Causas nobres
Um dos meus músicos favoritos escreveu um livro ótimo. Um dos meus escritores favoritos também escreveu um livro ótimo – e embora isso não seja tão surpreendente como a proposição anterior (escritores, afinal… escrevem livros!), o tema que ele escolheu para desenvolver foi bem inesperado. Afinal, o que um autor aclamado já no seu primeiro livro de ficção – aliás, como uma dos talentos mais originais a aparecer na sua geração – pretende quando passa a debater, com argumentos convincentes, um assunto polêmico?
Falo de Jonathan Safran Foer – autor do sensacional “Tudo se ilumina” e do também interessante “Extremamente alto e incrivelmente perto” – e de seu novo livro “Eating animals” (“Comendo animais”, ainda inédito no Brasil) que é uma espécie de manifesto a favor dos vegetarianos. Apesar de ele mesmo flertar (e bem!) com a degustação de carnes, Foer faz uma bela defesa dessa nobre causa (mais sobre isso, daqui a pouco). E, por falar nisso, o outro livro sobre o qual quero falar hoje defende, de certa maneira, a substituição de carros por bicicletas nas grandes cidades. E quem está por trás desta causa – no livro “Diários de bicicleta” (editora Amarilys) – é ninguém menos que David Byrne, o músico que, para quem precisa dessa introdução é responsável por momentos tão importantes no pop quanto a criação dos Talking Heads e introdução de Tom Zé no cenário alternativo americano no início dos anos 90…
Aliás, é o próprio Tom Zé que devolve a gentileza e faz a introdução do livro na edição brasileira – que, sem pudor nenhum de falar do amigo que mais ou menos ressuscitou sua carreira, o compara logo no início do seu texto com um “Jorge Amado ainda proletário” (por seu estilo “enxuto”). E dessa apresentação para lá de informal, o livro segue com uma outra introdução do próprio Byrne – já com observações tão interessantes. Por exemplo: “Por incrível que pareça, quanto mais microscópico for seu olhar (ao apreciar as cidades), mais ampla se torna sua perspectiva”. E dali para frente o leitor é convidado a um adorável passeio por algumas das cidades que ele mais gosta (e outras que nem tanto), sempre de bicicleta.
Byrne, para usar apenas uma palavra, é um “ironista” – um adjetivo que meu corretor automático não admite, mas garanto que existe. Desde os primórdios do Talking Heads – e estamos falando de final dos anos 70, comecinho dos 80 – a ironia é uma marca da banda que ele ajudou a formar (e que se tornaria uma das mais influentes do mundo do pop – um assunto que um dia, prometo comentar aqui à larga). Já ouviu “Psycho killer”? Então você sabe do que eu estou falando. Se nunca ouviu essa música, aqui na internet você está a apenas um clique dela – ou seja, apenas a um passo muito simples de entender porque eu chamo David Byrne de “ironista”. O que dizer de uma música cujo refrão é “Psycho killer… qu’est-ce que c’est”?
Se essa evidência parecer um pouco sutil para você, consulte uma outra performance: o trailer de “Stop making sense”, provavelmente o melhor show jamais filmado – e pode apostar que a assinatura de Jonathan Demme (sim, o mesmo de “O silêncio dos inocentes”) tem a ver com isso. Se puder, tente assistir ao próprio filme. Ali, nessa pequena amostra, fica claro que Byrne não é um artista… normal! Logo, digno de toda a minha admiração.
Falar de Byrne é lembrar de mais de uma história pessoal – da minha reação completamente histérica ao ver o clipe de “Once in a lifetime” pela primeira vez, à tarde em que passei no seu ateliê para entrevistá-lo, quando então fui apresentado não só à estupenda voz de Virgínia Rodrigues (sim, a “nossa” Virgínia Rodrigues, que tive de ir para Nova York para conhecer), mas também aos seus trabalho de fotografia, que, quando eu tentei comprar um (façanha que consegui não sem um certo esforço), recebi como resposta do próprio autor que ele não sabiam quanto elas custavam… Mas o que me fascina em Byrne é sobretudo sua genialidade musical – e aí, não apenas no seu trabalho com o Talking Heads (só lembrando, é dessa banda também um dos melhores discos ao vivo de todos os tempos, “The name of this band is Talking Heads”), como em todos projetos solo, e ainda, nos artistas do “resto do mundo” que resolve adotar.
