Rita Lee pode dizer o que quiser

seg, 30/01/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Raras vezes fiquei tão feliz por ter me tornado um jornalista musical quanto nas oportunidades que tive de entrevistar Rita Lee. E elas foram várias – desde o tempo em que eu era um repórter num jornal mesmo, de papel (acredite: houve uma época onde as pessoas se informavam desse jeito!), na “Folha de S.Paulo”, até mais recentemente no programa que hoje apresento (“Fantástico”), passando, claro, por incontáveis encontros dos meus idos tempos de MTV. Não me lembro de Rita ter me decepcionado em nenhuma dessas vezes. E não digo isso por simples deslumbramento.

Sempre fui fã assumido de Rita. Por questão de uma geração, minha introdução ao seu trabalho não foi pelos Mutantes – banda que fui conhecer justamente depois de já muito admirar seu trabalho solo, pois ainda era criança quando eles estavam no auge – mas pela sua carreira solo. Dela, só tenho boas lembranças. “Fruto proibido” foi uma espécie de analgésico que me ajudou a atravessar a adolescência – e mesmo na sua fase mais pop, onde boa parte do seu público “antigo” começou a desconfiar da credibilidade de Rita (ao mesmo tempo em que uma audiência ainda maior ia sendo conquistada com sucessos como “Lança perfume”, “Saúde”, “Desculpe o auê” e quejandos), eu continuava um admirador fiel.

Se alguém vier falar mal de “Caso sério”, “Ôrra meu” e “Atlântida”, entre outros sucessos duvidosos, vai arrumar confusão comigo. (Podemos até argumentar que a “Rita dos anos 70” – de “Jardins da Babilônia”, “Eu e meu gato”, “Papai me empresta o carro”, “Doce vampiro”, “Mania de você”, e, claro, todo o “Fruto proibido” – tinha uma outra pegada, mas isso seria levar a discussão que quero levantar para outro canto, e sobretudo hoje não posso divagar…).

Levanto toda essa bola para tentar passar para você a dimensão do que significava para mim entrevistar Rita Lee. E não apenas da primeira vez que isso aconteceu, mas em todas as entrevistas que fiz com ela. Ser chamado por alguém que sempre foi uma referência tão forte para mim de “Zequinha”, como acabou acontecendo com o passar dos anos, era não apenas um sinal de intimidade – conquistada justamente nesses encontros –, mas um discreto elogio não-intencional: era como se Rita tivesse me dado a honra de fazer parte de um círculo muito exclusivo de pessoas que ela resolvia chamar por um diminutivo carinhoso. Coisas de um fã que de repente vira repórter e às vezes não sabe direito qual de seus dois lados é mais forte…

Por uma amiga em comum – Mônica Figueiredo, que foi minha diretora na “Capricho”, em meados dos anos 90 – tive ainda a chance de conhecer Rita mais de perto. A amizade das duas vinha de outras décadas – e eu, que era não apenas um editor-chefe dedicado, mas também um admirador de Mônica, peguei uma deliciosa (e frutífera) “carona” nesse convívio. O que só reforçou toda o amor e o respeito que eu tinha por Rita Lee.

De tantas coisas que ela tem para se tirar o chapéu, talvez a que mais me encanta até hoje é sua honestidade. Rita usou essa carta na manga durante toda sua vida – e não apenas em sua música. Em todas as entrevistas que fiz com ela, era isso que mais que encantava: para câmera (ou apenas para o repórter), ela dizia o que pensava – mesmo que fosse uma revelação que pudesse pesar contra ela. Entre tantas passagens assim, lembro-me de umas boas que saíram de uma ocasião em 2004um feliz encontro em que Rita estava extremamente à vontade. Alguns pontos altos:

“Eu experimentei Botox outro dia… Ficou mais leve, mas o combinado era eu ficar parecida com a Gisele Bündchen”.

“Me colocaram um pino de titânio – eu tenho um lado bem tortinho aqui, ó – mas eu gosto dele…”.

“Deixa cair… tá bom… eu não posso reclamar… depois de tudo que eu fiz Zequinha, meu filho…”.

Como não gostar de uma mulher assim? Todas essas frases, porém – e todas as outras que já ouvi (direta ou indiretamente) Rita dizer – ficaram menores quando, no sábado passado, durante o que foi anunciado como seu “show de despedida dos palcos”, Rita Lee disse o seguinte:

“Vocês não têm o direito de usar a força na meninada – que não tá fazendo nada! Cadê o responsável, eu quero falar! Esse show é meu, não é de vocês! Esse show é minha despedida do palco, e vocês continuam tendo que guardar as pessoas – não agredir. Seus cachorros – coitados dos cachorros…”.

A, hum, “colocação” não foi dita, claro, em uma entrevista íntima, mas diante de uma plateia de milhares de sergipanos (o show foi em Aracaju), que foi surpreendida pelo que parecia ser uma revista de policiais à procura de drogas. Rita – que, como ela mesma disse então, é do tempo da ditadura, ficou deveras incomodada com o que ela julgou ser truculência na ação – para não falar da arbitrariedade da própria atitude. (Já imaginou se o mesmo “choque de ordem” fosse determinado em outros tantos shows e festivais que agora acontecem no Brasil? De destino obrigatório para artistas em ascensão e já consagrados, passaríamos à escala a ser evitada – para não dizer “motivo de piada” anacrônica – para o melhor da música atual. Mas eu, enfim, divago…). Diante do que via, Rita não se conteve – soltou o verbo.

Seu discurso foi bem maior – e bem mais forte – do que o breve trecho que citei acima. Além dessa reportagem que você pode conferir aqui mesmo no G1, não é nada difícil encontrar na própria internet dezenas de outros registros (alguns até mais completos) de seu discurso. Mas nem é preciso analisar muito seu texto para entender porque o protesto de Rita – que com propriedade impecável insistia: “Esse show é meu, não é de vocês!” – fez com que ela fosse detida pela própria polícia. “Cachorros”, a bem dizer, foi a palavra mais “carinhosa” que ela usou para criticar os homens da lei. Talvez se ela tivesse ficado por aí, a confusão teria sido abafada. Mas aí Rita mandou um “filhos da puta”. E pronto…

Em seu depoimento oficial, Rita Lee disse que agiu movida pelo “calor das emoções” – certamente um resumo bem vago para definir a somatória de todas as experiências de cantora nessa sua trajetória de anos – de fato, ela passou por toda a montanha-russa de mudanças políticas e sociais, que toda uma geração (talvez duas), que hoje faz o que quer (seja num show de rock, no meio de uma multidão, ou no quintal da sua casa, na frente de seus pais), nem desconfia que essa mesma liberdade teve que ser muito batalhada. E por gente como Rita Lee! Isso, como você pode imaginar, deixa uma marca nas pessoas. Do seu lado, a polícia de Sergipe soltou uma nota dizendo que não houve, naquela noite, nenhuma ação que justificasse “os insultos proferidos pela cantora Rita Lee durante sua apresentação”.

Observando apenas as imagens, não é muito simples decidir quem estava mais com a razão. O que me parece é que a situação criada tem muito pouco a ver com o que estava acontecendo em si, e mais com os registros de coisas passadas. Rita, como ela mesmo disse – e eu acabei de ressaltar aqui – tem sua cota de experiências com truculência militar e repressão de todo tipo na história de sua carreira (que, como toda boa roqueira, se confunde com sua própria história de vida). E a própria polícia – ainda que não especificamente de Sergipe (cujo passado específico desconheço) – sabe que tem na sua história momentos de exagero que em nada contribuíram para criar uma imagem positiva – não só com a geração de Rita, como com as que vieram depois dela. As duas coisas misturadas, numa noite de (citando Rita) fortes emoções, deu nisso!

Poderia ter sido apenas mais um capítulo de um longo livro – que felizmente nunca acabará de ser escrito – chamado: “It’s ony rock n’roll but I like it”. Mas a detenção de Rita ganhou, inevitavelmente uma repercussão nacional – e em mais de uma roda de conversa que participei neste domingo, dividiu opiniões. Como provoquei logo de início – ali acima, no título do post de hoje – eu acho sim que Rita Lee pode dizer o que quiser. Aliás, qualquer cidadão pode ter o direito de dizer o que quiser – até mesmo Rafinha Bastos. Não estou com isso, vale explicar, comparando os dois artistas, muito menos o conteúdo do que eles disseram (Rita na noite de sábado, e Rafinha na sua infeliz – e o que seria última – participação no “CQC”). O que é importante – e aí a analogia faz sentido – é que cada um que diz o que quer deve ter noção do peso de suas palavras. E eu não tenho nenhuma dúvida que Rita sabia exatamente o quanto as suas pesavam.

