Muitos passados, nenhum futuro

qui, 18/03/10
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Depois de tudo que eu já tinha visto se desenrolar na tela, durante a sessão de “O segredo dos seus olhos”, eu já deveria estar preparado para qualquer coisa. Afinal, eu já havia sido apresentado a mais uma performance impecável de Ricardo Darín; já tinha acompanhado uma trama que, quando dava a sensação de ter sido resolvida, vinha com uma nova reviravolta; já tinha visto um dos melhores “planos-sequência de mentira” da história do cinema; já tinha me perdido em questionamentos sobre o porquê de o cinema brasileiro ter tão poucos roteiros bons como aquele; e já tinha até imaginado a surpresa final que o filme iria oferecer – tópicos esses (com exceção, claro, da surpresa final) que vou desenvolver já já. Quando de repente Ricardo Morales (o personagem vivido pelo ator Pablo Rago) solta a melhor definição do “estado das coisas” que vivo atualmente, ao se virar para Benjamin Espósito e acusar: “Você tem muitos passados e nenhum futuro”. Foi devastador…

osegredo

“O segredo dos seus olhos” é – como você que gosta de cinema provavelmente já sabe – o filme que levou o Oscar de melhor produção em língua estrangeira este ano. Muito justo. Mas não é só isso. É também o melhor filme que vi em muito – mas muito! – tempo… E o segredo principal, além das interpretações inacreditáveis e de uma elegância de câmera que eu já quase havia desacostumado de esperar no cinema contemporâneo, não está nos olhos de ninguém (aliás, se o filme tem algum ponto fraco é seu título – que nem de longe te prepara para o que você vai ver), mas num elemento tão básico da própria arte de fazer filmes, que fica difícil acreditar que tanta gente pega uma câmera sem ter a certeza de que ele – este elemento – está garantido: um bom roteiro!

O que nos faz perguntar… o que é que a Argentina tem? Lembra-se de “Nove rainhas”? O filme, dirigido e escrito por Fabián Bielinsky (que morreu quando estava de passagem por São Paulo em 2006), tem um dos melhores e mais surpreendentes roteiros que já vi – daqueles que, na linha de “Os suspeitos” (de Bryan Singer, 1995), te obriga a ver o filme de novo só para conferir se tudo que você assistiu faz mesmo sentido. Se você não conferiu, pode começar a caçá-lo por aí – não é muito fácil de achar – e prepare-se para uma montanha russa! Foi nesse filme que fui apresentado a Ricardo Darín – e também ao ótimo ator que vive seu “comparsa”, Gastón Pauls. Já revi “Nove rainhas” uma boa dezena de vezes (embora nunca tenha tido coragem de conferir o “remake” hollywoodiano, “Criminal”, de 2004…), e nunca saí da experiência menos do que estimulado.

Mas talvez você tenha assistido a “O filho da noiva” – já que este foi um dos filmes que mais tempo ficou em cartaz no Brasil (numa nota de rodapé, encontrei por acaso com Darín – que também é o protagonista desse filme – uma vez em um hotel em Bariloche e comentei com ele, como um fã bem atrapalhado, sobre esse sucesso por aqui, e devo ter parecido tão mané de excitação, que ele saiu meio sem falar nada…). Trata-se também de um roteiro muito bem amarrado e emocionante – não conheço uma pessoa que viu e não chorou (isso, porque “O filho” não passa nem perto da pieguice).

Se você precisar de um exemplo mais recente de um filme argentino bem feito, que tal “Leonera” (2008), do diretor Pablo Trapero? Rodrigo Santoro emprestou seu talento a essa história que já se mostra poderosa desde a cena inicial – uma orgia de sexo e drogas que terminou muito mal. E tudo é forte nele, até a delicada sequência final, em que a câmera vai embora no barco deixando para trás os personagens que ficaram literalmente na outra margem do rio… Lembro-me de ter pensado, na época em que assisti “Leonera”, de que o diretor talvez houvesse imaginado, antes de qualquer coisa, aquele lindo encerramento – e, de tão perfeito que era, construiu toda uma história antes dele para poder filmá-lo…

Tive uma impressão parecida durante a sessão de “O segredo dos seus olhos”, dirigido por Juan José Campanella (que também o adaptou de um livro de Eduardo Sacheri). Mais ou menos no meio da história, surge o tal “plano-sequência de mentira” (o “de mentira” fica por conta de que é fisicamente impossível fazer aquela cena toda de uma vez só, pelo menos dentro do meu modesto conhecimento de técnicas cinematográficas), e é tão genial, que novamente pensei: o filme deve ter começado por aí – e depois veio o resto para construir a história.

