As palavras que nunca são ditas
“Joana não sabia se achava graça, se deixava ‘passar batido’, ou se abria o envelope que carregava sempre na sua bolsa. A terceira opção certamente era a mais perigosa, já que abrir o envelope significava deixar a memória de Breno substituir todos seus pensamentos. Fazia dias, talvez semanas, que ela nem lembrava que o envelope estava lá – branco, quase indistinto de tantos outros, não fosse pela caligrafia nervosa que, sobre o lado sem emendas havia escrito: ‘As palavras que nunca são ditas’.
Mas agora a presença dele em meio ao pequeno inventário que Joana carregava sempre a tiracolo era tão óbvia que o envelope parecia vibrar como um celular poderoso. E tudo isso porque, ao procurar no próprio telefone um ‘torpedo’ com um endereço de um dermatologista que uma amiga (também chamada Joana, só que com ‘u’) a havia enviado no final do ano passado, descobriu que não havia apagado todas as mensagens que ele havia mandado.
No início de abril, em mais uma tentativa de esquecer o cara que tinha mudado sua vida, Joana fez o impensável: deletou tudo que ele havia escrito para ela – tudo! Dos primeiros recados em código – já que nenhum dos dois sabia onde estava pisando – ao último recado onde ele inquestionavelmente pedia para ficar sozinho. Simples declarações de amor, profundos questionamentos sobre os sentidos da paixão, passagens de livros que ambos gostavam (e achavam que haviam sido escritas para eles), pedidos na linha ‘não me abandone jamais’, breves lembretes de que um havia encontrado no outro a parceria da sua vida – tudo sumiu em menos de dez segundos, depois que ela respondeu ‘sim’ à pergunta direta na tela do seu celular: ‘apagar mensagens marcadas?’.
Mas ‘tudo’ não era exatamente ‘tudo’. Havia sobrado uma mensagem, que Joana não tinha certeza se a havia guardado de propósito ou se foi mero ato falho – uma modalidade de esporte masoquista na qual ela era campeã. Talvez o recado não houvesse sido descartado junto com os outros por mero acaso mesmo. Afinal, ela nem podia imaginar por quais motivos ela gostaria de reler, mesmo tanto tempo depois, uma bobagem como essa:
‘Sei que às vezes uso palavras repetidas, mas quais são as palavras que nunca são ditas?! Eu te adoro meu amor, tenho tanta felicidade dentro de mim que parece que eu não vou aguentar! E assim como eu a vi hoje quando abri meus olhos, eu também não sei mais durmir sem você…’
O problema era que tinha sim alguns motivos para retornar sempre a essa mensagem. O primeiro deles, a referência à tarefa sempre insana de um constantemente tentar surpreender o outro com uma frase de amor original. A citação a ‘Quase sem querer’, do Legião, era uma brincadeira íntima, como se os versos cantados por Renato Russo fossem uma espécie de provocação constante que fizesse parte da intricada equação do amor que eles sentiam. Geralmente quando Joana achava que tinha sido original – por exemplo, usando fragmentos da decadente decoração da casa dele para falar dos seus sentimentos –, Breno vinha com algo ainda mais inesperado – como uma listagem das coisas que melhoraram a sua volta simplesmente porque ela havia feito dele uma pessoa melhor. E a competição – que eles adoravam frisar que ‘não era uma competição’ – ia em frente.
A referência a ‘não aguentar de tanta felicidade’ era outra constante na relação entre Joana e Breno – e outro motivo não declarado para ela querer guardar aquela mensagem. Mais de uma noite foi gasta tentando pensar em como eles administrariam tanto amor – uma grande ironia, quando o que os separou foi justamente a incompetência (de ambos) em lidar com algo tão avassalador.
E finalmente havia a grafia errada do verbo ‘dormir’ – um pequeno pecado ortográfico que ele assumia, mas admitia não saber a origem… Desde pequeno escrevia daquele jeito – com ‘u’ – e só se dava conta que havia feito isso quando relia um texto seu. Joana, claro, adorava que ele cometesse aquela pequena gafe (um inexplicável deslize em alguém que tinha o português tão impecável), e mais de uma vez forçou dele uma reposta por escrito que tivesse o verbo ‘durmir’ só para rir sozinha, cheia de carinho e saudade, quando estava longe do Breno.
Voltou a ponderar as três reações possíveis à ‘redescoberta’ da mensagem. Achar graça seria leviano demais – mesmo depois de mais um ano, nada naquela separação inspirava sequer um sorriso. Passar batido? Impossível. Cada vez que Breno cruzava seu pensamento era como se todo seu raciocínio fosse sequestrado – não tinha como ignorar, qualquer referência a ele que não merecesse uma resposta.