No contexto de tudo que foi dito, não vejo as palavras da cantora como uma provocação – mas sim uma reação. Não estou, de maneira alguma, desafiando eu também as autoridades, nem questionando o que define a sensibilidade desses profissionais (públicos, é bom lembrar) a ponto de considerar um ou outro ataque como “desacato”. A lei e suas interpretações estão aí para isso mesmo – e imagino que o processo vá se desenrolar nos próximos dias, como é de se esperar. O que quero mais hoje aqui é saber da sua opinião: Por tudo que ela representou esses anos todos para mim – e eu diria (sem medo de errar) até para o Brasil! -, eu digo mais uma vez: Rita Lee  pode dizer o que quiser. Será que você colocaria um ponto de interrogação nessa frase?

Enquanto você pensa, deixa eu mandar um “correio elegante” para a Rita? Aqui vai: “Meu amor, justamente por episódios como os deste fim-de-semana que eu torço para que essa conversa de despedida dos palcos não seja a sério… Diz pra mim que você tá só dando uma de Frank Sinatra, vai? E que a gente ainda vai ter muitas e muitas chances de se despedir de você? Bejo!”.

O refrão nosso de cada dia: “The drugs don’t work”, The Verve.

Ok, eu admito: essa canção não é exatamente uma raridade – nem uma faixa obscura para a qual eu quero chamar sua atenção (como é o caso de boa parte das indicações que você conhece por aqui). Mas eu a ouvi por acaso neste fim-de-semana – e por uma (sempre) estranha associação de ideias, eu conectei uma das músicas mais bonitas do Verve (na verdade, uma das músicas mais bonitas que já foram feitas sobre degeneração e o fim inevitável que espera por todos nós – wow!), com os eventos descritos no post acima. Se você já a conhece (como eu acho que é o caso), aproveite para ouvi-la de novo. Se nunca a escutou, desculpe: ela vai fazer você chorar.

 

(P.S. : acho que nunca antes na história deste blog eu senti vontade de fazer um P.S. – que, como você sabe, significa “post scriptum”, ou, “escrito depois”. Mas pelo tom de vários comentários – que só acabei lendo agora – só queria reforçar que o que defendo no texto não é exatamente o que foi dito por Rita, mas seu direito de dizê-lo. Tão nobre quanto o seu, leitor, de escrever o que quiser aqui nos seus comentários… Espero, com este P.S., não estar exigindo demais do seu raciocínio.)

 

Duas maneiras de ver ‘Tintim’

sex, 27/01/12
por Zeca Camargo |
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Há algumas semanas, um dos cartoons da revista “The New Yorker” – que são, em geral, um bom termômetro da cultura pop corrente – trazia a imagem de um casal se vestindo, com o marido, que segurava uma peça de roupa com o inconfundível rosto do jovem repórter de topete loiro estampada, dizendo: “Não é mais divertido usar minha camiseta do Tintim agora que as massas sabem quem ele é”. Típico…

Boa parte das fortes reações que a adaptação para o cinema (assinada por ninguém menos que Steven Spielberg) do venerado personagem criado pelo desenhista belga Hergé vem desse tipo de relação que os fãs têm com Tintim. Quem conheceu o tal repórter na infância – ou mesmo na tenra adolescência – gosta de cultuá-lo como um amigo pessoal. E íntimo. Conhecer Tintim – saber citar passagens de suas aventuras de cor, ter sua galeria de personagens favoritos, colecionar reproduções de quadrinhos famosos – sempre foi uma espécie de culto para quem teve sua formação cultural enriquecida com a introdução a essas aventuras. Eu sei, claro, porque sou uma dessas pessoas…

O quase indisfarçável impulso de “defender das massas” a reputação de um herói favorito – seja nos quadrinhos, na literatura, no cinema ou mesmo na música pop – é um fenômeno conhecido. E embora você, tão cheio de referências modernas possa achar que é um privilégio de sua geração descobrir e celebrar coisas e artistas que “ninguém mais conhece” (as aspas aqui são mais que necessárias, uma vez que essa é uma das ilusões mais fundamentais para a gente atravessar a própria adolescência), eu posso garantir que isso acontece com todo mundo.

Como quando, por exemplo, um autor favorito seu ganha uma inesperada transcrição para o cinema – não com um diretor obscuro e um elenco alternativo, mas com atores do time “A” e uma produção que esbarra perigosamente no convencional. (Acha que eu estou inventando? Pois pense na recente adaptação de “Tão forte e tão perto”, baseado do cultuado livro de Jonathan Safran Foer, “Extremamente alto & incrivelmente perto”, editado aqui pela Rocco, que chega às telas com Sandra Bullock e Tom Hanks). Ou quando um cantor (ou uma cantora) sai das paradas alternativas para ganhar o grande público – vivi isso recentemente quando, depois de ter entrevistado Florence Welch (do Florence + The Machine, que esta semana enlouqueceu plateias pelo Brasil – e digo isso sem medo de exagerar, porque eu estava presente no seu show do Rio), recebi mais de um email (e o “Fantástico” figurou em outras tantas mensagens de Twitter com uma mensagem parecida) fazendo a seguinte linha indignada: “obrigado por arruinar as músicas de Florence – agora que saiu na televisão todo mundo vai saber quem é ela…”.

Do alto da minha vasta experiência com a cultura pop, só posso lamentar esse tipo de comportamento. Para mim é muito claro que o fato de um artista – ou uma obra de arte – deixar de ser alternativo e passar a ser apreciado pela “grande massa” tem menos a ver com o próprio artista – e a própria obra de arte – do que com a sua percepção sobre ele (ou ela). Determinado livro, filme, ou determinada música não muda em nada se quem o aprecia (ou a aprecia) é um grupo de dez, cem – ou um milhão – de pessoas! É você que, numa obsessão bastante típica da nossa suposta declaração de independência durante a adolescência – que, como sabemos, é menos uma definição cronológica do que um estado de espírito –, enfim, é só você que acha que alguma coisa muda por que antes só você gostava dela e agora meio mundo a aprecia.

Voltando a “Tintim”, a reação histérica de várias correntes à versão de Spielberg tem tudo a ver com isso. Desde que o filme estreou em várias partes do mundo –, o Brasil, estranhamente, foi um dos últimos mercados onde o filme chegou – as respostas foram violentas – para dizer pouco… Em um dos exemplo mais extremos de como a crítica “apaixonada” repudiou essa transição para o cinema, Tom McCarthy, no jornal inglês “The Guardian”, implorava aos verdadeiros fãs de Tintim para não assistirem ao que ele chamava de “execrável adaptação”. E não vamos nem colocar nessa conversa a crítica francesa – para quem Tintim é uma espécie de santidade –, uma vez que ela quase que unanimemente condenou a produção.

Bem, se lhe interessar a opinião deste fã assumido de Tintim – que já deixou isso claro aqui mesmo neste espaço, quando teve a chance de visitar uma exposição consagrada a seu ídolo em pleno Centro Pompidou, em Paris, e que também não só leu todos os volumes com suas aventuras na adolescência, como lembra várias passagens de cabeça (como esquecer da sessão “paranormal” de “As sete bolas de cristal”; ou a chegada de Tintim à Sildávia, em “O cetro de Ottokar”; ou a sequência do esparadrapo que vai passando por vários passageiros dentro de um avião – certamente a página de quadrinhos que mais me fez ria na minha vida!) –, enfim, se lhe interessar a minha opinião, eu digo que adorei o que Spielberg fez em “As aventuras de Tintim”, que finalmente tive a chance de ver esta semana.

Fãs mais hidrófobos do personagem de Hergé, segurem suas pedras. Quando eu digo que adorei a adaptação – poucas coisas que vi no cinema me deram tanta emoção em sequências de ação (incluindo “Missão impossível 4” e todos os “Transformers” juntos) quanto dois trechos de “Tintim” sobre os quais vou falar mais daqui a pouco – não é apenas uma impressão deslumbrada de alguém que não pode ver o nome “Spielberg” numa sequência de créditos que já se dobra de joelhos em elogios. Ao contrário, de tudo que já vi, li e ouvi sobre “Cavalo de guerra”, esse filme não me pega nem por um cachê (e, para reforçar, relembro que, sob os olhares vigilantes de admiradores sem noção, cometi o “pecado” de não gostar de “Super 8” LINK PARA POST DE 15de08de11). Mas o que o diretor fez com três dos livros mais venerados de “Tintim” (como você talvez saiba, “Aventuras” é resultado de uma junção de “O segredo do Licorne”, “O tesouro de Rackham, o Terrível”, e “O caranguejo das pinças de ouro”), tenho que admitir, é genial.

