O estrangeiro

qui, 29/04/10
por Zeca Camargo |
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Em Tóquio (Foto: Ricardo Yamamoto)Não é a primeira vez que vou escrever aqui sobre Tóquio. Em outubro de 2007, quando visitei o Japão para fazer uma série de reportagens sobre os cem anos de imigração japonesa no Brasil, fiquei (mais uma vez) tão envolvido com aquela cidade que “despejei” um monte de impressões de viagem aqui neste mesmo espaço.

Relendo esses textos, no entanto, numa preparação para escrever este post que você agora lê, percebi que tive então uma vivência ligeiramente diferente na minha última visita à capital japonesa. Estive lá agora em fevereiro, para gravar mais um episódio da série sobre megacidades – atualmente exibida pelo “Fantástico” (o foco do próximo domingo é justamente Tóquio).

Mas meu registro – já não mais o de um “marinheiro de primeira viagem” – foi totalmente outro. E é isso que vou dividir com você hoje aqui.

Essa foi, na verdade, minha quarta visita a essa que é a maior cidade do mundo – para você ter uma idéia, a projeção para 2025 é a de que Tóquio vai ultrapassar os 30 milhões de habitantes! A “estreia” foi em 1997, quando passei rapidamente por lá – e rapidamente não é força de expressão: foram pouco menos de 48 horas, o que significa que passei menos tempo em Tóquio do que no avião indo para lá… O motivo dessa viagem foi uma entrevista (para mim) histórica, com John Lydon – o indescritível vocalista dos Sex Pistols (foi durante a turnê de reunião da banda, que inclusive veio para o Brasil). O pouquíssimo tempo que passei por lá, no entanto, fez com que eu tivesse mais vontade ainda de voltar.

E, com efeito, no ano seguinte, lá estava eu para outra entrevista musical – dessa vez com ninguém menos que Björk, que me recebeu no melhor estilo do cruzamento entre uma gueisha e uma camponesa do leste europeu (mais um detalhe surreal que era uma espécie de arranjo de cabeça com adereços que lembravam mamonas!). Foi no ano seguinte, em 1998, e me lembro que consegui ficar por lá por mais tempo do que da vez anterior – o que não significou que minha curiosidade sobre Tóquio tivesse sido saciada…

Quase dez anos depois, veio a série sobre imigração japonesa – quando então eu me apaixonei definitivamente pela cidade. No nosso roteiro original – com a duração de quase um mês – passaríamos a primeira semana em Tóquio e depois viajaríamos pelo resto do Japão (Nagoya, Naoshina, Kyoto, Okinawa, Hokkaido…). Mas quando começamos a trabalhar por lá, percebemos logo que a capital renderia muito mais histórias do que havíamos pensado – e logo refizemos o roteiro, eliminando algumas escalas para que pudéssemos estar de volta a Tóquio durante a última semana. E, não nos arrependemos!

Assim, desde o ano passado, quando comecei a fazer o roteiro para a série sobre megacidades, já por antecipação eu estava animado com a possibilidade de ir mais uma vez para lá. Como você que é leitor frequente aqui sabe bem, eu tenho uma certa “queda” por cidades grandes – gosto muito de natureza, mas eu vivo mesmo é para respirar o ritmo dessas metrópoles. Como não vibrar então com a ansiedade de passar mais alguns dias em Tóquio? Nessa última volta ao mundo eu não posso reclamar em termos de paisagem urbana: de Nova York a Mumbai, passando por Cairo e Istambul, eu tive bons motivos para saciar minha “sede de cidade”. Mas a excitação antecipada para revisitar a capital do Japão era algo que eu mal conseguia disfarçar.

No entanto…

Bem, antes de continuar, eu tenho que esclarecer que essa foi talvez a melhor passagem minha pela cidade. Com a silenciosa intimidade de quem reconhece as ruas por onde já andou e gosta de achar que as próprias ruas também reconhecem os seus passos, eu circulava por Tóquio com uma desenvoltura que surpreendeu até a mim mesmo. Não era simplesmente o fato de reconhecer este ou aquele lugar que me dava prazer, mas – mais do que isso – perceber que eu me sentia totalmente à vontade por ali. E tudo isso, é bom lembrar, sem falar uma palavra de japonês – que é, diga-se, uma das línguas que eu mais queria aprender (depois do tailandês e do turco), se eu tivesse tempo para me dedicar a tal tarefa…

A afinidade com Tóquio era tanta, que eu dava palpites em caminhos que o carro da nossa produção deveria pegar; deixava muitas vezes a memória sugerir uma locação para uma gravação; e me dava o luxo de “esnobar” uma passagem por determinada região pelo simples fato de eu já tê-la conhecido bem da última vez… Com tudo isso, embora eu tenha passado bem menos tempo dessa vez do que em 2008 – afinal, foram só quatro dias! – eu, mais do que nunca, estava me sentindo em casa!

Mas será que estava mesmo?

Comecei a pensar nisso quando passeava num bairro que nunca havia visitado em Tóquio: Shimokitazawa. É um lugar muito especial. À primeira vista, passeando pelas suas ruas, você mal acredita que está em Tóquio. Elas são ainda mais estreitas que as que encontramos de vez em quando escondidas bem no centro da cidade (uma das minhas surpresas favoritas era vagar por Shibuya e de repente encontrar uma ruela tranquila que desembocava numa enorme e movimentada avenida), e o “espírito” é de cidade do interior – não exatamente no movimento (que era intenso), mas na atmosfera.

Ali, nada era “mega”. Os pequenos mercados se misturavam com minúsculas lojas de disco (lojas de disco, essa raridade!), e sofisticadas butiques de moda alternativa. Isso sem falar nos restaurantes cheios de graça – também pequenos – e nas aconchegantes casas de chá – e mesmo algumas de café. Tinha até um curioso estabelecimento onde as pessoas que não podiam ter gatos em casa iam para lá para conviver por um tempo com os bichanos (o que eles chamam de “cat café”!).Papelarias, clubes de jazz, “trattorias” (comida italiana aparentemente é a grande mania de Shimokitazawa!), e eventualmente até um bom (leia-se tradicional) “sushi bar” – tudo espalhado desordenadamente por aqueles caminhos estreitos, o que dava ao bairro um charme irresistível! (Para dar uma referência, pelo menos para os paulistanos, pense em Vila Madalena; os cariocas podem pensar em Santa Tereza – e eu tenho certeza de que na sua cidade também é possível encontrar uma vizinhança com esse mesmo clima!).

Mas foi justo ali, em Shimokitazawa, com essa atmosfera toda, que eu comecei a me sentir um pouco estranho – que eu comecei a me sentir um estrangeiro…

A sensação era familiar. Para alguém que viaja tanto como eu, e que gosta justamente de entrar em contato com uma cultura que seja bem diferente da que cresceu, ela é quase que uma necessidade. Sempre achei que fosse necessário esse estranhamento para que você pudesse criar um diálogo com uma cidade desconhecida. Aprendi isso meio na marra, quando fui morar em Nova York, e depois levei essa experiência para o resto do mundo. Porém, ali em Tóquio, visitando-a pela quarta vez – e passeando por Shimokitazawa pela primeira -, eu tive a percepção de que, ao contrário de tantas outras cidades que aprendi a amar, Tóquio nunca vai me amar de volta…

Explico melhor: não estou falando de nenhuma carência afetiva… O que eu estava percebendo ali era uma certa impenetrabilidade de Tóquio, a impossibilidade de fazer parte da sua pulsação como alguém que mora lá desde que nasceu – ou mesmo, como qualquer japonês que não é de lá, mas já vive há algum tempo na capital. E fui ficando ligeiramente frustrado…

Não era apenas uma questão de não falar a língua. Bangcoc, por exemplo, que é uma das minhas cidades favoritas no mundo, nunca me “cobrou” que eu não falasse tailandês para que eu me sentisse o mais acolhido dos visitantes. Posso dizer o mesmo com relação à Istambul e à língua turca. Por outro lado, Nova York, onde cheguei para morar em 1989 já com boa fluência no inglês, me cobrou outras coisas na barganha para me aceitar como seu “residente” – mas, de um jeito ou de outro, eu acabei “entendendo” seu espírito e hoje me sinto muito bem todas as vezes que passo por lá. Mas Tóquio…

Tóquio é difícil. Você troca uma palavra (num inglês desajeitado) com o vendedor de uma loja – inesperadamente é até reconhecido por ele por conta de uma foto sua que saiu numa revista japonesa (isso de fato aconteceu comigo, num episódio muito longo para contar aqui, mas que foi de uma coincidência incrível!) – mas isso não significa que ele vai te dar uma boa dica de onde tomar o melhor saquê na vizinhança. Um entrevistado seu pode lhe servir chá com toda a hospitalidade do mundo, mas não espere dele um convite para jantar. Mesmo num restaurante, jantando com brasileiros que falam japonês fluente, a impressão que você tem é a de nunca vai ser “um deles”.

Claro que não – está na sua cara! Eu – por motivos óbvios – não posso nem disfarçar que tenho alguma origem japonesa. Sou “o outro”, o “não-japonês”, aquele que pega um lugar num banco do metrô e vê a jovem ao seu lado se levantar para ir sentar-se do lado oposto do vagão sem a menor cerimônia (não estou inventando essa história…). Sou o que anda sozinho na madrugada fria da cidade e não pareço registrar minha presença na percepção de ninguém que passa na rua. E eventualmente até chama a atenção – não exatamente de uma maneira positiva – ao entrar num bar para arriscar beber qualquer coisa.

Sempre viajei para Tóquio acompanhado – da equipe de gravação, de assessores de imprensa. Por isso nunca me senti propriamente sozinho na cidade. Mas sempre que tenho um tempo livre experimento algumas caminhadas incertas, apostando no acaso para me conectar de alguma maneira com a vibração das ruas. Porém, foi preciso essa quarta visita à Tóquio para que eu percebesse que essa conexão – se ela é mesmo possível – vai exigir um aprendizado muito maior da minha parte.

Fiquei pensando se isso acontece em todas as grandes cidades com seus respectivos viajantes. São Paulo mesmo – essa minha metrópole adotada… (Como talvez você saiba, eu sou natural de Minas Gerais, da cidade de Uberaba, e só me mudei para a capital paulista com seis anos de idade). Sempre que recebo um amigo que vem de fora, faço o possível para ele se sentir “em casa”, mostrando todas as coisas boas de São Paulo – que, ao contrário de outros exuberantes “cartões postais” brasileiros (Rio, Salvador, Recife, e tantos outros), tem um charme que não salta aos olhos à primeira vista, mas exige uma introdução de alguém que já a conhece bem. Por esse seu “charme tortuoso” (e tantos outros motivos), eu adoro São Paulo! Mas será que eu consigo fazer com que meus amigos estrangeiros que visitam a capital se sintam menos… estrangeiros quando passam por aqui?