O problema é que, no caso de “O segredo dos seus olhos”, pensar assim é diminuir demais o valor que o filme tem por inteiro. Afinal, como listei logo no início deste texto, essa é apenas uma de suas qualidades. Por exemplo, quando falei em “elegância de câmera”, refiro-me não só à cena do estádio de futebol, mas a detalhes como alguns planos onde os atores estão quase sempre encobertos por um objeto – um porta-retrato, um vaso, ou mesmo um outro ator. Você não vê tudo que está acontecendo nem todas as reações de quem está no centro da cena, mas o resultado é eficiente: te jogar para dentro da ação, como um observador bisbilhoteiro – sutil e eficaz.

Ou mesmo quando ele explora espaços fechados, sejam vazios – a casa da mãe de um suspeito de estupro seguido de assassinato (o crime que dá início a toda a trama); a casa de campo de Ricardo Morales (o viúvo da jovem morta) – ou claustrofóbicos, como o escritório onde Benjamin trabalha. Tudo é de uma meticulosidade comovente.

Depois temos as interpretações. Darín? Bem, não vou ficar aqui me repetindo. Soledad Vilamil faz uma Irene com dose certa de mistério e seriedade – e uma pitada de sensualidade reprimida. Guillermo Francella vive Pablo Sandoval, uma espécie de Sancho Pança para o Quixote de Benjamin (Darín), e é simplesmente sensacional – o bêbado mais autêntico que já passou pelas telas de qualquer nacionalidade. Mas vale destacar também as pequenas participações, como o cara do bar que é uma “enciclopédia” de futebol argentino; ou o político que ameaça Benjamin e Irene e dá o discurso mais nojento que você jamais vai ouvir de qualquer pessoa que julga que tem poder; ou ainda – e essa é uma participação só de voz! – a mãe do suspeito de estupro, que deveria inspirar a Academia de Artes de Ciências Cinematográficas de Hollywood a criar uma categoria para “melhor performance em off”!

E aí tem o roteiro. E sou obrigado a retomar minha inquietação: por que vemos tão poucas histórias bem contadas (como essa) no nosso cinema? Você às vezes, depois de sair de um filme brasileiro, não fica com a sensação de que ele era um monte de esquetes colados, mas sem um fio condutor que fosse de fato um bom argumento que unisse tudo? Talentos de atuação não nos faltam – felizmente – e vemos isso o todo tempo nos lançamentos nacionais. Mas raros são os filmes que almejam te surpreender como um todo – e não por uma ou duas cenas engraçadas que vão virar conversa depois na pizza com chope. E de quem é a culpa disso? De roteiros menores, claro!

Esse não é – imagine! – um problema exclusivo do cinema brasileiro. Hollywood está cheio de boas intenções, seja nas grandes produções (se você sobreviveu a “Simplesmente complicado” sabe do que estou falando) ou nas mais independentes (“A lula e a baleia” me vem à cabeça). E não vamos nem mencionar o cinema francês contemporâneo… Imagino até que o próprio cinema argentino tenha lá sua cota de “tonterías” – como eles mesmos diriam. Afinal, o que chega por aqui – e sobretudo o que chega a uma indicação para o Oscar – é só aquilo que já foi testado como muito bom. Mas quando a gente assiste a uma produção como “O segredo dos olhos” sente que esses argentinos sabem de uma ou duas coisas sobre um bom roteiro…

E não elogio o desse filme apenas pela espertíssima trama. A qualidade está também em cada frase que é dita. O primeiro encontro de Irene e Benjamin é um fino duelo de palavras que estavam guardadas há décadas. Pablo Sandoval – bêbado ou sóbrio – oferece pérolas cada vez que abre a boca. O tal “discurso de político” que citei acima é um primor da literatura da corrupção – se é que isso existe… E toda vez que Morales falava sobre a mulher que havia perdido, meu olho ficava encharcado. Mas quando ele disse a frase que escolhi para o título do post de hoje, eu achei que fosse pessoal…

“É isso! É isso!”, eu fiquei pensando comigo mesmo a partir do momento em que ouvi essa frase. No caso – e sem dar muitos detalhes – Morales diz isso a Benjamin tentando convencê-lo a desistir das suas inquietações, como quem diz “olhe para frente!”. Há meses que eu ouço a mesma coisa, mas foi preciso alguém dizer isso de maneira tão original como aquela para que isso viesse como o tapa na cara que eu estava merecendo. De que adianta ter tantos passados se não tenho nem a perspectiva de um futuro? Está errado – está tudo errado. Tudo precisa ser reformulado – aqui e alhures.

Como o remix de “Losing my religion”, clássico do R.E.M. brilhantemente transformado em “techno-brega” pelo DJ Cremoso (juro que não inventei isso!), está na hora de reinventar, de me animar com coisas novas, de viver diferente. Eu não sei bem como, mas eu vou virar essa equação: vou atrás de um passado só, para chegar a mil futuros.

E se eu chegar lá, prometo, vou agradecer um certo filme argentino…



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