Não quero arrumar briga com ninguém – aliás, nunca quero. Por isso mesmo, preparei aqui dois comentários diferentes – e você pode escolher aquele que quer ler. Ou melhor, aquele que, depois de ler, você vai ter menos vontade de brigar comigo. Primeiro, um comentário para quem foi (ou vai) assistir a “As aventuras de Tintim” e não é fã do personagem – ou mesmo nem tinha ouvido falar dele antes dessa adaptação para o cinema. E, em seguida, um comentário para o que podemos chamar de “a minha turma”: gente que já conhece bem a obra de Hergé e estava (ou ainda está) um pouco apreensiva quanto à produção. Pode escolher qual fala mais com você!

1) Para quem está conhecendo Tintim agora
O que pode haver de tão interessante em um garoto que descobre um segredo guardado em uma maquete de uma embarcação antiga – comprada por menos de R$ 5,00 numa feira de antiguidades – e sai atrás do significado dele atravessando não apenas o mar como passageiro clandestino (na verdade, um prisioneiro) de um navio sequestrado, mas também o deserto (onde ele foi parar depois de um acidente no hidroavião que o salvou de perecer em alto mar), correndo riscos de vida num lugar desconhecido (e com forte sabor oriental), onde ele penetra um palácio fortemente guardado e consegue escapar depois de quase destruir uma cidade inteira numa perseguição de moto (ou melhor, em partes dela que vão se soltando), até que finalmente um tesouro é descoberto? Bem… a resposta está na própria pergunta! Esse é o sonho de ação de qualquer garoto adolescente. E, como já disse aqui mesmo hoje, não é necessário estar na faixa entre os 13 e os 19 anos para viver esse sonho. Nem mesmo ser garoto…

O que Spielberg traz em “As aventuras de Tintim” é não apenas sua mais nova versão para essas fantasias adolescentes (admita: o que era “Os caçadores da arca perdida” senão uma variação sobre esse tema – assim como todas suas sequências?). Ela é também a mais sofisticada de todas elas. Parece que, livre das “limitações” do mundo físico, o diretor foi bem mais além nas criações de planos-sequência que viram de cabeça para baixo qualquer convenção que seu cérebro está acostumado a esperar em um filme de ação.

Bastaria dizer que eu fiquei para ver a sessão seguinte do mesmo filme até a hora em que os navios do antepassado do Capitão Haddock e do “Terrível Racham” se enfrentam numa batalha feroz! O que é aquilo? E eu ainda quero assistir mais uma vez só para poder rever – e quem sabe entender melhor – o que acontece quando Tintim escapa do palácio do sultão e corre desesperado atrás de um falcão para recuperar as mensagens que contêm o “segredo do Licorne”.

Toda aquela sequência foi, por si só, responsável por me fazer ficar feliz de estar vivo. Sim, simplesmente por poder assistir a uma coisa como essa. A “queda livre” de todos os personagens – a descida desenfreada, seja por qualquer caminho, ou veículo (até uma parte da construção de um hotel vem “ladeira abaixo”) – é uma das mais hilariantes e emocionantes passagens de qualquer filme recente (inclusive aqueles já citados “supostos” filme de ação…). É como se seu olho estivesse entrado em delírio extremo – e mesmo sem conseguir codificar tudo que está acontecendo, ele não consegue se contentar de tanta felicidade.

Para alguém que nunca leu os livro de Tintim – e que já teve sua inteligência maltratada por inúmeros roteiros sem pé nem cabeça onde um monte de coisas é jogado e muito pouca coisa é explicada (pense em “Cavaleiro das trevas” – e tenha medo pela sequência que vem por aí!) –, o roteiro de Spielberg é um primor! Você vai sair satisfeito não apenas no quesito “adrenalina”, mas também com o seu raciocínio lógico. Além de claro comemorar o maior prêmio de todos: ter aquele seu lado “adolescente” ricamente alimentado e satisfeito – pelo menos até a próxima adaptação de outras histórias de Tintim para o cinema. Que você, claro, já está torcendo para que o diretor não desista de fazer.

2) Para quem conhece Tintim há tempos
Convenhamos: se Spielberg fizesse uma adaptação literal dos três livros de Tintim que resultaram em “As aventuras” – ou mesmo a adaptação de um só –, isso daria um filme muito chato. E nem é preciso ter muita imaginação para chegar a essa conclusão. Quadrinhos e cinemas são formatos totalmente diferentes, que exigem atenções diferentes, e oferecem um tipo de distração (e de informação) diferentes. Qualquer transição – aliás, nos dois sentidos, do cinema para os quadrinhos e vice-versa – vai deixar alguma coisa de fora.

Portanto, não é exatamente pelas coisas que Spielberg deixou de fora que “Aventuras” deve ser julgado, mas pelo que ele conseguiu incluir no filme, tudo que ele foi capaz de transformar – e até mesmo acrescentar! Como toda a ação da luta entre os navios! Em “O segredo do Licorne”, essa parte emocionante ocupa menos de uma página – e ela é praticamente resolvida em um grande quadrinho ao pé da página 19 da minha edição em português (Cia. das Letras). Já no filme, essa é uma das sequências mais emocionantes, não apenas resolvendo com inteligência a fusão entre o passado e o presente (as lembranças de Haddock e as desventuras de seu antepassado), como oferecendo um universo de possibilidades de ângulos e movimentos de câmera que provavelmente nem seriam possíveis no mundo real.

Ou então toda a parte em que um terceiro barco é roubado, “nas barbas” de seu dono – um poderoso sultão colecionador. Num truque engenhoso, Spielberg nos coloca em meio a um recital de ninguém menos que Bianca Castafiore (um dos personagens mais engraçados criados por Hergé, que não aparece, aliás, em nenhum dos três quadrinhos em que o filme foi baseado – ou seja, ela é também uma outra adição bem-vinda). Ali, quando Bianca atinge as notas mais altas, acontece um “estouro dos cristais”, um dos momentos em que eu mais ri no filme – e quando estava recuperando o fôlego veio a outra sequência de ação eletrizante, em busca das três partes do enigma que é a parte central da trama recriadas pelos roteiristas. Resultado: perdi o fôlego de novo.

Nenhum desses acréscimos incomodou este fã. Pelo contrário. Em cada cena, o que eu via era a celebração do gênio de Hergé, multiplicado pelo gênio do próprio Spielberg. E ainda com a generosidade do diretor de dar aos que conhecem o universo de Tintim de cor, um ou outro “doce”, escondido num quadro maior. Como a pequena galeria de personagens de outras histórias do repórter, numa barraca de uma feira de antiguidades logo no início, quando Tintim descobre o Licorne. Ou a intimidade da casa do nosso herói, revelada sempre parcialmente em várias histórias, mas no filme largamente explorada. Ou a sutileza das latas com a imagem do “caranguejo das pinças de ouro”, que fazem apenas uma pequena ponta – só mesmo para os fãs reconhecerem – na hora de um embate num cais de porto…

Sem falar na sofisticação da própria animação. Quando Tintim finalmente encontra o Capitão, e começa a lutar com ele, Milu (o cão, que está especialmente “bem” no filme) vai para a cama do quarto e mal encontra onde pisar, num mar de garrafas já enxugadas por Haddock. Mais adiante, quando Tintim vai roubar uma chave no quarto dos marujos, o balanço dos que estão dormindo é uma obra-prima da imaginação e da física. E – só para dar mais um exemplo – quando o avião que Tintim rouba para cruzar o deserto enfrenta nuvens carregadas, a turbulência é tão real que eu quase procurei um saquinho de vômito!

“As aventuras de Tintim”, para mim, só tem um defeito. Na transposição para as telas, o herói ganhou uma caracterização quase boa, mas um detalhe me incomodou profundamente ao longo do filme, a ponto de eu quase enfrentar uma resistência a olhar diretamente para ele: Tintim ganhou dentes – e ao contrário disso torná-lo mais humano, fez dele um personagem surreal. Não que ele não tivesse dentes nos quadrinhos. Sua boca apertada raramente abria-se mais que num pequeno orifício, mas uma vez ou outra era possível ver um esboço de branco, que funcionava como sua arcada dentária. No filme, vê-se dente por dente – e Tintim está para lá de sorridente. O efeito, garanto, é perturbador…

Mas fora isso, o que eu quero mais é que Spielberg, mesmo com a recepção modesta que o filme teve (para não dizer “furiosa”, em alguns casos), já esteja pensando na próxima adaptação. Posso sugerir “Os charutos do faraó”? Ou quem sabe “Tintim no Tibete”? Ou “Vôo 714 para Sydney” – esse daria um grande roteiro, não é Steven?


O refrão nosso de cada dia

“Between two lungs”, Florence + The Machine LINK PARA https://www.youtube.com/watch?v=R2Ujua6a82c – Aproveitando a passagem de Florence pelo Brasil, queria apresentar essa música para você. Não para quem é fã, claro, que já a admira de longa data. Mas para você que foi no show e não fazia muita ideia de que música era essa; para você que não entendeu por que ela cantava esse refrão com tanta intensidade; ou para você que achou estranho a meia dúzia de pessoas que estavam dançando junto com ela. Aqui vai uma explicação: Florence Welch nasceu para cantar essa música. “Dog days are over”, “You’ve got the love”, “Shake it out” – isso tudo era desculpa para ela cantar “entre dois pulmões”. Cante com ela! Bem alto!

