O Auto-tune e suas contra-indicações
Eu tenho uma nova obsessão. Chama-se “Friday”, de Rebecca Black. Até o momento em que escrevo, ele já teve pouco mais de 2 milhões de visitantes para seu vídeo “oficial” no youtube – uma fração dos cliques para “Born this way”, de Lady Gaga (mais sobre ele, daqui a pouco), eu sei. Mesmo assim, eu tenho que admitir que já vi/escutei “Friday” mais vezes este fim-de-semana do que o novo hino da artista pop mais relevante dos últimos dois anos… Por que? Como eu vou explicar…?
Entrei em contato com esse, hum, trabalho, na última sexta-feira, quando recebi o “boletim” de um site de trivialidades da internet chamado buzzfeed (eu sei que você considere “trivialidades” e “internet” como sinônimos – eu estou aqui para discordar, mas acho que eu divago…). Seria só mais um vídeo engraçadinho – e talvez eu nem teria dado atenção, se ele não tivesse vindo com o curioso título: “Esta é literalmente a pior coisa que eu já ouvi”. Um pequeno texto aguçou ainda mais minha curiosidade: “É isso, pessoal. O fim da Civilização Ocidental. Está tudo acabado. Mas pelo menos, já é sexta-feira!”. Tive de clicar no link. E o que encontrei? Bem, como vou explicar…?
Pense em Stefhany. Ela mesmo, aquela Stefhany, cantada aqui mesmo, neste espaço, em “verso” e prosa. O clipe de Rebecca é ligeiramente mais bem produzido que os da nossa diva piauiense – porém, eu diria até que, no que diz respeito à atuação do elenco de apoio, as amigas de Stefhany dão de dez na turma de Rebecca (se você duvida, dá uma conferida na cara do mané que convida a cantora pra sentar ao lado dele no banco de trás, aos 38 segundo do vídeo – que, a meu ver, redefine e amplia o sentido do que é ser “canastrão”). Mas tem mais…
A música é tão fácil quanto qualquer composição original – ou mesmo as versões – de Stefhany. As letras da americana são tão “profundas” quanto às da brasileira – tem até um momento em que Rebecca, celebrando as “possibilidades” de diversão da sexta-feira, nos oferece uma descrição detalhada de um calendário semanal (canta ela: “Ontem foi quinta, hoje é sexta – estamos tão excitados! Amanhã é sábado, e domingo vem logo depois, eu não quero que esse fim de semana termine…”). E o nível de talento apresentado na “produção” é inversamente proporcional às ambições artísticas da artista – em ambos os casos.
Se tudo isso parece oferecer motivos suficientes para você evitar a todo custo essa música, pense de novo. “Friday” é viciante e – assim como boa parte das músicas de Stefhany – capaz de exercer um fascínio perverso na sua atenção e sequestrá-la sem nem ter direito a resgate. E não sou só eu que acho isso não. Pelo que percebi numa rápida pesquisa, a faixa de Rebecca Black já é um fenômeno. Ganhou não apenas uma versão acústica, que não deixa dúvidas sobre o quanto à música é “catchy” (feita para grudar no seu ouvido), mas também uma versão “acelerada”; outra mais lenta; vários remixes; uma adaptação para cena da ótima comédia “Feitiço do tempo” (onde o personagem principal acorda todo dia com a mesma música no rádio); e – o meu favorito entre todos – um vídeo apenas com a reação de dois garotos ouvindo “Friday” (se a sua resposta ao clipe é igual à do garoto da esquerda, não se preocupe – isso é normal).
Mas eu não quero aqui discutir o talento de Rebecca Black – você pode ter duzentas outras razões para amar (ou odiar) “Friday”. O que chamou mais atenção nesse pequeno fenômeno pop foi o uso – ou, seria melhor dizer, abuso – de uma ferramenta agora extremamente popular: o Auto-tune. Se o nome te parece estranho, o efeito que ela produz talvez não seja. Você – especialmente você que circula procurando músicas na internet – já se deparou com o Auto-tune: é aquele truque que faz todo mundo ficar com voz de robô e “transforma” qualquer frase dita por qualquer pessoa numa verso musical – mesmo que essa fonte original não esteja cantando! Um dos primeiros – e mais engraçados – exemplos que o público brasileiro conheceu, foi o “remix” de entrevistas do técnico de futebol Joel Santana, quando ainda comandava a “Bafana Bafana”, a seleção sul-africana antes da última Copa do Mundo.
