banida em várias rádios americanas e européias (inclusive a BBC inglesa) – e quando li isso, pareceu-me uma reação, se não justa, plausível para a época. O que Donna Summer cantava era a coisa mais próxima do sexo explícito possível de ser traduzido em notas musicais. Por trás dessa magia havia um nome: Giorgio Moroder, um genial produtor musical italiano (mas baseado nos Estados Unidos), que praticamente inventou esse som. Na voz de Summer, ele encontrou o veículo perfeito para criar uma escola musical, que inspiraria, a partir da segunda metade dos anos 70, centenas de imitadores em incontáveis pistas de dança.

Na sequência de “Love to love you baby”, veio uma série de faixas se não tão poderosas, ao menos tão insinuantes quanto esse seu primeiro sucesso. Uma delas, para você ter ideia, chamava-se “Try me, I know we can make it” (algo como “Experimente-me, eu sei que podemos fazer alguma coisa”…); e outra, um “melo” romântico na versão original de Barry Manilow, ganhava conotações mais que insinuantes na interpretação de Summer: “Could it be magic”, cujo refrão “Come, come, come into my arms”, podia ser ouvido tanto como um contive para o abraço quanto como uma súplica para que o parceiro amoroso tivesse um orgasmo bem no meio dos braços de quem cantava – e como a intérprete era Donna Summer, você pode imaginar que versão as pessoas preferiam entender… E depois disso veio “I feel love”.

Nunca ouvi? Faça a você mesmo esse favor e dê um clique no título da música acima – para a gente poder continuar (sim, já está longo o post de hoje – e vem mais!). Na sua versão mais enxuta, de quase seis minutos, “I feel love” é – curto e grosso – uma “rapidinha”. Vários remixes – e algumas regravações memoráveis (como a do Bronski Beat com Marc Almond) – ampliaram ainda mais o potencial erótico dessa obra-prima, mas nada supera a perfeição do original de Summer. Quem nunca teve uma noite de sexo embalada por “I feel love”, não sabe o que está perdendo…

O que poderia ter sido uma breve carreira impulsionada por um “truque de uma nota só” – no caso, músicas sensuais para uma época de excessos – acabou servindo como uma bela introdução para uma história que atravessaria mais de uma década. Aos poucos, Donna Summer foi ficando mais romântica e menos erótica – Madonna, claro, pegaria esse título para si ao longo dos anos 80. Nem por isso, Summer deixou de enfeitiçar nossas noites (e algumas matinês!) dançantes. Como citei no post anterior, minha faixa favorita na sua voz é “Heaven knows” – e ela já é de 1979, quando suas canções caminhavam mais na direção do seu coração do que de sua virilha. Assim mesmo, é mais um clássico, junto com toda a “Suíte MacArthur Park”.

“Bad girs”, “On the radio”, “Last dance”, o incrível dueto com Barbra Streisand “No more tears”, “Hot Stuff”, “Dim all the lights” (talvez a minha segunda música favorita da cantora), e mesmo a tardia “This time I know it’s for real” (que é de 1989) – Donna Summer parecia não errar nenhuma nota! A combinação perfeita de um refrão impecável e imediatamente reconhecível com batidas que, ao contrário de oferecer um estilo monótono, explodia em inventividade (na sua interpretação, todo mundo era capaz de dançar até um pastiche de charleston chamado “I remember yesterday”!), fez com que o catálogo de suas músicas se transformasse num dos mais sólidos do século 20. E com uma vantagem: ao contrário de várias estrelas da era da “disco”, suas músicas não envelheciam. São, obviamente fruto de uma época muito específica. Mas como as boas canções atemporais que o pop já criou, elas falavam com todas as gerações – e digo sem medo de errar que falam até hoje.

Por isso sua morte, no último dia 17, mexeu com tanta gente. Na mesma semana, o pop perdeu outra voz bastante conhecida dos anos 70 – Robin Gibb, dos Bee Gees. Mas enquanto esse ótimo artista ficou relegado a algum lugar do passado, Donna Summer parece que estava sempre perto da gente. Mesmo com uma produção artística bastante rarefeita nos últimos 20 anos (sem falar de certas controvérsias de sua vida pessoal, que cheguei a discutir com ela numa entrevista que fiz no final dos anos 90), sua presença era não só sentida em todas as festas como desejada e aplaudida. E assim vai ser enquanto as pessoas gostarem de dançar.

O que eu acho que vai acontecer por muitos e muitos tempos.

O refrão nosso de cada dia

“Intergalactic”, Beastie Boys – em uma temporada que definitivamente não é uma das mais alegres para o pop, faço uma pequena homenagem a outro ídolo que perdemos: Adam Yauch, do Beastie Boys. Estive com eles uma vez só, nos idos de 2006 (e até escrevi sobre este encontro aqui) – pouco, para retribuir a minha admiração que eu tinha pela banda e, em especial, por Adam “MCA” Yauch. Sim, sim: ia precisar de um outro post só para escrever sobre isso – mas hoje o espaço maior foi de Donna Summer. Ao meu Beastie favorito – não só pelo lado musical como pelo lado ativista (era uma das figuras mais importantes no movimento pela independência do Tibete) –, deixo aqui um singelo e modesto tributo, lembrando a todos, com o surreal “Integalactic” como ele foi anarquicamente fundamental para a história do pop.

De joelhos

seg, 21/05/12
por Zeca Camargo |
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Logo no início de “Os vingadores”, Loki – irmão de Thor, claro –, depois de displicentemente perfurar o olho de um conviva em um coquetel numa famosa casa de ópera, usa um certo poder de persuasão (leia-se “seu poderoso cajado disparador de raios mortais”) para juntar um punhado de humanos numa praça e ordenar que todos fiquem de joelhos. É sua maneira “carinhosa” de preparar a população inteira da Terra para a novidade de que ela agora tem um novo líder – o próprio Loki –, e que finalmente nós estamos “livres da liberdade”. Eu poderia até começar a discutir esse filme, que é já a quinta maior bilheteria de todos os tempos, por esse gancho, digamos, metafísico. Mas o que me convida mesmo a abrir a conversa de hoje é a relação entre comandante e comandados que a cena evoca: ao ver aqueles amedrontados rostos lentamente caindo de joelhos, tive a impressão de que a mensagem de Loki era dirigida não apenas aos figurantes daquela cena, mas a todos os milhões de fãs do Capitão América, Homem de Ferro, Hulk, da Viúva Negra, do Gavião Arqueiro – e, claro, de Thor – espalhados pelo mundo. Porque, afinal, só uma ordem divina pode explicar o submissão automática que tem feito, nas últimas semanas, hordas de espectadores lotarem salas de cinema – e, mais misteriosamente ainda, saírem plenamente satisfeitas!