Como reclamar de um ano que começa assim?

seg, 23/01/12
por Zeca Camargo |
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Ontem ouvi, pela primeira vez, Howler. Seu disco de estreia chama-se (ironicamente, para uma banda que vem de Minneapolis) “Americagiveup” (“América desista”). Assim que você escutar – comece por “Beach sluts” – você vai saber exatamente o que eu senti. E perceber que, como se diz lá no Portugal, 2012, em termos de pop, “não está aqui a desporto”.

De fato, o ano começa animado. Eu poderia dizer isso de qualquer ano que começa com uma entrevista com Florence Welch, seguido de uma outra entrevista com Priscila Presley – a melhor coisa que você pode viver sobre o nascimento do rock, diante da impossibilidade de poder falar com o próprio rei… (Em tempo, a foto que publiquei na correria no último post foi mesmo tirada em Memphis, no trailer pintado de porco que fica em frente ao Marlowe’sRibs, no Elvis Presley Boulevrad, onde o ídolo aparentemente comia de vez em quando… ponto para Andréia, Marcia Pereira Guaiata, e MoGribel, que mandaram bem na resposta). Essa última entrevista é parte de uma reportagem especial que você verá em breve no “Fantástico” – e por isso pretendo falar dela só mais para frente.

O assunto hoje é o ano musical – que me parece bastante promissor (será que a chegada do ano do dragão no calendário chinês tem a ver com isso – ou eu divago?). E se as experiências com Florence e Priscila Presley pode soar pessoais demais, resolvi juntar algumas outras evidências de que 2012 será mesmo especial, sob a forma de algo que todo mundo pode experimentar hoje em dia na internet: a própria música!

Mesmo antes de o “NME” lançar suas lista anual de previsões, com nome “quentes” que todos nós vamos querer estar ouvindo daqui a alguns meses – ou mesmo semanas, eu mesmo resolvi arriscar aqui algumas indicações. Assim, antes de embarcar numa “semana de imersão no cinema” (estou atrasadíssimo com  os lançamentos e espero “regularizar minha situação” esta semana), deixo aqui uma breve seleção do que está me deixando tão animado nesse (ainda) morno início de ano.

Já comecei falando de um bom rock na promessa do Howler – e insisto: você tem que começar 2012 ouvindo esses caras. Mas ainda há boas coisas por vir – e não necessariamente precisa ser uma banda nova. Por exemplo, um disco que deve entrar para as listas de final (deste) ano, apesar de ter sido lançado tão cedo, é o segundo do The Big Pink, “Future this”. Mais interessante que o primeiro trabalho dessa banda – já elogiado aqui mesmo, “Future this” tem um pé no moderno e um pé nas fórmulas seguras de sucesso. Uma cominação perfeita para tentar apagar, ainda que timidamente, a falta de criatividade que tomou conta do pop em 2011 – a melhor definição disso foi dada pelo crítico Peter Robinson, num texto que eu recomendo fortemente, publicado no ano passado pelo jornal inglês “The Guardian”, sobre uma onda de “pop beige”.

Outra “reincidente” é a excelente Santigold – uma trágica vítima de superexposição, quando ela apareceu em meados de 2008. Caso típico: ela veio tão cheia de estilo, que acabou aparecendo mais em revistas de comportamento do que nas de música – ou melhor, acabou chamando mais atenção pelo que aparentava do que por aquilo que cantava. Seu novo single, “Big mouth” – que vem com um vídeo insano e genial – me faz pensar numa espécie de maldição: “você ainda vai dançar isso!”. Ah vai… Um ótima amostra do que deve vir por aí no seu novo álbum “Master ofmymake-believe”.

Mas o que a gente gosta mesmo – confesse! – é de novidades… E, novamente, 2012 promete! E não só com Howlers. Num artigo recente sobre rappers mulheres – e brancas! – descobri uma verdadeira preciosidade: K.Flay! Especialmente nessa área que me parece um pouco parada – a do hip-hop americano – essa morena (de cabelo!) chega como um frescor. Comece com “Sofast, somaybe” – e perca-se nas suas boas batidas. O mesmo artigo (publicado no “The New York Times”) ainda indicava duas outras artistas: Kreayshawn (que não me entusiasmou muito) e uma outra bem mais interessante chamada IggyAzalea – que me deixou bem animado com “My world”.

Atenção! Não confunda essa Azalea  com AzelaiaBanks!! Essa outra – número 1 na lista do “NME” de pessoas mais “cool” de 2011 – certamente merecerá sua atenção em 2012. Sua música é um pouco mais sofisticada do que a média do pop, mas o apelo de sua voz é irresistível! E acho até que não usei as exclamações suficientes para fazer justiça a Azelaia.

Três descobertas recentes – que são ainda de 2011 – reforçaram meu otimismo com relação ao que ouvir em 2012. São elas: 1) PeakingLights, “936″ (o mais intrincado som eletrônico que você terá ouvido nos últimos anos – e bastante acessível, ao mesmo tempo); 2) Iceage, “New brigade” (sim, existe esperança para o punk no século 21 – e ela vem da Dinamarca!); 3) The Caretaker, “Anemptyblissbeyondthis world” (uma surpreendente mistura de boa batidas com antigos sons tirados de discos de jazz de 78 rotações – impossível de descrever em apenas uma linha… tem que ouvir!).

E, para não dizer que eu esnobo o que é popular, estou tão ansioso quanto você para ouvir por inteiro no novo álbum de Lana del Rey! Sim, a mulher que nos trouxe “Video games” lança seu trabalho de estreia na próxima semana – e pode esperar um comentário por aqui em breve.

Enquanto isso, por aqui no Brasil… Bem. recebi hoje mesmo o novo álbum de uma dita promessa de 2012. Um pastiche desse “reggae tropical” que há anos contamina o nosso pop – estreia de uma banda que não vale nem a pena mencionar por aqui… (Algo que diz que esse pessoal vai acontecer, pois ele vêm com com uma boa dose de promoção – tomara que eu esteja errado). Será que você tem alguma coisa para me sugerir?

Bom 2012 – agora de verdade!
“Back of your neck”, Howler – no caso de você ainda não ter se convencido a ouvir essa nova banda. Ah! E o e refrão é daqueles tipo “u-hu”. Fácil…

Onde eu estou?

qui, 19/01/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Florence + The Michel (esse mesmo que você está pensando)

seg, 16/01/12
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“Jornalistas de rock são pessoas que não sabem escrever entrevistando pessoas que não sabem falar para pessoas que não sabem ler.”

Semana passada, para discutir a nossa crítica cultural, “pedi ajuda” para Machado de Assis – fiz referências a trechos de sua brilhante crônica “O ideal do crítico”. Muitos se deliciaram com as citações, claro. Mas outros tantos me “acusaram” – e uso esse verbo com um prazer quase infantil que toma conta de mim toda vez que vivo essa ironia – de ser “intelectual” (como se esse adjetivo pudesse ser algo pejorativo…). Essa tentativa de ofender com um elogio sempre me deixa um pouco perplexo: quem poderia se sentir indignado de ler uma frase machadiana – alguém que (injustamente) ficou traumatizado(a) com suas leituras dos tempos de colégio? Busco, mas não encontro respostas.

Porém, numa tentativa de diminuir esse abismo entre quem acha que existe uma cultura melhor que a outra – ou ainda, uma cultura que valha mais a pena ser citada do que a outra -, resolvi começar o texto de hoje com uma referência bem mais pop: as aspas lá de cima são de Frank Zappa! Interessante, não? O que isso tem a ver com meu argumento sobre a qualidade da nossa atual crítica cultural, você já vai saber. Mas antes, deixe-me responder à pergunta que deixei no ar sobre quem eu havia entrevistado no meio da semana passada.

