O estrangeiro
Não é a primeira vez que vou escrever aqui sobre Tóquio. Em outubro de 2007, quando visitei o Japão para fazer uma série de reportagens sobre os cem anos de imigração japonesa no Brasil, fiquei (mais uma vez) tão envolvido com aquela cidade que “despejei” um monte de impressões de viagem aqui neste mesmo espaço.
Relendo esses textos, no entanto, numa preparação para escrever este post que você agora lê, percebi que tive então uma vivência ligeiramente diferente na minha última visita à capital japonesa. Estive lá agora em fevereiro, para gravar mais um episódio da série sobre megacidades – atualmente exibida pelo “Fantástico” (o foco do próximo domingo é justamente Tóquio).
Mas meu registro – já não mais o de um “marinheiro de primeira viagem” – foi totalmente outro. E é isso que vou dividir com você hoje aqui.
Essa foi, na verdade, minha quarta visita a essa que é a maior cidade do mundo – para você ter uma idéia, a projeção para 2025 é a de que Tóquio vai ultrapassar os 30 milhões de habitantes! A “estreia” foi em 1997, quando passei rapidamente por lá – e rapidamente não é força de expressão: foram pouco menos de 48 horas, o que significa que passei menos tempo em Tóquio do que no avião indo para lá… O motivo dessa viagem foi uma entrevista (para mim) histórica, com John Lydon – o indescritível vocalista dos Sex Pistols (foi durante a turnê de reunião da banda, que inclusive veio para o Brasil). O pouquíssimo tempo que passei por lá, no entanto, fez com que eu tivesse mais vontade ainda de voltar.
E, com efeito, no ano seguinte, lá estava eu para outra entrevista musical – dessa vez com ninguém menos que Björk, que me recebeu no melhor estilo do cruzamento entre uma gueisha e uma camponesa do leste europeu (mais um detalhe surreal que era uma espécie de arranjo de cabeça com adereços que lembravam mamonas!). Foi no ano seguinte, em 1998, e me lembro que consegui ficar por lá por mais tempo do que da vez anterior – o que não significou que minha curiosidade sobre Tóquio tivesse sido saciada…
Quase dez anos depois, veio a série sobre imigração japonesa – quando então eu me apaixonei definitivamente pela cidade. No nosso roteiro original – com a duração de quase um mês – passaríamos a primeira semana em Tóquio e depois viajaríamos pelo resto do Japão (Nagoya, Naoshina, Kyoto, Okinawa, Hokkaido…). Mas quando começamos a trabalhar por lá, percebemos logo que a capital renderia muito mais histórias do que havíamos pensado – e logo refizemos o roteiro, eliminando algumas escalas para que pudéssemos estar de volta a Tóquio durante a última semana. E, não nos arrependemos!
Assim, desde o ano passado, quando comecei a fazer o roteiro para a série sobre megacidades, já por antecipação eu estava animado com a possibilidade de ir mais uma vez para lá. Como você que é leitor frequente aqui sabe bem, eu tenho uma certa “queda” por cidades grandes – gosto muito de natureza, mas eu vivo mesmo é para respirar o ritmo dessas metrópoles. Como não vibrar então com a ansiedade de passar mais alguns dias em Tóquio? Nessa última volta ao mundo eu não posso reclamar em termos de paisagem urbana: de Nova York a Mumbai, passando por Cairo e Istambul, eu tive bons motivos para saciar minha “sede de cidade”. Mas a excitação antecipada para revisitar a capital do Japão era algo que eu mal conseguia disfarçar.