Antes que você ache que eu não gostei do filme, devo dizer que passei duas horas bem divertidas na presença de tão nobres super-heróis. Sério. Para alguém que não é exatamente fã do gênero; que tem algumas restrições (mas não preconceito) com relação ao “Cavaleiro das Trevas”; que não se sentiu animado a sair de casa para assistir a nenhum dos filmes do Homem de Ferro; que não conseguiu passar do primeiro “Homem-aranha” (que não está nesse “Vingadores”, eu sei!); e cuja lembrança da última vez que viu alguma coisa que o divertisse e que fosse ligada ao Hulk remonta ao tempo em que o personagem era uma figura de animação onde a única parte que realmente mexia era a boca (sei que você, com menos de 45 anos, não pode nem imaginar que algo tão tosco assim passou um dia na televisão, mas eu juro que é verdade) – enfim, para alguém que como eu só foi assistir a “Vingadores” para entender porque ele estava fazendo tanto barulho, eu diria que o filme é muito bom.

Em especial, admirei a tentativa de dar um mínimo de profundidade a personagens como Banner/Hulk (o ótimo Mark Rufallo) ou Natasha/Viúva Negra (passivamente interpretada por Scarlett Johansson, que não consegue disfarçar a certeza de que só está ali para dar uma apimentada sexy no elenco). E vibrei com as elegantes naves invasoras que parecem saídas de um museu de história natural, e que vagueiam por Nova York com destruidora suavidade. Uma colagem de programas de TV debatendo o que aconteceu logo depois da batalha final também me pareceu bastante bem-humorada – e bem sacada. Assim, como você vê, eu não estou aqui para falar mal de “Os vingadores”. Mas também não estou aqui para falar que ele é perfeito…

Meu problema com trabalhos desse tipo – um diagnóstico que fiz na segunda ou terceira vez que vi mais de um desses super-heróis juntos fazendo um “brain storm” para entender o que está acontecendo na história (cenas que me traziam um certo alívio, porque afinal de contas deixavam claro que eu não era o único a achar que a trama estava saindo dos trilhos no que diz respeito à lógica) –, enfim o que não está muito certo nesses filmes, que privilegiam a ação à atuação, é que eles teimam em ter diálogos!

É isso! Por mais que eu estivesse envolvido numa luta ou numa perseguição – ou numa luta seguida de perseguição ou vice-versa –, logo vinha um diálogo ali para atrapalhar. E como! As tentativas de piadas passavam sem dor – sobretudo as irônicas tiradas de Tony Stark, o Homem de Ferro, interpretado por Robert Downey Jr. (minha favorita, fora todas as provocações a Banner/Hulk, é quando ele ouve do Capitão América algo como “Precisamos de um plano de ataque”, e responde: “Eu tenho um plano: ataque!”). As ironias com as referências anacrônicas do Capitão América (que, sozinho, parece que rendeu um filme insuportável, e falo baseado em relatos de amigos que são grandes fãs do super-herói) também são espertas. Mas quando não estão brincando entre si, a conversa entre eles é simplesmente insuportável.

Tive a pachorra de anotar alguns trechos:

“Você vai mentir e matar a serviço de mentirosos e matadores”.

“Eu pensei que os seres humanos eram mais desenvolvidos”. (Esta, se me lembro bem, em tom de aparente ironia).

“(Vocês são) Uma mistura química que provoca o caos”.

E não vamos nem falar dos diálogos que, supostamente, deveriam informar o telespectador do que está acontecendo – por exemplo, como quando tentam explicar como eles pretendem localizar o Tesseract; ou como eles planejam sustentar no ar a aeronave que perdeu todos os motores; ou quando o “portal indestrutível” finalmente consegue ser, hum, destruído. Esses trechos são pura poesia livre, nas quais não apenas os fins justificam os meios, mas os fins definitivamente tornam os meios irrelevantes. Em “Os Vingadores”, os processos normais que fazem a história caminhar – algo que, no que eu entendo por cinema como forma de expressão, geralmente recebe o nome de roteiro – são totalmente dispensáveis. Não há sequer (como em “O cavaleiro das trevas”) a tentativa pífia de uma satisfação. O filme parece contar tanto com o carisma de seus protagonistas, que a atenção com as cenas de passagem foi sumariamente abolida.

Isso evidentemente deixou-me um pouco incomodado. Tanto que eu queria aqui deixar uma proposta para “Os vingadores 2” – que praticamente já começou a acontecer nos diálogos finais de “Os vingadores 1”. Minha sugestão é simples – quase “retrô”. A ideia é pegar um modelo dos filmes mudos e adaptar para as próximas aventuras: no lugar desses aborrecidos (quando não confusos) diálogos, o diretor inseriria apenas uma placar explicativo sobre o que vamos ver na cena seguinte – e em seguida o filme retoma sem maiores interrupções. Na prática, teríamos, por exemplo, uma cena de luta; aí entraria um cartaz onde se lê “Ataque à aeronave”; em seguida, uma atordoante sequência de… ataque à aeronave; mais um cartaz: “Terra invadida”; entram os alienígenas por um portal e começam sua coreografada destruição; novo cartaz: “Vingadores reagem”; e assim vai…

Esse sim seria o filme de super-herói perfeito! Mas esse é também um filme que nunca vamos ver, eu sei. Porque os diálogos, teimosos, nunca vão embora – não importa o quão ruins ou banais eles sejam. Pelos trailers que vi antes da minha sessão de “Vingadores”, este é apenas o aperitivo que abre mais uma temporada de falatório supérfluo: “Homem-aranha” no lado mais previsível desse espectro; “Prometeus” no menos previsível (pelo menos isso é o que aprendemos a esperar de Ridley Scott).

