“Tieta” em tempos de Facebook
Como quem já se deliciou com um dos melhores livros de Jorge Amado conhece bem (ou mesmo quem viu a adaptação para o cinema e até mesmo a novela baseada na obra), a protagonista de “Tieta do agreste” tinha um segredo. Expulsa de casa pelo pai ainda adolescente, devido ao seu comportamento “ligeiramente indécente” (o acento é por conta do sotaque baiano), ela retorna anos depois para sua pequena cidade, rica e disposta a transformar o vilarejo – entre outras benfeitorias, ela promove a chegada da luz elétrica para sua miserável população. Mas como é que Tieta fez tanto dinheiro assim em São Paulo? Ah… isso a gente só descobre algumas centenas de páginas depois de ter sido completamente hipnotizado pela história de Amado: ela era uma poderosa cafetina na cidade grande!
Agora, já pensou como seria se essa história se passasse nos dias de hoje. Mesmo levando-se em conta que o cenário é uma minúscula cidade do interior da Bahia – e que a eletricidade já houvesse chegado por lá –, você não acha que no dia seguinte do retorno de Tieta alguém já não teria entrado no Facebook dela para dar uma pesquisada na sua, hum, “rede de relacionamentos”? E que dali para descobrir a verdadeira “atividade” de Tieta seria um pulo… E aí, que história Jorge Amado teria para contar?
Como todo grande escritor, ele certamente não teria dificuldades em encontrar novas e boas narrativas para contar. Mas o que quero discutir com você hoje não é, claro, o talento incontestável de Amado (e de tantos outros autores que vou citar neste texto), mas a dificuldade de contar uma história plausível com personagens contemporâneos, em tempos como o de hoje, quando a privacidade é uma piada e todo mundo está a apenas um clique de conhecer todo mundo.
Escolhi Tieta para dar um exemplo talvez bastante familiar ao leitor brasileiro. Mas você pode pinçar histórias de difícil adaptação para nossos tempos tão modernos em qualquer cultura – ou em qualquer época. Pensei em escrever sobre isso já há algum tempo, quando li um artigo sobre a dificuldade de autores contemporâneos para criar histórias de desencontros amorosos (não me lembro bem onde – talvez tenha sido naquela última página de ensaios do “Book Review” do jornal “The New York Times” –, e certamente não consegui achar esse texto na internet… desculpe).
Na época – algumas semanas atrás –, lembrei-me de um dos melhores livros que li na minha vida: “As relações perigosas”, de Chorderlos de Laclos. Que é, diga-se, um romance do século 18… Talvez você tenha assistido a adaptação para o cinema (de 1989, com Michelle Pfeiffer, John Malkovich e Glenn Close), mas para entender minha associação de idéias, o ideal é que você tenha lido o livro (fica a recomendação) – porque o que os personagens principais faziam, naquela época, está mais ou menos para o que “Gossip girl” faz hoje: elevar a fofoca a um patamar de arte, e fazer de uma rede social uma poderosa arma de promoção pessoal.
O livro de Laclos é brilhante por vários motivos (Já recomendei sua leitura? Então aqui vai um reforço!). Mas o que mais me encantou é que ele é todo escrito em cartas. Da Marquesa de Merteuil para o Visconde de Valmont (a comunicação talvez mais intensa); do Visconde de Valmont à Cécile de Volanges; de madame de Rosemonde ao Visconde de Valmont; do Cavaleiro Danceny à Marquesa de Merteuil. E assim segue uma troca de correspondências frenética e poderosa, capaz de mudar os rumos de jovens amantes e trazer à tona o pior da perversão dos adultos (tenho aqui que resistir à tentação de falar mais desse livro que eu gosto tanto, mas nosso assunto hoje tem outro foco…).
