Onde estou (com resposta óbvia)
Estou na fila da imigração do aeroporto de Garulhos – ou Aeroporto Governador André Franco Montoro, ou ainda, Cumbica (um lugar tão surreal que não consegue nem ter um nome só!). Estou chegando de uma rápida viagem de férias (mais sobre isso, daqui a pouco), e tenho de agradecer – se bem que não sei bem a quem (à administração do aeroporto? aos guichês de imigração? a Deus?) – por ser brasileiro. Essa minha nacionalidade me dá o “direito” de ficar “apenas” 45 minutos numa fila para eu poder entrar no “país da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016”. Sim, porque se eu fosse estrangeiro, esse tempo de espera – veja bem, para um estrangeiro que “escolheu” o Brasil para seu lazer, suas férias, ou seus negócios – seria, no mínimo, o dobro.
Não é a primeira vez que enfrentei esse caos ao chegar em São Paulo, mas certamente foi a primeira vez em que a tal fila da imigração começava mais ou menos na altura do portão 2 – uns bons 300 metros antes sequer de você chegar à kafkaniana serpentina onde suas esperanças de ser atendido no mesmo dia – e finalmente poder chegar em casa (ou no hotel), rever sua família (ou cuidar de seus negócios), ou simplesmente descansar de uma viagem longa – são renovadas. Apenas, claro, para você passar por um novo período de frustração, em que centenas de outros brasileiros como você (note que estou deixando os estrangeiros de lado, uma vez que não posso nem imaginar o sofrimento e a perplexidade de chegar num país que, supostamente é o do futuro e deparar com uma cena digna do século 19) estão vivendo: cansaço, calor, claustrofobia (incrível como Cumbica foi concebido na contramão de todos os aeroportos modernos projetados na sua época, optando pela iluminação artificial, e não a natural), incerteza, e simplesmente revolta.
Não exagero quando escrevo “revolta”. Por ser uma pessoa pública, as pessoas que estavam na mesma fila que eu, invariavelmente, suplicavam que eu fizesse uma reportagem sobre aquela (sic) “vergonha”, como se um programa de TV pudesse cumprir o papel do próprio poder público (várias matérias já foram feitas sobre o assunto, em vários órgãos da imprensa, mas com poucos resultados ). Era até curioso perceber como as pessoas muitas vezes deixam de acreditar no próprio poder da sua indignação, atribuindo a capacidade de mudar as coisas não a si próprias, mas a sempre vaga categoria de “os outros” – mas eu divago…
Ali naquele momento, passando pelos mesmos desconfortos e dissabores que todos, eu era apenas um cidadão chegando de viagem – e como todos que estavam na fila, tentava expressar minha decepção com o que estava acontecendo. O ritmo para lá de vagaroso de espera me fez viajar pela memória e resgatar momentos em que eu já havia passado por experiências semelhantes.
