Os freudianos de plantão certamente saberão explicar melhor esse termo que “o pai da psicanálise” introduziu no nosso imaginário. Para efeito de compreensão das coisas que eu quero discutir hoje, porém, vale dizer apenas que com ele, Freud tentou resumir uma curiosa sensação que todos nós experimentamos: a de familiaridade e estranheza ao mesmo tempo. Em palavras bem simples – mais uma vez, pedindo licença aos psicanalistas profissionais –, essa é a sensação de reconhecer uma coisa, uma característica, uma situação, uma memória, que é bem nossa, mas que simultaneamente insistimos em negá-la, suprimi-la, esquecê-la. Por que fazemos isso? Talvez porque nos vemos diante de circunstâncias que preferiríamos não enfrentar – e nossa mente, sempre misteriosa, faz de tudo para nos poupar (com conseqüências nem sempre positivas, claro).
Meu conhecimento da obra freudiana é pífio. Mas acabei me lembrando dessa expressão – “Unheimlich” – quando comecei a ver que a nossa discussão sobre a tolerância aos palavrões na TV (e este era o grande tema para debater que eu propus no post anterior – e não a palavra “bosta”, como visitantes que só leram o título e os primeiros parágrafos do texto e correram para escrever seus comentários insistiam em discutir…) tomava rumos, digamos, que eu não havia previsto.
Antes de falar sobre eles, porém, tenho a obrigação de agradecer à maioria daqueles (e daquelas) que participaram do debate com opiniões interessantes, argumentos sólidos (prós e contras), e vontade genuína de elevar a questão a um outro patamar. Você não imagina o quão feliz eu fico quando isso acontece – porque, para mim, internet serve para isso: para descobrir, por exemplo, uma senhora de 68 anos que se mostra muito mais aberta a questões polêmicas do que uma adolescente de 16 anos (esta “surpresa” está nos comentários, pode conferir!); para saber como uma questão delicada como essa é tratada em outras partes do mundo (uma vez que chegaram vários comentários de outros países); para fazer as pessoas pensarem num assunto bem depois de elas terem lido sobre ele – e não simplesmente abandoná-lo pela próximo link sobre um “cachorro de 12 patas encontrado no interior da Bratislava” (já reparou como boa parte das “reportagens” nas listas de “mais lidas” tem a ver com bichos? – mas eu divago… e isso num texto como o de hoje pode ser um perigo!).
Nem todo mundo, claro, optou em participar da proposta com argumentos desse nível. Esses (ou essas) não me preocupam – você acha que vale a pena discorrer sobre aqueles que achavam que estavam fazendo a piada mais original do mundo rebatendo a palavra do título do último post contra o próprio texto? Não… O que me deixou inquieto foram as pessoas que demonstraram um certo… “Unheimlich”! Explicando melhor: aqueles e aquelas que, antes de qualquer coisa, achavam um absurdo eu ter aberto uma discussão dessas, quando tudo que eles e elas queriam era, hum, participar da discussão. E não paravam por aí… Mesmo eu alertando para o fato de que eu não estava propondo o debate para “crucificar” “Passione” – e muito menos seu genial autor, Sílvio de Abreu –, muitos insistiram em se indignar com a proposta de a novela abrir a discussão para assuntos delicados como o aborto e a pedofilia.
