O artista
Rodrigo Santoro é Heleno de Freitas. Algumas pessoas vão dizer para você que ele está apenas interpretando Heleno de Freitas – um dos primeiros ídolos controversos do futebol brasileiro. Mas não se deixe enganar. O que acontece ali no filme “Heleno” (em cartaz no circuito nacional até o fim do mês) não é uma simples interpretação, mas um raro caso de reencarnação. Não sou lá uma grande autoridade para falar de futebol – acompanho lá os campeonatos por força do meu trabalho (e competência do meu colega de apresentação que reinventou a maneira de atualizar o Brasil das aventuras do gramado, Tadeu Schmidt), mas estou longe de ser um experto do que rola nos campos hoje em dia, muito menos há mais de 60 anos (justamente o período em que Heleno brilhou). Mas o filme me fez ficar fascinado por esse personagem que, driblando o velho clichê, eu diria que se não tivesse jogado, teria que ser inventado.
Ou talvez tenha sido o próprio Rodrigo que tenha emprestado sua força ao personagem – uma vez que, repito, sua atuação é fundamental para o sucesso do filme. Fato é que saí da sessão especial de cinema a que assisti (para poder entrevistá-lo, eu fui conferir uma pré-estreia) convencido de que existem filmes capazes de transcender nossos interesses mais específicos. Digo isso porque às vezes uma interpretação magistral não é suficiente para nos fazer gostar de uma produção. Sem querer divagar muito (vou tentar!), o melhor exemplo recente que eu posso dar nesse sentido é “A dama de ferro”, que mês passado deu a Meryl Streep mais um Oscar para sua estante, mas, apesar de ter me deixado boquiaberto, justamente no quesito interpretação, não “falou” comigo. Eu até tive, ao longo dos anos 80, um interesse marginal pela política britânica, uma vez que eventualmente ela resvalava na musica pop da época – de Bronski Beat a The Smiths. Mas esse é um assunto que não me encanta – e mesmo a performance magistral de Streep não foi suficiente para me tornar um fã do filme.
O truque de “Heleno” – baseado na cuidadosa e divertida biografia “Nunca houve um homem como Heleno”, escrita por Marcos Eduardo Neves (Zahar) – é sutilmente deixar o futebol em segundo plano. Não que o esporte não esteja presente na tela do cinema. Mas o que o diretor José Henrique Fonseca conseguiu com seu filme foi contar menos uma história sobre grandes lances, do que uma outra bem mais interessante: sobre a paixão de um homem pelo futebol, dentro de uma mente atormentada. E, digamos que, para chegar nisso, a ajuda de Rodrigo Santoro foi indispensável. Em mais de um momento Heleno brada seu amor pelo jogo – e, mais especificamente, pelo seu Botafogo. Segundo ele me contou na entrevista, Santoro treinou exaustivamente para aperfeiçoar uma marca de Heleno: a bola matada no peito, que descia para o chute forte. E esse esforço todo certamente está lá nas imagens. Bem como as cenas de vestiário, os bastidores dos treinos, a frieza dos discursos dos cartolas, e os climas ruins dos treinos – aliás é em um deles que Rodrigo oferece a atuação mais engraçada de todo “Heleno”, ao esculhambar colegas que tinham a expectativa de ouvir, pelo menos daquela vez, um jogador-estrela menos ácido. Mas esse não é o coração do filme – que só tem a ganhar com isso.
“Heleno” permite que Santoro explore uma bipolaridade num personagem que viveu numa época onde essa palavra ainda nem existia no dicionário corrente. No papel de alguém que tem problemas mentais – ou melhor, que desenvolve problemas mentais porque foi colocado injustamente num sanatório – nós já sabíamos que ele se sairia bem. Falo, claro, de “Bicho de sete cabeças”, filme de 2001, dirigido por Laís Bodanzky, no qual o ator vivia essa história adaptada de uma vida absurdamente real. De certa maneira, o triunfo de “Bicho” quase que nos prepara para a primeira imagem de Heleno na sua biografia filmada: um rosto precocemente envelhecido, uma expressão à deriva, uma pele corroída, e um olhar silenciosamente desesperado. Impressionante como é, esse retrato, pela própria referência que temos de Rodrigo no cinema, é quase familiar. Mas quando vamos aos poucos vendo o mesmo ator nos revelando de onde veio aquilo tudo, o Heleno trágico ganha uma força ainda maior – e quando, mais adiante, a história retoma sua decadência física e mental (o diretor propõe vários jogos entre passado e presente), Rodrigo transcende na caracterização da doença.
