Nem toda unanimidade é burra
Pense comigo: se todos concordassem com a frase “clássica” – enunciada por ninguém menos que um dos nossos maiores escritores, Nelson Rodrigues -, ela própria resumiria um pensamento burro. Concorda? Sei que esse jogo logístico pode parecer um pouco pesado para começar o post de hoje – e prometo não me alongar na dissecação dele. Uso a citação apenas como uma defesa. Sim, porque eu mesmo estou aqui hoje para elogiar um trabalho que assim que estreou já se tornou uma unanimidade: o de João Emanuel Carneiro, em “Avenida Brasil”- a nova novela das 21h. Ou eu deveria dizer “o novo filme das 21h”?
A dúvida tem fundamento: quando assisti ao primeiro capítulo na última segunda-feira, por mais de uma vez eu tive a sensação de que o que eu estava vendo estava mais para a linguagem do filme do que a da novela. Não em detrimento do próprio formato da teledramaturgia brasileira – cuidadosamente construído ao longo de décadas -, mas mais como uma genial elevação de patamar sugerida pelo autor, como se mais uma vez ele quisesse reinventar o gênero. Coisa que, claro, já está conseguindo.
(Aos cínicos de plantão, é com certa relutância e certo constrangimento que eu devo deixá-los à vontade para achar que existe uma arma na minha cabeça me obrigando a escrever algo bom sobre a nova atração maior da emissora onde eu trabalho. Os elogios que vou fazer a seguir – frutos do enorme prazer que o acompanhamento dos três primeiros capítulos de “Avenida Brasil” me deu – não são mais do que as considerações de um grande fã de novelas, uma paixão que já deixei claro em vários momentos aqui mesmo neste blog. Blog este, que vive de cultura pop – especialmente cultura pop que agrada este que vos escreve. E “Avenida Brasil”, adivinhe, cai exatamente nesta categoria. Agora, se vocês acham que isso faz parte de um complô para, hum, alavancar a audiência – diga-se, de um produto que prescinde disso (sem falar que o “poder de tiro” deste modesto espaço é ínfimo se comparado a outras ferramentas que a própria TV poderia usar para isso) -, vá em frente. Elabore sua “teoria conspiratória” num comentário aqui mesmo, ou então saia twittando sua “descoberta”. Aos que já me conhecem de longa data e sabem do meu compromisso com o que é escrito aqui, vamos em frente. Vai ser um prazer).
Eu falava então sobre a proeza de João Emanuel em associar a linguagem de cinema à de novela, sem prejuízo de nenhuma das partes. Mais de uma pessoa com quem conversei na terça-feira – e algumas que viram o capítulo comigo na segunda – admitiram que várias vezes se esqueciam de que aquilo era uma novela. A captação – que já foi recurso de algumas outras produções (notoriamente aquelas reservadas para o horário das 18h) – certamente colaborava para esse diferencial. Mas havia ainda a iluminação – certamente mais elaborada. E os enquadramentos. E a profundidade dos personagens. Eu poderia me estender aqui por cada um desses aspectos da novela, mas, para não ir muito longe, vou ficar apenas naquele que eu considero mais crucial para o sucesso da novela, e que melhor define o grande trunfo do autor: a capacidade de João Emanuel de confeccionar um ótimo roteiro.
Digamos que você não viu a estreia de “Avenida Brasil”, e alguém chega até você contando sobre um capítulo sensacional que viu outro dia numa novela. “Teve final de campeonato”, descreve esse alguém, “madrasta malvada desmascarada, um golpe revelado, um pedido de casamento e até uma armadilha para um homem que tem duas mulheres”. Nossa! – pensaria você: isso é um enredo digno de um ótimo final de novela. Pois João Emanuel jogou tudo isso no primeiro capítulo de “Avenida Brasil”. E sem a menor preocupação de ficar sem assunto dali em diante. Sua história começa já no meio – sem alienar nem um pouco quem vê. Como ele consegue isso? Bom, primeiro dispensando os canais tradicionais de apresentação de personagens. Por exemplo, não precisamos suportar dezenas de capítulos nos convencendo de que fulana é boazinha para depois nos surpreendermos com sua “guinada” para o mal. Em uma das primeiras cenas – e em menos de cinco minutos -, Carminha (magistralmente interpretada por Adriana Esteves) disse ao que veio: acaba com a vida da enteada para em seguida se fazer passar por madrasta dedicada quando o pai Genésio (Tony Ramos, em uma participação especial) chega em casa.