Eu mesmo, depois dessa experiência recente em Tóquio, comecei a me perguntar: será que sou mais ou menos estrangeiro nesse ou naquele lugar? Lisboa? Londres? Buenos Aires? Cidade do México? Como será que fica minha relação com cada um desses lugares depois dessa reflexão que Tóquio provocou em mim?

Quem dera eu tivesse uma resposta de imediato… Depois dessa última viagem – que terminou junto com o mês de fevereiro – ainda não tive a oportunidade de sair do Brasil e testar essa nova, digamos, percepção. Mas a “cutucada” que levei nessa última passagem pelo Japão ainda está bem presente aqui comigo – e, para terminar, eu jogo a questão para você (especialmente para você que mora fora e passa de vez em quando por aqui!): o que significa se sentir estrangeiro?

Existe algum lugar onde a gente realmente se sinta em casa?

Alice (o filme)

seg, 26/04/10
por Zeca Camargo |
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alicezecaE então? Leu o livro? Prepare-se para um choque! Se você achou, por exemplo, qualquer adaptação da saga Harry Potter para a tela do cinema uma traição ao texto original, você não vai pensar duas vezes antes de condenar Tim Burton pelo crime de “apropriação livre” da obra-prima de Lewis Carroll – comentada aqui no post anterior. Condenação, aliás, que ele não merece.

Porque, apesar de todos os obstáculos (muito trabalho no fim-de-semana, e uma procura absurda por ingressos – que me obrigou a sentar na última poltrona da extrema esquerda da sala de um cinema), eu assista à “Alice no País das Maravilhas” este fim-de-semana. E me diverti muito!

Poderia ter sido o contrário – isto é, eu poderia ter me entediado muito, se eu tivesse entrado num clima de comparar o roteiro do filme com a história original. Mas, já tendo lido algumas resenhas na imprensa americana (todas alertando sobre as “liberdades poéticas” que Burton havia tomado), nem me incomodei quando, logo de cara, no lugar de ver Alice brincando num jardim antes de encontrar um coelho com pressa, encontro um grupo de senhores ingleses tendo sua conversa interrompida por uma menina (Alice, claro), que não consegue dormir por causa de um pesadelo recorrente – que começa, como você já pode imaginar, depois que ela cai num buraco…

Depois disso, a história é catapultada para alguns anos depois, quando a menina já está em idade casadoira (o que, na Inglaterra de meados do século 19, deve corresponder a uns 16/17 anos) e resolve escapar de uma temerária proposta de casamento… isso mesmo: correndo atrás de um coelho com pressa! Inevitavelmente, ela o segue até o buraco no pé de uma árvore – e cai nele… Dali para frente, é melhor você fazer como a própria Alice e perder o referencial: abandonar tudo que você conhece (ou tudo que você se lembra) do livro e aceitar mais este convite para entrar no mundo ensandecido de Tim Burton. Acredite: você não vai se arrepender…

Antes de falar mais propriamente do filme, mais um aviso. Não sei se foi porque eu sentei muito (mas muito!) longe da tela, poucas foram as vezes em que “senti” que estava vendo um filme em 3D. Com a lembrança de “Avatar” ainda forte nas minhas retinas, esperava algumas tomadas mirabolantes – especialmente porque a comunhão entre os caminhos fantasiosos de Alice com a visão fantástica de Burton seria uma combinação perfeita para isso. No entanto, insisto, foram poucas as vezes em que achei que estava usando aqueles óculos terríveis (será que eles são tão feios assim justamente para as pessoas não levarem para casa?) por um motivo justo… (Li em algum lugar que o filme não teria sido concebido originalmente como uma obra em 3D, o que me parece fazer todo o sentido).

Ah, e tenho de fazer mais uma observação também antes dos elogios: a coisa que mais lamentei em toda a adaptação foi que o delicioso “non-sense” do livro de Carroll – que faz com que as passagens da história se desenrolem sem nenhuma relação lógica entre elas (como disse no post anterior, mais ou menos como funciona a imaginação de uma criança) – foi sacrificada na produção hollywoodiana, para que tudo se transformasse numa grande “batalha entre o bem e o mal”…

Como quem leu o livro pode concordar, tal conflito simplesmente inexiste no livro. A Rainha Vermelha manda cortar a cabeça de quase todo mundo, é verdade – mas ninguém cumpre suas ordens… O Chapeleiro é sem dúvida uma pessoa “do bem” na história original, mas está longe de ser um mártir que luta para que a bondade da Rainha Branca prevaleça. E as coisas mais “perigosas” que Alice leva consigo, na concepção de Carroll, são dois pedaços de cogumelo (um para fazê-la crescer e ou para ela diminuir de tamanho) – nunca a temida espada de Vorpal!

Fora esses… “detalhes”, quase nada me incomodou na adaptação de Tim Burton para “Alice”. Poderia até reclamar que passagens como o “lago de lágrimas” da própria Alice simplesmente desapareceu na tela grande (e olha que isso seria “pano para manga” na imaginação desse diretor!). Poderia perguntar, por exemplo, onde foi parar a engraçadíssima marmota dorminhoca presente no chá do Chapeleiro (ou a Falsa Tartaruga). Ou por que o diretor insistiu no erro de adaptações anteriores e incluiu os “gêmeos” Tweedledee e Tweedledum na trama de “País das Maravilhas”, quando na verdade eles pertencem ao “País do Espelho”… Mas você vai achar que eu estou sendo “purista” – tradução: chato!

E eu simplesmente não quero passar essa impressão ao comentar o trabalho de um dos diretores que mais me surpreenderam desde que eu comecei a ir no cinema – um hábito que remonta aos idos de 1971, quando os cinemas passavam a primeira versão de “A fantástica fábrica de chocolate” (refilmado por Tim Burton em 2005), ou mesmo antes disso…

Pode pegar qualquer trabalho seu. “Edward mãos-de-tesoura”, por exemplo – o filme que colocou Burton no mapa (eu sei, ele já havia feito um “Batman” e “Os fantasmas se divertem”, mas foi mesmo com “Edward” que ele disse ao que veio…). Se, como eu, você teve o prazer de ver esse trabalho pela primeira vez no cinema (ele é de 1990… hummm, você teria de ter mais de 30 anos para se encaixar nesse grupo, certo?), deve se lembrar do encantamento que essa experiência trouxe!

Ou podemos falar de “Ed Wood” (1994) – uma biografia do diretor homônimo, tão absurda que parece ter sido inventada (só como referência, é bom lembrar que um de seus trabalhos mais famosos é “Plano 9 do espaço sideral”, considerado um dos piores filmes de todos os tempos – e se você tiver dúvidas, assista ao trailer da época do lançamento, 1959). Esse é talvez o meu filme favorito de Burton – totalmente inesperado (o que é a visão de Johnny Depp, que faz o papel principal, vestido de angorá?), obscuramente cômico, e genial!

Eu gosto até mesmo do pequeno desastre que foi sua versão para “Planeta dos macacos” (2001), e fui um dos que defenderam com mais entusiasmo sua adaptação para o cinema do musical da Broadway “Sweeney Todd”, já comentada neste espaço. “Marte ataca!” é um dos DVDs que eu salvaria em caso de incêndio na minha casa. Como fã antigo de Pee-Wee (uma paixão por um personagem que levaria um post inteiro para explicar, e, por isso, é melhor deixar para outra hora!), coloco seu filme de 1985 nessa lista de preferências. E “Alice” certamente também vai fazer parte dela.

Nem que seja apenas pela performance de Helena Bonham Carter, como a Rainha Vermelha…

Com aquele cabeção – que provavelmente você viu no trailer –, ela é uma presença tão bizarra na grande tela, que você fica torcendo para a Rainha aparecer de novo logo, assim que uma cena sua termina. Ao contrário do Chapeleiro de Johnny Depp – que está uma nota apenas abaixo do histriônico exagerado e aparece talvez um pouco demais ao longo da trama –, a Rainha de Carter é um deleite de maldade! No entanto, a própria Alice (vivida por Mia Wasikowska) não me convenceu por inteiro – e quem é aquele valete, interpretado por Crispin Glover? Mas as pequenas interferências da Lagarta Azul (com a voz de Alan Rickman) e, sobretudo, do Gato Inglês (no timbre suave de Stephen Fry) me animavam cada vez que a história teimosamente tentava fazer sentido…

De certa maneira a melhor atitude para se divertir com “Alice” é a mesma que eu adotei para não me aborrecer com “Avatar”: encarar o filme todo como uma curiosa sucessão de “tableaux” – ou “quadros” carregados de imagens fortes. A curiosidade para seguir as aventuras dessa “Alice” até o fim depende mais da pergunta “e o que será que meus olhos vão ver agora?” do que do seu envolvimento com a trama. Não que ela seja ruim – ela é apenas desinteressante. E, exatamente por isso, eu aplaudo a habilidade de Tim Burton de criar, mais uma vez – e com todas essas adversidades – um cativante caleidoscópio cinematográfico.

Bem…

Estou aqui cheio de elogios – todos, insisto, merecidos. Mas não quero terminar o texto sem admitir que, pelo menos de leve, estou um pouco decepcionado com a adaptação… Talvez porque eu tenha relido “Alice no país das maravilhas recentemente”, tudo que eu queria era ver nas telas algo mais próximo das páginas criadas por Lewis Carroll… Fiquei com isso na cabeça por horas depois de ver o filme – até concluir que uma interpretação fiel do livro daria, hum, talvez um filme bem menos interessante…

Sério! Relendo algumas de suas passagens antes de escrever este post, acabei achando que o universo absurdo criado por Carroll – e que funciona tão bem no papel (principalmente porque oferece um material riquíssimo para a imaginação de quem lê) – não renderia um filme muito atraente para o grande público. Afinal, o cinema, com sua abundância visual, deixa muito pouco para a fantasia…

A “Alice” de Burton é sim uma festa visual – e eu recomendo com louvor. Mas para viver todo o imaginário dos personagens criados por Carroll, ainda prefiro dormir com o livro na minha cabeceira…

Alice (o livro)

qui, 22/04/10
por Zeca Camargo |
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Capa de 'Alice no país das maravilhas' pela editora Cosac NaifyA expectativa é grande… Afinal, o que se pode esperar do diretor mais enlouquecido de Hollywood filmando a história infantil mais enlouquecida de todos os tempos? Não sei nem mais quantas vezes eu já assisti ao trailer de “Alice no país das maravilhas”, de Tim Burton, mas foram várias (não só no cinema, mas também na internet ). Mas sei que a expectativa é grande.

