Sobre a vista do meu quarto em Istambul
Falei tanto dela, e não mostrei. Ou melhor, não mostrei até agora, pois aqui está ela: a vista que me fez ter a certeza de que eu quero passar mais tempo nesta cidade (se será um sabático, é outra história); que me fez olhar com um pouco mais de paz sobre o turbulento ano que passou; que me fez ter vontade de ler de novo um dos volumes da trilogia do escritor canadense Nicholas Woodsworth, “The liquid continent” (justamente aquele que fala sobre Istambul); que me forçou a dormir com a janela aberta, mesmo me expondo a temperaturas negativas, só para admirá-la; que me ajudou a quebrar o “loop” dos meus pensamentos tristes; e que ao mesmo tempo me ajudou a consolar a perda de uma das minhas cantoras favoritas.
Lhasa morreu no primeiro dia deste ano. Soube da notícia com algum atraso, lendo um apaixonado obituário na “Les Inrockuptibles” (uma das minhas revistas favoritas de música), que havia comprado no aeroporto de Paris, a caminho do Cairo. Esqueci a revista na mala de mão, e só fui pegá-la no voo entre Cairo e Istambul. Li angustiado a notícia da sua morte – provocada por um câncer de mama, aos 37 anos. Mas acho que estou correndo demais com a história. Talvez você – como eu – também só esteja sabendo da morte de Lhasa com um certo atraso. Ou talvez, o que é mais provável, você esteja sabendo da existência de Lhasa só agora. Então vamos do começo.
No final dos anos 90, perambulando pela minha loja de discos preferida em Buenos Aires – a Miles, já citada aqui – perguntei para um dos vendedores o que ele estava ouvindo ultimamente, e ele me mostrou um CD chamado “La llorona”. O nome da cantora era meio estranho, Lhasa – uma palavra que eu só havia ouvido para designar a capital do Tibete! Perguntei se ela era argentina, e ele me respondeu que não, mas sem certeza da sua origem – talvez mexicana. Levei o disco totalmente no escuro, e quando o coloquei para tocar, algo muito estranho aconteceu.
Ao ouvir os primeiros acordes da faixa de abertura, “De cara a la pared”, era como se um vento de tristeza tivesse entrado não sei por onde no quarto do meu hotel – antes de eu continuar a descrever a música, tente procurá-la aqui mesmo na internet para conferir que eu não estou exagerando… Enfim, tudo começa com um barulho de chuva. Daí entra um violino, depois um violão, uma surda percussão, e já quase um minuto depois, finalmente a voz de Lhasa cantando “Llorando / de cara a la pared / se apaga la ciudad”… “Llorando / y no hay más / muero quizas / Adonde estás?”… Antes de eu me dar conta do que estava acontecendo, aquele vento de tristeza já havia batido no meu rosto e, como naquele friozinho que chega no seu pescoço quando ele está molhado de suor, me fez perceber que eu também estava chorando. Se você fez como eu recomendei e ouviu a música antes de ler a última frase, vai saber bem do que estou falando.
Quem era aquela mulher que cantava tão bem a tristeza? E não era apenas essa faixa: “Por eso me quedo”, “Desdeñosa”, “Mi vanidad”- todas eram incrivelmente fortes! Tinha de descobrir mais sobre ela – o que não era fácil naqueles tempos. Do pouco que colecionei então, soube que Lhasa de Sela (seu nome oficial) era, na verdade, americana. Seu pai era mexicano – inspiração que, claro, aparecia na sua música. Mas sua árvore genealógica guardava ainda uma surpresa: sua mãe era judia, e foi ali que ela encontrou outra fonte sonora: o “klezmer”, um gênero musical ligado à cultura ídiche. Pegando ali mais uma pitada de folk americano – e possivelmente alguma coisa da música sul-americana (e por que não da cigana também!) -, Lhasa havia criado um som completamente original.
