Oasis, Stefhany, e a prova de que a felicidade até existe

qui, 30/04/09
por Zeca Camargo |
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“Eu vendi mais de 50 milhões de discos, por que não estaria feliz?”. Este foi Noel Gallagher, do Oasis, num momento inspirado da entrevista que fiz com ele esta semana, em Caracas, Venezuela. A foto ao lado ilustra o cenário onde tudo aconteceu: uma sala de visitas “estilosa”, improvisada na quadra coberta de esportes da Universidade Simón Bolivar, onde logo em seguida eles fariam um show para três mil pessoas (mais sobre isso, daqui a pouco). Sim, eu também reparei que Noel não está na foto, mas sua assessoria de imprensa não permitiu que a entrevista fosse fotografada – apenas filmada. Assim, tudo que pude registrar para mostrar aqui para você foi esse “momento fantasma”, logo depois que ele havia saído da sala.

Liam, seu irmão, entraria logo em seguida, demonstrando algo que – conhecendo a fama mau-humorada dos irmãos Gallagher -, poderia ser descrito como um rasgo de simpatia. Era a primeira vez que conversava com Liam, e estava naturalmente nervoso com a expectativa – afinal, esse é o irmão que assumidamente não gosta de falar com jornalistas… Mas ele foi surpreendentemente agradável – quase dócil -, e, apesar de ter testado os limites da minha compreensão do inglês (acho que passo em qualquer teste de conversação com louvor depois dessa!), posso dizer que essa também foi uma conversa agradável.

Mas o que mais me chamou a atenção no encontro com os dois grandes astros dessa banda – que, teimosamente, ainda consegue ser relevante -, foi a felicidade de Noel. Com ele, já havia conversado duas vezes: a primeira, em 1998 – ainda no auge da banda -, durante uma escala da sua turnê européia, em Barcelona (nessa oportunidade, como conto no meu livro “De a-ha a U2″, Noel ficou 80% da entrevista olhando para o chão, sem me encarar); e a outra foi quando o Oasis veio tocar no Rock in Rio em 2001 (outro encontro que eu classificaria como… relutante!). Foram duras… “batalhas” – e eu já estava preparado para encontrar o mesmo Noel semi-rabugento, quando, de repente, o cara me desarma dizendo que está feliz da vida!

Está certo que ele tem motivos de sobra para se sentir assim: de fato, vendeu milhões de álbuns no mundo inteiro nesses quinze anos de existência do Oasis; o disco mais recente “Dig out your soul” foi bem recebido pela crítica (e pelos fãs), e fez com que a banda experimentasse novamente o prazer de ser relevante; estão chegando ao Brasil (os shows são na semana que vem) depois de uma longa turnê que foi também extremamente bem-sucedida; os dois irmãos estão notoriamente milionários (algo que até Noel fez questão de assinalar durante a entrevista). Então, por que não estar feliz?

A certa altura perguntei se esse, digamos, “novo” estado de espírito do Oasis tinha a ver com a maturidade – afinal, como o próprio Noel fez questão de frisar, ele já está com 41 anos (a poucas semanas de completar 42). Embora “maturidade” seja um atributo que não combina muito com uma banda de rock como o Oasis, ele não teve problema algum em declarar que sim, que aos quarenta anos você já não faz tanta besteira, já não toma mais tantas drogas – e, o mais importante, não precisa ficar provando para ninguém que você é bom… Isso sim é que é felicidade…

No palco, alguns minutos depois, os irmãos demonstravam exatamente isso: que estavam tocando com prazer. Não era a primeira vez que eu via um show do Oasis, claro, mas acho que foi o primeiro deles que me deu a impressão de que eles estavam felizes no palco? Estaria eu influenciado pelo que acabara de ouvir dos irmãos Gallagher? Talvez. Mas de alguma maneira, o bom clima da apresentação, contagiou a magra (para o Oasis) platéia.

Nos jornais do dia seguinte, ao lado das manchetes sobre a “gripe porcina” – com a mais recente histeria mundial é curiosamente chamada em espanhol -, jornalistas chamavam atenção para o pequeno público que foi ver o Oasis em Caracas. Num país que nem está preocupado em esconder seu dilaceramento – era a primeira vez que eu visitava a Venezuela e, para ser breve, digamos que fiquei meio assustado – fica até difícil imaginar que existe uma comunidade de fãs interessada numa banda como essa. Mas ao olhar os rostos da platéia naquela noite, fui obrigado a – mais uma vez – chacoalhar minhas idéias pré-concebidas e aceitar que ali também existem adoradores do bom rock. Aliás – não podemos esquecer -, como existem também aqui no Brasil.

A felicidade estava estampada na cara dos fãs venezuelanos, que cantavam não só o coro, mas a letra inteira de músicas do novo disco. E ali, no palco improvisado da USB – que fica no topo de uma das montanhas que cercam a caótica capital (uma hora e meia para sair do centro e chegar lá no final da tarde, num trajeto de pouco mais de 30 km!) – eu presenciava mais um daqueles momentos de comunhão entre artistas e fãs, que, claro, só um evento como um show ao vivo pode proporcionar.