Tanta, na verdade, que me inspirou até a reler o livro original como uma espécie de preparação para a estreia – que no Brasil acontece nesta sexta-feira (23), algumas semanas (sete, para ser exato) depois de o filme ser exibido pela primeira vez nos Estados Unidos, onde já arrecadou mais de US$ 300 milhões! Devo assistir à nova adaptação de “Alice” neste fim-de-semana (não sei bem quando vou ter tempo para isso… mas vou dar um jeito!), e devo, obviamente, escrever sobre ele aqui já na semana que vem. Nesse meio tempo, porém, achei que seria interessante entreter você com um comentário sobre o livro. E começo perguntando: você já o leu? Mesmo?

“Alice no país das maravilhas” é um daqueles clássicos tão onipresentes na vida da gente que muitos nem precisam lê-lo de fato para poder soltar uma citação. Não digo que as pessoas fazem isso de propósito – pelo menos não no sentido de querer impressionar alguém com essa leitura, blefando numa conversa literária (na curiosa atitude defendida pelo escritor francês Pierre Bayard, no seu delicioso volume “Como falar de livros que não lemos?”, da editora Objetiva, já comentado neste espaço). Mas às vezes as pessoas “acham” que já leram “Alice” pelo simples fato de a obra já fazer parte de uma espécie de “imaginário coletivo”.

Eu mesmo não consigo me lembrar se cheguei a ler mesmo “Alice” quando criança – ou, pelo menos, se a ouvi contada por algum “adulto” (pai, mãe, tios, primos) que a escolheu para me divertir numa tarde ociosa. Ou será que meu contato com o trabalho mais conhecido de Lewis Carroll foi por conta da adaptação (sob a forma de desenho animado) dos estúdios de Walt Disney? Essa minha confusão – assim como a própria lembrança nebulosa da sequência de eventos da história (mais sobre isso daqui a pouco) – não é uma exceção. Com várias pessoas com quem conversei (mais ou menos da minha geração), a sensação era a mesma: a memória de “Alice” era sempre difusa. Mas nunca menos que presente – o que só reforça a relevância da história…

Mesmo anos depois da minha infância (e estamos falando, como todos sabem, de uns quarenta e poucos…), sou capaz de lembrar de fragmentos de “Alice sem esforço – o que não me impediu de ter algumas surpresas ao reler, há poucos dias o original…

Entre “meus verdes anos” e essa minha atual suposta maturidade (mesmo aos 47, considero um atrevimento falar de mim mesmo como uma pessoa madura, mas eu divago…), lembro-me de ter investido “oficialmente” em “Alice” só uma vez – no final da minha adolescência, quando eu começava a me arriscar a ler livros inteiros em inglês. Ainda sem o treino suficiente para encarar grandes volumes, achei que ler um pequeno tomo que compreendia as duas histórias de Alice (no “país das maravilhas” e “no país do espelho”) seria moleza… Não foi, é claro – não só por que meu vocabulário de inglês ainda não era muito extenso (e Lewis Carroll caprichou nas suas descrições!), mas também pelo ritmo frenético da história, que só fazia confundir aquele garoto que achava que já dominava bem aquela língua…

Enfim, depois disso, nunca mais retomei o livro. E só agora, com a chegada da adaptação de Tim Burton às telas, me senti inspirado a revisitá-lo. A onda de lançamentos também ajudou. Nos últimos dias, tive o prazer de entrar em várias livrarias e encontrar sempre um nicho com várias versões da obra de Carroll expostas. E, entre tantas opções, acabei escolhendo a edição da Cosac Naify para me deleitar.

Não foi uma decisão tão gratuita assim. Primeiro pela escolha do tradutor – Nicolau Sevcenko, escritor e historiador, com quem esbarrei logo cedo na minha carreira de jornalista, e por quem tenho admiração desde então. Depois, pela escolha do ilustrador – o artista plástico Luiz Zerbini. As imagens que ele criou para acompanhar a história são de um refinamento que poucas vezes se vê num livro que pretende agradar tanto crianças quanto adultos. Se as imagens evocam as ilustrações antigas que sempre acompanhavam a narrativa insana de Carroll, a releitura delas por Zerbini – que fez dos personagens do livro silhuetas recortadas em cartas de baralho (eternamente associadas à própria história de Alice) – é nada menos do que genial!

Ilustrações de Luiz Zerbini para a edição de 'Alice' da Cosac Naify.

Assim, num fim de tarde recente, sentei-me ao ar livre (tentando evocar, quem sabe a própria atmosfera sugerida no início do livro quando Alice vê pela primeira vez o coelho “com pressa”) e mergulhei junto com a protagonista num buraco de aventuras inusitadas. Aliás, bem mais inusitadas do que eu podia me lembrar…

De cara, um dos maiores prazeres de ter relido “Alice no país das maravilhas” foi ter redescoberto o absurdo! Bem menos “coerente” do que aquela lembrança do desenho da Disney podia sugerir, as peripécias de Alice não têm nada de linear! Situações e cenários sucedem-se de maneira tão delirante, que – penso agora, já adulto – esse deve ser um dos segredos principais da obra para exercer seu fascínio de maneira tão cativante em todas as crianças. A mágica de Carroll, ao que me parece, consiste justamente em seguir a “lógica” de um pensamento infantil – mas que não mão de um adulto brilhante como ele (já prestou atenção num detalhe de sua biografia que diz que ele era matemático?) transformou-se num sofisticado jogo de imaginação.

O que mais me encantou nesse reencontro não foi tanto o conjunto de personagens – que afinal, faz parte do já citado “imaginário coletivo” -, mas os pequenos detalhes que emprestam à história uma lógica infantil. Vou dar um exemplo: quando Alice ainda está caindo no buraco – uma ação que demora mais do que o “previsto” (como prever quão longa vai ser uma queda?), e que por isso provoca nela um pensamento típico de uma criança que não consegue calcular o tempo (“Ou o poço era realmente profundo, ou ela caía muito devagar”) -, enfim, ao longo da queda, ela repara que o percurso é cercado de paredes com vários objetos familiares, e interage com eles:

“De passagem, apanhou um pote numa prateleira. Nele estava escrito: GELEIA DE LARANJA, mas para sua tristeza, o pote estava vazio e ela o colocou de volta em outra prateleira pela qual passava então, pensando que, se o atirasse fora, poderia acertar a cabeça de alguém”.

Bem, se você está caindo num buraco, sua última preocupação é acertar um pote vazio de geléia na cabeça de alguém… Isso, claro, se você for um adulto, porque se você for uma criança… faz totalmente sentido!

alice240A curiosidade de Alice é tipicamente infantil – tão autêntica, que é capaz, inclusive, de desafiar o raciocínio adulto. Como, para dar outro exemplo, nesse diálogo com o Chapeleiro (que, pelo menos nessa tradução, não é chamado de “Maluco”, apesar de o Gato Inglês, ao apresentá-lo para Alice, deixar claro que ele é tão louco quanto a Lebre Aloprada!). Diz ele:

“O Tempo não tolera ser marcado. Mas se você se der bem com ele, ele pode fazer tudo que você quiser com o relógio. Por exemplo: suponha que sejam oito horas da manhã, hora de começar a estudar. Você só teria de sussurrar umas palavrinhas no ouvido do tempo e, num piscar de olhos, meio-dia, o almoço está na mesa!
- Bem que eu gostaria – suspirou a Lebre Aloprada.
- Seria uma maravilha, com toda certeza – disse Alice pensativa. – Mas, nesse caso, eu ainda não estaria com fome, não é?
- Na mesma hora não, é certo – respondeu o Chapeleiro. – Mas você poderia manter o relógio em meio-dia por quanto tempo quisesse.”

Brilhante, não é? E tanto do ponto de vista adulto quanto do infantil!

Na sequência alucinada de eventos – nem todos frescos na minha memória (por exemplo, eu não tinha nenhum registro da Falsa Tartaruga; e tinha uma vaga lembrança que o que a mesa de chá do Chapeleiro estava posta para comemorar um “desaniversário”, algo que nem é mencionado nessa tradução do original) -, fui viajando no mesmo espírito de Alice. Por vezes, confesso, até um pouco irritado com tamanho desprendimento de uma história que fizesse sentido…

Todas vezes que vinha essa irritação, porém, me lembrava de que, a rigor, aquilo não havia sido escrito para mim – pelo menos não para mim aos 47 anos… E então me esforçava para transportar-me de novo aos meus cinco, seis ou sete anos, e me deliciar com a queda livre de associações que só uma criança é capaz de aproveitar por completo (Nós adultos, tão comprometidos com o “raciocínio formal”, tão cheios de buscas de sentidos para as coisas, tão inundados com os “comos” e os “porques”, raramente nos damos o direito a essas livres associações de idEias – a não ser quando estamos realmente apaixonados, mas eu divago novamente… Será o efeito “Alice”?).

E foi nesse espírito que concluí, em pouco mais de uma hora, a (re)leitura de “Alice no país das maravilhas” – extremamente satisfeito de ter sido provocado, na minha imaginação, por essa sucessão de imagens tão mirabolantes e sedutoras. Afinal, que criança não gostaria de passar pelas mesmas aventuras, mesmo sabendo dos riscos, ciente de que vai passar por situações assustadoras (um bebê com cara de porco! uma rainha que manda cortar a cabeça de todos!)? Esta “criança” aqui que vos escreve adoraria ter passado por tudo aquilo.

E o que mais me encanta é que toda essa viagem foi provocada por um objeto que todo mundo adora dizer que está ficando obsoleto… um livro! Termino o texto de hoje com essa pequena provocação – e não é à toa. Esta semana vi a demonstração da “aplicação” de “Alice” para o iPad – vi primeiro no iPhone de um amigo e, depois, no próprio iPad de um outro amigo (que, devo admitir, deixou-me corado de inveja, um sentimento que eu achava que meu budismo diletante já havia superado…). Fala sério!!!

Só de ver essa demonstração da “app” (o irritante apelido das “aplicações”), fiquei arrepiado – e isso não é uma figura de linguagem! Imagine que você é uma criança e tem um iPad na mão e aproveita para ler “Alice” nele… Sabe o que vai acontecer? Você vai se apaixonar mais ainda pela história – sua imaginação tem tudo para se expandir ainda mais com aquele estímulo visual e narrativo. Mas o que mais me emociona mesmo, insisto,  é saber que por trás de tudo isso – da “app”, e mesmo do filme (sobre o qual vou escrever aqui na segunda-feira) -, tem um livro fascinante.

E mesmo que uma geração inteira seja apresentada a “Alice no país das maravilhas” por essa incrível ferramenta tecnológica, quem sabe essas crianças se interessem um dia em ir até uma biblioteca e fuçar de onde vem tantas histórias legais…

Enquanto Amy Winehouse não vem…

seg, 19/04/10
por Zeca Camargo |
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cantoras Sinceramente, você espera ouvir algum material novo de Amy Winehouse até, digamos, o final do ano? Quem sabe até o Natal de 2011? Copa de 2014 – talvez?