Felizmente nem todas as estreias que vêm por aí se resumem a filmes desse gênero. Uma rápida fuçada na internet me deu pelo menos uma meia dúzia de bons motivos para ficar de olho no que está para chegar às grandes telas. Dê um clique nos títulos abaixo e veja se você também não se anima:

“Virginia”

“Ted”

“Your sister’s sister”

“Ruby Sparks”

“Polisse”

“Magic Mike”

Esses filmes, sim, chegam com potencial de me deixar de joelhos…

Na quinta, faço uma homenagem merecida à Donna Summer – quer me ajudar? Então diga-me qual, entre tantos os sucessos, é sua música favorita na sua voz inconfundível?


O refrão nosso de cada dia

“Heaven knows”, Donna Summer – meio anti-climático, eu sei, mas estou aqui me adiantando ao responder a pergunta que eu mesmo acabei de propor. Esta é a minha música favorita na voz de Donna Summer – na verdade, uma das partes da sensacional “MacArthur Park Suite”. Meu convite aqui é para você ouvir toda a “obra”, em seus mais de 15 minutos. Logo depois da faixa-título – que é aquela que você provavelmente já dançou em incontáveis festas de casamento (ou, para quem é da minha geração, em animados embalos de sábado à noite) –, vem uma curiosa (mas não menos dançante) canção chamada “One of a kind”. Boa, mas quase uma distração para te pegar de surpresa com o que vem a seguir. Você passa por mais um interlúdio com os acordes de “MacArthur Park”, e logo depois (aos 10’23”, para os mais ansiosos que querem ir direto ao assunto) chega, finalmente, “Heaven knows”. Num “falso dueto” com um certo Joe “Bean” Esposito, ela apresenta um dos seus refrões mais poderosos e românticos. E eu tenho que ficar por aqui, porque as lembranças dos meus primeiros beijos com essa trilha sonora estão começando a tomar conta de mim – e eu não sei onde isso pode parar…

A língua que você (ainda) não sabe que fala

qui, 17/05/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Raros momentos me fazem tão feliz quanto aqueles em que chego a algum lugar e percebo que não falo a língua que estou ouvindo nas ruas. Por conta de alguns destinos insólitos, pude reviver essa experiência mais de uma vez nos últimos dias. E comprovar que a beleza do mundo está em perceber que será impossível compreender todas as coisas.

Calma, este não é um post de auto-ajuda. Nem tampouco você caiu sem querer no blog que Paulo Coelho honra, com sucesso, este espaço aqui no G1. Escrevi o parágrafo acima ainda me refazendo de coisas extraordinárias que vi e ouvi (mesmo sem entender…). É inevitável que eu esteja soando ligeiramente piegas. Ontem mesmo, jantando com um grupo pequeno de amigos, e mostrando algumas coisas que trouxe da viagem (papéis, folhetos, imagens), eu tentava explicar a eles que, ao mesmo tempo em que fico exasperado com a quantidade de informação que qualquer lugar do mundo tem para me (nos) oferecer, fico também em estado de euforia ao descobrir, a cada vez, novas possibilidades de olhar as coisas à minha (nossa) volta.

Já escrevi sobre isso de várias maneiras aqui – a mais transparente de todas, talvez, em outubro de 2008, quando voltava de uma viagem por alguns dos mais belos patrimônios da humanidade espalhados pelo mundo. Mas ao retornar dessas últimas paradas, não consegui parar de pensar nas novas descobertas que fiz – e como elas tinham pouco ou quase nada a ver com a língua dos lugares por onde passei.

Que lugares foram esses? Bem, hoje vamos fazer um “onde eu estou?” meio diferente. Não vou exatamente citar as cidades que visitei, mas convidar você a um passeio sem mapa. Algumas fotos que podem me ajudar a expressar o que quero hoje estão espalhadas pelo texto, mas você não vai encontrar nele referências diretas – talvez elos frouxos, subliminares. A intenção não é confundi-lo ou confundi-la, mas trazer você para um itinerário de impressões – muitas delas, que eu mesmo nem esperava colecionar…

Como quando entrei num galpão de uma antiga oficina mecânica – num bairro distante de uma cidade onde todos os trajetos, se você for acreditar nos motoristas de táxi de lá, levam 25 minutos para serem percorridos. São poucas as oficinas mecânicas que restam por lá – a maioria delas, transformadas em estúdios de coletivos de artistas, celeiros de idéias (imagine algo como a Fabrica, da Benetton, no meio do deserto), enfim, em espaços interessantes. O choque entre as temperaturas do lado de fora e de dentro era de quase 20 graus, e levou um tempo para eu perceber que a leve vertigem que eu sentia era menos pelo súbito resfriamento do ar a minha volta do que pelas pinturas que eu via na minha frente. Ramtin Zad era o nome do artista, e seu pincel era delirante. Cenas “baquianas” distorcidas por grossas tintas criavam uma ligeira confusão em quem se interessava em saber de onde era aquele pintor – e logo essa história se tornaria secundária, quando alguém da galeria veio me contar que seu dono é filho de uma grande curadora do museu de arte contemporânea na capital do seu país de origem, até que uma revolução pelo poder a obrigou a não apenas a viver na Inglaterra, mas também esconder sua significativa coleção de obras do século 20 (pense em Bacon, Klee, Dubuffet) em porões secretos até os dias de hoje.

