“Como ousa não gostar daquilo que gosto?”
A pergunta que peguei emprestada para o título de hoje está entre aspas porque foi tirada de um texto recente do principal crítico de cinema do jornal “The New York Times”, A.O. Scott – cuja leitura recomendei no meu post anterior, sobre o filme “A origem”. Para dar um contexto maior, vale a pena explicar que a pergunta vem logo depois de um dos argumentos mais lúcidos do crítico – que embarcou numa guerra de insultos furiosa com os fãs de “A origem”, só porque (resumindo bem) ele não achou o filme uma obra-prima, apesar de não ter poupado elogios na sua primeira resenha. Escreve Scott: “A fúria dos defensores do filme era motivo especial de preocupação, uma vez que os uivos destemperados pareciam atacar a própria base de uma discussão civilizada e transmitir um tom pessoal, emocional para o debate como um todo”. E conclui: “Como ousa não gostar daquilo que gosto?”.
Evoquei esse texto na última quinta-feira porque o meu próprio comentário sobre “A origem”, embora positivo, trazia também reservas ao filme – e, mesmo tendo gostado muitíssimo da produção (e até achar que eu a tinha entendido!) estava longe de colocá-la no ainda vago pedestal da “primeira obra-prima do cinema do século 21” (não, “Avatar” não ocupou o lugar, nem “O cavaleiro das trevas” – desculpe). E já me preparei para o ataque…
A julgar pelos comentários que chegaram até agora, ele foi brando. Mas pude encontrar aqui e ali indiretas insinuando que meus elogios ao mais recente trabalho do diretor Christopher Nolan não haviam sido suficientes (para o fã obcecado, nunca é). Mas se aqui o tom foi o de fúria moderada, fora deste micro universo deste blog, a agitação toma proporções colossais.
Não quero hoje entrar nessa discussão específica dos méritos do filme – minha opinião sobre ele já foi apresentada na semana passada (e, mesmo que vários comentários me fizeram ter vontade de revisitar o desfecho de “A origem”, minha apreciação final, acredito, não vai mudar em nada). Mas o que gostaria de propor é uma reflexão maior sobre a natureza dessas críticas modernas – na verdade, as “críticas às críticas” -, que hoje, com a ajuda de ferramentas poderosas como o twitter (e semelhantes), são catapultadas da condição de incômodos sussurros a estrondosos manifestos. Significativos, de alguma forma? Vejamos…
Do chilique desses fãs de “A origem” – os mais radicais, aos quais chamei de “hidrófobos” –, à mania mais recente de mandar todo mundo “calar a boca” (todo mundo, claro, que não tem a mesma opinião que quem “twita”…), os grandes “debates culturais” contemporâneos estão se tornando histéricos protestos populares. Engraçadinhos, e certamente divertidos de participar – ninguém quer ficar de fora dessa “malandragem”, de “retwitar” uma piada, mesmo que ninguém leve o crédito como autor dela (é virtualmente impossível descobrir quem a mandou pela primeira vez). Mas, assim como A.O.Scott, fico um pouco preocupado com o distanciamento entre essa agitação contagiante (e vazia) e a tal “base de uma discussão civilizada”.
Deixe-me voltar uns instantes para o documentário sobre o qual escrevi aqui há alguns dias, “Uma noite em 67”. Entre tantas coisas surpreendentes que encontrei no filme, está a passeata contra a “invasão das guitarras”, que alguns músicos e artistas – liderados por ninguém menos que Elis Regina – fizeram em São Paulo, mais ou menos na época do festival de música que é o tema do trabalho. Você leu direito: uma passeata contra a invasão das guitarras… (é por coisas assim, que eu adoro os anos 60 – mas eu divago…).
A idéia era impedir – ou, no mínimo, retardar – a chegada das guitarras na nosso música popular. Não deu muito certo, claro. A Tropicália os aguardava ali na esquina – e Caetano Veloso não demoraria a sacudir o próprio festival com aquela abertura inquestionavelmente elétrica de “Alegria, alegria”. Mas o que eu achei mais curioso foi o comentário do próprio Caetano hoje, relembrando o episódio. Sem concordar com a nobre causa da passeata, ele e Nara (Leão) ficaram no quarto do hotel (Danúbio, se não me engano), olhando aquela “banda” passar – e achando que tudo aquilo tinha um toque fascista.
E tinha mesmo. Qualquer manifestação que simplesmente diz “não” a alguma coisa, sem justificar o seu protesto tem, sim, um quê de fascista. Por que? Porque qualquer slogan fácil de protesto é um atalho para cortar o debate e a… discussão civilizada! Claro que alguns deles funcionam – mas desde que sejam o resultado de uma reflexão, ou de um processo genuíno de mudança. Quer um bom exemplo? “Abaixo a ditadura”. Ou “Diretas já”. Um exemplo ruim? “Cala a boca (complete com o nome do seu desafeto da hora)”!
Mas esses, como já mencionei, são slogans fáceis. O que eu acho mais complicado é quando ele vem disfarçado de opinião – por exemplo, algo como “Se você não achou ‘A origem’ o melhor filme de todos os tempos você não deveria escrever sobre ele”… Aí, as “vítimas” são não apenas os críticos de cinema, como apontou A.O. Scott, mas qualquer um que emitir uma opinião dissonante. Scott sentiu “na pele” essa guerrilha: recebeu inúmeras agressões por escrito, que tinham o claro objetivo de ao mesmo tempo barbarizar a discussão, liberar os impulsos mais adolescentes de quem atacava, e ainda impedir que dali qualquer argumentação prosseguisse de maneira razoável. É isso que deixou o crítico do “New York Times” tão incomodado – menos o fato de essas pessoas não terem gostado (ou terem simplesmente discordado) do que ele escreveu, e mais o teor virulento da resposta que não convida ao diálogo e parece apenas querer dizer que aquele que escreveu de maneira não tão positiva sobre alguma coisa que para elas é, hum, a melhor coisa do mundo é um (ou uma) imbecil!