O que a levava à terceira opção: abrir o envelope na sua bolsa. Mas se fizesse isso, já sabia o que viria depois. Ali ela encontraria todas as cartas e todos os bilhetes que ele havia escrito para ela. Contraditório? Nem tanto. Uma coisa era apagar as mensagens do celular. Outra era jogar fora o registro da letra de Breno. Isso ela não tinha coragem de fazer. O que não significava que ele estava preparara para revisitar aquele material. Enfim, reler aquilo tudo significaria se perder mais uma vez em lembranças boas demais que a fariam sofrer tudo de novo.
Não. Era preciso pensar numa quarta opção. Mas não houve tempo para pensar. Quase como um reflexo, Joana apertou a tecla ‘responder’ no seu telefone e escreveu:
‘Breno, não se assuste. Nem pare de ler essa mensagem por aqui’.”
Caro visitante, se você chegou até esta frase, eu já posso comemorar. Consegui seduzi-lo (ou seduzi-la) até aqui com um pequeno atrevimento da minha parte: uma pequena obra de ficção – de minha própria lavra! Ou ainda, um fragmento dessa obra de ficção – porque a história, claro, continua (pelo menos como eu a imaginei). Mas mais sobre isso daqui a pouco – aliás, pode sentar e relaxar porque este vai ser um post longo, talvez o mais longo da história deste blog…
Fiquei inspirado a escrever alguma coisa quando, esta semana, encontrei numa livraria a coletânea de contos “Como se não houvesse amanhã”, organizada por Henrique Rodrigues e editada pela Record. Trata-se de uma série de histórias inspiradas em músicas do Legião Urbana – uma iniciativa interessante, que deve agradar não apenas aos fãs da banda (e de Renato Russo), mas aos leitores que gostam de um bom exercício lúdico.
Usar música como inspiração para literatura não é novidade. Por exemplo, o autor de “Alta fidelidade”, Nick Hornby, fez sua carreira literária em cima disso. E vale lembrar também de uma série de pequenos livros (que coleciono não muito religiosamente) chamada “33 1/3” – uma referência à rotação necessária para tocar os antigos LPs de vinil (consulte seu tio “mais velho” para mais detalhes). Ela convida escritores de vários estilos a contar uma história em torno de um álbum clássico do pop/rock (meus favoritos são um sobre “Unknown pleasures”, do Joy Division, por Chris Ott; “Pink moon”, de Nick Drake, por Amanda Petrisich; “Doolittle”, do Pixies, por Ben Sisario; “Endtroducing”, do DJ Shadow, por Eliot Wilder; e obviamente “Meat is murder”, do The Smiths, por Joseph T. Pernice – mas não, curiosamente, “Achtung baby”, do U2, por Stephen Cantanzarite, nem “OK Computer”, do Radiohead, por Dai Griffiths).
Mesmo não sendo muito original, a idéia de “Como se não houvesse amanhã” me pareceu bastante oportuna – nem que fosse pela passagem recente (lembrada com entusiasmo aqui mesmo na internet) da data que marcaria o aniversário de 50 anos de Renato Russo, agora, dia 27 de março. Como qualquer coletânea, ela é bastante irregular. Mas a maioria dos textos é interessante – são menos tributos apaixonados do que elegantes referências a obra daquele que foi um dos mais inspirados poetas e um dos mais apaixonados compositores do nosso pop.
Nenhum dos textos “baba ovo” para o Legião, mas há sempre uma alusão discreta e carinhosa às músicas escolhidas pelos colaboradores (boa parte deles, notei, nascida nos anos 70). Entre os que mais gostei, estão o de Ramon Mello (em cima da música “Sereníssima”); o disfarçadamente triste reencontro descrito por Susana Fuentes (baseado em “Quando o sol bater na janela do seu quarto”); e o conto de Miguel Sanchez Neto, inspirado por “Meninos e meninas”, que começa com essa quase perfeita frase: “É preciso passar por muitas decepções para merecer de novo o primeiro amor”.
Totalmente imbuído desse espírito, lá fui eu tentar minha sorte na ficção, com a mesma desculpa: usar uma música do Legião Urbana para contar uma história. O primeiro desafio, claro, era escolher uma canção que os outros autores ainda não haviam usado. Para minha surpresa, entre as 20 músicas escolhidas, duas das minhas favoritas ficaram de fora: “Índios” e “Quase sem querer”. Qual das suas eu deveria ser minha opção?