O palpite geral é o de que será bem mais provável nos deparar com mais uma notícia de uma internação (ou, no mínimo, uma transgressão) de Amy num futuro próximo do que com um álbum seu inédito (sua gravadora “garante” que ela vem com um disco novo ainda em 2010, mas eu não colocaria dinheiro nessa aposta…). O que um fã, como eu (e, espero, como você), só lamenta.

No entanto, minha fé na música pop é inesgotável. E mesmo num nicho musical como esse que Winehouse reinventou – aquele bizarro mix de R&B, cabaré, jazz e mais uma pitada de qualquer excentricidade sonora que você quiser acrescentar (do bolero a “ska”) – encontrei recentemente três interessantes pérolas que eu recomendo com louvor: Janelle Monáe, V.V.Brow e The Noisettes.

Nenhum desses nomes é exatamente uma novidade. The Noisettes já está no seu segundo álbum – e ele foi lançado no ano passado. Janelle vem soltando “singles” desde 2008 (o curioso “Meny moons” é de 2009). E V.V. Brown, apesar de ter tido seu trabalho de estreia lançado em janeiro deste ano, já era, há meses, uma aposta da imprensa musical para 2010. No entanto, ouvindo essas três cantoras no “modo aleatório” do meu iPod (também conhecido como “shuffle”) achei uma interessante conexão entre elas – conexão essa, que resolvi dividir hoje com você.

Essa coincidência, diga-se, surgiu da própria saudade de Amy Winehouse. A cada música que ouvia delas – e em especial as de V.V. Brown – ficava sempre aquele eco na minha cabeça: “nossa, como me lembra a Amy…”. Pode nem ser uma coisa proposital – afinal, eu não diria que, apesar de robusto, o “conjunto da obra” de Winehouse (que já é em si bastante derivativo) teve força suficiente para lançar uma tendência. Mas que as três acabaram dividindo algumas características sonoras em comum, isso sim – e quem sai ganhando é sempre quem ouve as músicas…

Há, no entanto, uma diferença fundamental entre Brown, Monáe e Shingai Shoniwa (a vocalista – e baixista – do Noisettes), e Amy Winehouse: as três são os exemplos mais refinados da atual safra de cantoras negras, enquanto que o traço mais escuro da cantora de “Rehab” ainda continua sendo seu delineador… Não que isso seja importante – já faz um bom tempo, escrevi aqui mesmo neste espaço, que cada vez mais as linhas que separam a música negra do que poderíamos chamar de “rock branquelo” estão ficando mais difusas. Mas não deixa de ser uma ironia o fato de que um filão “redescoberto” por uma cantora branca tenha sido reaproveitado – e até levado a um outro patamar – por três cantoras negras.

Deixe-me começar pela americana Janelle Monáe (pronuncia-se “mo-nêi”), pelo simples fato de que seu vídeo para a música “Tightrope” é um dos mais animados que vi ultimamente. E vamos combinar que ela sabe dançar… Para começar, ela criou um passo – inspirado no andar cuidadoso do equilibrista que anda numa corda estendida (a “tightrope” do título) – que é talvez a coisa mais original desde que Michael Jackson popularizou o seu “moon walk”. Cheia de suingue, ela e seus bailarinos (não menos hábeis) vão arrastando os pés numa linha sinuosa, num delicioso convite para você imitar aqueles movimentos.

O visual é o mais “cool” possível – ainda vou descobrir onde encontrar aqueles sapatos… e não vamos nem falar do topete! – e o clima é de festa, mesmo a canção não sendo a mais das animadas (seu outro “single”, “Cold war”, é bem mais dançante que “Tightrope”). E a música? Ah, sim, a música! Vários traços de “big band”, pitadas de jazz (sim!), e aqueles vocais que lembram os grupos de cantoras americanas dos anos 40 – tente ouvir o refrão de “Cold war” (“Bye bye bye bye, don’t you cry when I say goodbye”) e não se pensar nas Andrew Sisters. Ou seja… um quê de Amy Winehouse! E com louvor!

Essa influência – de estilo musical, porém não de comportamento – é ainda mais visível no trabalho de V.V. Brown, uma inglesa de 26 anos (e com um topete que quase desafia o de Janelle!). Seu maior sucesso até agora quase engana, uma vez que a introdução de “Shark in the water” lembra bem de perto os primeiros acordes de “Faith”, o “hit” mundial de George Michael (que, por sua vez, bebeu bastante também na fonte do “soul”…). Mas quando você ouve, por exemplo, “Crying blood”, não resta dúvidas: Brown é Amy encarnada! E talvez até mais animada… E se você não estiver convencido, ou convencida, basta ouvir os primeiros 15 segundos de “Leave!” para ter a certeza que uma é a herdeira da outra!

Pausa. Vou continuar o texto para falar das outras cantoras, mas não sem antes deixar claro que, na minha opinião, “Leave!” é – mesmo ainda em abril – uma das melhores músicas do ano! Com resquícios de “Crazy” e até de “Hey ya!” (e olha que eu não uso essas comparações a toda hora, como você sabe), essa deveria ser a grande trilha sonora do verão – o daqui e o do hemisfério norte. Brown vai do drama de “Bottles” (talvez minha música favorita depois de “Leave!”) ao humor “retrô” de “Crazy amazing” com uma facilidade – e mesmo um certo deboche – que deixaria até a própria Amy admirada.

Por que então ela não faz mais sucesso – você já está se perguntando? Bem, o mundo do pop é imprevisível… V.V. Brown tem o estilo necessário, as músicas certas, o som do momento – e um público esperando para ela acontecer. Está tudo nas mãos do acaso – vamos ver no que dá isso! (No mínimo, tente ver o clipe da música “Leave!”, que tem o mérito de ser um raro vídeo atual que você consegue ver por inteiro mais de uma vez, e me diga se eu não tenho razão…)

Por último, minha outra favorita do momento é Shingai Shoniwa, do Noisettes. A rigor, ela destoa um pouco das outras artistas que celebrei aqui hoje. O perfil da sua banda – que, insisto, não é exatamente novata – é ligeiramente mais “underground”. Mas olhe de (ou melhor, ouça) de perto. Se você ainda não conhece seu som, um conselho: esqueça a faixa desse segundo disco que projetou a banda – “Don’t upset the rhythm (go baby go)”, que é bem genérico, e, numa das versões (existem duas), parece que foi filmado com o mesmo orçamento que você teve para fazer o “power point” do seu TCC! No lugar dele, comece por “Wild young hearts” e veja se essa música não poderia muito bem estar no próximo CD de Amy Winehouse…

Em termos de carisma, Shingai – e você achou que Jabelle era um nome diferente… – está no mesmo patamar que Monáe e Brown: ela é radiante. E quanto ao que podemos chamar de “energia musical”, ela também não deve nada às outras. Por vezes, como em “Never forget you”, seu tom fica tão inocente que você tem a impressão de estar ouvindo uma daquelas compilações com o melhor dos “girls groups”  dos anos 60 – The Chiffons, The Shirelles, The Shangri-las, pode escolher! Mas a música aqui é séria, ninguém no Noisettes está brincando de fazer pop: eles estão fazendo o que acreditam que é bom!

E que prazer, para quem gosta tanto de pop quanto eu, em ver essas três artistas se divertindo com isso. Falei aqui de apenas algumas faixas, mas minha recomendação é a de que você vá atrás de todos os álbuns por inteiro: “Wild yourg hearts”, do Noisettes; “Travelling like the light”, de V.V. Brown; e “The ArchAndroid”, de Janelle Monáe – que só será lançado no mês que vem, mas eu já “pré-encomendei” numa loja virtual… (e, mesmo sem tê-lo escutado por inteiro, já arrisco que é bom, só pelas amostras).

Pode ser até que o tal “trabalho novo” de Amy Winehouse saia mesmo ainda este ano – antes mesmo do que ela, da sua última internação… Vamos esperar. E torcer para que ele seja bom, muito bom mesmo… Porque, para agradar a este humilde ouvinte aqui mais do que este trio de vocais extasiantes agradou, ela vai ter que suar mais do que nos primeiros dias de “rehab”…

Como se apaixonar por Xangai

qui, 15/04/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

zeca_blog1Quando você entra na loja de DVDs, uma das várias localizadas em Dagu Lu (recomendada por 10 entre 10 estrangeiros que moram em Xangai), a primeira reação é de estranheza: em prateleiras praticamente vazias, apenas filmes que – pelo menos pelas imagens impressas nas caixas – sugerem épicos sobre a história da China (e pode contar que estamos aí falando de alguns séculos de narrativas para assistir…). Aparentemente ninguém fala nada que não seja o mandarim – isto é, uma versão adaptada daquele que é falado na capital Pequim (ou Beijiing, se você preferir). Você sente um certo desconforto, uma vez que sua figura passa quase despercebida – ignorada é a melhor palavra. Mas aí você se lembra da pergunta mágica, que os mesmos que moram lá te ensinaram a dizer – uma espécie de senha para o buraco de Alice (calma, ainda não vou falar sobre o filme de Tim Burton… só semana que vem…). Cheio de coragem – e sem fé de que alguém vai entender seu inglês -, você lança: “Lost”? E, de repente, um novo horizonte se descortina diante de seus olhos…

Não se apegue à tradução literal. A tal “senha” não é uma indicação de que você está perdido na loja, mas um sinal claro de que você está procurando a última temporada de um dos seriados de TV mais bem sucedidos dessa primeira década do século 21. E, com efeito, assim que você faz a pergunta, um funcionário indica uma porta “secreta” nos fundos – e logo depois dessa porta, você encontra… o paraíso!

Isso, claro, se o paraíso para você significar tudo que você jamais desejou assistir em DVD. “No distante left to run”, aquele novíssimo documentário sobre o Blur? Aqui está! Coleção completa dos filmes de Jacques Tati? Logo ali, na prateleira de cima. Todos os indicados ao Oscar deste ano (menos “Avatar”, que pela alta procura estava em falta, mas deveria chegar em dois dias?)? Em menos de um minutos está tudo em sua mão. Lady Gaga e seu novo show? Fácil! Ou mesmo os episódios que você fingiu que estava procurando de “Lost”… está tudo lá!

Antes de continuar, vale o lembrete. Este blog não aplaude, e muito menos estimula, a pirataria. Reproduzir um produto cultural sem a autorização de seus donos é algo que – todos (quero crer) acreditamos – não faz bem para a própria cultura que queremos estimular. No entanto, depois de alguns dias em Xangai, você já está quase acostumado com as peculiares regras de conduta dos chineses – e embora a idéia de comprar algo nessas condições pareça absurda, você pensa uma segunda vez se vale a pena… Especialmente quando o que você vê na prateleira à sua frente é a última temporada completa de “Curb your enthusiasm” – aquela mesma, que conta com a participação do elenco todo de “Seinfeld”, que acabou de ser exibida nos Estados Unidos, e não tem nem previsão para passar no Brasil (pelo menos não tinha até fevereiro deste ano!).