No entanto…
Bem, antes de continuar, eu tenho que esclarecer que essa foi talvez a melhor passagem minha pela cidade. Com a silenciosa intimidade de quem reconhece as ruas por onde já andou e gosta de achar que as próprias ruas também reconhecem os seus passos, eu circulava por Tóquio com uma desenvoltura que surpreendeu até a mim mesmo. Não era simplesmente o fato de reconhecer este ou aquele lugar que me dava prazer, mas – mais do que isso – perceber que eu me sentia totalmente à vontade por ali. E tudo isso, é bom lembrar, sem falar uma palavra de japonês – que é, diga-se, uma das línguas que eu mais queria aprender (depois do tailandês e do turco), se eu tivesse tempo para me dedicar a tal tarefa…
A afinidade com Tóquio era tanta, que eu dava palpites em caminhos que o carro da nossa produção deveria pegar; deixava muitas vezes a memória sugerir uma locação para uma gravação; e me dava o luxo de “esnobar” uma passagem por determinada região pelo simples fato de eu já tê-la conhecido bem da última vez… Com tudo isso, embora eu tenha passado bem menos tempo dessa vez do que em 2008 – afinal, foram só quatro dias! – eu, mais do que nunca, estava me sentindo em casa!
Mas será que estava mesmo?
Comecei a pensar nisso quando passeava num bairro que nunca havia visitado em Tóquio: Shimokitazawa. É um lugar muito especial. À primeira vista, passeando pelas suas ruas, você mal acredita que está em Tóquio. Elas são ainda mais estreitas que as que encontramos de vez em quando escondidas bem no centro da cidade (uma das minhas surpresas favoritas era vagar por Shibuya e de repente encontrar uma ruela tranquila que desembocava numa enorme e movimentada avenida), e o “espírito” é de cidade do interior – não exatamente no movimento (que era intenso), mas na atmosfera.
Ali, nada era “mega”. Os pequenos mercados se misturavam com minúsculas lojas de disco (lojas de disco, essa raridade!), e sofisticadas butiques de moda alternativa. Isso sem falar nos restaurantes cheios de graça – também pequenos – e nas aconchegantes casas de chá – e mesmo algumas de café. Tinha até um curioso estabelecimento onde as pessoas que não podiam ter gatos em casa iam para lá para conviver por um tempo com os bichanos (o que eles chamam de “cat café”!).Papelarias, clubes de jazz, “trattorias” (comida italiana aparentemente é a grande mania de Shimokitazawa!), e eventualmente até um bom (leia-se tradicional) “sushi bar” – tudo espalhado desordenadamente por aqueles caminhos estreitos, o que dava ao bairro um charme irresistível! (Para dar uma referência, pelo menos para os paulistanos, pense em Vila Madalena; os cariocas podem pensar em Santa Tereza – e eu tenho certeza de que na sua cidade também é possível encontrar uma vizinhança com esse mesmo clima!).
Mas foi justo ali, em Shimokitazawa, com essa atmosfera toda, que eu comecei a me sentir um pouco estranho – que eu comecei a me sentir um estrangeiro…
A sensação era familiar. Para alguém que viaja tanto como eu, e que gosta justamente de entrar em contato com uma cultura que seja bem diferente da que cresceu, ela é quase que uma necessidade. Sempre achei que fosse necessário esse estranhamento para que você pudesse criar um diálogo com uma cidade desconhecida. Aprendi isso meio na marra, quando fui morar em Nova York, e depois levei essa experiência para o resto do mundo. Porém, ali em Tóquio, visitando-a pela quarta vez – e passeando por Shimokitazawa pela primeira -, eu tive a percepção de que, ao contrário de tantas outras cidades que aprendi a amar, Tóquio nunca vai me amar de volta…
Explico melhor: não estou falando de nenhuma carência afetiva… O que eu estava percebendo ali era uma certa impenetrabilidade de Tóquio, a impossibilidade de fazer parte da sua pulsação como alguém que mora lá desde que nasceu – ou mesmo, como qualquer japonês que não é de lá, mas já vive há algum tempo na capital. E fui ficando ligeiramente frustrado…
Não era apenas uma questão de não falar a língua. Bangcoc, por exemplo, que é uma das minhas cidades favoritas no mundo, nunca me “cobrou” que eu não falasse tailandês para que eu me sentisse o mais acolhido dos visitantes. Posso dizer o mesmo com relação à Istambul e à língua turca. Por outro lado, Nova York, onde cheguei para morar em 1989 já com boa fluência no inglês, me cobrou outras coisas na barganha para me aceitar como seu “residente” – mas, de um jeito ou de outro, eu acabei “entendendo” seu espírito e hoje me sinto muito bem todas as vezes que passo por lá. Mas Tóquio…
Tóquio é difícil. Você troca uma palavra (num inglês desajeitado) com o vendedor de uma loja – inesperadamente é até reconhecido por ele por conta de uma foto sua que saiu numa revista japonesa (isso de fato aconteceu comigo, num episódio muito longo para contar aqui, mas que foi de uma coincidência incrível!) – mas isso não significa que ele vai te dar uma boa dica de onde tomar o melhor saquê na vizinhança. Um entrevistado seu pode lhe servir chá com toda a hospitalidade do mundo, mas não espere dele um convite para jantar. Mesmo num restaurante, jantando com brasileiros que falam japonês fluente, a impressão que você tem é a de nunca vai ser “um deles”.
