O resto do mundo
“Avatar”? 50%, foi a resposta do vendedor.
Eu estava numa loja de CDs e DVDs de uma das minhas escalas desta última viagem – uma loja “oficial”, dentro de um shopping center “oficial”, e, muito consciencioso de sua reputação, o rapaz atrás do balcão não queria me “enganar” vendendo uma cópia – obviamente pirata – do filme de maior sucesso de todos os tempos. Assim, usando de um método duvidoso, ele ia classificando os filmes que eu apontava conforme a qualidade da reprodução disponível no seu estoque – que, só insistindo, era virtualmente todo ilegal. “Up – altas aventuras”? 85%! “Meu nome é Kahn” (o controverso filme de Bollywood que mal havia estreado nas telas indianas – ainda quero falar dele aqui uma horas dessas)? 60%! “Sherlock Holmes”? 95% – ou seja, “pode levar sem susto”! Encontrei até mesmo uma cópia do “nosso” “Carandiru”, dirigido por Hector Babenco. O veredicto do vendedor: 80%! Interessante essa cidade…
Já não estou mais nela, cenário também da foto que usei no último post para perguntar– não sem um certo atrevimento – por onde eu andava. Na verdade já não estou nem mesmo na cidade de onde mandei aquele último texto. Hoje escrevo da sexta e última escala dessa aventura por mega cidades do mundo – um lugar dos mais fascinantes que conheci ultimamente (e que não vou revelar justamente para a gente ter um pouquinho mais de assunto mais para frente…).
Mas enfim, voltando à cidade da foto (e dos DVDs piratas), ela foi tirada em Dhaka, Bangladesh – e aqui eu tenho, claro, que dar os parabéns, com louvor, para a Andréia que, exatamente como eu propus, mandou um comentário dizendo não só o nome do lugar, mas descrevendo o monumento que estava atrás, o que ele homenageava, e o que significavam aquelas pessoas vestidas de branco e preto que posaram comigo. Bravo!
Aquele modesto monumento atrás de nós celebra não apenas os mártires que morreram em 1952 para defender a língua do “Paquistão do leste” (como Bangladesh era conhecido), mas também a própria língua, o bengali, como fator de identidade nacional – de uma nação que então nem existia oficialmente. A escultura no fundo da praça é modesta. Não passa nem perto de algo que a gente poderia chamar de “cartão postal” da cidade – qualquer capital européia, ou mesmo asiática (e até latino-americana, por que não?), tem provavelmente alguma coisa mais exuberante para oferecer ao turista. Bangladesh tem isso. E quem quiser que tire foto…
Aliás, esse lugar, junto com o parlamento nacional – uma impressionante construção criada pelo famoso arquiteto estoniano (que fez sua carreira nos Estados Unidos) Louis Kahn –, são das poucas coisas atraentes que um visitante pode considerar “fotografável” em Dhaka. Num lugar que, exatamente quando eu estava lá, havia sido considerado a segunda pior cidade do mundo para se morar (para você ter uma idéia, Harare, no Zimbábue, foi eleita a pior de todas), dois lugares interessantes para se visitar já podem ser considerados um trunfo!
Acontece que meu trabalho por lá não consistia, claro, em apenas visitar esses pontos “turísticos”. Estou viajando para reportar sobre a vida nas mega cidades – quais são seus grandes desafios, e, se for o caso, que soluções essas cidades encontraram para crescer ainda mais de maneira que seus habitantes pudessem ter uma vida um pouco mais confortável. Assim, procurando exatamente soluções para problemas crônicos, acabei vivendo situações que estavam bem longe de serem consideradas, digamos, aprazíveis…
Experiências como essa foram se acumulando ao longo desta viagem (que termina neste fim-de-semana, e deve ser exibida no “Fantástico” a partir de abril). Mas nenhuma delas, porém, teve em mim um impacto tão forte quanto essa visita a Dhaka. Durante pouco mais de três dias, eu e meus colegas vimos um conjunto de coisas que nos impressionou profundamente – e não exatamente por sua beleza… Ou melhor, de repente, era até possível encontrar numa cena cotidiana dessa cidade que cresce assustadoramente (e que tem a glória dúbia de registrar a mais alta densidade demográfica do mundo!) alguma coisa mais, hum, inspiradora. Mas isso exigia sempre uma boa dose de abstração da parte de quem registrava tudo, como se seu olho tivesse que ser especialmente treinado para filtrar algo de belo em cenas nunca menos que desesperadoras. Como nesse carrossel, por exemplo…
Tirei essa foto na favela de Korail, uma das maiores e mais ameaçadas de Dhaka. Na praça central que dá para principais ruelas da comunidade, ficam estacionados dezenas de riquixás (aqueles que vão disputar espaço no caótico trânsito da cidade com tais ônibus de “papier machê” que já mencionei aqui). A pouca renda que algumas dessas famílias têm vem dessa atividade – sem uma infraestrutura de transporte público, a cidade “circula” com essas “charretes de bicicleta”, impulsionadas por um combustível que já não se vê muito em nenhuma grande cidade: energia humana…
Algumas mulheres que vivem ali – mães de família – trabalham como empregadas domésticas, por salários que raramente as colocam acima da linha da pobreza. E as crianças? Bem, as crianças, quando não estão em uma das improvisadas salas de aula (bancadas por ONGs, já que o governo nem se preocupa em educá-las), brincam no carrossel…
Contudo, apesar de um cenário de desesperança absoluta, coisas boas também açontecem por lá. Estimuladas por projetos sociais, as mulheres se organizam para tentar lutar por alguns direitos, como a legitimidade das suas moradias, ou um mínimo de condições sanitárias (na foto abaixo, estou com um grupo delas que entrevistei para a reportagem). E, ao contrário do que a gente possa achar numa primeira impressão, elas são organizadas sim, e relativamente otimistas de que vão conseguir pelo menos alguma melhoria – se não na vida delas, pelo menos na de seus filhos!
