Um contentamento descontente
Há quem diga que Wagner Moura desafinou na noite do seu primeiro show com Marcelo Bonfá e Dado Villa-lobos – uma homenagem, claro, ao Legião Urbana, que foi transmitida ao vivo, na última terça-feira, pela MTV. Eu estava lá – e tendo a concordar. Mas o importante ali, naquela noite, não era isso. Você ficou muito preocupado ou preocupada com esse fato? Pelo que assisti, posso garantir que o próprio Wagner Moura não estava nem aí para isso. E digo isso justamente por ter visto aquela figura ensandecida no palco por quase duas horas elaborando com cuidado muito mais do que a nada simples tarefa de substituir um dos maiores cantores (e poetas e intérpretes) do nosso pop – Renato Russo. Para Moura aquilo não era apenas um show. Era um ritual. E ele o cumpriu com todo o respeito, todo o envolvimento, e com todo o afeto que os fãs do Legião podiam esperar. Afeto este que, aliás, nunca se encerra.
Eu hoje tinha me programado para escrever sobre o vídeo que mostrei aqui no último post – um registro de uma exposição das mais interessantes que vi recentemente, sobre “a criação do selvagem”. Mas, como você que já está acostumado ou acostumada com as flutuações deste blog sabe bem, de vez em quando acontece alguma coisa que quebra a nossa programação. E essa “alguma coisa”, desta vez, foi o tributo ao Legião Urbana. Fui convidado de última hora – e, por conta de uma viagem (estava fora de São Paulo até o início da noite de terça), achei que não fosse dar tempo de assistir. De fato, cheguei um pouco atrasado – na segunda música, segundo minha amiga que me convidou e já estava lá. Mas não perdi muita coisa. Depois de uma noite de enorme contentamento (vou deixar o “descontente” para mais tarde), achei que deveria falar sobre isso hoje neste espaço – prometendo então retomar “a criação do selvagem” na segunda-feira.
Como eu dizia então, Wagner Moura estava muito além da (naquela noite) relativamente fútil preocupação em acertar as notas musicais. Tudo naquela celebração tinha um sentido muito maior do que a mera reprodução das músicas do Legião – imortalizadas na memória de mais de uma geração pela voz de Renato Russo. Moura e Dado e Bonfá (e um bom punhado de convidados especiais – mais sobre eles daqui a pouco) estavam lá para transcender um repertório que todos nós conhecemos de cor. O objetivo maior, ouso dizer, era encantar. E isso, eles conseguiram com louvor.
Eu tinha bons motivos para me emocionar num evento desses. O primeiro deles, claro, é a própria música do Legião – que, como sugeriu Moura a certa altura, referindo-se à experiência dele mesmo, fez incontáveis garotos e garotas pensarem diferente quando ouviram aquelas canções pela primeira vez e tinham apenas as paredes do seu quarto como promessa de horizonte. Raras são as bandas capazes de fazer a gente gritar silenciosamente “é isso!” quando prestamos atenção ao que elas estão cantando. Renato e o Legião tinham esse dom – e cada adolescente que viveu isso estava sendo celebrado ali, naquele encontro, junto com quem estava no palco e na platéia.
Além dessa razão, eu tenho um envolvimento profissional com a banda que, quando chegou ao ponto alto – uma “antológica” entrevista com o Renato, no tempo em que eu ainda trabalhava na MTV –, muitas vezes misturava a definição do que era admiração pessoal e compromisso jornalístico. Geralmente eu não permitia que uma coisa interferisse na outra – como contei no meu livro “De a-ha a U2”, uma entrevista antiga com Michael Stipe (R.E.M.) ensinou-me logo no início da minha carreira a não confundir pauta com tietagem… Mas se uma vez ou outra deixei transparecer demais minha admiração por Renato e sua banda durante um encontro “oficial”, não foi por falta de zelo, mas talvez pelo incrível poder que o Legião tem sobre seus admiradores.
Some a esses dois bons motivos o grande prazer que tive de encontrar velhos amigos – da MTV e do próprio cenário musical – assistindo a tudo com o mesmo índice de êxtase que eu registrava. E mais o prazer secreto de estar numa noite “livre”, no meio de uma rotina de compromissos que está quase me sufocando. Pronto! Essa tinha tudo para ser uma grande noite. E foi!
