Humor por escrito
Muita gente acha que a principal diferença entre alguns humoristas brasileiros e seus colegas americanos é a capacidade que os primeiros têm de contar piadas supostamente “irreverentes e transgressoras” – digamos, dizendo que uma mulher é tão atraente que o próprio humorista seria capaz de transar com ela e o bebê que está na barriga dela – e continuar trabalhando, enquanto seus colegas do hemisfério norte não têm a mesma “sorte”. Tal proeza, claro, deve-se menos ao talento desses artistas do que à extrema (e curiosa) tolerância do próprio público brasileiro em acatar tais gracinhas (até, claro, que alguém muito próximo de você seja alvo de uma delas – vide a reação de Ronaldo Fenômeno à “piada” que citei acima), ou mesmo à miopia da própria imprensa e de vários anunciantes poderosos que, inebriados pelo afã de relacionar sua reportagem (ou notinha) ou sua campanha (ou produto) a alguém que é “popular” – leia-se “com potencial de trending” -, celebra esses mesmos nomes como “avatares de um novo humor”…
(Quer falar de “humor e transgressão”? Então assista à rotina de piadas que Ricky Gervais fez na última cerimônia de entrega do Golden Globe, e aí a gente discute o que é realmente “irreverente”: fazer piadas com os outros enquanto eles estão na plateia – e sem apelar para um contexto sexual ou pornográfico; ou brincar com alguém apenas quando essa pessoa não está presente para, hum, “rir de si mesma”? Mas acho que eu divago – e logo no início do texto… Vamos retomar.).
De fato, essa, digamos “impunidade humorística” (que no Brasil, por um passado do qual todos nós nos envergonhamos, é cinicamente defendida em nome do fantasma da censura – por falar em hipocrisia…) é uma das coisas que separam “eles” de “nós”. Como vários comediantes americanos já experimentaram pessoalmente, uma piada de mau gosto pode significar o fim (ou pelo menos um grande hiato) na carreira, por mais brilhante que ela seja. Mas há outra diferença que, para mim, chama mais a atenção: os americanos têm a capacidade de escrever livros – e bons! No Brasil – e peço que você me corrija com exemplos se eu estiver generalizando demais -, “livro de humor” é sinônimo de coletâneas de piadas – que, muitas vezes, nem são da autoria de quem assina a capa. A turma do Casseta & Planeta sempre foi prolífera em lançamentos assim – e, para ser justo, Hélio de la Peña, foi a exceção à regra, quando lançou títulos como “O livro do papai” e “Vai na bola, Glanderson”, com material que não é simplesmente reciclado de algo que já existia. Já boa parte dos humoristas americanos que conseguem projeção maior é bem mais versátil, e sabe muito bem expandir seu público e sua imagem em um veículo – o livro – que exige um pouco mais do que alguns segundos de sua atenção, e oferece algo ligeiramente mais sofisticado do que um palavrão em troca do seu riso.
Escolhi falar sobre isso hoje – num hiato entre dois fins-de-semana de Rock in Rio (mais sobre o festival, claro, aqui neste mesmo espaço, na segunda-feira que vem) – porque aproveitei esses dias de descanso (segunda, terça e quarta), para ler dois livros que comprei em viagens recentes aos Estados Unidos, e que me fizeram rir muito. O primeiro é “Bossypants” – uma espécie de autobiografia de uma das comediantes mais bem sucedidas atualmente na TV americana, Tina Fey. O outro é “This is a book”, do novato Demetri Martin – que me fez gargalhar mais ainda do que “Bossypants”. Nenhum desses dois livros, lamentavelmente, ainda foi lançado no Brasil – e, admito, acho que as chances são poucas de vermos uma tradução sair por aqui (mesmo no caso de Fey, que tem pelo menos um bom fã clube entre nós por conta do “sitcom” “30 Rock”). O que é uma pena. Mas se você tiver a coragem de encarar esses livros no original, em inglês – nenhum deles é um intricado trabalho de literatura, e você pode investir neles mesmo com um conhecimento básico de inglês -, posso garantir que não vai se arrepender.