Mesmo assim, não são esses momentos que mais impressionam quem procura uma atuação sofisticada. Nos suas passagens mais sóbrias é que Heleno faz com que Santoro nos surpreenda. Uma vez que sabemos que ele está sempre à beira de um ataque de nervos – o ídolo era conhecido por ser temperamental (quando não perigosamente histriônico) –, é na sua relativa lucidez que, nossa atenção fica aguçada para tentarmos perceber quando o furacão vai se instalar. Por exemplo, nas cenas de momentos alegres com sua mulher – Aline Moraes na medida certa (sem trocadilhos, por favor), e tão bem caracterizada que ela parece ter nascido para viver no Rio dos anos 40 – o perigo está sempre lá. Mesmo apaixonado, Heleno pode estourar a qualquer hora. E respiração de quem assiste a tudo obedece esse suspense, sem você perceber. O clima é o mesmo com seus colegas jogadores: minha cena favorita é a que Heleno recebe a notícia de que seu passe foi vendido para o argentino Boca Juniors (em parte por seu comportamento lamentável em equipe, o Botafogo decide negociá-lo) e ao sair pelo vestiário ele puxa uma briga demoníaca com um colega.
À brigada do “spoiler”, eu devo anunciar que estou falando aqui de uma biografia. Não estou “entregando” nenhum segredo ao contar aqui as desventuras de Heleno. Se hoje novas gerações de torcedores têm apenas uma vaga ideia de quem foi esse ídolo, qualquer fã de futebol com mais de 70 anos – e não são poucos – vai poder te contar suas próprias lembranças desse que era uma espécie de protótipo dos “jogadores problema” que hoje são a delícia da mídia sensacionalista. Não preciso citar nomes aqui – nem mesmo de jogadores recém desempregados – para você imaginar exemplos de atletas para quem Heleno era mais que uma referencia futebolística.
Mulherengo? Pode apostar que Heleno era (o livro dá ainda mais conta de suas conquistas do que o filme). Drogas? O lança-perfume e, depois, o éter cumpriram direitinho o papel de acabar com sua saúde (já bastante debilitada por uma sífilis nunca tratada propriamente). Luxo? Heleno vivia rodeado dele – dos carros aos ternos com o pedigree da alfaitaria inglesa. Escândalos? O craque era a delícia dos “mancheteiros” dos jornais populares. Qualquer semelhança com o que a gente lê hoje em dia sobre futebol fora do campo não é mera coincidência… Com tantos ingredientes preciosos assim, a história de Heleno estava quicando para ser contada para um público maior e mais contemporâneo. E Rodrigo Santoro, não me canso de insistir, só poderia mesmo ser a melhor escolha para dar vida a tudo isso.
Esse Rodrigo mesmo, que certo dia anunciou que iria repensar sua carreira e se dedicar ao cinema. Não apenas a nossa produção nacional, mas a um vôo mais alto – Hollywood mesmo. Lembra-se como você riu nervoso da coragem de uma ousadia dessas? E como você foi irônico quando percebeu que, apesar de ele ter finalmente feito um filme americano ultra popular (“As panteras”), nem diálogos ele tinha na edição final? Tem alguma recordação de ser sido sarcástico quando seu papel em “300”, na opinião de alguns, beirava a caricatura? E você tem um registro de quando finalmente deixou de prestar atenção na sua carreira internacional, considerando tudo “uma grande loucura”?