Não vou aqui me alongar em histórias como essa – melhor convidar você para assistir as matérias quando elas forem ao ar, daqui a algumas semanas. Mas quis fazer toda essa introdução sobre Dhaka para falar justamente do resto do mundo… Não sobre esses lugares que estou visitando, mas sobre o “resto do mundo” quando a gente olha daqui – e aí, claro, estou falando do “seu mundo”, de onde você está lendo desse post – aquele que é meu mundo também por boa parte da minha vida, mas que quando eu viajo para lugares extremos viram referências distantes, quase ecos de uma terra que só existe em projeção.
O que estou experimetando agora parece muito com uma sensação que descrevi no final do meu primeiro livro, “A fantástica volta ao mundo”. Naquela época (idos de 2004), depois de viajar quatro meses por todo o planeta, eu terminava a jornada em Lisboa, exatamente no dia em que Madonna se apresentava por lá (primeira vez em Portugal!). Eu tinha tempo, uma certa vontade, e até ingressos para ir ao show – mas não fui! As razões dessa minha decisão eu explico com detalhes no livro, mas somente para fazer um paralelo com o que estou sentindo agora, tem vezes em que eu tenho a impressão de que “o resto do mundo” não é aquilo que a gente nem fica sabendo no nosso cotidiano tão local, mas justamente aquilo que faz parte do nosso dia-a-dia mais próximo – desde que você fique suficientemente distante dele.
Já vinha pensando nisso há algum tempo e, quando uma amiga em mandou um email ontem me perguntando se eu estaria no Brasil para ver o show do Coldplay – a ficha finalmente “caiu”. Durante as últimas semanas, eu estava (e acho que ainda estou) completamente desligado de eventos culturais que normalmente me deixariam salivando!
Disco novo do Massive Attack? Mesmo? Notícias do BBB 10 que vejo eventualmente na internet parece que vêm de outra galáxia! Comemorei sim a vitória de Paulo Barros no Carnaval carioca deste ano, mas mais como a conquista de um amigo do que por sua importância cultural. Corrida para o Oscar? Sinceramente, o mais perto que cheguei de Hollywood nos últimos dias foi durante a cena que descrevo no início deste texto… Curiosamente, na véspera de retornar para o Brasil e mergulhar de novo naquilo tudo que me é tão próximo e conhecido, sinto-me ligeiramente desconfortável. É como se eu tivesse passado para o “outro lado do mundo” e agora, como uma criança teimosa, ensaiasse uma birra para voltar…
Ah, eu conheço bem essa sensação – como disse, já passei por isso em 2004 (e em outros momentos desde então, em intensidades menores).Mas como a própria criança birrenta que esqueceu que já viu “Toy story” pela milésima vez e pede para assistir de novo, eu insisto em “brincar” de não querer voltar para as coisas que eu já conheço… É um sentimento totalmente bipolar: ao mesmo tempo que eu quero consumir novamente tudo aquilo que eu adoro – música, pop, BBB, Oscar! – eu não posso simplesmente me desligar dessas experiências fortíssimas que acabo de viver. Como perguntei aqui mesmo recentemente, o que devo fazer?
Menos de 48 horas antes de regressar para o Brasil estou dividido. Vou voltar, é claro – este domingo mesmo você já pode me encontrar no mesmo lugar de sempre… Mas como eu me viro com todo esse lado do mundo que eu faço questão de carregar comigo? Quem sabe o mínimo que eu possa fazer é usar justamente este espaço do blog para dividir com você um pouco dessas experiências – e finalmente chegar à conclusão feliz de que o mundo tem muito mais do que dois lados só…
Tô voltando. E não é fácil. Nunca é.