Não sou muito chegado a coincidências – especialmente àquelas que as pessoas costumam chamar de “esotéricas”. Mas vou abrir espaço aqui para contar uma história que eu prefiro chamar de curiosa – um ótimo exemplo do que o The Police um dia ensinou o mundo todo a chamar de “sincronicidade”.
Na última terça-feira, estava com minha colega de apresentação no “Fantástico”, Renata Ceribelli, fazendo uma noite de autógrafos do livro do “Medida Certa” (nosso projeto de reprogramação do corpo, que foi ao ar no ano passado). Curitiba, com sempre, nos recebeu de uma maneira entusiasmada e afabilíssima. Era tanta gente para dedicar os livros, que passamos quase três horas ali na função – e com prazer. Um dos nomes, porém, me chamou a atenção. (A história que vem a seguir fica mais curiosa se contada oralmente – e vou até ter que fazer uma “adaptação” para relatá-la por escrito; mas no final, tenho certeza, você vai me perdoar).
“Como é seu nome?”, perguntei eu na típica rotina de boas-vindas a quem chega à mesa de autógrafos geralmente com um jeito tímido (acredite: depois de seis livros lançados, a gente fica craque em identificar essas posturas). “Keyla”, respondeu-me a menina diante de mim. Como de praxe, faço questão de pedir detalhes da grafia para não errar na assinatura – afinal, eu ainda acho que livro é alguma coisa que a pessoa vai guardar, e é importante que tudo esteja então correto. “Com ‘k’ e ‘y’?”, perguntei então. Ao que ela me respondeu: “Que nada, é normal mesmo, com ‘q’ e ‘u’, assim mesmo!”, foi a resposta de… Queila!
Mas claro! O nome dela só podia ser escrito assim: Queila! De um jeito “normal”! Eu é que estava errado, achando que um nome que não é “naturalmente” português tinha que ser escrito com letras que por muito tempo nem faziam parte do nosso abecedário oficial… Imediatamente, no meio do movimento dos autógrafos, lembrei-me de que aquilo faria o maior sentido para um “cara” que foi fundamental para me introduzir no mundo das palavras. Um “cara” que, depois de tanto tempo escrevendo em tudo quanto é formato, resolveu entrar também na internet – criando seu próprio “saite”. Um “cara” que criou a definição perfeita de um “chato” (“indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele”). Um “cara”, aliás, que teve, também como Queila, seu nome eternamente alterado por um descuido (ou seria “excesso de zelo”) de um cartório: o Milton que virou Millôr, por conta de uma bizarra leitura da caligrafia do tabelião, que fez o corte do “t” longe da letra, transformou-a num “l”, fez o “tracinho” virar um acento circunflexo, e conseguiu que um “n” preguiçoso parecesse um “r”.
Foi um flash rápido – uma associação imediata de ideias (Queila/Millôr). A fila andava – como sempre anda – e eu logo estava assinando outros livros, para outros nomes. A tal história seria apenas um registro ordinário, não fosse pelo fato de que, no dia seguinte, logo que acordei, eu recebi uma mensagem de texto de uma grande amiga, informando-me que Millôr tinha morrido. Na própria noite de terça-feira. Insisto: não acho que as coincidências têm um significado especial. Mas eu fiquei meio perturbado. Daí para as lembranças, foi um simples empurrãozinho…
Fui apresentado a Millôr de uma maneira pouco ortodoxa – se não precoce. Quando era criança, bem criança mesmo (estou falando da época em que tinha uns dez anos de idade), vi-me obcecado por uns desenhos esquisitos que povoavam páginas de duas revistas que meu tio costumava colecionar. Acho que nunca mencionei isso aqui – talvez por genuína modéstia – mas sou sobrinho de um grande poeta. Seu nome é Cacaso – irmão de minha mãe. Cacaso, que morreu cedo demais (aos 43 anos), foi uma das minhas grandes referências de cultura, mesmo muito antes de eu saber elaborar o que era isso. Nos anos 70, quando eu já morava em São Paulo, minhas férias escolares eram divididas entre Uberaba (minha cidade natal), e Rio de Janeiro, onde também vivi, nos anos 60, num apartamento que então, era ocupado por Cacaso. Professor da PUC carioca, sua casa era – pelo menos na minha memória – recheada de livros e revistas. Lembro-me sobretudo de um corredor onde mal se via as paredes, todas cobertas por estantes e mais estantes repletas. E de duas pilhas de publicações que eram leitura obrigatória de qualquer círculo acadêmico – na verdade, qualquer círculo pensante – da época. Uma era com o extinto “O Pasquim”, e a outra com essa que é até hoje uma das maiores referências do jornalismo impresso: a “Veja”. O que as duas tinham em comum? Um homem de nome estranho – ainda mais para uma criança que estava descobrindo a leitura: Millôr.