Onde está o “Unheimlich” nisso tudo? Ora, na hipocrisia de não insistir que assuntos que, de maneira extremamente indesejável, entram no nosso cotidiano, mas que, “em nome da decência” (ou sei lá do quê), é melhor não tocar neles… É esse tipo de atitude – esse “escandalizar-se de antemão” – que infelizmente perpetua esses desvios. O “Unheimlich”, no caso, é não reconhecer que essas questões podem estar muito próximas da gente – dentro da nossa casa, eventualmente, e mesmo assim, a gente não querer discuti-las. E o “problema” fica lá, como um bode na sala… e ninguém fala nada…
“Isso não é comigo”, pensa logo a pessoa que vê, diante de si, um assunto que a incomoda. “Mas é sim”, lhe respondem os fatos. Não quer encarar? Escreva indignado para protestar! Corte qualquer pergunta mais “perigosa” vinda de seu filho ou de sua filha adolescente! Chame as “autoridades” para “calar” a discussão! Mas depois aguente as consequências…
Cá do alto dos meus 47 anos, porém, eu acho que esses assuntos devem ser discutidos sim – do palavrão à pedofilia. É muito fácil cair na vulgaridade e na apelação ao propor esse debate? É sim. Mas eu tenho que acreditar numa TV responsável – ou num jornal, numa revista, ou mesmo um blog –, que assuma o compromisso de iluminar a conversa, e não reforçar o preconceito. Alguma dúvida de que “Passione” está fazendo exatamente isso? Você pode até mudar de canal quando Gerson (personagem vivido pelo excelente Marcello Antony) entra nesta mesma internet que você está agora para “fuçar” num site de pornografia infantil, mas isso vai fazer mesmo esse tipo de site… desaparecer? Ou impedir alguém que você conhece de acessá-lo? Talvez você ache que sim… e assim você vai “construindo” um diálogo “franco e aberto” com sua família – ou mesmo seus amigos… Esse mundo de “palavrões e pedofilia” (que não são nem de longe a mesma coisa – não sou tão ingênuo assim, por favor, não simplifique meu pensamento, muito menos sugira que só porque defendo a discussão desses temas eu sou a favor deles, quando sou, justamente, a favor da conversa lúcida), enfim, esse mundo “degenerado”, você pode até achar que não é o mundo em que você vive… Mas é… Você só está passando por uma fase de “Unheimlich” – e eu faço votos de que você se recupere logo! Porque esse mundo vai em frente – e quanto mais discussão saudável a gente tiver sobre ele, melhor!
O debate continua aberto – você sabe que seu comentário inteligente e articulado é sempre bem-vindo. Contudo, esse não era o assunto que eu mais queria discutir hoje… Nos últimos dias, estive envolvido com várias leituras ao mesmo tempo – típico… E duas delas eu havia separado para sugerir para você hoje. De certa maneira, elas poderiam também se acomodar sem muitos problemas sobre o título “Unheimlich” – uma vez que os personagens principais dessas narrativas passam suas vidas (ou parte delas) ligeiramente deslocados da realidade. Mas, se você me permitir um intertítulo, eu preferia me referir a eles assim:
Jovens com problemas
Em “A solidão dos números primos” (Editora Rocco), o autor italiano Paolo Giordano fez da história de duas crianças incomuns – uma, por causa de um acidente, e outra por um trauma de uma perda na infância – um “bestseller” mundial. Em “Afluentes do rio silencioso” (Companhia das Letras), o americano John Wray causou uma pequena sensação literária com seu terceiro livro, que conta a história de um adolescente esquizofrênico “à solta” pelo metrô de Nova York. Nenhum dos dois livros me deixou propriamente extasiado (por motivos que vou explicar já já) – mas gostaria de recomendá-los pela sensibilidade com que eles encaram seus… “desajustados”!
Quando digo que nenhum dos dois livros me entusiasmou como eu esperava, tenho que explicar que meu patamar de expectativas para um livro que fale de “jovens com problemas” é bem alto. Tenho em mente “O estranho caso do cachorro morto”, de Mark Haddon – não só um dos melhores livro que já li sobre o tema, mas também um dos melhores livros que eu já li, ponto! Não é uma leitura recente (foi lançado em 2004, pela editora Record), mas, mesmo com atraso, essa sim eu recomendo com louvor. Trata-se da história de um adolescente de 15 anos (Christopher Boone) que tem a síndrome de Asperger – uma forma de autismo –, e que decide investigar a morte do cachorro (o Wellington) de uma vizinha. Considerando que o livro é narrado em primeira pessoa – sim, por um autista! – e que a inteligência de Christopher é surpreendente, “O estranho caso” é uma das histórias mais inesperadas deste início de século. Se você ainda não o leu, corra atrás!
Com ele em mente, debrucei-me animado sobre esses outros dois livros. Afinal, eles prometiam. E, de fato, os personagens que são foco das narrativas são fascinantes. Quando somos apresentados a “Lowboy”, como é conhecido o esquizofrênico de “Afluentes” – por sua fixação em andar pela “impossível” malha do metrô de Nova York (“Lowboy”, numa tradução apressada, é “garoto debaixo”, ou “subterrâneo”) –, ele acaba de fugir de uma clínica, onde passa por um tratamento severíssimo, conseqüência de ele ter empurrado nos trilhos do próprio metrô, uma menina mais velha por quem ele (e por quem “Lowboy” era apaixonado, sem saber…). Sua mãe e um policial partem para uma caçada improvável por linhas e estações do sistema de transporte – e Wray, o autor, nos convida a vir junto nessa viagem, revezando capítulos da busca com os pensamentos do protagonista.
