Agora, sério: qual a pior música do mundo?
Pelas minhas contas, ontem assisti ao sétimo espetáculo da companhia de Pina Bausch: “Ten chi” – mais um, de um repertório de dezenas de danças. Pina, cuja morte foi lembrada aqui mesmo, há dois anos, foi (e é) um dos nomes mais importantes da dança contemporânea – e, pelo que vi ontem, seus bailarinos estão firmes no propósito de levar o espírito da coreógrafa alemã adiante (algo que o documentário do diretor alemão Win Wenders , recém-lançado na Europa – e que deve chegar aqui em breve – só vem ajudar a perpetuar).
“Ten chi” é um dos “balés temáticos” de Pina – peças que ela fazia “inspirada” por algum lugar do mundo (uma vertente deveras criticada do seu trabalho, mas que, do que eu pude conferir, resultou em espetáculos belíssimos, como o “Mazurca fogo”, que veio de suas experiências em Portugal). O foco ali foi o Japão. E a experiência foi – como sempre é com Pina – sublime. Os solos de dança, de tão sofisticados no gestual, pareciam penalizar cada piscada de quem assistia, exigindo atenção absoluta – um desafio que era recompensado a cada troca de bailarinos no palco. Mas era sobretudo nos “retratos” – os pequenos “tableaux” que ela coloca mansamente em cena – que estavam as maiores preciosidades da noite. Como quando uma bailarina entra com dois pires com comida para passarinho nas mãos e é suspendida do solo por um bailarino pelas axilas, para ganhar um beijo nas alturas… Ou a mulher que ganha um leque de outro bailarino, mas precisa que este movimente seu braço em pequenas rotações para que ela consiga se abanar. Ou ainda o sutilíssimo movimento de um casal, onde o homem leva lentamente, com o topo da sua cabeça, as mãos de uma mulher até os ombros…
Qualquer palavra é vã para reproduzir esses momentos. Os balés de Pina Bausch são essencialmente eventos de palco (o youtube está cheio de boas cenas, mas que apenas esboçam o que é o impacto de ver aquilo ao vivo). E nem quero aqui hoje discorrer (mais uma vez) sobre essa minha relação (de extrema gratidão) com a mulher que ensinou o mundo inteiro que um corpo não é apenas seu contorno, mas também tudo aquilo que ele leva dentro de si. Comecei a falar hoje sobre o que vi ontem por uma razão inesperada que vou explicar agora.
Além dos movimentos estupendos e sedutores, um balé de Pina Basch é conhecido também pela peculiar seleção musical. Cada música que ela escolhe é em si especial, mas, melhor do que as partes, o “todo” é genial. A trilha sonora de cada espetáculo se fortalece pelo cruzamento de sons, pelo contraste entre os ritmos, e pelas associações inesperadas. Com isso em mente, imagine o que Pina não fez com um tema tão rico quanto o Japão…
Não obstante, a certa altura do segundo ato (“Ten chi” tem meras três horas de duração!), durante um número bizarro, em que uma bailarina faz sons com o microfone bem perto da boca sobre uma batida eletrônica, sabe-se lá por que razão, eu me lembre de… “Friday”! Sim, “Friday”, de Rebecca Black! Como assim?
Não perdi tempo com explicações – e, felizmente, logo eu já estava com minha atenção concentrada de novo no palco (especialmente quando ele foi invadido por homens de terno com mais gravatas que um pescoço normal pode comportar, correndo de um lado para o outro, enquanto mulheres, em longos esvoaçantes, gritavam a plenos pulmões simulando saltos em abismos!). Mas hoje de manhã me lembrei dessa “interferência” sonora, e pensei: se “Friday”, quase um mês depois de seu “lançamento”, já está tão enraizada no meu imaginário (e no de populações de países inteiros, já que o vídeo está com quase 90 milhões de acessos no youtube ), será que essa é mesmo “a pior música do mundo”?
Como você que acompanha o universo pop – e este blog – sabe bem, parte do, hum, sucesso, de “Friday” é por puro escárnio. Fonte de inúmeras paródias na própria internet, e assunto de todo tipo de jornal (da MTV à CNN, passando pelo próprio “Fantástico”!), não tenho dúvidas de que boa parte dessa repercussão deve-se à estranha reputação que Rebecca conquistou – involuntariamente: a de ser, na opinião de muitos internautas, jornalistas (já leu o que o “NME” escreveu sobre ela? ), e público em geral, a pior canção de todos os tempos…
Sem querer defender propriamente “dona” Rebecca, mas sim o poder da música pop, pergunto para você: será mesmo? Uma canção que simplesmente não sai da sua cabeça, que inspira humor, que faz você dançar, e que exerce estranho fascínio – ainda que pelos motivos errados – sobre você, é mesmo tão ruim assim?
A partir daí, comecei a remexer meus arquivos musicais para ver se eu mesmo tinha uma candidata melhor ao título. Mas logo vi que isso seria um problema para mim – justamente por eu ter um gosto, digamos, pouco ortodoxo. Leitores frequentes deste espaço sabem da minha admiração por sucessos bem populares, muitas vezes execrados pela crítica musical dita séria – “I want it that way”, do Backstreet Boys, é talvez o exemplo mais fácil. Mas existem outros…
Há anos tento convencer alguns amigos de que um modesto sucesso cantora panamenha Catherine, “No me castiguies” é uma dos mais perfeitos lamentos pop que alguém já gravou – sem sucesso… Outro favorito meu – que, para muitos talvez seja forte candidata à pior música do mundo – é “Pecatore”, do italiano Tonino Caratone . Mas eu seria incapaz de detestar essa “obra-prima”! Já ouviu “The mummy”, de Bob McFadden – uma canção obviamente “de gozação”, onde uma múmia (sim, uma múmia!) tenta convencer as pessoas de que ela não é tão assustadora assim? É terrível! Mas é também tão engraçada, que é impossível chamá-la de “a coisa mais hedionda que alguém já gravou”…
Com tudo isso na cabeça, me pergunto – ou melhor, passo a pergunta para você: qual o segredo de uma música realmente ruim? O que faz de uma canção algo insuportável, a ponto de você nem querer ouvi-la até o final? Qual é o limite de sua paciência musical?
Quero ouvir sua opinião – e não só sobre essas questões mais, hum, filosóficas. Vou propor aqui um concurso às avessas: será que conseguimos eleger “a pior música do mundo”? Será que ela existe?
Enquanto espero sua resposta, se você me permitir, vou me entregar às lembranças das imagens inesquecíveis, que Pina me proporcionou ontem – como a mulher que “nadava no ar”, abraçada pela virilha e pela clavícula por um homem (tente imaginar isso…). E em tantas outras noites mágicas…
O refrão nosso de cada dia
“Juanita Banana”, The Peels – uma pequena balada mexicana, que mistura canto lírico e “surf music” (com direito, claro, a “mariachis”!). E tudo isso em 1966! Você que já conhece bem este espaço, sabe que a música indicada aqui não tem necessariamente a ver com o tema discutido acima. Mas, no caso de hoje, se você quiser indicar “Juanita Banana” como uma das piores canções do mundo, tudo bem. Eu, claro, me reservo o direito de discordar…