Entre gatos de rabos improváveis e passarinhos com dentes protuberando dos bicos, eu comecei a dar atenção aos textos que dividiam aquelas páginas. Em especial, sempre que estava no apartamento do meu tio, eu começava a “colecionar” algumas “Fábulas fabulosas” de Millôr – estranhas reinterpretações do clássico formato criado para encantar (e eventualmente educar) as crianças.
Não demorou muito até eu descobrir que muitas delas estavam reunidas num volume editado então pela Nórdica – e o livro virou minha “bíblia” de cabeceira. Se as fábulas eram acessíveis, porém, boa parte dos outros escritos (sobretudo aquele de conteúdo político) de Millôr eram quase incompreensíveis para mim na época. Mas eu gostava do que ele fazia com as palavras – do respeito com que Millôr usava cada uma delas, com a sua capacidade de brincar com seus significados, e com sua liberdade de reescrevê-las com propriedade e humor. O livro seguinte que comprei dele era uma espécie de biografia: uma coletânea de seus melhores (e mais divertidos) textos, chamado “Trinta anos de mim mesmo” (Nórdica) – que, aliás, emprestei para um amigo do colégio (Tomé) e lamentavelmente nunca mais vi… (Hoje tenho a reedição “enxuta”, publicada pela Desiderata, mas morro de saudades do volume original, com seus desenhos, diagramação e formato inusitados). Depois, comprei todos os outros. Millôr virou a obsessão mais adorável que eu jamais tive.
Foi nesse espírito que, nos idos do meu colegial – algo que hoje parece que se chama de ensino médio (sei, estou velho….) – num evento que era um espécie de olimpíada estudantil, com modalidades não só esportivas como artísticas também, eu ganhei, junto com minha amiga Malu, uma medalha de ouro em “declamação”. Os versos escolhidos? “Poesia matemática”, de Millôr Fernandes! Até hoje me lembro de como distribuímos o texto: “Às folhas tantas do livro matemático, um Quociente apaixonou-se um dia (Malu), doidamente (Zeca), por uma Incógnita (Malu)”… “Enfim, resolveram se casar (M), constituir um lar (Z), mais que um lar (M), um perpendicular (Z)”… O texto, que é de meados dos anos 50, parecia-me então extremamente moderno – e assim me parece até hoje. Meu breve interesse por poesia (um exercício criativo com o qual flertei brevemente), veio também dele. Por anos, seu “Papáverum Millôr” descansou na minha cabeceira – ao lado dos outros volumes que eu já tinha como clássicos.
E em todos esses anos, independente de qual revista, jornal – ou “saite” (por que eu acho que tenho que escrever esta palavra com aspas?) -, eu acho que consegui acompanhar quase tudo que Millôr escrevia. Eu era certamente seu maior fã à distância. Até que um dia, o acaso intercedeu para que eu pudesse finalmente conhecê-lo pessoalmente. Uma amiga – e queridíssima colega de trabalho – por anos teve uma convivência muito próxima a Millôr, algo que a gente pode classificar como “familiar”. O entusiasmo com que eu sempre falei de Millôr para ela, finalmente bateu no objeto de admiração. Não sei dos detalhes da abordagem, mas ela certamente deve ter contado para ele que um certo colega que trabalhava na TV era seu devoto incondicional. Na época (2004/05), eu tinha acabado de dar minha primeira volta ao mundo para o “Fantástico” e, por conta disso, creio, ganhei de Millôr um presente inestimável: uma reedição de uma revista que ele criou – e tocou brevemente -, chamada “Pif Paf”. Era uma obra comemorativa, dos quarenta anos da publicação – e na sua capa Millôr fez um desenho meu, andando em cima de um mundo em forma de bússola (junto, claro, de uma carinhosíssima dedicatória, mais a deliciosa assinatura: “Do Millôr, o último ponto confiável do zodíaco”!). Quem adivinhar quantas noites eu fiquei sem dormir olhando para aquela página (que hoje está devidamente emoldurada e pendurada no meu quarto) ganha um “hai-kai” – uma forma de poesia oriental que Millôr se esforçou por tornar popular entre os leitores brasileiros. (Exemplo: “Olho alarmado/ E se a vida for/ Do outro lado?” – para citar apenas um que tem a ver com a saudade…).