Acompanhamos os personagens de “Solidão” desde uma idade mais “tenra”. Alice ainda é criança quando cai de uma pista de esqui – e tem que passar por uma cirurgia que vai deixá-la mancando para o resto da vida. E Mattia está na terceira série quando recebe o primeiro convite para uma festa de aniversário da classe – e decide abandonar sua irmã gêmea (Michela) no parque para que ela, mentalmente atrasada, não fosse um constrangimento a mais na festa da criançada. Assim comoWray, Giordano vai alternando os capítulos: um para Mattia, outro para Alice – e talvez por isso, eu comecei a achar os dois livros parecidos, não só nos temas, mas também (e não uso isso de maneira muito positiva), na fórmula…
Há ainda, nos dois livros, uma excessiva preocupação com o estilo – o que não seria um problema, se a própria história que está sendo contava não sofresse com isso. Esse “floreamento” do texto não é “privilégio” desses dois bons trabalhos. Eu identifico aí uma distorção muito contemporânea, que vem da proliferação de cursos de “escrita criativa”… Nunca fiz um desses – e não conheço diretamente ninguém que tenha passado por um. Acredito mesmo que há muita gente boa por trás dessas intenções – até mesmo bons escritores e escritoras estimulando essa habilidade em seus alunos. Mas será que não chegamos a um ponto de saturação para tolerar isso? Acompanhe-me nesse trecho de “Afluentes”:
“O homem abriu o saco de papel e começou a comer (…) Seu queixo reluzia como se estivesse amanteigado. Lowboy deu um passo para trás em direção à coluna e deixou o olhar se perder no chão. Seu estômago estava tendo espasmos e girava alucinadamente, mas o homem de capa não estava nem aí. Sua maleta estava a menos de um metro de Lowboy, mais negra e respeitável do que nunca. Vibrava friamente contra o concreto”.
Uma maleta que “vibrava friamente contra o concreto”? “Mais negra e respeitável do que nunca”? Será que isso quer dizer realmente alguma coisa, ou é uma mera brincadeira com as palavras – “vibrando friamente” na página em que eu estava lendo? Agora, um trecho do livro de Giordano:
“O peso das consequências estava sempre ali, como um desconhecido que dormia sobre ela. Que a velava mesmo quando Alice entrava num sono profundo, um sono pesado e saturado de sonhos, que se assemelhava, cada vez mais, a uma dependência (…) Se os seus pés ficavam frios porque se acabara fora das cobertas, ao se revirar, ela se via de novo no fundo do canal, imersa na neve até o pescoço. Mas quase nunca tinha medo. A paralisia lhe permitia mover apenas a língua, que esticava para provar a neve. Era doce e Alice queria comê-la toda, mas não podia virar a cabeça. E então ficava ali, esperando que o frio subisse pelas pernas, chegasse à barriga e, dali, se irradiasse para as veias, gelando-lhe o sangue”.
Vamos lá… “Um desconhecido que dormia sobre ela”? Esperar que o frio “se irradiasse pelas veias, gelando-lhe o sangue”? Pode até ser que alguém olhe para essas imagens como “preciosas”, mas para mim elas soam apenas forçadas. E esses são apenas dois exemplos – um de cada livro, e cada livro com dezenas deles. Tantos, que por pouco não cheguei a desistir de ambas as leituras.
Mas fui até o fim – nos dois casos. A originalidade da história venceu o rococó intencional da forma – e acabei gostando, ainda que moderadamente, dos dois livros. “Lowboy”, com todas as suas esquisitices, acaba nos conquistando por uma das suas características mais surpreendentes: a ternura. E mesmo com um final mal resolvido – mas que, pensando bem, justifica o título da obra – “A solidão dos números primos” mexe, e muito com nossos sentimentos – sobretudo com o de quem passou pela infância achando que era de “outro planeta” (e quem nunca achou isso?).
Eu poderia até ter um surto de “Unheimlich” e dizer que nenhuma dessas histórias tem a ver comigo, que eu nunca me senti fora de um grupo, e que não sei por que alguns autores ainda insistem em escrever uma história assim, já que ninguém está interessado nelas… Mas a honestidade não me permite…
Quinta-feira, para dar uma quebrada na seriedade que nos acompanha nos últimos posts, vamos falar de cinema – uma estréia que é puro divertimento… Adivinha o que estou me programando para ver hoje?