Fiquei pensando que, ironicamente, este romance de mais de duzentos anos, seria talvez um que se adaptasse muito bem ao frenesi cognitivo que temos hoje no nosso cotidiano tão devassado por Twitters, Facebooks, Orkuts e Myspaces… Brilhantes manipuladores que são, a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont tinham tudo para se tornar mestres na tortura com torpedos, scraps, twits e msns…
Outras histórias, porém, não teriam a mesma passagem suave para a modernidade. “Bel-ami”, por exempl0, de Guy de Maupasant (um romance que li na sequência de “Ligações perigosas” – um dia ainda falo sobre essa conexão), foi escrito cem anos depois, mas seu herói (uma espécie de “alpinista social”) não conseguiria enganar seu círculo de relacionamentos por muito tempo – posto que todos estivessem na internet. Fanny Price, a “heroína” de “Mansfield Park” – considerada a obra-prima de Jane Austen – seria uma vítima fácil de “cyberbulling” para seus primos ricos com quem foi criada. E Heathcliff, de “O morro dos ventos uivantes” (para ficarmos ainda no século 19) talvez não levasse a cabo sua vingança contra a família Earnshaw se expusesse seu perfil com transparência na numa página do Facebook…
As coisas ficam ainda mais complicadas nos livros do século 20. Você acha que “O talentoso Sr. Ripely” (1955), um dos mais brilhantes personagens da ficção moderna, criado por Patricia Highsmith (e vivido no cinema, na sua versão mais conhecida, por Matt Damon), seria capaz de esconder sua identidade tão bem nos dias de hoje? Meu palpite é que suas verdadeiras falcatruas não sobreviveriam a uma “googlada”… O sensacional detetive belga Hercules Poirot, criação da não menos sensacional Agatha Christie, só precisaria dar uma “busca” no nome “Ratchett” ou na “família Armstrong”, para descobrir que todos os passageiros do “Expresso do Oriente” (1934), bem… quem já leu o livro sabe onde quero chegar… Boa parte das volumosas tramas de espionagem de John le Carré não passariam de meia dúzia de páginas se as pistas iniciais fossem colocadas num computador. E seria virtualmente impossível a americana Helene Hanff ter escrito “84 Charring Cross Road”, o romance que ficou conhecido por sua versão para as telas – que no Brasil chamou-se “Nunca te vi, sempre te amei” (só esse título já demonstra o que quero dizer) – se as duas pontas dessa história de amor tivessem páginas de relacionamento? A paixão jamais floresceria da mesma maneira entre eles…
E os exemplos são inúmeros também na literatura brasileira. Capitu (“Dom Casmurro”, Machado de Assis) não seria apenas um tema abstrato nas salas virtuais de discussão literária, mas uma personagem cujos scraps poderiam ser examinados minuciosamente para que fossem descobertas pistas de sua traição – ou não, quem sabe os mesmos scraps a absolveriam, finalmente! “Macunaíma” poderia continuar a não ter nenhum caráter, mas suas origens multiculturais se traduziriam em milhares (e por que não milhões?) de ecléticos seguidores no Twitter. E não é só Tieta, no imenso leque de personagens criados por Jorge Amado, que teria muito pouco a esconder em tempos de privacidade zero…
O paradoxo da capacidade do ser humano moderno estar conectado versus tramas românticas (e/ou policiais) que exigem desencontros complica inclusive a vida de autores de novelas. Pense em “Passione”, por exemplo. O mais novo trabalho de Silvio de Abreu – que, como já citei aqui, é um dos meus autores favoritos – traz mais uma vez sofisticados mistérios para serem desvendados aos poucos ao longo de seus capítulos. Mas boa parte desses mistérios seria facilmente resolvida com algumas ferramentas da internet. Por exemplo, a milionária família de Bete Gouveia (Fernanda Montenegro) vive um dilema agora porque ela quer ir à Itália conhecer um filho que ela achava que havia morrido logo depois do parto – Totó (Tony Ramos). Ele, por sua vez, segue sua vida na Itália, inocente de que uma fortuna o espera no Brasil. Mas por que raios, em tempos de Skype, esse pessoal já não fez uma vídeo conferência para resolver tudo?
Ainda na novela, Berillo (Bruno Gagliasso) pensa que sua mulher na Itália, Agostina (Leandra Leal) o abandonou depois que ele veio ao Brasil – e por isso casou-se de novo por aqui. Mas a confusão é culpa do carteiro Mimi (Marcelo Médici), que – apaixonado por Agostina – nunca entregou as cartas de Berillo à esposa… Será que um chat rápido, por MSN mesmo, não teria segurado esse casamento na Itália? Por que nenhuma das partes, nem lá nem aqui, fez um “search”, um no nome do outro?
Eu sei a pergunta para essa resposta – e para a do parágrafo anterior. É porque nós adoramos histórias boas – e nem ligamos para detalhes “modernos” que poderiam arruinar a capacidade delas nos encantar – de “Passione” a “Dom Casmurro”! Mas, nem que seja só para provocar uma reflexão, imagine que você é um jovem escritor, que quer escrever um romance “do seu tempo”, onde as pessoas se apaixonam, não sabem o que fazer com essa paixão, desencanam, somem da vida daqueles a quem juraram amor eterno, e vão viver outras histórias – tudo, claro, levando em consideração Facebooks, Twitters, Googles etc. Será que você conseguiria escrever uma boa – e plausível – história?
Eu mesmo, na minha primeira investida na ficção – há pouco tempo deflagrada aqui mesmo neste espaço – flertei levemente com isso (e, encorajado por seu comentário, já estou com um outro no prelo, no mesmo universo – mas eu divago…). E não foi fácil. Nick Hornby, em livro que comentei aqui recentemente (“Juliet, nua e crua”), usou bem a internet para conectar um duvidoso par romântico – mas a tentativa, embora válida, ainda foi tímida. O que estou esperando mesmo é que alguém venha com um “Ligações perigosas” para o século 21… Seria pedir demais?