Sim, amigo, amiga – eu pequei! Comprei a “caixa não-oficial” por uma ridícula quantia equivalente a R$ 12,00 (doze reais, por extenso, para você não achar que eu errei ao digitar o valor). Ponderei que estava viajando, fora de casa, com horas de avião pela frente – e os mesmo filmes para assistir. E que o “pecado menor” que eu acabara de cometer seria recompensado por eu poder escrever sobre esse episódio, como estou fazendo agora – sem conseguir disfarçar um certo cinismo… E que, além de tudo, eu estava louco para ver essa reunião de Larry David com Kramer, Seinfeld, George e (principalmente) Elaine! E, finalmente, ponderei que estava em Xangai – e me lembrei do ditado: “Em Roma, como os romanos”…

zeca_xangai2Menos de 48 horas depois de chegar à China – um país que eu só conhecia “pelas beiradas” (já havia visitado Macau em 1998, território administrado pelos portugueses até 1999, e Hong Kong, uma “invenção” dos ingleses, mas nunca cidades “realmente” chinesas) – eu já havia baixado todas as minhas guardas: desisti de achar estranho o comportamento das pessoas em Xangai, e comecei a me divertir muito mais nessa cidade que me encantou de uma maneira como nenhum lugar o fazia desde que fui a Bangcoc pela primeira vez, em 2003.

Mas afinal, o que que Xangai tem? Certamente não a hospitalidade. Não se trata de uma cidade que abraça imediatamente o estrangeiro – e muitas vezes o ignora (experimente ficar numa fila para comprar um lanche na rua e veja quantos locais passam à sua frente, com a conivência inclusive de quem está no caixa te atendendo!). Porém, quem já morou em grandes cidades – digamos, Nova York – sabe que isso é apenas uma “casca”, uma camada fina que, como se fosse um teste, você é desafiado a quebrar para aproveitar melhor o lugar.

Atrapalhando sua apreciação, também tem o fator da liberdade de expressão. Como turista independente – isto é, quando eu posso escolher aonde vou e não quando estou viajando a trabalho – tenho uma única regra básica que é a de não visitar países onde as pessoas não são livres para manifestar suas opiniões. É por esse motivo, por exemplo, que apesar de conhecer (e bem) quase todo o sudeste asiático, nunca fui a Mianmar. Nem a Cuba. Sou fascinado com a cultura persa e tenho loucura para conhecer o Irã – mas do jeito que as coisas andam por lá, melhor esperar a situação melhorar (e eu, como eterno otimista, sempre acho que as coisas vão melhorar, que as pessoas sempre vão vencer a opressão… mas eu divago…).

Na China, toda a informação é monitorada pelo governo. Além de exemplos históricos (eu morava em Nova York, em 1989, na frente do prédio da ONU, e vi mais de uma manifestação contra os acontecimentos de então na praça da Paz Celestial, em Pequim), você deve ter acompanhado uma confusão recente: o dilema da Google de deixar ou não o mercado chinês por conta da censura imposta pelo governo, uma vez que tudo na internet passa pelo filtro do Estado. (E se você precisar de mais um indício disso, dê uma olhada no artigo que saiu este fim-de-semana no caderno de opinião de domingo do jornal “The New York Times”). Mas, como você vai percebendo aos poucos… nem tudo é o que parece…

Comecei a me dar conta disso quando estava conversando com uma guia que nos mostrava alguns pavilhões que estavam acabando de ser construídos para a Expo 2010 Shanghai – que será aberta agora, em primeiro de maio (para ver algumas dessas construções incríveis dê um passeio por aqui). Digamos que seu nome fosse Dorothy (todos os chineses que encontrei adotam um nome ocidental para facilitar o contato com nós – ocidentais! – mas que nunca é seu nome verdadeiro; aliás, Dorothy não é nem o nome que essa guia adotou, já que eu estou trocando-o justamente para não dar mole para as autoridades chinesas…). E digamos que eu gostei tanto de Dorothy que quis continuar a ter contato com ela. Imagine a minha surpresa quando ouvi de sua própria boca que era só eu procurá-la na página do Facebook – uma vez que os sites de relacionamentos ocidentais são proibidos na China (assim como Youtube, Twitter, Blogger…).

Quando eu perguntei, cheio de dedos, como ela fazia para acessar o Facebook, ela me respondeu com um sorriso malandro que não estava muito distante do espírito brasileiro: “Nós sempre damos um jeitinho”… E dali em diante eu começava a relaxar para finalmente me apaixonar por Xangai!

O único lado positivo que eu vejo num sistema de repressão é a certeza de que ele não pode durar. Nunca durou para sempre – é só conferir a História (com maiúscula mesmo!). As pessoas sempre são mais poderosas que as regimes opressores – nisso eu acredito. E ali em Xangai – uma megacidade que, como você pode ver no episódio deste domingo da série que atualmente estou mostrando no “Fantástico”, já está perto dos 20 milhões de habitantes e não vai parar de crescer – estava a prova de que controlar muita gente é praticamente impossível.

Talvez eu esteja exagerando na analogia, mas quando você não tem controle sobre a produção cultural que circula pelo seu país, como você espera controlar também os pensamentos de seus habitantes? Aos poucos fui conhecendo mais alguns moradores de Xangai que, longe de serem criminosos perigosos (ou “inimigos do sistema”), eram jovens que simplesmente queriam se divertir na cidade. E olha que não faltam opções para isso por lá!

A parte nova de Xangai, Pudong, é impressionante – tão dinâmica quanto uma Nova York, com seus prédios impressionantes, avenidas largas e luxuosos condomínios residenciais. Mas o agito mesmo está na parte antiga, Puxi, e mais especificamente na região conhecida como Concessão Francesa, onde as ruas são mais estreitas – e mais movimentadas. Xangai tem muita gente na rua – o que eu já gosto! – e inúmeras opções para comer, beber e sair. De sofisticadas casas de massagem – menos eróticas do que você já está imaginando, mas extremamente eficientes no aspecto terapêutico – a hotéis de design com um “lounge” bem cosmopolita, é fácil ficar quase paralisado pela quantidade de opções de entretenimento.

Encontrei comidas de todos os tipos – e se você acha que conhece a culinária chinesa, e que ela se resume ao frango xadrez que você pede no “delivery”, prepare-se para uma surpresa. E não só nos restaurantes, mas nas ruas também – não me senti constrangido em experimentar nada! Lojas – mega lojas! – de todas as grifes internacionais conhecidas e pequenas butiques alternativas com incríveis criações de designer locais. O melhor dos eletrônicos – afinal, estamos na China! – nas grandes lojas especializadas e um universo de bugigangas “folclóricas” na área tradicional dos jardins de Yuyuan.

Mas acima de tudo tem gente – muita gente circulando animada em volta de você.

Fazer amigos em Xangai foi mais fácil do que eu imaginava – desde que você encontre alguém que pelo menos balbucie alguma coisa em inglês. Mesmo nas situações mais formais. Por exemplo, esse cara que está ao meu lado na foto que abre este post, era nosso acompanhante também na Expo 2010 e nos tratava com toda a cerimônia exigida pela visita de uma equipe de TV estrangeira dando uma primeira olhada num evento que é de suma importância para Xangai (e para a China) este ano. Até que eu pedi para tirar uma foto com ele – e quando eu vi o resultado, mal pude acreditar que aquele era o mesmo cara que nos acompanhava.

Um povo que é capaz de rir de si mesmo – e nós, como brasileiros sabemos bem o que é isso – só pode ter seu valor! E é por isso que prometi a mim mesmo que Xangai é um lugar para onde quero voltar muito em breve! Quem sabe ainda para conferir a Expo – que fica aberta até o fim de outubro?

Da próxima vez, porém, quero ir de férias. E, em nome da minha, digamos, integridade, prometo não passar nem perto de Dagu Lu! (Um alerta para quem for por lá nesta temporada: pelo que li em vários blogs, o governo sutilmente fechou temporariamente muitas dessas lojas, para não “pegar mal” com os turistas que devem invadir Xangai. Mas, assim como aconteceu nas Olimpíadas de Pequim, é só a atenção mundial passar para outro lugar – ou outro evento – que tudo volta ao “normal”…)

E então eles começam a morrer…

seg, 12/04/10
por Zeca Camargo |
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image-13-for-malcolm-mclaren-through-the-years-gallery-16831049Este é o quinto obituário que eu faço aqui em menos de um ano. E isso, obviamente, não é nada do qual eu possa me orgulhar. As coisas estão muito misturadas na minha cabeça – deve ser a idade… Mas vou tentar me organizar…

Tem a ver com meus 47 anos recém-completos (tive o prazer de ler mais de uma vez as mensagens que você deixou aqui pelo aniversário, muito obrigado), que me fazem pensar, inevitavelmente, na brevidade daquilo que estamos fazendo aqui. Tem a ver também com o título de um livro de ficção que eu um dia esbocei – e do qual me lembrei recentemente, depois do meu tímido arroubo de escritor, que dividi há alguns dias com você. E tem a ver com a morte de mais um dos meus ídolos da juventude – desta vez um dos caras que me ajudou a entender o que significava ser moderno: Malcolm McLaren. Que – aliás, fechando o círculo – morreu no dia do meu aniversário.

“Colecionar” pessoas que morreram no dia em que você faz anos é um passatempo deveras mórbido. Mas quando li aqui mesmo na internet, no final da tarde da última quinta-feira, sobre a morte de McLaren, me lembrei de um outro dia 08 de abril, em 1994, quando acordei para comemorar meus “tenros” 31 anos, e fui informado pelo rádio que o corpo de Kurt Cobain havia sido encontrado (numa curiosidade ainda mas bizarra, a data exata da morte do ex-líder do Nirvana, é dia 05 de abril, quando um grande amigo meu – e também jornalista, com o qual divido mais de uma paixão musical, inclusive o próprio Nirvana –, que nasceu no mesmo ano que eu, faz aniversário…). Repito: “celebrar” uma coincidência dessas não é nada divertido. Mas faz você pensar…

Entre tantos motivos que me fizeram sentir muito abalado com a morte de Kurt Cobain, estava o fato de que eu ainda acreditava na revolução pela música… E a lembrança recente de ter me encontrado com ele duas vezes no ano anterior – em janeiro e em setembro de 1993 – para entrevistas que foram ao ar na MTV. Foram situações realmente especiais – certamente bem mais para mim do que para ele – sobre as quais ainda quero dedicar um post exclusivo, algum dia. Mas a tal coincidência de datas ficou na minha cabeça como um ruído desagradável – ruído este que voltou a incomodar com a notícia sobre Malcolm McLaren.