Pois Rodrigo Santoro não parou: seguiu em frente acreditando no que faz. E sobe cada vez mais. “Heleno” não é Hollywood –mas bem que poderia ser. Mais de uma vez conheci atores que desdenham seus trabalhos em TV, como se fossem meros veículos (lucrativos) para uma “verdadeira vocação”: a interpretação no teatro e no cinema. Bem, felizmente convivo também com uma outra turma: atores (e atrizes, claro), que são tão bons no que fazem que levam seu talento para qualquer suporte – e transformam todo o prazer que têm em interpretar em arte. E de quebra em diversão para nós, famintos (tel)espectadores.
Santoro, não tenho dúvida alguma, está neste segundo grupo. E se você ainda não está convencido disso, vá ver “Heleno”. E prepare-se para sair certo de que, ele sim, é “o artista”.
24 abril, 2012 as 1:18 pm
Zequinha Camargo, esse vídeo “Birth of a Book” é lindo! Valeu pela dica.
19 março, 2012 as 1:40 pm
Dá uma olhada nesse aqui também…………….
https://youtu.be/FjTd8Hzim9I
19 março, 2012 as 1:37 pm
OPSSSSSSSSSS………..
A DICA CERTA É ESSE VÍDEO AQUIIIIIIII!!!!
Rachel Yamagata
https://youtu.be/uijfsbUnOTM
Abração.
18 março, 2012 as 10:26 pm
Zeca,
Estou assistindo o fantástico e queria lhe dizer que acho que vocês estão encontrando a fórmula.
Continuam nesse caminho!
Abs
Fábio
PS Vou assistir Heleno!
18 março, 2012 as 8:00 pm
Zeca,
Com certeza irei assistir. Futebol não me interessa, mas se tem a ver com o comportamento humano é comigo.
Assisti “Bicho de sete cabeças” e talvez o ponto em comum nos dois filmes seja o ódio: um sentimento que cega o ser humano. Mas quando assistir “Heleno” eu digo o que achei.
Beijos,
18 março, 2012 as 2:29 pm
Zeca, acompanho seu blog desde de 2009 e nunca comentei (mas vontade não me faltou). Agora chegou a hora. É por esse e outros tantos post desse gênero que tenho vontade de largar tudo e seguir um sonho que sempre me acompanhou ao longo dos meus auréos 25 anos , me dicar a arte através da intrepretação (Ator). E diante de um exemplo de atuação e brilhantismos que o Nosso Rodrigo Santoro nos transmite e que tenho mais vontade de chutar o pau da barraca e em cara de uma vez essa vontade. Valeu, por nos agraciar com textos maravilhosos. Abraço!
17 março, 2012 as 12:49 pm
Oi Zeca!!
Abração!
17 março, 2012 as 9:40 am
Esta semana a rede Globo trouxe a baila um filme muito emblemático em que se aborda o problema do autismo, isto é algo que valorizo na mesma Globo, já que busca sempre polarizar questões imprescindíveis…
Por ser uma mídia superlativa ela sempre é muito questionada já que seu espelho é bem maior, mas também por ser uma organização gerida por seres humanos obviamente está fadada a cometer erros e acertos.
A questão do temperamento é extremamente relevante, no caso do filme Heleno, não posso dar uma opinião já que estou acondicionado a sua capacidade de discernimento que por sinal é bastante profícua…
Quantos mitos se autodestruíram, seja na musica no cinema ou futebol?!
Porém mesmo sendo uma opinião subjetiva de sua parte quando abordaste sobre Rodrigo Santoro…
Em um outro comentário falei sobre valores nacionais aludidos ao fantástico.
Rodrigo Santoro é um valor nacional, ou é simplesmente fantástico?
Ele é uma das estatuetas abstratas que me faz esquecer Hollywood…
Na verdade você viu 300 Zeca!
Eu vi 300 em um.
16 março, 2012 as 11:28 pm
Comprei o livro hoje, depois do seu comentário irei correndo ver o filme, admiro muito o Rodrigo Santoro.