Tom Zé é apenas um deles, claro. Tenho que confessar que toda minha introdução à música pop indiana se deu por conta do selo que Byrne fundou, Luaka Bop. Aliás, foi assim também que conheci um dos maiores gênios musicais de todo o universo pop, o japonês, Shoukichi Kina! (E viva a música de Okinawa!). Kurt Cobain, como ele mesmo me contou, conheceu os Mutantes num lançamento da Luaka Bop. E eu fui apresentado à incrível voz da peruana Suzana Baca também pelo selo.
David Byrne é meu ídolo – se é que isso ainda não ficou claro. E, por conta disso, tudo que ele faz, eu vou atrás – e o livro “Diários de bicicleta” é o exemplo mais recente disso. A edição brasileira é caprichada – na apresentação (capa dura!) e na tradução. E este último detalhe permite que o leitor passeie com Byrne por todas as cidades que ele escolheu dividir com a gente – logo na introdução, o autor dá a entender que passeia de bicicleta por todas as cidades que visita (e isso, claro, inclui até o Brasil), mas na sua seleção para o livro só um punhado delas são descritas (nenhuma brasileira…).
Entre elas, para minha grata surpresa, está Istambul: “Dado o trânsito local que está entre os piores do mundo – a população da cidade explodiu nas últimas décadas – é difícil de entender por que o centro de Istambul, com seu agradável clima mediterrâneo, ainda não adotou a bicicleta como meio de transporte”. O capítulo é mais uma crônica dos personagens incríveis que Byrne encontrou por lá (“Todos os ministros têm bigodes. Todas as esposas e namoradas têm decotes.”) do que uma descrição das suas ruas do ponto de vista de quem está com as mãos em um guidão. Mas quando as histórias são tão deliciosas assim, e as observações tão pertinentes, quem está ligando? (Outro exemplo: para reclamar da arquitetura agressiva e impessoal que vai aos poucos substituindo a paisagem urbana tradicional de cidades antigas, Byrne usa uma foto do centro de Salvador, Bahia, e explica: “Um músico brasileiro amigo meu comentou que essas áreas de muita personalidade em outras épocas deveriam ter sido tratadas como ‘cidades européias’. “; como discordar dele?).
Diverti-me ainda – e muito – com o capítulo sobre Buenos Aires, no qual acabei sendo apresentado a cantos que, mesmo eu que achava que conhecia tão bem a cidade, ignorava: “Pedalo pelo Parque Ecológico, que atravessa os charcos que cercam um lado inteiro da cidade. É como se os pântanos de Nova Jersey fizessem fronteira com Manhattan e tivessem caminhos sinuosos entrecruzando seus vários hectares de juncos e brejos”. O capítulo fecha com uma inesperada foto de Mercedes Sosa e Cristina Kirchner – sim, presidente da Argentina. E ainda conta com a única falha grave de tradução (trocaram o museu MALBA, por MALBI). Mas mesmo assim é um dos que mais me encantaram – ao lado daquele sobre Manila, nas Filipinas, cidade que conheci na Volta ao Mundo de 2004, e que (me desculpe se estou esnobando) só quem já passou por lá pode entender em toda sua intensidade a observação final de Byrne sobre aquele país: “Heroico, trágico, chato, catastrófico, ridículo e belo. Todos nós vivemos essas histórias e, quase sempre, nossa narrativa inclui mais de uma delas”…
Os “Diários de bicicleta” de Byrne não são uma campanha explícita para uma revolução na maneira que as pessoas circulam na cidade. Mas é uma bela narrativa – especialmente recomendada para aqueles que estão planejando suas férias de verão…
Já o livro de Safran Foer esboça mais explicitamente uma campanha contra os “carnívoros”. E o que dá mais credibilidade aos seus argumentos é justamente o fato de que o autor é um vegetariano “inseguro”. Foer já teve seus momentos – longos períodos, na verdade – sem carne. Mas sempre voltou a consumi-la. Foi com o nascimento de seu primeiro rebento que ele passou a questionar mais seriamente o assunto. E, embora seu livro não seja exatamente uma catequese – eu continuo carnívoro claudicante mesmo depois de ter (perdão pelo trocadilho, mas estamos falando de um produto de celulose…) devorado suas páginas – ele é provocador.