Eu achei mesmo que tinha dado pistas demais… Quando falei que seu disco era “épico” (como observou o João Paulo Rabelo), e que seu trabalho era “de fôlego” (dica que não escapou ao Cristiano e ao Dude), eu achei que estava facilitando mesmo… Mas quando convidei você, no último post, a adivinhar quem eu havia entrevistado em Londres, a intenção era bem lúdica mesmo. Foi com ela mesmo que falei: Florence Welch, da banda Florence and The Machine (ou dependendo da grafia, Florence + The Machine) – numa entrevista que, se você não conseguiu ver ontem no “Fantástico”, pode conferir aqui. A outra artista que entrevistei na mesma viagem (um encontro que deve ir ao ar em breve) foi Dionne Bromfield – que, como eu brinquei, é ainda mais nova que Florence, e teve uma madrinha poderosa, que, como todo mundo sabe, é Amy Winehouse. Mas de Dionne podemos falar uma outra hora – agora quero abrir espaço para Florence. E, mais adiante, para “a máquina” – não a que toca com a cantora, mas a que estava por trás de uma discussão recentemente levantada por mim, sobre a crítica de cultura no Brasil…

Florence primeiro, então. Um pouco antes de ficar cara a cara com ela, enquanto eu esperava ela terminar a maquiagem – num salão improvisado de um pub no sudeste londrino, não muito longe de onde a própria Florence cresceu –, fiquei pensando na rapidez com que as coisas acontecem agora no mundo do pop. O caminho entre um sucesso “alternativo” e a consagração pop está mesmo cada vez mais curto. Exatamente há dois anos, em um texto publicado aqui mesmo, eu “ousadamente” (e inspirado numa lista de “novos talentos” do semanário musical “NME”) já elegia Florence “a artista de 2009”! Era uma aposta “terrorista”, feita totalmente por impulso, depois de ouvir suas primeiras músicas no Youtube. Mas, olhando em retrospecto, o palpite não foi tão ruim assim…

Alguns meses (e três milhões e meio de discos vendidos) depois, Florence é uma artista internacional, reconhecida não só por quem aprecia a boa música – haja voz e haja pulmão! – mas também pelo seu estilo. Capas de revistas, turnês pelo mundo (ela vai estar no Brasil no final do mês), críticas nunca menos que favoráveis, e um disco novo, “Cerimonials”, que ela gravou exatamente do jeitinho que quis. Florence tinha tudo para estar se sentindo no topo do mundo, certo? Pois não foi bem assim que eu a encontrei.

Eu costumo falar, com a experiência que um par de décadas entrevistando estrelas do mundo do rock e do pop, que existem dois tipos de artistas: aqueles com um “a” minúsculo, que estão lá para te dar entrevista apenas porque o seu empresário está no quarto ao lado com uma arma apontada para a cabeça deles; e aqueles com “A” maiúsculo, que, independente do estágio da carreira que estão, têm um prazer genuíno em falar do seu trabalho – desde que, claro, você chegue com perguntas que sejam no mínimo originais. Florence, claro, pertence ao segundo grupo – e isso deu para perceber já no primeiro minuto de conversa.

Enquanto ela explicava que a impressão de que tudo aconteceu muito rápido na sua carreira era só isso mesmo – uma impressão –, eu já pude ver que essa seria uma conversa mais interessante do que eu podia imaginar. Rapidamente a conversa foi se desenvolvendo naturalmente, e eu acabei entrando num estágio que é o que eu mais gosto numa entrevista que está dando certo: jogar a pauta formal fora e deixar que a boa conversa do artista determine o nosso assunto. Florence é uma mulher interessante – mais interessante até que seus tenros 25 anos podem sugerir. E com isso nossa conversa foi indo em frente, naturalmente ultrapassando os dez minutos protocolares.

Até que, a certa altura, ela disse uma frase que me conquistou por completo. Assim, meio solta, sua colocação poderia ter parecido um pouco pretensiosa. Mas no contexto do nosso bate-papo, tratava-se de um comentário suave e original. Sobretudo honesto. Ao falar sobre as coisas que a distraem quando não está envolvida com um show ou com o estúdio, Florence falou que cultura, para ela, é simplesmente fundamental: “Eu fico realmente deprimida se não alimentar meu cérebro!”, declarou.

Minha admiração por ela duplicou instantaneamente. O que ela havia acabado de me dizer tinha a ver, de certa maneira, com um assunto que estava rondando minha cabeça desde segunda-feira: justamente minha decepção com a atual crítica cultural. Sob o título de “Não, não está tudo bem…”, eu explicava por que ando incomodado com a qualidade do que se escreve hoje na imprensa – especialmente na internet. Para ilustrar a questão que eu queria levantar citei três textos (todos publicados pelo “The New York Times”): um sobre literatura, outro sobre música e outro sobre TV. Como eu já deveria ter previsto, o que provocou as reações mais inesperadas foi justamente aquele sobre as pessoas que escrevem sobre a TV – os cerca de 786 (e contando) “críticos de plantão”, que, em sua maioria, pouco assistem aos programas com um olho analítico, mas sim com ganas de usar programas populares para atrair leitores para seu blog (ou coluna) neste disputado espaço da internet.

A forte resposta – que gerou até uma interessante e saudável discussão ontem no caderno “Ilustrada”, da “Folha de S.Paulo” veio, como qualquer polêmica moderna, carregada de desinformações. Mais uma vez, constatei, com uma certa decepção, que boa parte do que passa por um fórum de ideias hoje não passa de um muro das lamentações virtual. Desavisados que tinham opiniões pré-formadas sobre mim (ou sobre o programa que apresento) viram nisso uma deliciosa oportunidade de soltar um desabafo – que nada tinha a ver com o tema que eu havia proposto… Outros, talvez confusos com a minha provocação, não entendiam direito o que havia motivado minha inquietação: um amigo meu, que escreve sobre TV na internet – por ser jornalista, como você pode imaginar, tenho relações pessoais com muitos desses críticos – me escreveu perguntando o que tinha provocado a minha “ira”, se havia sido alguma coisa que alguém escreveu sobre o “Fantástico” ou sobre uma reportagem minha…

“Nada disso” foi minha resposta a esse amigo com quem não preciso usar meias palavras. A ideia de reclamar sobre a crítica – em geral, só lembrando, e não apenas de TV – veio simplesmente dos três artigos citados no post (os do “New York Times”), que, na contramão da maioria do que é escrito por aqui, tinha a lucidez de olhar para a cultura não apenas com uma opinião, mas com uma análise do que estava acontecendo. Eu ainda acho que isso é possível. Desde que – novamente procurando inspiração em Machado de Assis, esse crítico ou essa crítica dispam-se da vaidade de serem mais lidos (ou mais “queridos”) e cumpram honestamente a missão de orientar criadores, artistas e leitores a buscar uma “arte melhor”.

Pela própria repercussão que o post gerou, deu para perceber que essa é uma questão importante para nossos tempos – e espero que, de maneira lúcida e rica, ela não fique por aqui. Até porque, ao contrário do que Zappa disse na frase que citei no início do texto de hoje, eu acredito que: 1) jornalistas (não só de rock, mas de cultura em geral) sabem sim escrever; 2) artistas (vide a própria Florence Welch) sabem sim falar; 3) e mais que tudo, leitores sabem sim ler – e apreciar o que leem (e só o fato de você ter me acompanhado até aqui já comprova o que eu quero dizer).

O que eu acho que é necessário é que tanto críticos quanto leitores quebrem a barreira do que é “elaborado” ou “popular” – eufemismos perenes para o que, segundo boa parte desses críticos, “é bom” ou “é ruim”. Num universo onde tudo, virtualmente, é pop – onde você tem uma caneca com uma reprodução de Van Gogh; um “ringtone” com a “Quinta” de Beethoven; uma camiseta com um “Ser ou não ser” de Shakeaspeare -, a melhor atitude é relaxar e encarar tudo como um só grande caldo cultural. E analisar tudo sem prejulgamento.

Como sempre me lembra uma outra colega jornalista, o problema com a maioria das pessoas que escrevem sobre TV é que… elas não gostam de TV! E é verdade: o simples fato desse crítico (ou crítica) estar fora do universo televisivo parece que é capaz de alienar suas ideias – e fazê-lo(a) escrever com a premissa de que o que está na telinha é sempre muito ruim – se for o caso de ter alguma coisa interessante neste ou naquele programa, isso é lucro. Por outro lado, eu acrescentaria à observação da minha colega, muitas pessoas que escrevem de TV (especialmente na internet) e gostam da mídia não escrevem com a seriedade e dedicação necessárias para que ela possa ser mesmo uma crítica “formadora” – seus textos nunca superam o patamar de uma simples opinião. Seria demais pedir que esses dois lados – o que gosta de TV e o que escrevem bem – se juntassem?

Há ótimos exemplos de textos – e seus autores – onde essa congruência de intenção e talentos acontece. Mas certamente não estou falando de todos os tais 786… E antes que eu seja novamente mal interpretado, o mesmo desencontro acontece em todas as áreas da crítica cultural – na literatura, no cinema, e mais gritante ainda na música pop. Essa discussão hoje já está deveras longas – e eu já vou encerrá-la. Mas não sem antes usar um exemplo que é o saco de pancadas favorito atualmente de quem escreve sobre música: Michel Teló!