Eu poderia me considerar realizado com esse presente, mas minha amiga foi ainda mais generosa. Esperando uma brecha na saúde de Millôr – ela, que já estava mandando sinais de preocupação -, conseguimos marcar uma visita a seu “ateliê” em Ipanema, e depois um almoço. Para tentar retribuir a alegria de simplesmente conhecê-lo pessoalmente, levei dois livros de presente – não sem um certo receio de que ele, tradutor “master”, já os tivesse: “The meaning of Tingo”, e “The wonder of Whiffling”, ambos de Adam Jacot de Boinod, sobre palavras curiosas (respectivamente) das línguas do mundo, e da língua inglesa. Ou ele foi muito educado, ou eu realmente o surpreendi com o presente. O encontro – bem como o almoço – foi extremamente agradável e, para minha surpresa (uma vez que eu estava tão nervoso), fluido.
Desde então, pelo noticiário (e também por essa amiga em comum), acompanhava com tristeza suas complicações com a saúde. Até que semana passada recebi a tal mensagem de texto – enviada justamente por essa pessoa querida que era nosso elo. Assim como quando ele era vivo, corri atrás de tudo quanto era obituário, qualquer tipo de compilação ou homenagem que estivessem fazendo, como que para reavivar minha memória e minha paixão pelo “cara” que, como escrevi na dedicatória dos livros que lhe dei em mãos, “fez com que eu me apaixonasse pelas palavras”. Diante de um material tão farto, comecei a perceber que a maioria desses textos eram menos obituários em sua forma clássica, do que coletâneas das melhores frases e textos de Millôr. Nada mais justo, conclui: diante da tarefa quase impossível de superar a escrita do ídolo que acabara de morrer, jornalistas e escritores preferiram citar o próprio homenageado.
Seria facílimo para mim fazer aqui o mesmo. A fonte – de sabedoria, de inteligência, de humor, de ironia, de brilho – é praticamente infinita. Mas, como você viu, acabei optando por falar mais da minha relação com Millôr do que do próprio. Talvez apavorado pelo tamanho do gigante, preferi contar o que vi a sua sombra… Fora algumas breves definições lá em cima, trechos curtos de sua poesia – e o hai-kai (você pode encontrar outros no seu “saite”, que continua no ar) -, resisti ao máximo citá-lo, como se usar suas palavras fosse, pelo menos por agora, enquanto vivemos seu luto, uma apropriação vulgar. No entanto, sem saber bem como terminar essa “homenagem por tabela”, vejo-me obrigado a recorrer ao próprio Millôr para encontrar um ponto final – que, por sua vez, é quase uma reticência. Assim, reproduzo abaixo uma das palavras que ele me ensinou a reescrever:
Desp e d i d a
O refrão nosso de cada dia
“Up! Up! Up!”, Prinzhorn Dance School – saudades do White Stripes? Pois então eu gostaria de apresentar aqui uma banda que lembra bastante o duo do “irmão” White – quando não acrescentam um grau a mais de loucura no rock simples que els reinventaram. Confesso que tive dificuldade de escolher qual a música que queria que você conhecesse primeiro dessa dupla (todas são geniais). Mas já que esse espaço é dedicado a bons refrões, “Up! Up! Up!” é imbatível. Aproveite e descubra mais Prinzhorn Dance School: o segundo álbum deles, “Clay class”, acaba de sair!