Tudo que eu queria era mais um disco dessa voz maravilhosa e poderosa – mas eu teria de esperar alguns anos por isso. “The living road” só sairia em 2003 – e lá estava mais uma coleção impecável de canções, algumas delas cantadas em inglês, e mesmo em francês! Novamente, as informações sobre Lhasa, a cantora, eram poucas. Apresentava-se no circuito alternativo americano e canadense – e também na França, onde adquiriu o status de um culto! Como turnês mundiais estavam fora de questão, minha esperança era esbarrar nela em alguma viagem – mas o acaso, que geralmente está do meu lado, não me ajudou muito nisso…
Mais alguns anos e, em 2009, ela vem com seu terceiro álbum, que traz simplesmente seu nome. Quando o ouvi, tive quase a mesma sensação de escutar “La llorona” pela primeira vez – era como se ela tivesse renovado seu poder de resumir a tristeza em alguns versos bem cantados. “Lhasa” – que, admito a falha, deveria ter entrado na minha lista dos melhores disco de 2009 que você não ouviu (talvez eu tenha tido, inconscientemente a intenção de guardá-la como um segredo) – entrou em rotação no meu iPod e, estranhamente, serviu como uma boa trilha sonora para as coisas que estavam acontecendo comigo então. Optando definitivamente pelo inglês (e com um forte sotaque da música country tradicional), ela chegou ao ápice da simplicidade para falar de sentimentos muito profundos. Logo na abertura ela perguntava se “tinha algo errado” – “Is anything wrong” é o título da primeira canção – e eu, que não tinha notícia da doença dela, nem desconfiei que a resposta era “sim”…
Sabendo agora do seu câncer, fica fácil relacionar várias letras desse terceiro disco com isso – especialmente a torturante “I’m going in”, que em seus quase sete minutos parece mais um réquiem escrito para ela mesma. Mas qualquer um que esteja ligeiramente triste por qualquer motivo que seja pode abraçar as canções de “Lhasa” e achar que elas são universais.
E foi por isso que eu ouvi esse seu álbum, madrugada adentro, depois que li sobre sua morte. A luz parecia entrar no meu quarto na medida certa para me embalar ao som de um verso tão especial que o escolhi para encerrar o post de hoje, numa homenagem a essa artista que, espero, agora tenha a tola recompensa de ser mais admirada depois de sua morte do que em vida.A foto acima foi tirada nas primeiras horas da madrugada – logo depois que o imã da mesquita mais próxima acordava a vizinhança para a primeira oração. Havia nevado a noite toda – o que fazia as canções de Lhasa parecerem ainda mais contundentes. O céu amanhecia carregado, mas com pequenas frestas livres por onde se podia ver que o sol, queria sair para fazer o Bósforo brilhar de novo.
Na noite seguinte, o céu sobre Istambul já estava mais claro – e mesmo com o frio, a cidade mostrava uma beleza que eu ainda não conhecia: a do inverno. Tarde da noite – mais uma noite insone – a grande rua de pedestres de Beyoglu, Istiklal Caddesi, mostrava um frenesi que parecia ignorar os 5 graus abaixo de zero. Grupos de jovens turcos procurando confusão se misturavam com pequenas caravanas de turistas procurando algum lugar que tocasse uma música que eles pudesses reconhecer – em vão… Na rua toda coberta pela neve que caiu durante o dia, as pegadas de uma horda que só queria se divertir.
Passeei sozinho pela Istiklal, olhando as lojas fechadas, os cafés abertos, e os encontros perdidos. Ao chegar em Tunnel, no fim da rua, quebrei por uma pequena rua e pedi para um táxi me levar de volta a Sultanahamet – a parte antiga de Istambul onde estava hospedado. Mas ele acabou não me deixando no meu destino final: pedi para descer perto da Mesquita Azul, iluminada então não apenas pelos poderosos holofotes, mas também pela modesta lua que crescia. Felizmente havia levado minha câmera – e registrei assim esse detalhe encantador (abaixo) da cidade símbolo de um país cuja bandeira traz também uma lua como a que eu via.
E nesse momento, era Lhasa novamente que não me saía da cabeça: “Did you ever believe the lies that you told? / Did you earn the fool’s gold that you gave me?”.
Ah, Istambul…