As duas falam muito próximo do meu coração. “Índios”, sobretudo, tem uma letra que, na minha opinião, transcende a interpretação primária de que é uma canção sobre uma grande decepção amorosa. E “Quase sem querer” é, depois de “Quando um certo alguém” (do meu guru Lulu Santos), o maior hino ao amor que não consegue se declarar – como não usar isso como inspiração?
Por fim, decidi por “Quase sem querer” – quase que por eliminação. “Índios” exigiria de mim um esforço que está bem acima do tempo que dedico para fazer este blog (que já é bem generoso…). Escrever sobre “Quase sem querer” não seria exatamente mais fácil. Mas seria mais rápido. E foi assim que essa história que você começou a ler hoje (ainda está aqui comigo?) nasceu! Mas… mais sobre isso daqui a pouco.
Antes disso – já avisei que esse seria um dos posts mais longos da história deste blog? –, preciso falar de Renato Russo.
Teve o “aniversário”, como você acompanhou – a data em que Renato faria 50 anos. E entre as comemorações a MTV passou – mais uma vez, diga-se – a entrevista que eu fiz com ele, nos idos de 1993… Eu era bem mais jovem – e não vamos nem falar sobre a minha silhueta… Eu era outro cara, enfim – “só” com 30 anos! E eu me lembro até hoje da excitação de entrevistar Renato Russo.
Como já contei no meu livro “De a-há a U2”, quando chegamos à casa de Renato, ele estava “dormindo”… Era um “teatro”, claro – uma encenação para nós, como se ele tivesse se esquecido do compromisso de receber uma equipe de TV no seu apartamento na rua Nascimento Silva, no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro. Eu mesmo caí na “pegadinha” de Renato – e por alguns minutos pensei em desarmar toda a operação. Mas era Renato Russo! Ele era “o cara” – não só porque era 1993, mas porque toda uma geração tinha crescido ouvindo sua potente voz (e seus sábios ensinamentos…). Eu tinha uma responsabilidade enorme nas minhas costas – com o perdão do clichê! –, e o cara estava em sua casa, deitado embaixo dos lençóis dizendo que não queria dar uma entrevista? Por alguns minutos, eu achei que iria enlouquecer!
Mas Renato – como se diz em Portugal – estava “a desporto”… E em questão de minutos, ele acabou com a brincadeira, saiu do seu quarto, e começamos a conversar como se fôssemos grandes amigos. Atenção aos mais cínicos: isso não é uma demonstração de falsa intimidade. Eu não era exatamente amigo de Renato Russo até então – e, embora a entrevista tenha levado nossa intimidade a um novo patamar, não posso dizer que ficamos mais “próximos” depois dela. Mas tenho certeza – e revendo a entrevista que a MTV reapresentou neste fim-de-semana tive mais convicção disso – de que consegui ali estabelecer uma proximidade e uma transparência que ele ainda não havia mostrado para nenhum outro jornalista.
Renato Russo era um gênio. Quanto mais escuto suas músicas, quanto mais revisito seu trabalho, tenho certeza disso. Mesmo longe da adolescência, ouvia cada letra de música do Legião como um oráculo. Devoto ferrenho dos Smiths, tinha a certeza de que Renato Russo era a encarnação brasileira de Morrisey – não apenas por imitação, mas como um verdadeiro herdeiro daquela poesia suprema que consegue dizer o indizível: a dor da rejeição, a impossibilidade do amor, a incompreensão do mundo, o questionamento da inadequação.
Parece muito profundo, mas não é. Ou melhor, a beleza da música pop criada por Renato Russo – junto com o Legião – está exatamente em traduzir questões tão complicadas de maneira totalmente acessível para todos. Exemplos? “Tire suas mãos de mim, eu não pertenço a você” – de “Será”, que até hoje eu acho que Renato tirou de “Say hello, wave goodbye”, a obra-prima do Soft Cell. “Antes eu sonhava, agora já não durmo” – de “Sereníssima”. “Todos se afastam quando o mundo está errado” – de “O livro dos dias”. “A gente quer um lugar pra gente, a gente quer de papel passado, com festa, bolo e brigadeiro” – de “O descobrimento do Brasil”. “Desculpas nem sempre são sinceras, nunca são” – de “Acrilic on canvas”. “Acho que o imperfeito não participa do passado” – de “Meninos e meninas”. E olha que não estou falando nem das músicas mais óbvias…
Esse cara – desculpe a intimidade, Renato, mas depois de rever a entrevista, e depois de ouvir tantas vezes suas músicas e me identificar tanto com suas palavras –, enfim, esse cara, o Renato, me dá forças até hoje para acreditar no amor.