A primeira lembrança foi no aeroporto de Nova Déli, na Índia, quando cheguei lá pela primeira vez, em 1986. Havia filas para tudo – e a maior dela não era nem a de imigração, mas a de apresentação do comprovante de vacina contra a febre amarela. Passada essa etapa, o novo horror era a procura da mala – primeiro, para ver se não estava jogada em uma pirâmide de bagagens dispostas aleatoriamente num canto da enorme e abafada sala, mutiladas apenas para que parte do seu conteúdo (frutas, roupas, aparelhos eletrônicos etc.) se revelassem; depois, para tentar descobrir em qual esteira (previsivelmente quebrada) ela estaria disposta, misturada com qual voo que havia chegado sabe-se lá de que origem que não a sua. E aí vinha a recepção logo na saída: um exército de farrapos a pedir esmolas quase que numa fila contínua até a porta de seu hotel. Mas isso era 1986… Já voltei algumas vezes a Nova Déli depois disso, e posso assegurar que o tal aeroporto (agora, ambiciosamente reformado), mesmo se ainda não tem a agilidade de um Schipol (em Amsterdã), já está bem melhor – e não vamos nem tentar comparar com Guarulhos…
Lembrei-me também de uma antológica chegada a Tashkent, capital do Uzbequistão, na volta ao mundo que fiz em 2004. O problema lá – num aeroporto pequeno, uma vez que aquele destino não é exatamente um grande entroncamento cosmopolita – não era a multidão que chega a cada cinco minutos, mas a incompetência burocracia herdada da antiga administração soviética. Compatriotas uzbeques – desde que provassem algum laço (afetivo, familiar ou profissional) com alguma pessoa no poder – eram despachados sem pestanejar, enquanto cidadão comuns reentrando em seu país eram vítimas de um longo interrogatório sobre a viagem que acabavam de ter feito e sobre o potencialmente perigoso recheio de gordas bagagens – tão estouradas que eram envoltas em plásticos improvisados, panos caseiros e cordas surradas. E nós – eu e minha equipe (que totalizava apenas mais uma pessoa)? Nós, que havíamos chegado de terras mais distantes – e até mais misteriosas, como o Brasil –, éramos obrigados a nos virar com formulários escritos em alfabeto cirílico, largados à própria sorte, com um grupo de agentes de imigração que definitivamente não estava ali para ajudar…
Uzbequistão… Nova Déli em 86… o que mais me lembrava aquela cena no aeroporto Governador André Franco Montoro, em São Paulo? Ah, sim! A chegada, em 1998, em um país africano chamado Guiné-Bissau – notório destino “sem solução” daquele continente que, apesar de alguns percalços, provou que era capaz de hospedar uma Copa do Mundo. Se minha memória não me trai, Bissau é um dos poucos lugares do mundo que visitei onde a noção de fila simplesmente não existe. Ser atendido pela imigração era uma espécie de loteria – digamos, um esporte de aventura, com nível de estresse superado apenas pelo indescritível processo de recuperar sua mala no grito (em linhas bem gerais, um funcionário apenas trazia as malas uma por uma, perguntava se aquela era a sua, e, se não era, levava-a de volta por uma portinhola, até que você tivesse a chance de ser “atendido” de novo…
Curiosamente, lembrei-me também de lugares onde a expectativa de chegada era nefasta, mas cuja experiência em si provou ser não apenas tolerável, mas azeitada. Em Kosovo, por exemplo – um país onde as igrejas ortodoxas têm de ser protegidas por arames farpados e guardadas pelo exército da ONU, a entrada de uma equipe de televisão em Pristina, munida de nada mais especial do que um visto de turista, foi bastante suave. No Camboja, um destino onde o turismo floresce e, apesar de ser um país que viveu anos de repressão com um dos regimes mais sangrentos da história do século 20, fui recebido num clima amigável e descomplicado – e, para lá, já viajei como turista e a trabalho, tendo a mesma impressão em ambas as vezes. Para visitar no Marrocos, com minha família, no Natal de 2009, não tive problema algum – apesar de uma amiga que também viajava conosco ter passado por uma pequena série de perguntas depois de ter declarado casualmente que era jornalista. E, só lembrando, o Marrocos não é exatamente um poço de tranquilidade política, como você que acompanhas as notícias correntes sabe bem.
E foram essas lembranças – que, intercaladas com comentários (carinhosos) sobre minha dieta (deveras pública), e mais pedidos de ajuda para que eu “fizesse alguma coisa” [ara denunciar aquele (sic) absurdo que estávamos passando, me distraíam enquanto a fila andava morosamente –, enfim, foram essas lembranças que me inspiraram a escrever o blog de hoje. Que, diga-se, eu já havia planejado ser mais um “onde estou?”, mas não com a foto que abre o post…
Eu ia fazer a pergunta usando outra imagem – que agora, reservei para o final do texto (já já). Mas senti a necessidade de dividir esse assunto desastrado do retrato da chegada no maior aeroporto internacional do Brasil, porque é o mínimo que eu posso fazer como cidadão viajante – algo que todos nós éramos naquela manhã de quarta-feira (ou de qualquer outra manhã, pois, como sabemos bem, aquele espetáculo se repete diariamente). Porque isso é tudo que podemos fazer com nossa indignação: exibi-la. Era isso que eu tentava dizer para as pessoas que pediam minha “ajuda”: que eram elas mesmas que tinham esse poder de “reclamar”!