À medida que você envelhece – e isso, meu caro, minha cara, você com menos de 20, 25, 30 anos, que me acompanha aqui (um grupo que não é pequeno, e que, claro, me deixa muito feliz), é algo que a gente custa a aprender, mas é uma das lições mais fundamentais (ainda que incômodas) da vida – seus ídolos (assim como as pessoas que você admirou na juventude – e não vamos nem falar de seus amores…) também envelhecem. E, como uma consequência natural desse processo ao qual todos estamos sujeitos, eles vão começar a morrer…

(Para mais reflexões bem lúcidas sobre o assunto – certamente mais lúcidas que essas minhas aqui, confessadamente carregadas de emoção – procure ler “Nada a temer”, de Julian Barnes, que foi recentemente traduzido para o português, pela Rocco, e foi, inclusive, comentado aqui há pouco mais de um ano).

Mesmo seguindo essa linha de pensamento, porém, a morte de Malcolm McLaren foi um choque extra para este grande fã do seu trabalho. Ao contrário de Kurt Cobain, nunca tive a oportunidade de entrevistá-lo (houve até um encontro bastante informal, nos idos dos anos 80, quando ele esteve no Brasil por razões que minha memória não me ajuda a lembrar, e sentamos lado a lado numa mesa de uma “boate” – uma espécie de lugar onde as pessoas iam para se divertir à noite, ainda na era mesozóica, bem antes da invenção do “lounge” –, em São Paulo, que se chamava Gallery… Minha timidez diante de alguém que admiro – uma falta de traquejo que já confessei a você outrora –, porém, me impediu de trocar mais que um cumprimento com ele…). Mas, como artista, talvez a influência desse produtor (e pensador) musical – um dos mais criativos e espertos que a história do pop já teve – sobre o que pensa esse que vos escreve foi bem maior do que a de Cobain.

Contudo, não vou entrar nesse jogo de comparações – um exercício para lá de inútil. O que quero fazer hoje aqui é uma pequena homenagem a McLaren, que, entre tantos trabalhos brilhantes, fez um álbum que considero um dos 20 mais importantes de toda a trajetória do pop.

Fazer agora uma biografia detalhada de McLaren, seria uma perda de tempo. Aqui mesmo na internet, por conta da sua morte, você encontra obituários (inclusive na Wikipédia) bem mais completos do que eu poderia oferecer neste blog. Porém, para quem talvez nunca tenha ouvido falar dele, talvez a melhor introdução seja repetir seu epitáfio mais surrado: ele foi o homem que inventou os Sex Pistols!

article-1046965-00137F2C00000258-937_306x423Se fui atrás um dia de Malcolm McLaren, foi por causa disso – meu ponto de partida na minha idolatria por ele. Lembro-me muito bem da minha primeira visita à Londres, numa tarde mais que gelada de fevereiro (no longínquo ano de 1980), eu andando sozinho naquela King’s Road, procurando por um lugar chamado World’s End, a então última encarnação da loja de roupas que havia sido criada por McLaren e a genial estilista Vivienne Westwood (que, aliás, faz aniversário no mesmo dia que eu…), e que se chamava originalmente SEX, onde, segundo a lenda, “nasceu” a própria banda Sex Pistols. Como já disse em algum lugar deste blog, tive uma formação musical ligeiramente heterodoxa no anos 70: cresci gostando de punk e de discoteca… E já que não havia conseguido estar em Nova York para dançar no Studio 54, pelo menos eu, lá em Londres, teria o prazer de “andar na mesma calçada” que meus ídolos do punk – mas eu divago…

Nesse início dos anos 80, meu radar estava apontado para duas outras bandas com as quais McLaren havia se envolvido, Adam and the Ants e Bow Wow Wow. A primeira foi para frente – ainda que sem uma grande participação de McLaren – e fez um dos álbuns mais estranhos e brilhantes de toda a discografia pop (“Prince charming”), além de uma as minhas canções favoritas de todos os tempos, “Picasso visita el planeta de los símios” (que abre minha lista das mil músicas mais importantes para mim). A segunda fez um sucesso moderado, mas deixou um legado bem decente. E digo mais: se você quer ter idéia do que significava ser moderno em 1980, dê uma conferida neste vídeo de “Chiuaua” – olha só… a música se chama “Chiuaua”!!!

E por falar em modernidade… Depois de “mudar o jogo” com os Sex Pistols, flertar com ritmos tribais africanos, e criar mais de um estilo de comportamento, para onde ele poderia ir? Para uma conexão entre o hip-hop americano e a música pop sul-africana, com pitadas de ritmos latinos, claro! Em 1983 ele vem com “Duck rock” – e mais uma vez seria responsável por uma mudança radical nos rumos do pop. Assim, como quando ele formatou os Pistols, McLaren nunca inventou nada – quando “Never mind the bollocks” foi lançado (1977), o punk de maneira dispersa já existia há anos. Mas se ele era bom em uma coisa era de pegar uma tendência e transformá-la em uma febre mundial…

Muito antes de Paul Simon “encantar” o mundo com sua “descoberta” da riqueza musical da África do Sul (“Graceland”, 1986) – um som que, especialmente neste ano em que a Copa do Mundo vai acontecer naquele país, está hoje onipresente no pop globalizado –, McLaren foi lá e gravou uma canção chamada “Soweto”. Não foi nem o primeiro “single” de “Duck rock” (nem o segundo nem o terceiro). Mas foi para mim uma epifania! Ali percebi o poder de uma música que não precisava vir exclusivamente de Londres ou dos Estados Unidos para ser boa – muito boa! Adotei “Soweto” como um hino pessoal (e não é por acaso que ela também encabeça a minha já citada lista de mil músicas) – e elegi “Duck rock” como um dos maiores discos de todos os tempo (ainda o incluo em listas desse gênero quando sou convidado a fazê-las).

E não só por “Soweto”… O clássico “Bufallo gals” inspirou (a acho que inspira até hoje) gerações de jovens músicos – de Neneh Cherry a M.I.A. – e “Double ducth” é das misturas mais perfeitas de dois universos que talvez nunca tivessem se encontrado: o dos vocais sul-africanos com as puladoras de corda nova-iorquinas . Acrescente a isso uma insana mistura de ritmos latinos (“Merengue”), um canto étnico remixado que estaria décadas à frente do álbum que Damon Albarn (Blur) produziria no Mali (“Obatalá”, que curiosamente termina com um grito pela República Dominicana), e um tributo aos incríveis DJs de Nova York na “era da inocência” do rap (“World’s famous”).

Na minha reduzida coleção de disco de vinil, “Duck rock” é um dos quais eu nunca vou abrir mão – e aquela capa “moderna”, com uma “boom box” toda customizada sobre um fundo com um grafite de Keith Harring já decorou em mais de uma temporada a parede do meu quarto… É um clássico indiscutível – algo praticamente impossível de ser superado.

6a00d834515ae969e2011168a059a9970c-320wiDe fato, depois de “Duck rock”, McLaren até tentou. Em 1984 ele lançou um disco de… ópera! Isto é, de árias famosas com uma batida “proto-lounge”. Eu achei sensacional (é outro vinil do qual não consigo me desfazer!), mas “Fans” teve uma recepção menos que calorosa… Cinco anos depois veio “Waltz darling”, numa tentativa (não muito bem sucedida) de fazer pela valsa o mesmo que ele tinha feito pela ópera em 84 – vale a pena lembrar, no entanto, que ele nesse trabalho flertou com o “vogue” bem antes de Madonna… E os fãs teriam de esperar outros cinco anos para ver um trabalho original seu: o curioso “Paris”, onde ele tinha nos vocais participações de, entre outros, ícones do cinema francês, como Catherine Deneuve.

Uma colaboração inesperada aqui, um remix acolá, mas McLaren nunca mais fez algo de tão sensacional quanto os trabalhos em que “colocou suas mãos” entre 1976 e 1984. E precisava? Na minha modesta opinião, não… Citado em boa parte de qualquer grande reportagem sobre cultura pop, consultado por artistas e produtores do mundo inteiro, e respeitado por uma legião de devotos seguidores (entre os quais eu me orgulho de estar), Malcolm McLaren sabia que já havia deixado sua marca bem presente na cultura de nosso tempo.

Vítima de um tipo raro de câncer – que eu nem sabia que ele havia desenvolvido –, ele sabia talvez que podia ir embora depois de ter mexido com a cabeça de boa parte dos jovens no mundo todo. Mas eu prefiro achar que, mesmo aos 64 anos (e quem sabe ainda mais para frente), ele ainda seria capaz de sintetizar – novamente – algo de realmente revolucionário.

(Em tempo, os outros quatro obituários que fiz nos últimos doze meses, a quem interessar possa, foram os de Zé Rodrix, Michael Jackson, Pina Bausch e Miguel Magno)

Onde eu estou

qui, 08/04/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

zeca_ondestou_blogReparou que a frase desta vez vem sem uma interrogação? É que hoje – pelo menos hoje – eu sei bem onde estou. Estou bem nos meus 47 anos. Dois anos depois dessa foto acima ter sido tirada. Um pouco mais feliz com a vida – e um pouco mais confuso com ela também. Assim, para marcar a data do meu aniversário – que finalmente caiu num dia de post! – faço uma pausa. Não exatamente para pedir os parabéns (que serão, de toda maneira, bem-vindos!), mas para agradecer o presente de ter você como leitor. Este espaço é um dos que mais me alimentam – e você sabe que tem parte nisso. Assim, sem mais, vamos retomar a conversa na segunda? E se você quiser arriscar onde a foto foi tirada, fique à vontade…

Três trailers curtos – e um razoavelmente longo

seg, 05/04/10
por Zeca Camargo |
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Fui exposto a quatro trailers antes de assistir a “Os famosos e os duendes da morte” – o filme de estréia do diretor Esmir Filho. Três deles tentavam alinhar o trabalho a outras produções brasileiras voltadas para o público adolescente (se bem que não tenho certeza de que o título de Esmir tenha esse foco…) – o quarto trailer, estranhamente, era o de “Quincas Berro D’Água”, um filme que estou na expectativa para assistir (gosto muito de Sérgio Machado), mas que dificilmente eu diria que é para espectadores ainda com hormônios desordenados pelo corpo… São eles: “Sonhos roubados”, de Sandra Werneck; “Antes que o mundo acabe”, de Ana Luiza Azevedo; e “As melhores coisas do mundo”, de Laís Bodanzky.

Como você deve ter percebido, os três são dirigidos por mulheres – que, se você juntar com a informação sobre quem ganhou o Oscar de melhor diretor este ano (e acreditar em um pouco de superstição), pode ser um bom sinal. Em uma outra coincidência, dois desses filmes têm a palavra “mundo” no título – uma “isca” deliciosa para quem quer falar com adolescentes. E outro traço em comum dos três filmes é que, com a exceção de Fiuk – o ator que está em “As melhores coisas” e já traz o estrelado na própria dinastia (é filho de Fábio Júnior, lembra?) –, todas as caras que aparecem como personagens principais desses futuros lançamentos são praticamente desconhecidas. Algo, aliás, extremamente positivo – e que certamente contou muito a favor no caso de “Os famosos” (mais sobre disso daqui a pouco). Será que estamos diante de uma “nova onda”?