Da escolha do repertório – que incluiu até duas músicas do idiossincrático “A tempestade” – aos já mencionados convidados especiais, tudo foi cuidadosamente elaborado para agradar aos fãs, e às pessoas que estavam no palco também… Afinal, como explicar a presença de Andy Gill ali ao lado de Dado Villa-lobos senão um capricho do guitarrista? Trazer uma figura ao mesmo tempo tão importante e tão obscura da história do pop alternativo foi mais que uma ousadia: foi uma revelação. Justamente porque a surpresa maior parecia ser não a de quem assistia, mas a do próprio Gill, expressa quando ele disse, discretamente emocionado, que no tempo em que criava suas músicas (nos idos dos anos 70/80) “lá no norte do Reino Unido”, não podia imaginar que tinha um punhado de fãs ouvindo suas canções aqui do outro lado do mundo…
Para os que nasceram depois de 1980, vale explicar que Gill é o guitarrista do Gang of Four – uma espécie de divindade para quem foi criado aprendendo a gostar do melhor do cenário independente inglês justamente dos anos 80. Eu mesmo fiquei bastante impressionado com a presença dele ali – e quando, no meio de “Ainda é cedo” (que inda teve a participação especial de Bi Ribeiro, dos Paralamas), eles salpicaram os inconfundíveis acordes de “Love will tear us apart”, o clássico do Joy Division, eu não vou esconder que estive à beira do choro.
O que me segurou foi a percepção de que aquela não era exatamente uma noite para lágrimas. Não. A emoção negociada ali era de outra estirpe. Não tinha nenhuma pieguice – tinha uma vibração diferente, difícil até de colocar em palavras, mas que encontrou a sua melhor tradução no gestual de Wagner Moura. Descontando-se algumas escorregadas – algumas delas, do pouco que entendo de transmissão de shows ao vivo em TV, culpa do próprio esquema dessa operação (que prioriza o áudio do show para quem está assistindo em casa, e não quem está lá ao vivo) –, se fosse para dar um veredicto baseado apenas nessa performance (nunca tive a oportunidade de ver seu projeto musical, curiosamente batizado de Sua Mãe), eu diria que Moura canta bem. Mas dança ainda melhor.
O momento mais significativo, nesse sentido, foi quando eles tocaram “Quase sem querer” – na minha opinião, a canção mais próxima dos Smiths, que o Legião jamais fez (uma proximidade que era, arrisco, o sonho secreto de Renato – mas eu divago…). No sensacional final da música, quando guitarra e bateria tentam juntar os cacos do coração de quem estava ouvindo (coração esse que foi triturado por versos como “Já não sou mais tão criança a ponto de saber tudo”, ou “Sei que às vezes usos palavras repetidas, mas qual são as palavras que nunca são ditas”?), Moura fez exatamente o que eu e milhares de fãs já fizeram sozinhos no quarto: deixou de comandar seus movimentos e foi intuitivamente traduzindo o transe que a música incita em desenhos com seus braços e pernas – numa curiosa e convidativa mistura de Jim Morrison, Ian Curtis, Ney Matogrosso, Morrissey e Mick Jagger. Além do próprio Renato, claro…
E foi aí justamente que eu percebi que Moura não estava muito ligando para o que as pessoas poderiam achar dele naquela noite. A festa ali era dele – e ele estava tendo a generosidade de oferecer para quem quisesse compartilhar. Minha queridíssima (e saudosa) avó Wanda, com quem passei incontáveis (e adoráveis) tardes de domingo na infância e na adolescência assistindo ao “Programa Silvio Santos” – ela, uma fã incondicional do “Silvio”, como ela o chamava com intimidade – tinha uma frase ótima que ela usava para explicar o sucesso do apresentador: “O programa dele é bom porque o Silvio faz a festa e ele que dança!”. E foi dela, dessa “sabedoria” da minha avó, que eu me lembrei ao ver Wagner Moura ali, feliz, feliz, dançando e fazendo, ainda que por tabela, a felicidade de quem quisesse vir.
O saldo não poderia ser outro – uma noite feliz. Ou, como já escrevi, de contentamento. Um “contentamento descontente”, é verdade – para citar Camões, por sua vez citado por Renato Russo, na belíssima “Monte Castelo”. E o “descontente” fica por conta da irreparável ausência do próprio Renato – de seu insubstituível vozeirão, de seu relutante carisma, de tímida e grandiosa dança, de seu imprevisível humor, de sua necessidade de amor jamais preenchida. Ele deveria estar lá – era o pensamento que cruzava mais de uma mente naquela noite (e com certeza na noite seguinte, quando eles repetiram o concerto). Mas não estava. E essa falta era sim a única nota descontente numa celebração que, de tão feliz, faltou pouco para chegar à perfeição. E por falar nela…
“Venha! Meu coração está com pressa”…
O refrão nosso de cada dia
“Independece”, Gang of Four – se você ainda está confuso com a presença de Andy Gill no tributo ao Legião Urbana, aqui vai um pouco de “História” (do pop). Foi com o álbum que inclui a sensacional “Independence” que eu conheci o Gang of Four. Qualquer fã da banda vai concordar que este não é o melhor trabalho dela – eu mesmo fui atrás dos álbuns anteriores (sobretudo o irreparável “Entertainment!”) e acabei gostando mais ainda deles. Mas “Independence” é o que eu chamaria de uma boa introdução para quem não conhece o Gang of Four. A partir daí, siga ouvindo outras coisas – e você vai ver que muita coisa que você já escutou nesses anos todos (do próprio Legião ao The White Stripes) começa a soar estranhamente familiar…