Renato era um devoto da beleza. Não tendo ele mesmo sido agraciado com esse presente – você que se acha tão bonito ou tão bonita, nunca se esqueça de que isso é um presente – Renato se cercava de coisas belas. Das caixas de óperas completas que recheavam as estantes da sua casa, às fotos dos meninos que decoravam as paredes de seu apartamento, ele espalhava por sua casa a graça que ele mesmo não tinha. E mais: fazia da sua arte o melhor canal para espalhar pelo mundo justamente o que a natureza lhe privou – beleza.
Essa me parece ser uma questão fundamental na sua obra – e o legado mais precioso que Renato nos deixou. E é justamente o que eu queria celebrar aqui hoje, ressaltando, ainda que um pouco atrasado, seu aniversário “virtual” de 50 anos. Nós vamos sempre voltar para Renato Russo como uma referência de beleza e poesia. Minha geração foi inevitavelmente influenciada por ele – e pelo que vi na coletânea “Como se não houvesse amanhã” – a geração que veio logo depois da minha também.
O filho de uma de minhas melhores amigas – que acabou de entrar no vestibular – ouve as músicas do Legião como se elas falassem diretamente com ele, o que me dá esperança de que elas sejam justamente atemporais… Universais! E eu não tenho receio de arriscar um palpite de que isso vai se repetir por muitos e muitos anos…
Por muitos e muitos anos…
Eu mesmo, na relativa insignificância do meu registro cultural, espero um dia fazer diferença para gerações que não são exatamente essa que está me lendo agora. E se eu tenho uma inspiração forte é Renato Russo. Nosso cenário pop não é dos mais ricos no que diz respeito a ídolos. Mas isso nem de longe diminui o mérito de Renato. Ao lado do já citado Lulu Santos, Cazuza em bons momentos – e possivelmente Caetano (se você tiver a flexibilidade necessária para considerá-lo uma artista pop) –, ninguém traduziu tanto a angústia de não ser amado como ele. E por isso ele será sempre lembrado. Sempre.
Na música que escolhi como ponto de partida para o conto que abre o post de hoje – e que, diga-se, não foi solicitado –, “Quase sem querer”, aprendi que “mentir para si mesmo é sempre a pior mentira”. E ao ressuscitar esse lugar tão comum, Renato, com sua genialidade renovou a esperança em mais de um coração destruído. Seus versos – e esse inclusive – são as próprias “palavras que nunca são ditas”. Não que elas nunca tenham sido pronunciadas por ninguém. Mas é que na voz de Renato – e no embalo que o Legião como um todo criava para elas – essas palavras sempre surgiam como se, de fato, fossem “nunca ditas”.
Porque são palavras assim que os amantes trocam – na ilusão deliciosa de que elas são inéditas. E são palavras assim que eu tentei rearranjar nessa minha primeira incursão oficial – pelo menos, a primeira incursão assumida! – pelo universo da ficção. Escrevi esse texto que abre o post de hoje esta semana quase que por impulso, motivado pelo livro-tributo que, como já contei (este texto está realmente longo, mas eu avisei…), encontrei esta semana numa livraria – e tenho de confessar que precisei de uma boa dose de coragem para apresentá-lo aqui para você.
Reforçando, este não é o conto inteiro. De propósito, publiquei aqui apenar uma parte dele – e, como alguém que é assumidamente fã de novelas, interrompi minha narração num ponto que, em inglês a gente chama de “cliffhanger”, um “gancho” que explicitamente faz com que quem lê fique curioso para saber o que vem depois na história. Foi, como disse, de propósito. Como qualquer autor principiante, lido com a incerteza de saber se meu leitor ou minha leitora vai quer saber do resto. E, num rasgo de atrevimento, pergunto: será que você quer saber como esse conto termina? Devo continuar?
Sei que é uma ousadia – ainda mais depois de ter dedicado praticamente todo o post para um ícone como Renato Russo. Mas se eu sentir que a água está tranquila – todo autor é inseguro por natureza, lembre-se disso! –, eu publico o resto. Se não, fica aqui só meu registro de uma homenagem que eu nunca pude fazer para o cara com quem eu passei uma manhã e uma tarde incrível conversando sobre os mais variados assuntos, quase sem acreditar que eu estava tão próximo dele.
O que a MTV exibiu novamente neste fim-de-semana – e que você pode encontrar com facilidade aqui mesmo na internet – não é mais que a versão editada de um encontro tão especial, que mesmo no relato mais íntimo que tentei dar no meu livro não foi capaz de espelhar por inteiro.
Uma outra hora, num outro plano, quem sabe, eu volto a encontrar com ele. E a conversa vai continuar, eu tenho certeza. Quem sabe até eu mostro para ele, por inteiro, um conto que eu escrevi, e que se chama “As palavras que nunca são ditas”?