Para os mais cínicos que acham que uma viagem internacional é um luxo esnobe, eu aconselho passar uma tarde no aeroporto – qualquer aeroporto –, ou ainda uma checada no ótimo programa da Astrid (“Chegadas e partidas”, GNT), para ver que as histórias que circulam por lá não são apenas as de gente endinheirada se divertindo. Atrás de mim, havia uma brasileira, trabalhadora, que acabava de voltar de Kyoto, no Japão, ainda perturbada pelos perigos que aquele país passou recentemente – e que ainda ganhava de “bônus de estresse”, aquela espera humilhante. Ao lado, numa das curvas da “serpentina”, outra brasileira simples, que viaja com sua filhinha de uns 4 anos pela primeira vez ao Brasil – a menina, nascida na França, não falava português e a mãe tinha extrema dificuldade em explicar para a menina (já indócil) que elas não podiam “cortar” aquele caminho. Um casal de idosos me interpelou – ela, com lágrimas nos olhos – pedindo para passar na frente pois a conexão dela para Belo Horizonte seria dali a 25 minutos, e seus apelos para os agentes que estavam lá no aeroporto haviam sido recebido com respostas na linha “esse problema não é meu”… (O pedido deles, claro, foi prontamente atendido por mim e por todas as pessoas solidárias na fila).
Muitas das pessoas que estavam lá ontem, cientes de seu poder de protestar, tiravam fotos (como eu) e diziam que ia escrever algumas coisa na internet, como um desesperado resgate da dignidade que lhes havia sido roubada pela espera traumatizante. E é exatamente isso que estou fazendo aqui hoje – e mais: estou abrindo o espaço para você fazer o mesmo! Tenho certeza de que você já ouviu histórias assim – se é que já não viveu uma delas na pele. Mande seu comentário! Aos que talvez estranhem um espaço sobre cultura pop dedicar uma abertura para este tema, eu lembro, mais uma vez, que vem aí Copa do Mundo e Olimpíadas…
Mas lembro, sobretudo, que esse é um país maravilhoso – e que anseia por mais visitantes! Cada vez que viajo, não me canso de “vender” o Brasil com as melhores imagens – e com um entusiasmo digno de um embaixador (algo que todo brasileiro viajante deveria ter o orgulho de encarnar). E meu amor por esse lugar aqui é tão grande que eu acho que vou morrer falando bem dele! Eu quero que o mundo todo venha conhecer o meu Brasil – mas eu não quero que ninguém passe pelo que eu passei ontem…
Bem, mas para terminar num clima menos rabugento, aqui vai a foto que, incialmente eu iria colocar no post de hoje lá em cima! Pelas dicas que eu dei – e por algumas notas que saíram na imprensa, e na internet – você talvez já saiba onde eu fui passar essas férias (que, tenho que confessar, por estarem programadas desde o ano passado, acabaram sendo “atropeladas” pelo meu “programa de reprogramação corporal” – e tornou-se um verdadeiro “sacrifício”, sobre o qual eu vou falar na segunda-feira). Mas o que eu quero é detalhes: onde eu estou exatamente nessa cidade onde passei os últimos dez dias?
O refrão nosso de cada dia
“Zoubi la mouche”, Les Négresses Vertes – ainda no espírito do país que visitei, um refrão de uma música antiga, de um banda que bem existe mais, mas que, durante anos, foi uma enorme fonte de inspiração para mim. Digamos que, sem eles, não existiria Mano Chao (eu sei que ele veio de outra banda, Mano Negra, mas você sabe o que eu quero dizer!). Sem falar que uma música que dedica seu refrão a uma mosca (e seu zumbido) já tem minha simpatia imediata! “Profitez”!