Nesta mesma cidade vi fotos de mulheres ousando se divertir sozinhas no meio de uma cultura que não as permite tal arroubo. Elas estavam em paredes decorando prédios de um centro financeiro onde, em um dia, circula mais dinheiro do que o que vai ser gasto no Brasil para colocar a Copa do Mundo de pé… Ali ao lado comi num dos melhores restaurantes japoneses do mundo e, de volta ao hotel (25 minutos!), tive o prazer de ser envolvido por cheiros que jamais vou conseguir identificar. Da minha janela via uma espécie de lago artificial – lembrei-me de Las Vegas –, onde águas dançantes distraem os turistas e tentam nos fazer esquecer que são 19h e os termômetros ainda marcam mais de 40 graus.

Não muito longe dali – o que são cinco horas de avião? – um outro espaço cultural celebra os mestres da desordem. Não se trata exatamente das turbas que, nos dias em que estive nessa outra cidade, inundavam as calçadas e tomavam monumentos históricos para demonstrar sua euforia às vésperas de uma eleição decisiva. A desordem dessa mostra era de outra ordem: a da tentativa do divino de explicar o que é humano. E para isso, objetos de todo tipo e toda origem foram convocados.

Figuras vestidas em peles e máscaras horripilantes confundem nosso referencial: teriam vindo das montanhas do Tibete ou de um povo “primitivo” (note as aspas) da América pré-colombiana? Que nada… Tais trajes vêm da Suíça e da Alemanha e intencionalmente invertem seu pré-julgamento de que a Europa nunca teve espaço para crenças pagãs. Um curioso boneco de pano – cuja única parte que podemos relacionar com o humano é uma possibilidade de braços – nos leva à Groenlândia e faz um curioso par com a estranha máscara usada em cerimônias de exorcismo para proteger mulheres grávidas, trazida lá do Sri Lanka. Para uma mostra que abre com dezenas de globos unidos por fita crepe, a mensagem para este visitante que vos escreve foi clara: você pode até tentar se isolar nos limites do seu conhecimento, mas você nunca vai deixar de carregar consigo uma história muito, muito mais antiga e interessante do que essa que você insiste em contar para você todas as vezes que se mira no espelho… Em vez de olhar sempre para ele, olhe para cima de vez em quando – você não vai se arrepender.

Numa outra dessas cidades, o que vi sobre minha cabeça foi um tapete de livros voadores. Quem o criou foi um artista de Samoa. Sim, Samoa. “Falso teto” é o nome da obra – o que só pode ser uma brincadeira. Mesmo sem saber que livros são aqueles (escritos em uma língua que eu ainda não domino), sinto-me mais protegido à sombra deles do que nas salas luxuosas do hotel que fica ali ao lado do museu que estou visitando. Fui para lá tentar fazer passar mais rápido o tempo de espera para a próxima entrevista no tal hotel, agendada para dali a duas horas (mais uma estrela de Hollywood que não tem tempo para mim nem para ninguém). “Falso teto” torna-se ali minha cobertura favorita – um conforto para as múltiplas referências que me atravessaram nos dias que passei nessa cidade: pontes, vistas, torres, vitrines e calçadas. Todas repletas de uma gente linda, dona de uma vocabulário tão precioso, que precisou inventar mais três vogais (além das que conhecemos no nosso não menos belo português) para poder expressar tudo que quer dizer.

Nessa cidade, que já visitei mais de uma vez, fiz questão, como sempre, de me passar por um turista de primeira viagem. Dessa maneira, corrigindo os vícios de quem não consegue se livrar do fascínio de voltar a uma cidade hipnótica e intensa, assumo uma postura sempre aberta – inclusive a de me perder em um de seus bairros cujas ladeiras só não são mais atrevidas do que os sabores do pratos que mal esquecemos de provar, distraídos pela silhueta de tetos e domos numa colina distante, muito além das águas densas que se vê dos terraços dos restaurantes. Lá, dessa vez, senti calor e frio – e senti saudade.

Aquelas saudade dos lugares que se visita sempre.

Como é possível isso? Entendendo, talvez, que sempre pertencemos a este e a tantos outros lugares. Acredite: isso é possível. Mesmo na cidade que mais visitei na minha vida – outra que estava incluída nesse roteiro dos últimos dias –, no momento em que piso novamente por lá, renovo minhas saudades. O idioma lá não me é estranho – pelo contrário. Mas isso só torna a tarefa de ser um viajante “estreante” mais interessante. E o caminho para isso é pelo rio, ao longo do qual sempre gosto de andar, e que dessa vez me levou a uma das criaturas aquáticas mais temidas do planeta – devidamente domada dentro de um tanque.

Uma enorme retrospectiva de um dos artistas mais falastrões da cena contemporânea joga novas luzes em velhos truques que ele mesmo já havia apresentado ao longo de sua relativamente breve carreira. Asas de borboleta transformam-se em vitrais e enormes gabinetes de pedras preciosas nos lembram não só como ele é engraçado, imprescindível, mas também tolo. Num rápido balanço, vejo que suas supostas irreverências soam mais como irrelevâncias – e me sinto muito mais tocado pela lembrança de uma árvore fantasmagórica (cortesia de uma artista americana chamada Jennifer Steinkamp) projetada no subsolo do museu que brigava aquele “Falso teto” do que pelos milhares de brilhantes que criam um pastiche de vida num símbolo da morte – e que ocupa a sala principal da retrospectiva.

Mas vejo que estou então fazendo comparações injustas, uma vez que tudo que citei aqui faz parte de uma coisa só – dessa língua que nós nascemos com o potencial de falar, praticar e multiplicar, mas que aos poucos vamos esquecendo o quando ela é importante. É essa língua que me permitiu viajar por todos esses lugares nesses últimos dias e me sentir à vontade em todos eles. Que abriu ainda mais meu apetite por todas as coisas do mundo, e me fez ao mesmo tempo feliz e frustrado pela imensidão da tarefa de tudo absorver e compreender. Foi com ela, com essa língua, que fui recebido em diferentes ambientes com silêncios afáveis, com delicadezas inteligentes, e com provocações astutas. Ela foi meu passaporte e meu guia, minha bússola e minha inspiração. E em nome dela que eu quis escrever tudo isso aqui hoje.