“Eating animals” ainda não foi lançado no Brasil, como já disse, mas é provável que seja (a Rocco, que lançou seus livros anteriores deve estar de olho!). E torço para que não demore, pois o leitor ali vai encontrar a boa prosa de sempre de Foer – agora a favor mais de uma causa do que de uma inspiração. Esse prazer da leitura chega logo nas primeiras sentenças, quando ele começa contando que sua avó tinha o hábito de levantá-lo nos braços todas as vezes que ele chegava para passar um fim-de-semana com ela – e depois novamente depois na hora que ele ia embora, para ver se o netinho estava mais pesado, ou seja, para saber se ele tinha comido direito… O tom é menos acusatório do que de carinho, e você, como leitor, já se sente confortável o suficiente para ir em frente sabendo que vai encontrar histórias assim pelo livro.
“Eating animals” não traz muitas novidades – em termos de fatos – especialmente para leitores mais militantes, que têm, por exemplo, o livro de Michael Pollan, “O dilema do onívoro” (editora Intrínseca), como uma bíblia de cabeceira. Mas o que torna sua leitura interessante é o constante tom irônico de Foer. Suas descrições da indústria de frangos e galinhas é tão assustadora quanto divertida. O mesmo vale para suas observações sobre a indústria de carne suína – Foer foi, de fato, a campo para ver essas coisas de perto -, especialmente num capítulo que ele chama, sem rodeios, de “Pedaços de merda”. Segue um trecho sobre uma das maiores fazendas americanas de porcos (na minha tradução sempre apressada):
“Imagine se, no lugar de uma intensa infra-estrutura de tratamento de detritos que nós simplesmente consideramos uma necessidade banal nas cidades modernas, todo homem, mulher e criança em todas as cidades da Califórnia e do Texas, fizessem suas necessidades numa vala comum por um dia. Agora imagine que eles fizessem isso não apenas por um dia, mas ao longo do ano todo, perpetuamente”.
Foer usa isso para ilustrar um “pequeno” efeito colateral da indústria de carne nos Estados Unidos – e, acredite, sua argumentação funciona! Mas ao mesmo tempo que ele expõe horrores dessa indústria – e dos efeitos que a carne traz ao nosso organismo -, o autor também lança idéias como essas: “Claro que um pequeno (ou mesmo grande) grupo quer se tornar vegetariano, mas as pessoas em geral querem carne, sempre quiseram, sempre vão querer, e é isso mesmo. Vegetarianos são, na melhor das hipóteses, gentis, mas pouco realistas. Na pior das hipóteses, são sentimentalistas ilusórios”.
De que lado a gente fica então? Bem… do lado da boa leitura. Menos do que nos convencer a largar nossos carros e enfrentar a selvageria do trânsito nas cidades grandes de bicicleta ou desistir de comer carne para o resto das nossas vidas, David Byrne e Jonathan Safra Foer, respectivamente, nos convidam primeiro a nos entreter com seus dons para a escrita. Não que isso torne as causas que defendem menos nobres… Mas com a elegância dos bons escritores, o que eles inspiram é uma relaxada – e deliciosa! – reflexão sobre temas modernos.