16 março, 2012 as 3:20 pm
MIRALLES NO VASCO E BERNARDO NO GRÊMIO !
15 março, 2012 as 7:51 pm
mas santoro é muito bom né Zeca ,o que esperar mais vc não acha ,abçs
15 março, 2012 as 7:34 pm
Rodrigo voltou a atuar no Brasil? Acho que já faz um tempo que isso não ocorre…
Zeca, fiquei de te fazer esta pergunta no último post mas me esqueci. Sobre as entrevistas que você queria fazer, os entrevistados, tem algum brasileiro que você ainda não entrevistou e que tem muita vontade de fazê-lo? Talvez até não o fez por motivo de força maior, como Renato Russo e Cazuza. Tem alguém no Brasil que você desejaria entrevistar?
A Sábia Ignorância:
https://asabiaignorancia.blogspot.com/
Resposta do Zeca – fala Emerson! De Rita Lee ao próprio Renato Russo – passando sim por Cazuza (e Marisa Monte e Caetano e mais um monte de gente ótima) -, já entrevistei um bocado de gente no cenário nacional. Está lá, no meu livro “De a-ha a U2″, pode conferir! Se bem que acho que um dia ainda gostaria de fazer uma bela entrevista, bem completa, com Lulu Santos! Um abraço!
15 março, 2012 as 7:28 pm
Tão bom Zeca, ver o sucesso sendo sedimentado pelo talento!
Parabéns ao Rodrigo Santoro!
Mesmo estando em 3(?) filmes em cartaz, é impossível confundir os personagens!
Beijos.
15 março, 2012 as 5:48 pm
Hummmm….Com certeza.
Não vi o filme ainda não, mas estou imaginando. Realmente ele é lindo!
Estou gostando da atuação do Du Moscovis também….Afinal sou “louca” por vocês…Hehe.
Fica na PAZ!!!
Beijos e abraços.
15 março, 2012 as 4:04 pm
Fala Zeca
Gosto muito de ler e assistir a biografias, é um gênero que me interessa bastante mas que também me irrita profundamente quando pego aquelas onde o biografado é quase um super-herói ou o bastião da moralidade, será que alguém me entende? Já estava curiosa mas você conseguiu me deixar morrendo de vontade correr para o cinema. Quanto ao Rodrigo Santoro, ele faz parte de uma geração muito promissora no cinema (aqui ou de Hollywood) como o Selton Melo e Wagner Moura.
Um abraço
15 março, 2012 as 3:17 pm
Olá, Zeca!
2011 ficou marcado como o ano em que eu perdi o receio (posso até dizer implicância ou desconforto) com o cinema nacional. Não estou dizendo que mudou da água para o vinho, mas alguns filmes tem chamado bastante a minha atenção. Bom, um filme sobre jogador de futebol não chamaria a minha atenção, “mente atormentada” sim.
Gosto de ver o Rodrigo Santoro atuando até em propaganda, mas a maneira como você escreveu o post tá contribuindo bastante para que eu assista ao filme! Um abração!
15 março, 2012 as 3:09 pm
Zeca, o que me faz lembrar muito bem que Rodrigo faz parte do segundo grupo é o filme “Não por Acaso”. Não sei se você já viu, mas vez ou outra revejo esse filme despreocupado de que já sei o final.
Abraço!
15 março, 2012 as 1:57 pm
Já li alguns comentários sobre este filme e atuação do Rodrigo.
Confesso que ao ler este texto fiquei muito mais curiosa e com vontade de conhecer a história e apreciar o belo trabalho do nosso talentoso Rodrigo Santoro.
15 março, 2012 as 1:55 pm
Zeca, mais uma vez o seu texto me surpreendeu. Assim como fez com Adele (quando falou sovbre ela eu corri pra ouvir o cd), o que eu eu quero agora é ver o filme…
15 março, 2012 as 1:51 pm
Bom texto Zeca. Fiquei com mais vontade ainda de ver o filme.