Tomara que sim. Pelas amostras – e, lembro, estou me baseando apenas nos trailers – vamos ter a chance de ter três bons filmes para esse público adolescente, e que, ao mesmo tempo, não vai desprezar a atenção de marmanjos como este que vos escreve (e que está a poucos dias de completar 47 anos). Laís Bodanzky, por exemplo, depois de nos encantar com encontros e desencontros da terceira idade (com seu ótimo “Chega de saudade”) parece querer mostrar que os conflitos emocionais existem em qualquer geração – e tudo indica (sempre pelo trailer!) que ela tem a exata dose de sensibilidade para desenvolver uma história assim nas telas.

Em “Sonhos roubados”, Sandra Werneck parece pegar um pouco mais pesado – e por uma ótica “de menina”. Sua heroína tem todas as características de uma adolescente sem nenhuma referência, vítima de seus próprios impulsos – aquela lógica torcida em que o mundo pode ser salvo se ela tiver uma “calça da Gang”! Aqui, novamente, as “caras frescas” só acrescentam credibilidade à história – e, novamente, olha que estou falando só do trailer…

Minha maior aposta, porém, vai para “Antes que o mundo acabe”. No bem editado “teaser” que vi no cinema, Daniel (o personagem principal, vivido por Pedro Tergolina) parece ter todos os “problemas” que os garotos do filme de Bodanzky têm: de namoro mal-resolvido até desajuste social generalizado – e uma a mais: a distância de um pai que saiu de casa quando ele ainda era muito pequeno. Não sei exatamente porque – talvez pelo fato de o pai mandar notícias de um canto do mundo que me atrai bastante, o sudeste asiático (arrisco até que as fotos que aparecem no trailer são do Vietnã) –, mas fiquei extremamente interessado em saber como seria esse encontro. Se é que ele acontece no filme…

Instigado então por esses três “aperitivos”, preparei-me para assistir ao “trailer principal”: “Os famosos e os duendes da morte”. Em nome da transparência – antes de continuar – tenho que esclarecer que sou muito amigo da apresentadora Sarah Oliveira, que é irmã de Esmir Filho. Dito isso, gostaria de começar dizendo que este não é um filme fácil…

Ou ainda, eu diria que a maior surpresa para mim foi vê-lo exibido em um circuito comercial (assisti num cinema de shopping da zona sul do Rio de Janeiro, numa sessão que tinha cerca de trinta pessoas!). “Os famosos” é um trabalho atrevido, que em mais de um momento te desafia a abandoná-lo. Quase experimental, sua história vai sendo contada aos poucos – bem aos poucos: por exemplo, o argumento principal da trama (o suicídio de uma adolescente numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul) só fica claro já quase na metade da projeção!

Esmir ainda provoca a paciência do espectador com um dos mais arriscados clichês modernos – o de transferir para a tela grande alguns daqueles micro-registros de cenas privadas que poluem o youtube, e que geralmente (algo fácil de comprovar pelo número de acessos a eles) só são assistidos pelas pessoas envolvidas (e o diretor não se contenta em mostrar apenas fragmentos desses vídeos…). Acrescente à lista de “obstáculos” o próprio título do trabalho, que praticamente pede para ser ridicularizado como uma daquelas pretensiosas colocações colegiais… Porém, apesar de todos esses obstáculos, tenho de confessar: fiquei hipnotizado com o filme.

Primeiro de tudo, achei-o corajoso. Talvez eu estivesse ainda embalado pela minha própria ousadia em expor, aqui mesmo neste espaço, e pela primeira vez, um trabalho autoral – o meu, claro, uma obra escrita; o de Esmir, filmado. Mas foi com muito desprendimento que me vi sendo envolvido por “Os famosos”, e acho que o que mais colaborou para isso foi a interpretação dos atores.

Para começar, tem Henrique Larré, que interpreta o personagem principal – cujo nome nunca ficamos sabendo (nem na ficha técnica do site oficial do filme). É mais uma das “caras desconhecidas” que citei no começo deste post, que só tem a contribuir para a credibilidade da história. Eu acredito em cada palavra que o personagem de Larré diz. E não só nisso: acredito em cada olhar perdido que ele solta; em cada frase que ele escreve em seu blog (“Nossas bocas sorrindo até o fim” – uma das mais simples e belas definições de felicidade conjugal que já ouvi recentemente… onde é mesmo o fim de um sorriso?) ou nos seus chats (“Estar perto não é físico” – outro clichê, eu sei, mas que adolescente resistiria a ele?); acredito na sua angústia; na sua paixão por Bob Dylan; na impossibilidade de se comunicar com sua mãe (a ótima Áurea Baptista); acredito nas suas espinhas; acredito até na sua orelha – que rouba a cena por alguns segundos, num enquadramento que me fez lembrar os lábios de Isabella Rossellini em “Veludo azul”, de David Lynch (um diretor do qual me lembrei várias vezes ao longo de “Os famosos).

Diego, seu companheiro de classe – e de “aventuras” – é vivido por Samuel Reginatto, de maneira não menos convincente. E o personagem “misterioso” na história, Julian, é interpretado por Ismael Caneppele, sem nenhuma afetação ou exagero. Minha curiosidade em ver mais um pouco de cada um dos atores e atrizes do filme é o que me segurava entre os longos hiatos em que Esmir flerta com a experimentação (Mesmo nesse quesito, há momentos inspirados – como a cena em que Diego anda de bicicleta numa estrada de terra circulando o personagem de Larré –, embora outros exercícios gratuitos – como os flashes de estrada iluminados por faróis de um carro – tenham o poder de quase estragar o efeito geral).

Como um bom filme de arte – e olha que eu uso esse termo com parcimônia –, as coisas não vão ficando exatamente mais claras com o desenrolar do filme, mas mais complicadas… E a partir do momento em que você começa a torcer para que tudo não se resolva de maneira óbvia – isto não é Hollywood! –, bingo! Elas terminam sem explicação. Ou melhor, terminam com muitas possibilidades… (mais ou menos, sem falsa modéstia, como meu conto que acabei de publicar…).

Será que nosso “herói” consegue cruzar a ponte que não deixa ninguém sair da cidade? (Uma referência ao “Anjo exterminador”, de Buñuel, também é sugerida). Será que as pessoas liberaram tudo de reprimido que aquela cidade tem na festa junina? Será que alguém conseguiu ir ao show de Bob Dylan? Como será que continua a conversa no MSN? Existe vida além daquela cidade?

“Os famosos e os duendes da morte” termina de maneira abrupta, como você quase pode prever, desde a primeira cena – um dos vídeos caseiros da “heroína” (estranhamente batizada de Jingle Jangle, pelo menos na ficha técnica – já que, no filme, nunca captamos seu nome). Mas com a certeza de que Esmir é uma promessa.

Por isso, a brincadeira do título do post de hoje. “Os famosos e os duendes da morte” é um filme completo, e só pode ser considerado um “trailer” – e bem longo, como eu sugeri – se você o encarar como um prenúncio de coisas que ainda estão por vir. Citando mais uma vez David Lynch, me lembro da primeira vez que vi “Earserhead”, seu longa-metragem de estréia. Foi no ICA (Institute of Contemporary Art), em Londres, há anos – nada além do que também uma promessa (muito) esquisita de um nome que poucos conheciam… Deu no que deu. E acho que não vai ser diferente com esse jovem diretor brasileiro.

Quero ver mais de Esmir – assim como quero ver, por inteiro, os três filmes cujos trailers eu conheci antes de “Os famosos” (quem sabe não falamos disso mais para frente?). Mas, sobretudo, quero ver mais de você, Henrique Larré! Tem uma geração inteira de atores e atrizes que vêm por aí que, apesar do estrelado eminente, ainda não tem uma noção clara do que é atuar. No que você puder colaborar, seja bem-vindo!

zeca_duendes

A conclusão – e cenas dos próximos capítulos

qui, 01/04/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

(Esta é a segunda parte de uma história que começou no post anterior)

“Quase como um reflexo, Joana apertou a tecla ‘responder’ no seu telefone e escreveu:
‘Breno, não se assuste. Nem pare de ler essa mensagem por aqui. Eu poderia começar de uma maneira bem convencional – ‘quanto tempo’… aquelas coisas. Mas é melhor dizer logo (afinal, isso é um SMS, não um email), se é que você ainda está me lendo, que eu sinto a sua falta. Das nossas palavras que nunca foram ditas. Lembra? A gente ria do Renato cantando isso – como se ele, poeta, não soubesse que as palavras que você ouve de quem ama nunca são repetidas. Que saudades de ouvir ‘eu te amo’ de você – e receber a frase como se fosse uma nova lição numa língua que você ainda está aprendendo. E estávamos aprendendo uma nova língua, não estávamos? Aprendíamos tudo, com a curiosidade de quem entra num jardim da infância. E com a mesma inocência. Eu fui a Joana mais feliz do mundo e sei que fiz de você o Breno idem. Há meses eu tento fingir para mim mesma que aquilo tudo não aconteceu – e confesso, com orgulho, meu fracasso. Eu penso em você todo dia Eno (ainda posso te chamar assim?). E é pior – muito pior do que eu imaginava. Patético eu estar te escrevendo essas coisas não é? Sabia que você iria achar isso…’

Enviar.

Engraçado como as mensagens de texto – que sempre foram do tamanho justo quando eles queriam se comunicar quando estavam juntos – agora pareciam estranhamente limitadoras. Queria escrever mais, mas tinha essa questão do espaço… Só que Joana sabia que isso era só uma desculpa.

Poderia escrever mais sim – abrir outra página no seu celular e continuar a descrever a falta que ela sentia do Breno. O que a impedia era um outro motivo: um medo absurdo de parecer ainda mais tola diante dele. Se Breno estivesse acordado agora – algo pouco provável, porque ainda não era nem meio-dia –, talvez ele já estivesse lendo sua mensagem. Se é que ele passou da segunda frase. Enquanto ela se sentia, não arrependida, mas precipitada por tê-lo procurado (e de maneira tão escancarada), talvez ele já estivesse lendo a pergunta sobre ‘aprender uma nova língua’. E quando finalmente ela começou a chorar, Breno provavelmente já teria chegado à palavra ‘patético’.