Diga-me se você viu por aí alguém olhar para esse fulgurante fenômeno pop e escrever sobre ele sem o preconceito de quem acha que chegar perto de algo tão popular possa ser contagioso… Tudo bem, o texto de Humberto Maia Junior e Luiz Antônio Giron num número recente da revista “Época” tinha uma boa discussão – mas era mais para o lado do comportamento do que para o da própria música. Fora isso, tem algum texto (ou link) sobre o trabalho de Teló para me sugerir?

Há alguns dias citei brevemente aqui o assunto, como algo sobre o qual quero me debruçar – e se não o fiz até agora é porque ainda não tive tempo de ouvir Teló até agora com a atenção que quem quer escrever sobre ele deveria ter. Tudo que conheço dele é mesmo “Ai, se eu te pego” – que, a rigor, nem dele é… Por isso, se tive que falar algo dele, é que eu me arrependo de não tê-lo incluído na minha lista de “entertainers” de 2011. Pela repercussão de seu trabalho – aqui e no mundo (e olha que eu tenho viajado…) -, só posso ter a maior admiração por alguém que conseguiu uma popularidade tão grande! No mínimo, sua música é divertida, engraçada, sem compromisso – e por isso ela deve ser celebrada. Vai atirar a primeira pedra neste que escreve e que gosta de falar que é fã de Radiohead? Fique à vontade…

Se esses anos de blog (5!), mais outros tantos de jornalismo, me ensinaram alguma coisa, é que o preconceito está no olho de quem lê… Ontem, terminando o “Fantástico”, apresentamos em primeira mão o clipe da versão em inglês de “Ai, se eu te pego”. Quando a música terminou, eu estava rindo solto, me divertindo com a versão, alegre com o astral do fim do programa. Parece que teve gente que achou que eu estava rindo do próprio Teló – como se eu, que no próprio domingo tinha mostrado minha entrevista com a “descolada” Florence Welch, não pudesse apenas me divertir com um refrão que celebrava “delicious, delicious”… Agora responda rápido: quem está pré-julgando quem?

 

O refrão nosso de cada dia
“Under your thumb”, The Vaccines – rápida indicação, apena para fazer justiça a esta banda que, em 2011, ficou numa espécie de “zona fantasma”: foi uma grande revelação, mas não um grande sucesso. Desconhecida para entrar no “playlist” das grandes rádios, mas ao mesmo tempo “reconhecida” o suficiente para ficar de fora da minha lista de melhores álbuns que você não ouviu em 2011. Por isso, aqui vai uma tentativa de reparação: esse refrão sensacional do Vaccines, que tem apenas o nome de uma mulher…

Quem eu entrevistei?

qui, 12/01/12
por Zeca Camargo |
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Ainda surpreso de me ver no meio de uma inesperada – porém importante – polêmica provocada por meu último post, eis que me vejo diante de mais uma viagem. Viagem esta que me trouxe um estranho flashback. Há quase 20 anos eu estava nesta mesma cidade de onde escrevo agora (Londres) para entrevistar uma certa banda chamada Pet Shop Boys (pergunte aos mais velhos), quando fui convidado a entrevistar, de surpresa, uns outros caras cujo disco ainda nem havia sido lançado. O nome do álbum era “Pablo Honey”. E a banda, claro, era o Radiohead. Os detalhes deste encontro – quando, depois de uma enorme estranheza mútua, eles confessaram quer era a primeira entrevista que davam para uma TV – já contei em detalhes aqui mesmo (e melhor ainda no meu livro “De a-ha a U2″). Mas lembrei do fato por uma curiosidade: vim para cá desta vez para entrevistar um(a) artista mais conhecido(a), e acabei levando um(a) outro(a) “de troco”, também de surpresa. Será que você adivinha quem são eles – ou elas? O motivo principal da minha viagem é alguém que estourou recentemente – e de uma maneira muito rápida. Passou do cenário alternativo para o “mainstream” em questão de meses – e acaba de lançar um novo trabalho (que, para não dar muita pista, eu chamaria de “épico”!). Um trabalho, digamos, de fôlego (e acho que já estou dando muita dica sobre quem é…). O outro talento, que levei de brinde, está bem no início de sua carreira – ele (ou ela) é praticamente desconhecido(a). Mas essa pessoa tem uma carta poderosa na manga – é, digamos, conectada a um(a) outro(a) artista que é simplesmente venerado(a), uma verdadeira unanimidade na música pop do século 21. E essa grande figura, inquestionavelmente adorada, deu sua benção à carreira desse outro novo talento, que está ainda engatinhando… Bem, desculpe a pressa. Estou, claro, na correria – e em trânsito. Mas não quis deixar você sem um post hoje – mesmo que seja como um enigma. Enigma esse, mais fácil de decifrar do que o rebuliço que meu texto de segunda-feira passada provocou. Segunda-feira que vem falamos disso tudo!

Não, não está tudo bem…

seg, 09/01/12
por Zeca Camargo |
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Ninguém gosta de ser contrariado – isto é um fato. Muito menos alguém que produz alguma coisa, que coloca seu talento (ou o que passa por talento) num projeto especial, e que espera um bom retorno desse esforço. Eu mesmo, por mais zen que minha profissão tenha me treinado para ser, fico de certa forma incomodado quando a resposta das pessoas a um trabalho meu não é exatamente a que eu esperava. Porém, uma crítica, quando é bem feita, é a melhor coisa que poderia acontecer para um artista – ou qualquer produtor cultural. Vou pedir ajuda a um certo escritor (que já conto quem é) para explicar melhor o que quero dizer:

“Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais do que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente, é a opinião contrária que predomina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes”.

Se você é um dos 786 críticos de TV – ou de qualquer coisa – que povoam aquilo que já foi chamado de “território livre da internet”, não tome as palavras acima como uma crítica pessoal. Afinal, elas foram escritas há mais de um século – mais precisamente em 1865. E por ninguém menos do que Machado de Assis. Encontrei este texto por acaso, num recente lançamento da Penguin com a Companhia das Letras: “O jornal e o livro” – um dos primeiros modestos volumes da coleção “Grandes ideias” (como já existe na Penguin inglesa – aliás, eu lamentaria que as capas da coleção daqui não têm a originalidade das de lá, mas você vai achar que eu estou divagando…). Mas achei curioso como ele veio bem ao encontro de algumas coisas que eu vinha pensando recentemente sobre a crítica nos tempos de hoje.

(Antes de continuar, falo mais uma vez aos 786 críticos de TV da internet: a citação foi uma brincadeira – quase uma homenagem. Minha intenção era parafrasear o grande Paulo Francis, que gostava de brincar que, no seu tempo, a “Folha de S.Paulo” tinha 300 críticos de cinema – não tenho muita certeza se o número que ele dizia era esse, mas vale a lembrança. Fico pensando o que Paulo Francis, com quem tive o prazer de trabalhar diretamente quando fui correspondente da própria “Folha” em Nova York, em 1988, faria desse “mar de críticos” que navegam sem bússola pela internet. Mas eu divago – assumo! Deixa o Francis para outro dia…).

Minhas elaborações sobre a crítica cultural atual partiram de três artigos que li recentemente – um sobre literatura, outro sobre TV, e o último sobre rock. No primeiro deles, Geoff Dyer (um escritor que admiro muitíssimo), nas páginas do “Sunday Book Review” (do jornal “The New York Times”), desbanca um livro que foi laureado no ano passado com o prestigioso Man Booker Prize – e celebrado aqui mesmo neste espaço: “The sense of an eding”, de Julian Barnes. Em um texto curto, Dyer tem a ousadia de criticar não apena o aclamado Barnes, mas todo o cenário da literatura inglesa atual.

“(O livro) não é terrível, é apenas tão… mediano. É medianamente atraente (eu o terminei), demanda uma quantidade mediana de concentração e, se é que isso faz sentido, é medianamente bem escrito: excelência mediana!”, escreve Dyer. E, mesmo relutando em concordar com ele – eu insisto: gostei muito do livro e continuo gostando -, o artigo me fez pensar. Menos sobre o livro em si, mas na coragem de Dyer em se levantar para contrariar um “senso comum”. Entregar-se a ele, a esse senso comum, é a pior coisa que poderia acontecer a um crítico. Mas a maioria deles parece não estar nem ligando… Cito o mesmo texto de Machado mais uma vez:

“Sem a coerência perfeita, as suas sentenças (do crítico) perdem todo o vislumbre da autoridade, e abatendo-se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e todos os caprichos, o crítico fica sendo o oráculo de seus aduladores”.

E mais uma vez me espanto em ver como Machado continua atual. Numa inversão perversa que só a internet seria capaz de trazer, criar um assunto polêmico hoje – para quem é blogueiro (como eu sim, quem disse que eu estou imune a isso?) ou colunista – é quase que um objetivo maior do que a qualidade do próprio texto que ele escreve, uma vez que o que conta é o número de cliques (ou de comentários) e não o que está sendo realmente dito. Como sabemos, muita gente responde apenas ao título de uma coluna, vai direto aos comentários, e ali começa uma discussão inócua, desprendida do próprio texto original – mas que faz a alegria do blogueiro (ou do colunista), porque afinal, isso cria tráfego… Os conselhos de Machado, para que uma crítica seja “sincera, sob a pena de ser nula”, soam como um apelo distante, mas, novamente, não poderiam ser mais atuais.