Economizando a atenção – mas não a inteligência – do telespectador, o autor ainda usa outro truque para eletrizar um primeiro capítulo. No lugar de nos enrolar com dúvidas sobre as intenções – e a intensidade amorosa – do craque que decide a tal final do campeonato, Tufão (Murilo Benício, apostando na veia cômica que sempre faz muito bem), para com Monalisa (Heloísa Périssé, ainda colhendo os elogios por sua atuação em “Dercy de verdade”), o roteiro resolve tudo rapidinho: da promessa incerta de um namoro ao pedido de casamento, em pouco mais de dois blocos! E para registrar sua heroína nos corações e mentes de quem está assistindo, João Emanuel não hesita: “descaradamente” nos apresenta a adorável Rita (vivida nessa fase inicial da novela, que se passa em 1999, pela não menos adorável Mel Maia), a enteada de Carminha.
Por chamadas na programação, “vazamentos de informação” (wikileaks do entertenimento!), e mais um bom boca a boca, sabemos que cada um desses personagens vai ter um desdobramento forte e elaborado. Mas, para que esperar um punhado de capítulos para jogar o telespectador no olho do furacão? Como fez em “A favorita”, João Emanuel não tem nenhuma restrição quanto a desmontar as estruturas convencionais – lembra-se quando, nessa sua novela anterior, um assassinato importante era desvendado antes mesmo de chegarmos à metade da duração prevista da história no ar? A aposta esperta do autor é a de que o público – e seja ele de que classe for – é mais inteligente do que podem sugerir as histórias convencionais. Num incansável e tentador desafio, é como se ele estivesse oferecendo um lugar numa carrinho prestes a descer numa acidentada montanha russa – para citar Bette Davies em “A malvada”, é como se ele sussurrasse no nosso ouvido: “Fasten your seatbelts, it’s going to be a bumpy night” (ou, em português, “Apertem seus cintos, vai ser uma noite turbulenta”). Vai resistir? O prejuízo será seu.
A citação à Bette Davis não é tão gratuita quanto você possa presumir. João Emanuel traz a herança de bons roteiros clássicos de Hollywood na bagagem – o que nem chega a ser uma novidade (Gilberto Braga, por exemplo, recorreu brilhantemente a “Alma em suplício”, “Mildred Pierce” no original, para construir um de seus maiores sucessos, “Vale tudo”). Mas ele não faz disso sua única fonte de inspiração. Como observou bem uma amiga que assistia ao capítulo de ontem comigo, com as dramáticas cenas no lixão – onde Rita é deixada por Carminha, depois da morte de Genésio -, a referência é diretamente literária: Charles Dickens. (E, ao observar isso fiquei pensando nos comentários sobre o “esforço” de “Avenida Brasil” em falar tão diretamente com a classe C… Será que o criador de “Oliver Twist”, “A pequena Dorrit” e “Grandes esperanças”, entre outros, já tinha essas preocupações na Inglaterra vitoriana? Eu, claro, divago…).
E além de todas essas referências, tem o talento pessoal de João Emanuel, já comprovado em vários trabalho anteriores – em um dos meu primeiros posts, eu já estava aqui declarando-me fã do autor. E é justamente por esse “conjunto” da obra, que nós sabemos que podemos esperar reviravoltas – e muitas -, em “Avenida Brasil”. Não estou falando de mudanças gratuitas de rumo, quando personagens, sem nenhuma explicação, “aprontam” algo inesperado – um velho recurso desesperado, um remendo para a falta de imaginação, que até mesmo Hollywood parece não se importar mais de usar, e que está mais para a leviana pantomima circense do que para a coerência de uma história que deveria ser bem contada para agradar o “respeitável público”… Falo, ao contrário, de uma narrativa engenhosa, que o público já está praticamente esperando – e que, pela amostra desses primeiros três capítulos, o próprio público já está disposto a aplaudir em coro. Nem que seja só para desafiar a frase de Nélson Rodrigues…
(Por falar em um autor de grandes frases, a temporada ficou um pouco mais triste com a morte de Millôr Fernandes, por quem eu não só tenho uma admiração eterna, como também uma dívida de inspiração. Essa relação, exposta assim, em uma frase apenas, parece estranha. Mas estou me preparando para escrever um post só em homenagem a um dos meus ídolos da escrita – um texto que, só a emoção que tomou conta de mim desde ontem, não me permite elaborar assim de uma hora para outra. Assim, segunda-feira falamos disso. Até lá).
O refrão nosso de cada dia
“Ordinary life”, PacoVolume - uma daquelas curiosas exceções: uma canção cujo refrão não está no meio da música, mas logo no começo. Se hoje falei de um autor que quebra as convenções de uma novela normal, aqui vai um músico que faz uma coisa parecida só que com uma outra fórmula: a de um “hit pop”. Agora, quem é PacoVolume? Ah… vou deixar você descobrir por sua conta…