Claro que não – está na sua cara! Eu – por motivos óbvios – não posso nem disfarçar que tenho alguma origem japonesa. Sou “o outro”, o “não-japonês”, aquele que pega um lugar num banco do metrô e vê a jovem ao seu lado se levantar para ir sentar-se do lado oposto do vagão sem a menor cerimônia (não estou inventando essa história…). Sou o que anda sozinho na madrugada fria da cidade e não pareço registrar minha presença na percepção de ninguém que passa na rua. E eventualmente até chama a atenção – não exatamente de uma maneira positiva – ao entrar num bar para arriscar beber qualquer coisa.
Sempre viajei para Tóquio acompanhado – da equipe de gravação, de assessores de imprensa. Por isso nunca me senti propriamente sozinho na cidade. Mas sempre que tenho um tempo livre experimento algumas caminhadas incertas, apostando no acaso para me conectar de alguma maneira com a vibração das ruas. Porém, foi preciso essa quarta visita à Tóquio para que eu percebesse que essa conexão – se ela é mesmo possível – vai exigir um aprendizado muito maior da minha parte.
Fiquei pensando se isso acontece em todas as grandes cidades com seus respectivos viajantes. São Paulo mesmo – essa minha metrópole adotada… (Como talvez você saiba, eu sou natural de Minas Gerais, da cidade de Uberaba, e só me mudei para a capital paulista com seis anos de idade). Sempre que recebo um amigo que vem de fora, faço o possível para ele se sentir “em casa”, mostrando todas as coisas boas de São Paulo – que, ao contrário de outros exuberantes “cartões postais” brasileiros (Rio, Salvador, Recife, e tantos outros), tem um charme que não salta aos olhos à primeira vista, mas exige uma introdução de alguém que já a conhece bem. Por esse seu “charme tortuoso” (e tantos outros motivos), eu adoro São Paulo! Mas será que eu consigo fazer com que meus amigos estrangeiros que visitam a capital se sintam menos… estrangeiros quando passam por aqui?
Eu mesmo, depois dessa experiência recente em Tóquio, comecei a me perguntar: será que sou mais ou menos estrangeiro nesse ou naquele lugar? Lisboa? Londres? Buenos Aires? Cidade do México? Como será que fica minha relação com cada um desses lugares depois dessa reflexão que Tóquio provocou em mim?
Quem dera eu tivesse uma resposta de imediato… Depois dessa última viagem – que terminou junto com o mês de fevereiro – ainda não tive a oportunidade de sair do Brasil e testar essa nova, digamos, percepção. Mas a “cutucada” que levei nessa última passagem pelo Japão ainda está bem presente aqui comigo – e, para terminar, eu jogo a questão para você (especialmente para você que mora fora e passa de vez em quando por aqui!): o que significa se sentir estrangeiro?
Existe algum lugar onde a gente realmente se sinta em casa?