Mas há esperanças. Um outro texto que li na revista do jornal “The New York Times” teve a “coragem” de criticar de frente os seriados de TV supostamente inteligentes. Para Heather Harvrilesky, a autora do artigo, “Lost”, mais que um marco, foi uma praga para os escritores do formato na TV americana, porque condicionou um geração inteira a assistir uma temporada completa de um seriado sem que uma solução plausível para toda a trama fosse oferecida no final. De fato, “Lost” – que acompanhei religiosamente – foi uma decepção crescente, culminando com um desfecho que era bem aquém do que até o fã mais dedicado poderia esperar… E a moda pegou!

Havrilesky cita três outros seriados que foram bastante elogiados e bem recebidos pelo público na atual temporada de televisão nos Estados Unidos – “The killing”, “Homeland” e “American horror story” (que se não me engano podem ser vistos na TV a cabo por aqui) – como exemplos de tudo que está errado hoje em dia com esses roteiros. Para ela, a “era de ouro” desses seriados já está ficando bem para trás – “A sete palmos”, “Os Sopranos”, “Breaking bad” – enquanto que a audiência atual se contenta com migalhas, como ratos que ao fim de um labirinto entra alegremente em outro sem saber se vai ter saída (a citação é da autora).

Quem é que tem coragem, hoje em dia (especialmente aqui no Brasil), de fazer uma análise séria e contundente do que acontece na TV? A maioria dos ditos críticos já se dão por contentes de papagaiar o próprio universo “trash” que a maioria das atrações que atraem algum público oferece. Quer um exemplo recente? Virtualmente ninguém resistiu comentar sobre a estreia recente de “Mulheres ricas”… Um programa com uma “relevância”… E nesta semana mesmo vamos poder verificar o fenômeno acontecendo de novo – e com uma cruel distorção. “BBB 12″ e “Dercy de verdade” estreiam nesta terça-feira. Qual dos dois programas você acha que vai ser mais “analisado” pelos “críticos de plantão”?

Atenção espertinhos! Não estou “dando uma alfinetada” no “BBB”, como você já deve ter twittado… Como alguém que já inclusive apresentou um “reality show”, tenho a maior consideração pelo gênero, e em especial pelo “BBB”, que simplesmente domina o imaginário pop do brasileiro – basta ver a reação de ojeriza que o “pobre” advogado que pediu para sair antes do programa começar sofreu com sua decisão… A questão que estou querendo levantar é sobre os verdadeiros motivos que movem esses “críticos”, se eles estão mesmo preocupados em “olhar para a televisão” ou simplesmente atrair leitores – ou melhor, cliques, já que, como sugeri anteriormente, poucos são os que passam os olhos de fato pelo texto… Diga lá, ó Machado:

“O crítico deve ser independente – independente em tudo e de tudo -, independente da vaidade dos autores, e da vaidade própria”…

Ah, a vaidade dos críticos… Quem vai querer deixar de ser adulado pelos próprios artistas, autores, criadores, que se escreve? Se isso já vale para a televisão, imagine para um universo onde a simbiose entre crítica e a artista é ainda mais libidinosa: o da música pop. Um texto como esse outro que encontrei também no “The New York Times” – no caderno “Arts and Leisure” – é uma raridade. Afinal, seu autor, Jon Caramanica, teve a coragem de falar que a criação recente do rock americano está simplesmente estagnada. Isso mesmo – olha que ousadia! As bandas de maior sucesso de 2011? Sublime With Rome? Foster the People? E até mesmo os atuais queridinhos dos alternativos, os Black Keys? Tudo uma bobagem. Ou nem isso! Tudo muito normal!

Como no caso do argumento de Havrilesky, Caramanica pega como referência um passado recente: há menos de uma década, estávamos nos deliciando com bandas realmente revolucionárias como The White Stripes e The Strokes (e pode colocar até um certo Franz Ferdinand nesse pacote!). Mas hoje? Só essa “meia bomba” de artistas que não estão muito preocupados em mudar nada… Aqui no caso também é fácil fazer um paralelo com o cenário brasileiro. Você vê alguém escrevendo algo realmente sério sobre, por exemplo, o novo disco de Maria Gadú? Quando muito o que temos é um arremedo triste daquela crítica que apela mais para a ironia (e “flamboyance” do seu autor), que começou a surgir no final dos anos 8o e cresceu como uma Hydra nos anos 90 – nos terrenos férteis dos cadernos culturais dos principais jornais brasileiros deste período. Agora todo mundo faz gracinha em suas crítica – lógico! É o melhor jeito de chamar atenção: tirar uma frase engraçada para virar um título chamativo na cacofonia de uma primeira página de portal na internet. Agora um texto mesmo, falando dos (visíveis) problemas da maioria dos recentes lançamentos musicais no Brasil – desculpe, mas não vi. Nem mesmo sobre a sensacional obra-prima de Gal Costa, “Recanto” (sobre a qual quero escrever aqui em breve).

Está tudo meio mais ou menos – tanto do lado de quem faz, como do lado de quem analisa (ou critica). E por isso mesmo eu quis aqui fazer o mesmo manifesto. Sobre o qual, como sempre, você está convidado (convidada) a discordar – ou mesmo concordar! Mas sem cair nas mesmas tentações que mencionei acima, vamos combinar? Para encerrar também com Machado, faço eco ao seu desejo de outrora:

“Quanto à crítica dominante, como não se poderia sustentar por si – ou procuraria entrar na estrada dos deveres difíceis, mas nobres – ou ficaria a conquistar, de si própria, os aplausos que lhe negassem as inteligências esclarecidas”.

 

O refrão nosso de cada dia
“Seconds”, Little Dragons – de uma das bandas que fez um dos melhores discos que você NÃO ouviu em 2011, uma música que é um refrão musical em “loop” do começo ao fim. Não tenho ideia quem montou essas imagens de Brigitte Bardot sobre essa faixa, mas o casamento foi perfeito. Confira!

Branco

qui, 05/01/12
por Zeca Camargo |
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Você sabe que eu não acredito em coincidências. Nem por isso deixo de aproveitá-las quando elas surgem. E foi por isso que, voltando de Johanesburgo, da minha folga de Natal, eu resolvi assistir ao filme “The help” no avião. Para explicar melhor esse meu itinerário, eu estava mesmo é voltando da Namíbia, onde fui passar o feriado com minha família e alguns amigos (sim, é de lá a foto que publiquei no último post de 2011 – muita gente não percebeu, mas ali no fundo tinha uma girafa, flagrada em momento “íntimo” durante um passeio no Parque Nacional de Etosha). Sobre esse lugar, onde tivemos algumas das mais belas visões de todos os Natais que já vivi (imagine você jantando de frente para a savana, no dia 24 de dezembro, quando de repente dezenas de zebras – de todas as idades, inclusive bebês – se aproximam para beber água, formando o mais inesperado dos presépios!), ainda quero falar mais e melhor – estou pensando até em escrever um certo conto com aquele lugar de pano de fundo. Mas eu divago – para começar o ano bem… O que quero falar hoje aqui, para abrir bem 2012, é sobre uma outra experiência: a de ter assistido a “The help” (que, no Brasil, vai ganhar o “criativo” e “enganador” título de “Histórias cruzadas” – mais sobre essa “tradução” daqui a pouco) depois de ter visitado o Museu do Apartheid, em Johanesburgo.

Principal cidade de conexão para vários destinos – na África e no Oriente –, Jozi (como os locais chamam Johanesburgo) não é uma cidade especialmente charmosa. Também não é especialmente receptiva. Pode ter sido uma impressão minha, mas a própria história daquele lugar (que se mistura, claro, com a do próprio país) não permite que a atmosfera seja tranquila. Sem nenhuma beleza natural que salte aos olhos – Cidade do Cabo (que ainda não conheço), parece que é mais encantadora –, a opção do nosso grupo, que tinha de passar duas noites por lá, era explorar seu lado cultural. Por conta disso, inevitavelmente, fomos visitar o Museu do Apartheid.

Sei que parece estranho imaginar um museu cujo acervo não é recheado exatamente de obras de arte, mas eles já existem espalhados pelo mundo – o Brasil, claro, ainda está alguns anos atrás desta tendência (a não ser que você me convença do contrário dizendo que já foi por aqui a um belo “Museu da Escravidão”, ou mesmo um “Museu da Ditadura Militar”…). E visitá-los é uma experiência quase sempre perturbadora. O maior incômodo, quando passeamos por corredores que nos confrontam com nossa história recente – ou melhor, com os erros da nossa história recente –, é perceber justamente o quão estamos próximos desses erros. O Museu do Apartheid, porém, traz uma perturbação a mais: você o visita no exato cenário em que tudo aconteceu – e a proximidade das barbaridades que você encontra lá não é apenas histórica, mas física.