Vou falar primeiro de “Bossypants”, que é exatamente o que quem conhece o trabalho de Tina Fey espera dessa artista. Se você já passou os olhos por “30 Rock”, mesmo de relance, sabe que o principal trunfo do humor de Fey é fazer as pessoas rirem dela mesma – no caso do “sitcom”, de sua personagem Liz Lemon (que, como eu sempre desconfiei, e depois de ler a biografia tive certeza, tem muito da própria atriz). No lugar de optar pelo caminho fácil – e que hoje em dia no Brasil é celebrado como “inovador” – de fazer humor diminuindo os outros, o foco de Tina Fey é a “esculhambação” de si mesma (o que, na minha opinião, é muito mais engraçado – é isso, inclusive, que faz de Sabrina Sato uma das minhas humoristas favoritas no cenário nacional). Para dar o primeiro exemplo, veja a lista de coisas que, como ela escreve, ela descobriu durante sua adolescência que precisam ser corrigidas no corpo de uma mulher (a relação de itens é enorme, selecionei apenas alguns deles aqui):
“A qualquer momento no planeta Terra, uma mulher está comprando um produto para corrigir alguma das seguintes ‘deficiências’:
- poros grandes
- ‘braço que balança no tchauzinho’
- mamilos muito grandes
- mamilos muito pequenos
- um seio maior que o outro
- um seio menor que o outro (Como essas duas coisas são diferentes? Não sei.)
- pneus
- veias aparentes
- cílios pequenos
- joelhos pontudos
- testa curta
- muita batata da perna
- nenhuma batata da perna
- tons de pele esverdeados”
Um pouco mais adiante, no mesmo capítulo, ela lista os improváveis atributos que uma mulher deveria ter hoje em dia para ser considerada bonita (uma missão obviamente impossível):
“- olhos azuis caucasianos
- lábios espanhóis carnudos
- um nariz redondinho clássico
- pele asiática lisa com bronzeado californiano
- bunda de dançarina jamaicana
- pernas longas de sueca
- pezinhos de japonesa
- abdominal de lésbica dona de academia
- quadril de um menino de nove anos
- braços de Michelle Obama
- peitos de boneca”
Precisa dizer que ela mesma não possui nenhum desses quesitos? Marcada no rosto por um acidente quando ainda era criança (de vez em quando é possível ver isso numa cena de “30 Rock”), ela faz graça o tempo todo com sua falta de traços que pudessem chamar a atenção dos meninos quando ela ainda estava crescendo. Hoje ela é uma mulher bonita, mas “padeceu” naquela difícil fase da adolescência – e como todo mundo diz que “comédia é tragédia + tempo” (a frase é geralmente atribuída a outra comediante americana, Carol Burnett), Fey faz da sua biografia uma ótima matéria-prima para o humor.
“Bossypants” – cujo título é difícil de traduzir para o português (seria vagamente algo como “chefinha de calças compridas”) – está há seis meses entre os livros mais vendidos nos Estados Unidos, e pode apostar que isso não é um mero reflexo da popularidade de Fey na TV. As pessoas, assim como eu, mergulham com prazer na experiência de serem levadas pelo talento de uma humorista não apenas nas caras e bocas que ela é capaz de fazer (já viu sua imitação de Sarah Palin?), mas pelo poder das suas palavras.
Do seu pai, Don Fey – assunto exclusivo de um capítulo -, ela espera herdar o dom de passar para sua filha o mesmo que ele a ensinou: o presente da ansiedade – “O medo de se envolver em confusão. A sabedoria de que mesmo sendo amada, você não está acima da lei”. Das suas primeiras experiência fotografando para revistas de moda ela conta: “Existem tipos diferentes de fotógrafos disputados. Alguns têm personalidades grandes e divertidas, como Mario Testino, que uma vez me falou, ‘Levanta essa bochecha, querida, você não têm dezoito anos’. Eu gostei da sua honestidade. Além do que, eu tenho quase certeza de que ele diz isso para modelos que têm dezenove anos”. Sobre as tribulações do seu “sitcom” de sucesso (que mesmo depois do reconhecimento do público e de vários prêmios, ainda sofria resistência da direção da TV), ela comenta: “Acho que esse show surgiu da Terra para me ensinar paciência e compaixão”…
Em cada parágrafo de “Bossypants” Tina esbanja coerência, bom sendo, e bom-humor, numa prova de que a tal arte de fazer rir depende muito menos de surrados clichês preconceituosos do que de inteligência. Mesmo ao tocar em assuntos que poderiam despertar alguns melindres, ela o faz de maneira ultra espirituosa e divertida. Como, por exemplo, ao comentar sobre duas amigas da sua adolescência, que, para o terror da sua mãe, eram um casal de lésbicas: “Acho que devo declarar que Karen e Sharon nunca deram em cima de mim e nunca houve um clima esquisito entre nós. Os gays não ficam tentando converter outras pessoas. Quem faz isso são as testemunhas de Jeová.”… Essa passagem, porém, é um trecho extremo, já que o tom do livro em geral é de uma inocência que não coraria nem as mentes mais pudicas.