Dois tempos tão diferentes: o dele, o de uma leitura desconfiada, e o dela, de um mergulho no fundo da sua emoção – e, mesmo assim, os dois contidos nos 1.120 toques que a tela do seu aparelho era capaz de conter. A essa altura, aliás, era provável que ele estivesse lendo tudo de novo. Joana, porém, não estava a fim de repetir as sensações dos últimos 45 segundos (mais ou menos o tempo que ele levaria para chegar ao fim da mensagem). Melhor se distrair com outras coisas. Ela precisava descobrir o telefone daquele dermatologista – lembra, Joana? E ela tinha tanta coisa para fazer – coisas muito mais importantes do que esperar por uma resposta do Breno.

Que não veio.

Não veio naquele dia, não veio no dia seguinte, nem nos dias que faltavam para fechar o mês – mais precisamente os dias que ainda tiveram de ser vividos até que completasse um ano e meio da separação entre eles.

Joana se lembrou de uma mensagem que uma vez Breno havia mandado reclamando que não havia encontrado nenhum torpedo dela naquela manhã – e que ele não sabia então como conseguiria atravessar o dia… Ela já estava acordada em sua casa há tempos, e ficou imaginado Breno escrevendo aquilo atravessado na cama, não no sentido que as pessoas geralmente dormem, mas a exatos noventa graus disso – quantas não foram as noites em que ela acordou de madrugada para registrar a curiosa perpendicular que seus corpos faziam sobre o colchão, como que desafiando a idéia de que o abraço não precisa ser apenas entre dois corpos paralelos? (Mesmo dormindo – ou ‘durmindo’ – sozinho, Breno sempre rodava na cama longe do travesseiro, como se sua cabeça fosse atraída magneticamente para um outro ponto do planeta. Não foram poucas as manhãs em que ela, chegando cedo para fazer uma surpresa, o encontrava naquela posição assim que abria a porta do quarto, e docemente resistia à vontade de correr para o seu lado apenas para aproveitar por alguns minutos aquela visão). Por isso foi fácil imaginar Breno digitando aquela ‘reclamação’ – e, ciente de que o havia acostumado mal (afinal ela mandava sim uma mensagem todos os dias pela manhã), apressou-se em escrever uma desculpa emocionada:

‘Ainda não te escrevi, Breno, porque não sabia como te dizer isso… Eu te adoro Breno, mas tanto, tanto, tanto, que não tá cabendo mais no meu coração, meu amor. Não tá cabendo nem nos nossos dois corações juntos. Nem em todos os corações da Terra juntos. Porque é um amor tão lindo, tão grande, e tão infinito que ninguém ainda teve o privilégio de entender. É só nisso que você precisa acreditar para fazer aquelas duas palavras tão simples, mas que quando são ditas juntas – e ainda mais saindo dos teus lábios – significa o mundo pra mim: vamos juntos!’

Deu certo… Em menos de uma hora ele estava ligando da frente do trabalho de Joana pedindo que ela fosse almoçar com ele. E depois do almoço, claro, o amor.

Sua última mensagem, porém, aquela que havia mandado quase que por impulso assumindo que sentia muita a falta dele, não provocou nenhuma resposta. Depois de dezoito meses e um torpedo, o que ela tinha? Um coração ainda mais vazio – nas suas paredes, os ecos das canções de amor que nunca fizeram muito sentido para ela antes disso, mas que ultimamente finalmente cumpriam seu papel: preencher o vazio de um romance que acabou sem explicação (era por isso então que essas músicas faziam tanto sucesso, porque existiam milhares, milhões de pessoas que se sentiam como ela?).

Lembrou-se do envelope que nunca saía da sua bolsa. Achou-o dentro daquele micro labirinto quase junto com a caneta que eles haviam roubado do hotel onde se hospedaram na única viagem que fizeram juntos (Barcelona!). Apoiou o grosso volume de cartas e bilhetes que Breno havia escrito de próprio punho, riscou o que frase que estava ali antes – ‘As palavras que nunca são ditas’ – e com muita raiva escreveu: ‘Did you ever believe the lies that you told?’.

Será que ele um dia acreditou nas mentiras que contou para ela? A pergunta não era original. Joana a havia tirado de uma música (‘Fool’s gold’) que a ajudou atravessar os primeiros dias longe de Breno, cantada por Lhasa, uma artista que (ela tinha certeza), o próprio Renato Russo teria gostado de conhecer – e, quem sabe (gostava de pensar), agora que os dois já não estão aqui, não estão compondo juntos em um outro plano?

Que curioso… Num gesto breve, tinha transformado toda a saudade que sentia de Breno em raiva destilada. Sentia enfim vontade de ir até a casa dele e lhe atirar o envelope ‘rebatizado’ na cara. Nunca faria isso, claro. Mas pelo menos podia mandar outra mensagem de texto… E num impulso não menos apressado do que da última vez, abriu seu celular e teclou:

‘Eu nunca me senti assim Breno. Eu nunca tive de dizer isso pra ninguém. Mas eu ainda preciso de você. Eu preciso saber o quanto você gosta de mim, eu preciso de coisas bobas assim. Faz tanto tempo Breno, e ao mesmo tempo não faz tanto tempo assim. Eu nem sei mais o que é tempo, pois os únicos minutos que eu contava eram aqueles que eu passava com você. Aqueles em que eu te abraçava e sua cabeça caía para o meu ombro, num contato tão precioso que nem um beijo – que era a coisa que eu sempre mais queria de você – eu tinha coragem de te dar, para não quebrar aquele encanto. Ironicamente eu achava que em momentos como aqueles, o relógio tinha é parado – mas não… Eram essas as frações do tempo que realmente definiam minha vida. E é disso que eu sinto falta agora, Eno. É disso que eu sinto falta.’

Nenhuma resposta.

O que Joana tinha a perder se continuasse mandando mensagens? Levou dois dias para ela chegar à conclusão de que não perderia nada – e que nem que fosse uma espécie de estratégia desesperada de sobrevivência, se ela seguisse exercitando seu amor, ainda que de um lado só, isso a ajudaria a atravessar os dias até que – como Breno disse a ela na última conversa – chegasse o momento em que ela fosse rir disso tudo (e que raiva ela sentiu de ter que se despedir dele com um clichê desses…). Assim, mandou mais um torpedo – já era o terceiro:

‘Eu não paro de pensar em maneiras de te fazer feliz. Você sabe como. Você já acordou do meu lado e leu nos meus olhos a promessa de ser sua parceira até o infinito. Eu só posso ser feliz assim.’

E três dias depois, ainda sem resposta, foi sem um mínimo de hesitação que mandou mais uma mensagem:

‘Se eu pudesse ter só mais uma conversa com você, se você pudesse me convencer que não gosta mais de mim. Se eu tivesse a chance de ver seu sorriso mais uma vez, de brigar mais uma vez com o meu sono para não tirar a lucidez da minha felicidade de estar deitada ao lado do cara que mudou minha vida, de ouvir mais uma vez você responder à pergunta QUEM É O AMOR DA MINHA VIDA? com um simples SOU EU… Se eu pudesse te entender, se eu pudesse te esquecer, se você pudesse me abraçar…’

Enviar.

Joana já conhecia a rotina: mandar a mensagem, torcer sem convicção para que viesse uma resposta, não obter essa resposta e aos poucos ir retomando seu cotidiano até ter inspiração para escrever mais um torpedo. Só que dessa vez a rotina foi quebrada, quando dali a menos de cinco minutos chegou uma sinal – o nome BRENO piscando na sua tela como se fosse um registro vital de um eletrocardiograma. Finalmente ele tinha alguma coisa para dizer para Joana – que resolveu se poupar da indecisão sobre se deveria abrir ou não a mensagem naquele exato momento: claro que deveria abrir. E ler:

‘Joana, esse não é mais o número do Breno. Aliás, nem sei quem é Breno – só sei que peguei esse telefone no começo deste ano. E sei também que li todas as mensagens que você mandou. Várias vezes. E conclui que é impossível não se apaixonar por você. Que esse Breno – coitado… Mas eu não quero falar dele. Quero falar de mim, que inevitavelmente me apaixonei pela mulher que escreveu essas palavras que – pegando outra carona no Renato (é o Russo, não é?) –, pelo menos para mim, nunca haviam sido ditas. E o que eu faço agora com essa paixão? Não quer me ligar para me ajudar a encontrar uma resposta? Um beijo. Leila’.”

***

Pronto! Terminei!

Estimulado pelo entusiasmo de quem mandou comentários para o último post, aqui está a segunda (e última) parte do conto que comecei a apresentar esta semana. Confesso que fiquei um pouco constrangido de ter sequer colocado nas suas mãos a decisão de publicar na íntegra esse que é meu primeiro trabalho formal de ficção – afinal, quando alguém pergunta “devo continuar?”, está praticamente implícito no questionamento o desejo de que a resposta seja sim… E ao colocar essa questão para você que (espero) é meu leitor ou minha leitora assíduo, estava já quase que contando com seu desejo de ler tudo até o fim…

O que não tornou a tarefa de concluir este conto mais simples… Foi estranho notar como me envolvi muito mais nessa tarefa do que em todas as outras vezes que me concentrei para escrever um post. Foi incrível perceber como – exatamente da maneira como já vi vários escritores escrever sobre o próprio ofício – a gente se sente bem mais exposto do que quando conta uma história pessoal. Fiquei perplexo com minha vontade de acertar, de querer seduzir você até o final, de não deixar a impressão de que estava “escrevendo qualquer coisa”, de finalmente colocar de pé uma história que foi inventada – e fazer com que ela parecesse tão interessante quanto algo que eu mesmo (ou quem sabe você) pudesse ter vivido. Ou pelo menos sonhado…

Saí exaurido da experiência – e vulnerável. Em nome da transparência, deixo claro que não estou admitindo essas coisas todas como um ato de auto-comiseração. Espero de você, que se animar em mandar um comentário, menos uma “passada de mão na cabeça” – tipo: “ai coitadinho, valeu o esforço” – do que uma opinião sincera, sempre no nível (excelente) dos debates que temos aqui. Tem gente que prefere criar em isolamento… Eu felizmente (ou infelizmente?) não sou assim!

Quanto às cenas dos próximos capítulos – e se você se lembra de ouvir essa expressão na TV é porque pertence à minha faixa etária… –, nada garante que eu vá continuar por esse caminho. Que, diga-se, é assustador. Semana que vem, retomamos nossa conversa no plano da, digamos, não-ficção. Quero falar de Xangai – como já havia esboçado ao escrever sobre Mumbai. E ainda de alternativas para quem não aguenta esperar por um novo álbum de Amy Winehouse, da minha expectativa para ver “Alice”, de Tim Burton, e de uns dois ou três livros que estão me tirando do sério (um deles, de um certo autor russo do século 19!).

Depois dessa estranha experiência de flertar com a ficção, nada como voltar a nadar em águas conhecidas (torcendo para que, no mínimo, eu tenha conseguido te oferecer uma boa leitura para o fim-de-semana…).



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