Eu sei, eu sei: “Vingadores”, Edward St. Aubin, “Girls” – e outros assuntos que surgiram desde que listei todos esses outros, Ewert and the Two Dragons, “Brownbook”, Raul Seixas, “Paraísos artificiais”, Donna Summer… Estou louco para escrever sobre tudo isso. Mas hoje, exercendo a liberdade de sempre de poder falar do que eu quiser aqui, eu quis falar com você sobre essa língua. Que, aliás, é a da arte…

O refrão nosso de cada dia

“(In the end) there’s only love”, Ewert and The Two Dragons – melhor banda que veio da Estônia desde que… Bom, quando foi que você ouviu uma banda da Estônia? Como adiantei rapidamente no último parágrafo acima, quero falar mais, hum, intensamente sobre eles – para defender a ideia de que você nunca sabe de onde vem a boa música. E o farei – em breve. Mas aqui vai um “aperitivo”. Eu tenho certeza de que você vai gostar.

Alternativas para Lana Del Rey

qui, 10/05/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Pobre Lana. Eu gostei do disco dela. Mesmo. Não estou falando de uma novidade, eu sei. “Born to die” veio ao mundo no final de janeiro – e já chegou como um dos lançamentos mais esperados do ano. Porém – e talvez até por causa disso –, a recepção foi tépida. O que é quase compreensível. Construída principalmente em cima de um único sucesso, “Video games”, a expectativa para “Born to die” era quase impossível de ser recompensada. Ela já estava “apanhando” da crítica mesmo antes de ter tempo de ser avaliada – ou ainda, ouvida e avaliada. Vítima do seu próprio sucesso por antecipação, Lana Del Rey foi cruelmente descartada como uma artista menos séria.

Se usei o adjetivo “injustamente” na frase anterior foi porque, como já disse, gostei do disco dela. “Born to die”, o álbum (que traz uma faixa com o mesmo nome), talvez não seja uma obra-prima de virtuoso e inovação, mas pelo menos se destaca por tentar ser algo diferente. Adoro sua voz, e acho que, além de “Video games”, seu primeiro trabalho é, no mínimo promissor. Não só quero ouvi-lo mais vezes, mas também quero ouvir mais de Lana no futuro.


Mas o pessoal implicou com ela… Para esses que não encontraram em Lana a tal “promessa de esperança” no elenco de novas vozes femininas no pop, ofereço aqui três boas alternativas na categoria – e uma surpreendente volta ao passado (que é quase uma “reestreia”). Vamos começar então com Birdy – sobre quem eu já havia dado uma pista no último post. Para quem gosta de nomes completos, o seu é Jasmine van den Bogaerde – e ao contrário do que isso possa sugerir, ela não é holandesa, mas inglesa.

Como sua curta biografia nos alerta (irritantemente), Birdy nasceu em 1996 – o que faz de Lana Del Rey, uma “coroa”… Mas compará-las pela idade é um desserviço. Se as coloco num mesmo patamar é por conta das habilidades vocais de ambas. Ou melhor, falar de “habilidades vocais” pode parecer que estou exaltando outras qualidades técnicas que não a pura beleza do timbre dessas duas cantoras – e das outras que vou citar aqui hoje. Birdy “me ganhou” exatamente por conta disso – da sua voz. Só depois que “People help the people” já estava irreversivelmente gravada na minha memória é que comecei a me interessar por ela e por sua história. Que é relativamente simples: ainda menina, foi ganhando um concurso de canto atrás do outro, e estourou por acaso quando gravou uma versão da belíssima “Skinny love”, de Bon Iver. Depois disso… pronto! No sempre ávido cenário musical pop inglês, ela já era aclamada como “a nova Adele”. Menos…

Birdy é sem dúvida um talento. Mas seu repertório ainda é incerto. O álbum de estreia tem a cara de uma boa colagem (na verdade, cada faixa é assinada por uma pessoa diferente), que só depois de algumas audições ganha um pouco de unidade nos arranjos de piano – e, claro, na sua voz, que, talvez por conta da idade, ainda não atingiu todo seu potencial. Mesmo assim, faixas como “Shelter” e “Without a word” (a única que é de sua autoria) são suficientes para Birdy dizer a que veio.


Para quem prefere um pouco mais de agressividade numa voz feminina, minha sugestão é Sharon van Etten – isso mesmo, outra “van”… “Trintinha”, ela é “bem mais velha” que Birdy – e que Lana também. Novamente, isso é o de menos. O que essa americana traz na voz talvez seja menos a perfeição do que a emoção. Mas isso já está bom para mim. “Tramp”, o álbum que caiu nas minhas mãos recentemente, já é seu terceiro disco. E por conta dele estou correndo atrás dos dois anteriores.

Como introdução ao universo de Etteh, sugiro “Leonard”. Ali você vai encontrar o melhor dessa cantora: um jeito de cantar que começa suave, mas que vai ganhando uma força impressionante quando a música avança. Antes da metade da canção, você já está acompanhando o refrão com se o conhecesse há tempos. Menos de cinco minutos depois, você já foi “fisgado”. O mesmo efeito, só que com mais força, acontece em “Serpents”. Ajudada por um daqueles arranjos que mais parecem uma cascata musical, Sharon vai te levando junto com todos os instrumentos que vão sendo introduzidos. Aí você espera pelo refrão – que parece que nunca chega. Mas esse é o truque desta que é a talvez a melhor faixa de “Tramp”: toda a música é um grande refrão.

E assim vai: “We are fine”, “Ask”, “All I can”, e a sutilmente poderosa “Joke or a lie” – que fecha um disco. Não sou de fazer comparações entre duas gerações de cantoras, mas se Chrissie Hynde (The Pretenders) um dia nos faltar, Sharon van Etten não vai exatamente substituir a mulher que até hoje me faz chorar com “2.000 miles”, mas pelo menos vai nos confortar na esperança de que sempre vão surgir talentos capazes de tratar nossos ouvidos como se fossem feitos de veludo.