A primeira coisa que chama a atenção no museu é sua entrada. Assim que você compra o bilhete de admissão, você ganha uma admissão para apenas uma das portas do museu (a emissão de entradas é randômica): ou pela entrada de “brancos” ou pela de “não-brancos”. Isso mesmo: logo de cara, você é obrigado a olhar para si mesmo e perceber que essa diferença, há não muito tempo, era assustadoramente determinante para quem nascesse – e tentasse ter uma vida digna – na África do Sul. No grupo em que eu estava, estranhamente, senti um frisson da parte de quem ganhou uma entrada pela porta “não-brancos”. Como a turma era justamente de pessoas que, segundo a classificação do apartheid, eram “brancas”, entrar por onde “os outros” entravam parecia ser um gesto de ousadia… Uma ousadia que me pareceu tola. Eu mesmo preferi entrar pela porta dos “brancos”, nem que fosse para eu me lembrar que quem provocou esse episódio terrível da história da humanidade era alguém exatamente como eu. Branco, como eu…

Ocorreu-me agora que talvez eu esteja falando de uma coisa que muita gente – especialmente os mais jovens – não tem ideia do que se trata. Vale então uma rápida introdução para explicar que “Apartheid” foi um regime político que vigorou na África do Sul por quase 50 anos (terminou em 1994!), onde basicamente “brancos” tinham privilégios que “não-brancos” não podiam nem sonhar. Em uma frase, se você não era “branco”, não era cidadão político – aliás, não era cidadão coisa nenhuma. E isso, só lembrando, dentro do próprio território onde esses “não-brancos” viveram por séculos antes de – adivinha! – os “brancos” chegarem… Se o sistema era terrível demais para conceber, vale a pena dar pelo menos um passeio virtual pelo site do museu para você entender que uma atrocidade como essa realmente existiu.

Usei palavras carregadas, mas não exagerei. Entre registros impressionantes – imagens de violência, de humilhação, de confronto – o museu é inteligentemente estruturado. Depois dessa entrada segregada, você segue por uma rampa aberta onde encontra várias silhuetas de pessoas que, na época do apartheid, jamais poderiam estar andando ao seu lado – do seu lado “branco”. E então você entra de novo no museu, para visitar espaços impressionantes, como a reprodução da cela onde Nelson Mandela – o símbolo maior da resistência ao apartheid – ficou preso por décadas; ou a sala das forcas – com inúmeras cordas penduradas no teto, apenas a espera de um cadafalso… Isso tudo é muito difícil de digerir – o que não impede que o museu cumpra sua missão e seja um sucesso.

Na tarde em que visitamos, topamos com hordas de turistas (“brancos”), que tentavam absorver aquilo tudo com diferentes graus de culpa… E também vimos várias famílias (de “não-brancos”), que mesmo vivendo hoje com uma liberdade que duas gerações atrás não seria sequer concebível, passeavam por aqueles registros com uma estranha mistura de indignação e receio. Será que aquilo tudo já seria mesmo História? Alguma coisa desse passado ainda teria desdobramento no nosso presente? Estariam as coisas realmente resolvidas entre “brancos” e “não-brancos”? A resposta veio no final do passeio…

Eu tinha ficado extremamente interessado em um livro publicado em 1967, de um fotógrafo sul-africano chamado Ernest Cole. “The house of bondage” – o nome do livro – foi um marco: o primeiro registro de um fotógrafo negro sobre o temerário cotidiano de quem era segregado. Suas imagens ocupam um lugar de destaque no museu, e são tão fortes que tive vontade de comprar uma reprodução do livro – o que, imaginei, seria fácil: era só chegar na loja do museu, no fim da visita, e procurar por ele. Mas quando fui lá e perguntei por “The house of bondage”, a resposta da mocinha que atendia foi categórica: esse livro não estava disponível. Aliás, ele nunca havia sido publicado na África do Sul! Até hoje!

Então essas são as feridas fechadas…

Não estou sendo irônico. Nem ingênuo. Divisões tão profundas como as que o apartheid provocou não são simples de resolver. Mas todo esse clima ficou comigo ao longo de toda a viagem – mesmo na Namíbia. E voltou de maneira sinistra à tona quando então, no avião de volta para casa, eu resolvi assistir a “Histórias cruzadas” – que é um dos filmes favoritos a várias categorias do próximo Oscar, mas que ainda não estreou no Brasil (poderia divagar aqui sobre a curiosa distorção de eu estar vendo, num vôo transatlântico, um filme bom que os distribuidores brasileiros preferiram esnobar, mas vou me controlar).

A história de “The help” (insisto em usar o título original em protesto contra a tradução – e já explico o porquê) fez um estranho paralelo com minha visita ao Museu do Apartheid. Para quem ainda não sabe, trata-se de uma jovem jornalista, nos anos 60, em Mississipi (um dos estados mais segregados dos Estados Unidos na época), que resolve escrever um livro sobre um assunto que ninguém nunca havia ousado tocar: a vida das empregadas domésticas “não-brancas” trabalhando nas casas de patrões “brancos”. Quer dizer, “trabalhando” é um eufemismo para todo o tipo de humilhação que elas poderiam receber…

O filme é adaptado de um livro de enorme sucesso, escrito pela autora americana Katherine Stockett. Pelo que havia lido até então, tanto sobre o livro quanto sobre o filme, eu tinha a impressão de que era uma história apelativa – escrita (e filmada) para fazer a gente chorar. Temo em confessar, mas eu estava pensando como mais um “branco” idiota. A julgar pelo filme (ainda não li o livro, mas quero ler), essa é uma história genuinamente emocionante. “The help” vai fazer você chorar sim – prepare seu lenço para quando ele finalmente estrear no Brasil, a princípio no começo de fevereiro. Mas é em cima de uma reflexão inteligente sobre o preconceito que existe até hoje dentro de todos nós – nós, os “brancos”. E sobre a dignidade indestrutível deles – os “não-brancos”.

Estou ciente de que esse é um assunto delicado – especialmente aqui no Brasil, onde esse assunto é pouco discutido, quando não varrido para baixo do tapete (de preferência por uma empregada doméstica que, como no filme, não pode usar o banheiro da patroa…). Mas por isso mesmo acho que ele vale a pena ser cutucado – e convido você, quem sabe, a dar sua opinião. Muito além das performances notáveis de Viola Davis e Octavia Spencer, “The help” te obriga a confrontar todas as situações de desigualdade que nós, brasileiros tão modernos, tão descolados, tão cosmopolitas, tão bem resolvidos. vivemos durante nosso dia-a-dia – e nem nos damos conta. Mas são situações horríveis que nós mesmos criamos – e repetimos, e não percebemos. Não são apenas “histórias cruzadas”, como o título traduzido do filme no Brasil sugere – como se fosse uma questão do acaso, que displicentemente colocou “brancos” e “não-brancos” para viverem sob um mesmo teto. Não.

Esse “não-brancos”, durante anos – séculos – foram tratados pelos “brancos” como “estranhos”, com “ou outros”, como os “não como nós”. E eram chamados de “a ajuda” (“the help”) – um nome genérico que em nada contribuía para a auto-estima dessas pessoas. Que, aliás, como Aibileen (a personagem de Davis) diz logo no começo do filme, adoraria ter outra vida – se ela pudesse ter tido a escolha. Eu tenho certeza de que você conhece alguém como Aibileen – não na sua casa, claro, onde essas coisas “não acontecem”… Mas na casa de uma amiga, uma conhecida, alguém que trabalha com você. Não precisa entrar em detalhes. Só de você já te lido este texto até aqui eu acredito que essa ficha daqui a pouco vai cair. E se quiser ir a fundo nas coisas que vão começar agora a passar pela sua cabeça, vá ver “The help” quando estrear. Dê uma pesquisada aqui mesmo na internet, nas fotos de Ernest Cole. E se possível, visite o Museu do Apartheid.

O refrão nosso de cada dia
“Free Nelson Mandela”, The Specials – estava na dúvida se continuava aqui com esse apêndice em 2012… Se eu seguia ou não apresentando mais músicas (e refrões) que eu admiro para você. E quis o destino que eu escrevesse sobre apartheid – e sentisse que o texto acima não estaria completo se eu não indicasse para você uma música. Justamente essa: “Free Nelson Mandela” – um hino do pop de protesto. Que, diga-se, quando é feito com talento e alegria, não é nada chato. Pelo contrário, é puro prazer. E vamos em frente com ótimos refrões me 2012!



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