Não muito diferente do humor de Demetri Martin, em “This is a book” – um título bem mais fácil de traduzir para o português (“Isto é um livro”). Não se trata de uma biografia, mas de uma coletânea de textos desse humorista que a “New York” colocou na sua capa em 2009 como – sim – o futuro do humor na TV (americana). E é simplesmente hilariante. Já na introdução, ao dar instruções como que para uma plateia que está prestes a assistir a um show de “stand-up” ele pede: “Por favor, desligue todos os seus celulares e pagers. E, se você tiver um pager, por favor devolva-o para os anos 90″. E conclui: “Agora, encoste, relaxe, e aproveite o show. Se não, prepare-se para sofrer as consequências”!
À medida que você lê o livro, porém, percebe que o aviso é quase dispensável, pois é impossível não se divertir com o que Demetri escreve. No capítulo chamado “Papai”, ele descreve a experiência (fictícia, espero) de ter sido criado por um pai que, por sua vez, foi criado por lobos (sim, lobos!) – aqui na minha tradução sempre apressada, como em tudo que citei aqui hoje:
“Suas habilidades paternais eram algo entre mínimas e inexistentes. E quando ele de fato tentava dar alguma educação, eu me sentia mais como se eu estivesse sendo adestrado. Embora, eu tenho que admitir, era quase sempre eficiente. Quando seu pai te morde na nuca, você aprende as coisas rapidinho”.
Em outro trecho, ele conta como é receber as visitas dos pais do seu pai – lobos de verdade: “Meus avós, se é que posso chamá-los assim, são ainda mais difíceis de se relacionar do que meu pai. (…) Quando estou com eles tenho a sensação de que eles me matariam se eu não fosse um parente”. Mais do que inspirado em estereótipos de nível duvidoso, o humor de Martin vai buscar inspiração em situações absurdas, mas que eventualmente poderiam até ser plausíveis. Como nessa conversa que um “comandante alienígena” que acaba de invadir a Terra têm com um general do alto escalão do governo americano:
“COMANDANTE ALIENÍGENA: Eu e meu conselho exigimos falar com seu líder supremo.
GENERAL MARKS: Claro, comandante. Eu já contatei o presidente, e ele -
COMANDANTE ALIENÍGENA: Miss Universo.
GENERAL MARKS: O quê?
COMANDANTE ALIENÍGENA: Miss Universo
GENERAL MARKS: … Hã-
(…)
COMANDANTE ALIENÍGENA: Eu sou o Comandante Supremo de todo o sistema planetário, General. Eu não ou falar com o presidente. Eu quero falar com Miss Universo, e apenas com Miss Universo.”
O diálogo, novamente totalmente absurdo e plausível – afinal, quem seria mais poderoso, um presidente de um país ou alguém cujo título representa todo o universo? – é engraçadíssimo, e um dos pontos altos de “This is a book”. Eu ainda poderia citar aqui o teste que, no futuro, vai diferenciar humanos de robôs (pergunta típica: “O que você acha de sua máquina de lavar louças? a) eficiente b) hilária”). Ou os pensamentos livres de um “cara branco com dreadlocks” (meu favorito: “Meus pais pagam meu aluguel”). Mas seria injusto com quem se animou para conhecer mais do humor de Demetri (existem vários vídeos seus no youtube também, se você se animar!): você merece descobri-lo sozinho (ou sozinha).
(Ainda nessa linha muito fina que divide o absurdo do plausível, eu poderia citar, como bons exemplos nacionais, as rotinas de “stand-up” que agora fazem parte de um quadro do “Fantástico”. Se você viu, por exemplo, Cláudio Torres falando sobre restaurantes e comida – de cabeça, me lembro de coisas como “se salada fosse bom alguém já teria inventado um rodízio”, ou “ei garçom, me vê uma fatia de beterraba, sangrando” – sabe o que eu quero dizer. Mas não quero dar motivo para alguém dizer que estou aqui para fazer um “merchan” do programa que apresento – você sabe de que tipo de leitor eu estou falando… E nem quero divagar pela segunda vez hoje… Vamos retomar – mesmo!).
Os livros de Tina Fey e Demetri Martin são apenas dois dos exemplos mais recentes desse “diferencial” entre comediantes americanos e brasileiros. Antes deles, claro, vários outros humoristas já mostraram sua capacidade de escrever – Jon Stewart, por exemplo, para falar de um que foi extremamente bem sucedido nessa área (além da carreira na própria TV). E. para citar um ídolo de longa data, Steve Martin (que não tem nada a ver com Demetri), conseguiu passar para o papel (ou para a tela do seu tablete, se preferir), não só seu talento para o humor como também o dom de narrativas talvez menos engraçadinhas.
Nem tudo deve estar perdido por essas terras. Recebo notícias de que Cris Nicolotti – aquela moça do refrão clássico aqui já celebrado – está para lançar um livro (“Os cigarros que a gente fuma de madrugada na mesa da cozinha”). Quem sabe isso não é o primeiro passo de uma verdadeira onda nova no humor brasileiro?