Se o seu gosto está mais para o alternativo, minha indicação então é Ema. Lançado há exatamente um ano, seu primeiro álbum também está longe de ser uma novidade. Eu mesmo o encontrei em setembro de 2011, numa viagem a Nova York. De qualquer maneira, quando comecei a pensar em “alternativas para Lana Del Rey”, lembrei-me imediatamente de Ema. Por que? “Past life martyred saints” talvez não tenha a sofisticação (ou nem mesmo a suposta pretensão) de “Born to die”, mas de alguma maneira o disco consegue o que eu acho que era o objetivo principal de Lana (aliás, de todas as cantoras sobre quem eu escrevo aqui hoje): mexer com você.

Ema te conduz até lá por caminhos mais tortuosos. No lugar da pompa de Lana, do cuidado e da limpeza nas faixas bem construídas de “Born to die” (e não vamos nem falar do álbum de Birdy), Ema oferece um material um pouco menos lapidado, mas que imediatamente evoca um clima hipnótico e transcendental. Veja “Milkman”, por exemplo: a percussão é quase tribal (com ecos de Florence and The Machine); as guitarras não dão sossego desde os primeiros acordes (além de a distorção te esperar lá no finalzinho); e os vocais poderiam ser classificados como assustadores. O resultado, porém, é glorioso. Como se quisesse limpar tudo isso, na faixa seguinte Ema vem com uma música curta, toda “a cappella” (“Coda”), que de tão iluminada poderia ser quase um hino religioso. Apenas para, na próxima canção, “Marked”, retomar um som bruto – onde Ema consegue, sussurrando, criar um clima que muita banda de “death metal” só pode sonhar em atingir…

E é justamente nessa faixa – que do meio para o final, se transforma em um canto de elevação – e na seguinte (a belíssima “Breakfast”), que ela me lembrou de incluir nessa lista de “novas vozes que você precisa ouvir” uma certa veterana, cuja carreira teve seu pico a mais ou menos 20 anos, mas que nunca parou de se dedicar ao nada simples ofício de cantar: Sinéad O’Connor. Quem?

Vamos voltar a uma era mesozóica do pop (olhando da perspectiva de um adolescente hoje): o início dos anos 90, quando um certo videoclipe de uma cantora de rosto lindo e crânio quase careca, num close bem fechado, olhava para você e chorava sinceramente enquanto cantava uma música originalmente composta por Prince: “Nothing compares 2 U”. Mesmo que você tenha nascido depois dessa época, é provável que você tenha esbarrado com essa música, em algum momento da sua carreira de ouvinte (e o que somos nós, pobres fãs de música pop, se não orgulhosos carreiristas?… mas eu divago…). “Nothing compares” foi um daqueles raros fenômenos em que uma extraordinária canção é também um sucesso internacional – e tornou-se imediatamente um marco pop.

Sinéad ficou imediatamente conhecida no mundo inteiro – e confundindo notoriedade com poder ilimitado meteu-se numa confusão que prejudicaria para sempre sua trajetória artística. Resumindo bem, em 1992, ela rasgou uma foto do papa (então, João Paulo 2) durante uma apresentação ao vivo no altamente popular programa de humor da TV americana “Saturday Night Live”. Os motivos que a levaram a fazer isso (bem como os desdobramentos de tal ato) estão aí nas wikipédias da internet para você consultar. Mas o importante aqui é assinalar que esse “desvio de rota” tirou Sinéad do mapa – e a marcou não apenas como uma artista controversa, mas alguém a ser evitado. Ah, a loucura das massas…

Não quero discutir as atitudes nem o pensamento da cantora. Mas não posso deixar de dizer que, por conta disso tudo, Sinéad, há anos, é injustamente ignorada. Acompanhei sua carreira também de longe (e faço aqui um “mea culpa”), mas de vez em quando uma ou outra canção reacendia aquele entusiasmo neste fã que perdeu a conta de quantas vezes escutou “I do not want what I haven’t got” (seu disco de 1990). Mas recentemente seu mais novo trabalho foi lançado aqui no Brasil, pelo intrépido selo LAB 344 – sim, o mesmo que está trazendo para o público brasileiro Alabama Shakes, The Horrors, Howler, e tantos outros (“by the way, thanks guys!”). E eu me vi novamente apaixonado por Sinéad – não apenas por uma ou outra canção que ela apresentava, mas pelo álbum todo.

Com o brilhante título de “How about I be me (and you be you)?” (que pode ser traduzido apressadamente por “Que tal eu ser eu (e você ser você)?”, e que lembra a esperteza de “I do not what what I haven’t got” – algo como “Eu não quero o que eu não tenho”), Sinéad vem, finalmente, depois de mais de duas décadas, com um conjunto tão impressionante de músicas, que é como se eu a tivesse descoberto pela primeira vez. Aos 46 anos, ela não está menos, hum, doida! Se você der um Google no seu nome, vai descobrir que sua vida pessoal continua a ser motivo de muita turbulência – até mais do que quando ela era jovem. Uma breve recapitulação do seu último ano inclui um casamento com alguém que ela conheceu “online” (de quem ela se separou e com quem voltou a se unir duas vezes num curtíssimo espaço de tempo), e (mais) uma tentativa de suicídio.

Não sou muito de estabelecer relações de “causa e efeito” para entender o que se passa na cabeça de mentes criativas, mas eu diria que essa sequência bizarra de fatos talvez tenha ajudado Sinéad a reunir algumas das melhores faixas de toda sua carreira. Já posso imaginar a cara de desconfiança que você acabou de fazer… Por isso mesmo, quero insistir. Comece a ouvir “How about” por “Back where you belong” (que me lembrou, de longe, a arrepiante e inigualável “I am streched on you grave”, que conheci pelo impecável remix de Apple Brightness, num lado B do single de “The emperor new clothes”, onde um “sampler” de “How soon is now”, dos Smiths, coexiste pacificamente com um quase irritante violino irlandês, num resultado não menos que sublime). Depois passe direto para a enigmática “Queen of Denmark”, que por sua vez te leva a “Very far from home”, que por sua vez te leva a “I had a baby”, que por sua vez… Bom, para encurtar, digo apenas que você não vai esquecer a experiência de ouvir (ou “reouvir”) Sinéad O’Connor por um bom tempo.