Muitos outros vídeos já viraram sucesso no youtube com o Auto-tune – de depoimentos de bandidos a bebês balbuciando. Na última cerimônia do Oscar, um dos momentos mais divertido foi aquele em que mostraram um vídeo com cenas de filmes importantes do ano onde os diálogos eram transformados em… canções (a cena de “Harry Potter e as relíquias da morte – parte 1”, é especialmente engraçada!). As possibilidades são infinitas – e um dos meus Auto-tunes preferidos (porque é dos mais bizarros), é um discurso de Hugo Chávez nas Nações Unidas que virou um tema não de todo mau…
O problema é que o Auto-tune só funciona mesmo para isso – para fazer humor. Por isso é que eu não entendo porque cada vez mais artistas estão usando a ferramenta para fazer… música a sério! Rebecca Black, claro, é uma distorção da realidade – e, para bom entendedor, não preciso explicar que uso essa expressão com duplo sentido… Tantas outras cantoras (e tantos outros cantores) com um pé no amador podem – e, em muitos casos, devem – usar o Auto-tune para esconder a ausência de um verdadeiro talento para o canto. Mas como explicar que artistas estabelecidos como George Michael fazem uso indiscriminado dessa “muleta”?
Há pouco tempo, o cantor – que outro dia mesmo, ironicamente, citei de maniera positiva aqui – decidiu, não se sabe ao certo por que razão, regravar (a título de um “single” beneficente) uma das mais belas músicas do New Order, “True faith”. O resultado foi um desastre – e a culpa não é nem da canção original (que está entre as minhas 5 favoritas do New Order) nem da voz de Michael, mas sim do tal Auto-tune que entrou em ação e alterou aquilo que já era bom: a interpretação do cantor. O recurso – que, imagino, algum produtor deve ter sugerido para dar um “verniz” de modernidade para a “velha” imagem de George Michael – simplesmente destruiu o que poderia ter sido uma ótima versão. E, pior, acabou nivelando o cantor – dono de uma das melhores vozes do pop moderno – à Rebecca Black! Ela poderia estar cantando “True faith”, e Michael, “Friday”! Tanto faz… E a culpa, insisto, é do Auto-tune!
O que está acontecendo? Por que esses exemplos estão se espalhando? Bem, prefiro acreditar que é apenas uma moda passageira – e que daqui a pouco o produto de cordas vocais genuínas vai se vingar e voltar com tudo. Pulmões não faltam para isso – de Florence Welch a Rihanna, passando claro, por Lady Gaga…
Pronto! Cheguei até ela – com um certo atraso, é verdade. Estava devendo – especialmente à seleta intersecção entre os leitores deste blog e os fãs da cantora – um comentário sobre seu novo vídeo, “Born this way”. Não o faço por pressão: seu novo trabalho é tão instigante, que um espaço voltado para a cultura pop (como este) não poderia ignorá-lo! É mais um delírio de Gaga sim, mas ao contrário de meros exercícios estéticos – e lúdicos -, como “Telephone”, dessa vez ela quis ir além.
Se a mensagem que ela tinha para passar não havia ficado clara só com a música – que, como já escrevi aqui, está aquém do que ela ainda pode oferecer -, com as imagens ela é mais contundente: na briga entre o bem e o mal, quem vai ganhar é sempre o bem. Não sem muito esforço, mas quem “nasce desse jeito”, sabe que tem uma missão na Terra – e parte dela é espalhar sabedoria, bondade, e diversão.
Tudo isso tem de sobra no clipe – e eu sou capaz de rever aquelas cenas iniciais (gloriosamente regurgitadas de um vocabulário visual dos anos 70) repetidas vezes. Fora isso, acho que Gaga nunca esteve dançando tão bem – e eu ainda diria que as provocações com relação a “Express yourself” (Madonna), que as más línguas dizem que foi plagiada, são no mínimo ridículas… Ela conseguiu, de novo, fazer aquilo que poucos artistas hoje em dia prometem mas não cumprem: provocar, cutucar, ser assunto – e usando para isso nada mais sofisticado do que sua veia artística.
Embora eu continue esperando uma faixa mais envolvente de Lady Gaga – que certamente virá com o novo álbum -, eu tenho que aplaudir de pé alguém que fala o que pensa em suas músicas. Nada contra Rebecca Black – que provavelmente diz exatamente o que está em sua cabeça quando canta que está “louca para que chegue a sexta-feira”… Mas se você tem o poder de alcançar milhões de pessoas com uma música, é melhor ter alguma coisa mais interessante para transmitir.
Ah, e de preferência, sem Auto-tune… Não me faça perder (de novo) a cabeça!
O refrão nosso de cada dia
“Annie get your gun”, Squeeze – perdi a conta de quantas matérias de música dos anos 80 chamavam (Chris) Difford e (Glenn) Tilbrook de “os novos Lennon & Mc Cartney”. A comparação, claro, provou ser um exagero. Mas que a dupla do Squeeze produziu algumas das músicas (e alguns dos refrões) mais memoráveis do final do século passado – disso, ninguém duvida. Tanto que eu fiquei muito dividido na hora de escolher apenas uma música para representá-los neste espaço (para entender e aproveitar melhor, clique aqui)… “Is that love?”, “Take me I’m yours”, “Tempted”, “Pulling mussels from the shell”, “In quintessence” – qual a melhor? Acabei ficando com a mais estranha (mas talvez a mais irresistível) de todas, “Annie get your gun”. Mas fique à vontade para explorar as outras…