Em escala bem menor, este blog também me ofereceu experiências semelhantes. Entre os comentário que são aprovados – isto é, aqueles que não usam palavrões indiscriminadamente, ou se aproveitam para falar de outras coisas que não o assunto proposto -, não são poucas as palavras pesadas (quando não intencionalmente maldosas) que chegam por aqui, simplesmente porque o artista (e/ou sua obra) não foi canonizado no meu texto. Como já disse anteriormente, o “debate” sobre “O cavaleiro das trevas” talvez seja o mais emblemático – mas houve outros. De Michael Jackson a Celine Dion, de Harry Potter a … Deus! Ai de mim que não descrevi essas “divindades” (perdão pelas aspas, fiéis!) como…bem, como… divindades!
Perdi a conta de quantos comentários já li aqui que deixavam claro que quem enviou não se deu ao trabalho de ler o que estava criticando – e não vamos nem exigir o “luxo” de uma interpretação de texto… Eles não me incomodam enquanto comentários – opiniões contrárias são sempre bem-vindas (sem contar que boa parte delas, como também fica fácil de perceber, quer atingir não o texto, mas este que escreve, às vezes até no nível do pessoal, ou mesmo o programa no qual trabalho… esses a gente tira de letra!). O que me desanima, é que isso reflete uma constrangedora preguiça de… argumentar.
Felizmente, aqui neste espaço, tenho a chance de conferir boas argumentações elogiosas – reflexões que ampliam e levam para outros cantos assuntos que propus em um determinado post (só isso, já me dá motivos para continuar a escrever por mais quatro anos!). Mas quando vou ler uma crítica, alguém que tenha discordado que algo que escrevi, raramente ela é bem desenvolvida – como se aqueles que não aprovam as idéias aqui colocadas achassem que bastaria apenas falar que eles não gostaram para fechar a discussão. “Magoei”, parecem dizer. “Feio”, parecem decretar…
Se lamento esse desequilíbrio – uma boa quantidade de argumentos, muito bem estruturados, a favor de um assunto, contra poucas críticas “fundamentadas” (e muitos protestos azedos e superficiais) – é tão simplesmente porque gostaria que este espaço fosse cada vez mais um grande fórum. Já o é, mas sempre pode ser mais. Por isso, às vésperas de completar quatro anos de existência deste blog, eu faço votos de que esse debate seja cada vez melhor.
Provavelmente aqueles (e aquelas) que gostam só de “retwitar” seus vitupérios inócuos sequer chegaram a esta altura do texto. Deveria eu respirar aliviado, uma vez que eles não vão nem entender toda a construção do meu pensamento de hoje, e assim nem vão poder criticar? Não. Pelo contrário, eu lamento que eles não vieram até aqui para, quem sabe, serem seduzidos pelo meu convite para uma discussão mais interessante – e, quem sabe, civilizada (o mais provável é que, quando alguém dessa turma perceber que eu estou “criticando a crítica deles”, eles simplesmente já terão me mandado uma frase de 140 toques desaforada…).
Nem por isso, deixo de celebrar aqui você, que corajosamente me seguiu até este parágrafo – e com quem eu quero continuar sempre. Seja para falar de novo disco do Arcade Fire; de histórias absurdas de regimes autoritários (contadas em dois livros fascinantes que estou lendo – um de ficção e o outro não); “Um jantar para idiotas”; os 20 anos da MTV no Brasil; a confirmação de “The Boxer”, como melhor disco do ano; a mais nova bizarrice de Lady Gaga; Julia Roberts; um ciclo de canções pop sobre Imelda Marcos; o melhor show de rock de todos os tempos; a arte da revista literária McSweeney’s; ou, se eu realmente terminar de lê-lo algum dia, o indescritível romance de Roberto Bolaño “2666″ – só para dar um gostinho do que vem por aí.
E já que aqui eu dou a minha opinião genuína sobre literalmente o que eu quiser, acho que vale a pena citar mais dois trechos do excelente texto de A.O. Scott:
“Assim como os críticos costumam escrever de boa fé, quem consome essa produção crítica deve assumir a mesma boa fé. Podemos até estar errados, mas sempre assinamos embaixo do que dizemos. É uma das responsabilidades dessa função, assim como um das suas vantagens”.
E, para aqueles que se sentem ofendidos toda vez que não virem o enorme talento de seus artistas refletidos numa crítica dessas – ou mesmo num despretensioso blog como este, Scott conclui brilhantemente:
“A cultura de cinema na internet não apenas acelera o processo de absorção de um filme na corrente sanguínea cultural mas também inverte a ordem das coisas. Talvez minha memória esteja um pouco confusa, ou talvez eu esteja sonhando, mas eu acho que ‘obra-prima’ costumava ser a palavra final, o fim de uma discussão, e não o seu ponto de partida”.
Se alguém conseguir colocar esse estado caótico do nosso debate cultural melhor do que nessa frase, parabéns!