E vamos torcer para Lana Del Rey ser capaz de fazer a gente se sentir assim lá por volta de 2032…

O refrão nosso de cada dia

“I am streched on your grave”, Sinéad O’Connor – sim, um “repeteco”: indiquei essa música lá em cima, e agora a recomendo novamente. Mas essa é uma versão diferente. Nela você vai ouvir tão somente a voz de Sinéad O’Connor. E vai entender tudo o que escrevi hoje sobre ela. Onde está o refrão? – você vai logo perguntar… Vamos deixar a resposta no ar…

Rindo sozinho

seg, 07/05/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Estive ausente, mas não exatamente quieto. Nessas breves folgas que tirei, fiz o de sempre: tentei expandir meus horizontes e permanecer curioso com relação às coisas que o mundo e as pessoas que vivem nele me oferecem. Por conta disso, juntei um punhado de temas e assuntos para, neste retorno, preparar alguns textos neste espaço para discutir com você. Entre eles:

 

- o inesperadamente interessante “Os vingadores”

- alternativas a Lana Del Rey (uma delas, já posso adiantar, é esta preciosidade aqui

- um autor que descobri com certo atraso, Edward St. Aubyn

- meu bizarro encontro com Daniel Craig (esse mesmo que você está pensando)

- o perturbador livro sobre a exposição “A invenção do selvagem”, sobre uma exposição no Museu do Quai Branly”

- um novo (e finalmente interessante) seriado na HBO, “Girls”

- as outras coisas que conversei com Rita Lee (além das que foram ao ar na entrevista que você talvez tenha visto ontem no “Fantástico”)

 

A lista é ambiciosa – e espero ter fôlego para desenvolvê-la nos próximos dias. Aliás, eu planejava até começar a falar disso tudo hoje, mas, como já aconteceu algumas vezes, algumas coisas aconteceram e fiquei tentado a escrever sobre um outro assunto que envolve cultura pop – ou melhor, sobre “O” assunto pop que dominou todas as conversas deste fim-de-semana. Meia palavra basta? Então, aqui vai ela: Carol…

Carolina Dieckmann em 'Laços de Família'

Carolina Dieckmann foi vítima de uma exposição pública, que dificilmente alguém pode desejar para si próprio. O vazamento de fotos íntimas de um arquivo seu pessoal sacudiu a internet nas últimas 48 horas, fez a festa dos engraçadinhos anônimos dos blogs, satisfez as fantasias sensuais das mentes mais reprimidas – e trouxe à atriz uma tentativa de humilhação inédita no cenário brasileiro.

O incidente em si, como fenômeno pop, está longe de ser novidade. Paris Hilton talvez tenha inaugurado a era moderna da intimidade exposta, mas depois dela não foram poucas as celebridades internacionais que viram seus corpos nus circulando pela internet – o caso mais recente, que talvez ainda esteja fresco nas nossas memórias cada vez mais curtas, é o da atriz Scarlett Johansson. Mas o público brasileiro – que já viu uma boa cota de estrelas (de várias grandezas, diga-se) nacionais expondo esta ou aquela parte de seus corpos – nunca tinha experimentado espiar com tantos detalhes (e tanta ausência de privacidade) uma figura com uma dimensão popular tão enorme quanto Carolina Dieckmann.

Desfilar aqui os pontos altos de sua carreira – desde aquela cena histórica nas telenovelas brasileiras ilustrada acima (tirada, claro, de “Laços de família”, o trabalho de 2000 de Manoel Carlos), quando raspou sua cabeça, até seu mais recente trabalho, como a Teodora, em “Fina estampa” – é desnecessário. O público já tem na própria memória esses momentos – e é inclusive a soma deles que fez de Carolina uma das mais admiradas atrizes da TV brasileira.

Em nome da transparência (antes que os “espertos de plantão” vejam este texto não como uma reflexão sobre um fenômeno pop, mas um gesto de “corporativismo” entre colegas de televisão), devo dizer que conheço Carolina pessoalmente. Temos várias amizades em comum, contatos estes que nos permitem encontrar de vez em quando em uma festa ou um evento. Não posso dizer que somos grandes amigos, mas assguro que o convívio social sempre foi cordial, quando não extremamente agradável e divertido. Porém, se escrevo sobre o incidente com a imagem de Carolina Dieckmann aqui hoje é menos para ajudar na defesa de uma pessoa próxima (pelo que acompanho nas reportagens, ela já está muito bem orientada neste sentido), e mais para lamentar não apenas o fato em si, mas a pobreza das intenções de quem o provocou. Que é justamente a única pessoa que está rindo sozinha – a quem faço referência no título do post de hoje.

O cara que, segundo a versão mais provável, teria espalhado as fotos de um arquivo pessoal do computador da atriz (não sem antes ter tentado chantageá-la pedindo dinheiro em troca das imagens roubadas), deve estar de fato rindo sozinho. (Em tempo: estou usando a expressão “o cara”, apenas para facilitar a narrativa, pois o vazamento pode ter também ter acontecido por obra de uma mulher). Com o suposto estrago que fez à imagem de Carolina (“suposto” porque, claro, é preciso muito mais que um escândalo desses para destruir uma carreira tão sólida), dois dias depois de ter feito sua “traquinagem” ele deve ser mesmo o único que está rindo de sua própria molecagem – e deve rir ainda até as consequências legais da sua  “brincadeira” começarem a aparecer. Deixa ele…

É fácil imaginar que no primeiro momento em que as fotos começaram a circular ele, “o cara”, não era o único a rir da situação. Uma reação conhecida como “schadenfreude” (a palavra é de origem alemã, pronuncia-se mais ou menos como “xadenfróide”, e significa mais ou menos a capacidade do ser humano de sentir felicidade na infelicidade do outro) certamente colaborou para vários momentos de descontração. A resposta imediata do cérebro é: “olha lá aconteceu com ela, uma famosa” – e o escárnio que a própria cultura de celebridades criou, que faz com que as pessoas automaticamente invejem e maldigam um patamar de notoriedade que, na timidez de um pensamento assim, elas nem ousam achar que vão chegar, entra em ação e faz com que qualquer possibilidade de comiseração transforme-se em desejo de vingança. Não diria que essa reação é normal, apenas perfeitamente previsível. E é ela que tenha provocado um efeito “hilariante” nas pessoas que, naquele primeiro momento riam com “o cara” que provocou tudo isso.

Mas aos poucos essas pessoas começaram a se colocar no lugar de Carolina Dieckmann. Elas começaram a se lembrar que elas também têm desejo e vaidade. Que eventualmente elas também já fizeram arquivos pessoais de imagens íntimas – e até, num momento de liberação espontânea, chegaram a mandar algumas dessas imagens para pessoas queridas (ou simplesmente para pessoas que queriam seduzir). Essas pessoas que estavam rindo talvez tenham se lembrando, não sem um certo constrangimento, que seus filhos e filhas, certos da ignorância dos pais, já trocam com uma freqüência admirável imagens de seus corpos nus como provas modernas de amor – numa prática conhecida como “sexting”. Alguns até tenham se lembrado de que seu filho ou sua filha já teve problemaS com isso no colégio.

Os risos foram aos poucos diminuindo, uma vez que as pessoas passaram a admitir que elas gostam de se olhar na câmera – e vários estágios de nudez. Nem todas essas pessoas podem se orgulhar do corpo que elas mesmas fotografam – pelo menos nem tanto quanto Carolina pode ficar contente com as formas invejáveis para seus 33 anos. Mesmo essas, infelizes com seus contornos e proporções, iam aos poucos reconhecendo que esses flashes de intimidade são legítimos – e que pertencem apenas ao universo mais próximo de quem está na frente da câmera. Outras pessoas finalmente se deram conta de que usar uma exposição não-voluntária de alguém, famoso ou não, como trampolim para denegri-la, em pleno século 21, é não apenas anacrônico, mas de uma pobreza infinita. E arriscada – afinal, essas pessoas começaram a perceber que elas mesmas são vulneráveis. E os risos foram escasseando.

Alguns poucos que ainda restavam com um sorriso no rosto tiveram a coragem de admitir que o suposto “choque” que elas sentiam ao ver as fotos de Carolina Dieckmann era apenas uma hipocrisia disfarçada – afinal, numa cultura que comemora cada capa de revista masculina como um ato de ousadia e coragem (sem esquecer que é também uma transação comercial), e torce para que mulheres lindas e de um universo cada vez menos acessível sejam as próximas a revelar o que há por baixo das roupas, escandalizar-se com a nudez de uma figura que é tão presente no imaginário brasileiro (a própria Carolina Dieckmann) não passa mesmo de uma má tentativa de (má) interpretação de um papel que em si já é ruim: o do “puritano moderno”.

Os últimos gracejos foram sumindo, até que ficou só “o cara” que fez tudo isso rindo sozinho. Porque, afinal de contas, ele “nunca” corre o risco de ter sua intimidade vazada. “O cara”, claro, não tem nenhuma fantasia erótica, nem nenhum fantasma sexual escondido embaixo do tapete. Ele mesmo vive num conjunto de regras austeras e rígidas, onde tudo acontece dentro de códigos sociais muito bem definidos. “O cara” nunca visitou um site pornográfico, e por isso mesmo se vê no direito de revelar ao mundo “o que deve acontecer quando uma mulher bonita, bem sucedida e resolvida” (um tipo de pessoa que, claro, está longe de ser aquele que o cerca) decide explorar – em caráter privado, diga-se – sua sensualidade (ou até mesmo seu exibicionismo, desde que ela escolha para quem quer se exibir). Ele não tem filha nem irmã nem namorada – e por isso ele nem pode imaginar que o que ele fez não seja algo que pode receber o título de “desprezível”. Ele é educado (não na “cortesia”, mas na “sabedoria das coisas”) e inteligente – e acha que fez apenas o que “qualquer um teria feito”.

“O cara” fica só imaginando como seria legal contar para todas as pessoas a “malandragem” que ele fez – não fosse pelo fato de que na primeira tentativa de fazer isso, a justiça apressaria vertiginosamente o processo que já está em curso para sua punição. E quando ele lembra disso, quase sem perceber, ele começa a parar de rir. Talvez um pouco tarde, porque a suposta grande piada que ele mesmo armou, infelizmente não tem volta. Para ele, claro.

Pois para sua “vítima” existe não apenas o retorno a uma vida bem vivida, como também existe continuidade – numa carreira brilhante, num convívio de familiares e pessoas queridas, e na reação da opinião pública que, a julgar pelos comentários em sites, fóruns e blogs, está virtualmente como um todo a seu favor. Para Carolina Dieckmann, a nudez que ela talvez realmente temesse – a de uma atriz que se despisse do seu último receio em se expor -, essa já foi vencida há anos, na sensacional cena de “Laços de família” citada acima (e que não por acaso ilustra o post de hoje). Carolina não só vai rir de outras coisas, como fazer seu público rir – e chorar, e se apaixonar, e prender a respiração, e se emocionar. Por muito tempo.

Enquanto “o cara”, finalmente percebendo que perdeu sua claque, e vendo que não tem muita opção, retoma o rindo – sozinho. Só que agora ele produz uma risada que de tão assustadora, é melhor mesmo que fique mesmo fechada em sua mente.

O refrão nosso de cada dia

“Cosmic dancer”, Morrissey – um clássico de T.Rex, que encontrei inesperadamente na voz de um dos meus maiores ídolos – “moz himself”. Dependendo da sua idade, você já deve ter perdido a conta de quantas vezes ouviu isso até cair chapado no meio da madrugada. Não importa. Resolvi colocá-la aqui hoje não só porque ela tem um daqueles refrões que estão misturados no meio da música (é no começo ou no final?), mas também para fazer uma indireta – se não enigmática – homenagem à Carolina Dieckmann. Para que palavras quando a música sugere muito mais?



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