Qualquer um que já viu a introdução do vídeo de “Eu sou Stefhany (no meu Cross Fox)”sabe disso. A loucura, a expectativa para ver o ídolo, a alegria, a histeria! Tudo isso está no clipe dessa, que já está sendo chamada de “a nova diva do Piauí” – se bem que, num teste rápido de memória, não consigo me lembrar de quem seria a “antiga diva” do estado…

Nesse momento, os fãs de Oasis que se sentiram atraídos a ler este post até aqui devem estar vivendo o dilema: “será que continua a ler essa porcaria?”. Mesmo você, que ainda não tinha ouvido falar desse modesto fenômeno recente do youtube (seu vídeo mais assistido, esse citado acima, por enquanto, tem menos de 500 mil acessos (uma mera fração de “A dança do quadrado”),  pode se perguntar por que deve embarcar nessa leitura…

Eu, claro, sugiro que você me acompanhe. Primeiro, para se divertir um pouco com mais uma faceta desse universo maravilhoso que é o pop. E depois, porque mesmo que você a ignore, Stefhany está feliz (para lá de feliz) e vai em frente! – como aliás, ela deixa claríssimo na mensagem de texto enxertada no seu vídeo mais popular: “Stefhany já tem SUCESSO, mais (sic) podem perder seu TEMPO criticando”. Entendeu? É isso mesmo, pode criticar, pode achar o fim, pode se indignar de ela aparecer no mesmo texto que o Oasis! Esta é a hora e a vez de Stefhany!

Uma pequena introdução para você que ainda não a conhece – e não adianta procurar na wikipédia, pois a artista ainda não tem seu verbete! Stefhany (com “fh” mesmo) é uma menina de 17 anos. Piauiense, ela não é da capital, mas de Inhuma (a 240 km de Teresina), uma cidade com uma população de menos de 15 mil habitantes. Que tipo de música faz? Digamos que Stefhany é versátil: vai do brega de Joelma (sim, Calypso) ao “soul” (revisitado) de Beyoncé – jogue um pouco de Gretchen, Maria Rita, Pitty, Cláudia Leitte e… pronto! Aí está a receita do sucesso da menina.

“Eu sou linda! Absoluta! Eu sou Stefhany”, canta ela segura no seu “hit” – que os iniciados chamam apenas de “Cross Fox”. “Eu vou sair, me divertir, não vou ficar mais te esperando, porque agora… eu sou demais!”, segue ela numa batida nada original, mas totalmente irresistível. A música não é mais do que a milionésima “declaração de independência” de uma ex-namorada que cansou de ser passada para trás – e que, em alguns momentos chega a me lembrar da mais poderosa de todas as canções do gênero, o clássico “Unpretty”, do T.L.C. (que toda a menina de 14 a17 anos deveria ser obrigada a decorar e cantar todos os dias). Mas é deliciosa – e, acompanhada por esse vídeo caseiro (que, imagino, foi gravado na própria casa de Stefhany, e nas cercanias de Inhuma), ganha fácil o título de “a coisa mais divertida que apareceu recentemente no pop brasileiro”. E pode guardar sua indignação com este que escreve para o seu baú de preconceitos…

“Cross Fox”não é, porém, minha faixa favorita de “Stefhany – pra se apaixonar!” – como diz aquela impagável voz de locutor que entra sempre inesperadamente em algum momento de sucessos do brega… Gosto de “Anjo” (a segunda melhor música do pop brasileiro com esse título, depois, claro, daquela gravada por Kelly Key). Gosto de “Jurei jamais amar”. Gosto de “Madrugada”. E gosto muito de “Amor meu” – se bem que essa faixa me pegou menos pela, hum, sonoridade, do que pelo seu vídeo

Se eu puder arriscar uma “teoria” para o segredo do sucesso de Stefhany, eu diria que ele está nesses clipes (são vário no youtube) – todos caseiros, todos incrivelmente toscos, e todos geniais! Começando por “Amor meu”: o que é aquela coreografia que ela faz com suas amigas no meio de uma rua de paralelepípedos (em Inhuma, será? – uma pintura na parede de uma das casas ao fundo traz a enigmática expressão “qualquer lugar”…). Três meninas, num inexplicável figurino que mistura um smoking com um pano branco na cabeça, desencontram-se harmoniosamente num cenário que parece um salão de festas de um prédio – imagens que se revezam com as da própria Stefhany desabafando no ouvido de um “namorado” -, em “Jurei jamais amar”. Logo no inicio de “O que passou passou” (que me lembra, bem de longe, um sucesso antigo, “The only way is up”, de uma mulher chamada Yazz), depois de um balé ainda mais sem sincronia – e não menos adorável -, enquanto as meninas “descansam”, Stefhany vem descendo de uma rampa numa quadra de esporte para fazer uma reinvenção “muito louca” de um maracatu… e cantar! Mas, “super-produções” à parte, talvez os vídeos da cantora que mais me fascinam são os gravados no estilo “paredão”, com ela simplesmente cantando na frente de uma parede branca – seja num traje de gala, como em “Madrugada”, ou numa versão mais para “rainha da bateria na Sapucaí”, em “Diga o que quer de mim”.

Todos esses – e, muito mais – você encontra sem dificuldade na internet. E, qualquer dúvida, é só ir ao site oficial da artista, onde você ainda pode descobrir que Stephany “debutou para o mundo da música ao ser dispensada pelo cantor Tonivan dos Teclados, com quem fazia dupla”.

Parece que, recentemente, entramos finalmente na era de aquário. Mas a verdade é que estamos vivendo sob o signo de Stefhany – e qualquer resistência será inútil! Até quando? Difícil dizer… Você vê: o Oasis está aí feliz da vida comemorando 15 anos de sucesso. E Stefhany, mais feliz ainda, celebrando o que, por enquanto, é pouco mais de 15 minutos de fama… Que eles sejam – com o perdão do poeta – “eternos enquanto durem”. E que venha mais! Mais “Stefhanys”, mais Oasis. Pois o grande circo do pop segue em frente – e viva o respeitável público que sempre aplaude…

Livros para suar

seg, 27/04/09
por Zeca Camargo |
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“Pelo mais breve dos momentos, mas perfeitamente compreendido durante ele – como quando um inseto de verão voa cruzando a tela da televisão ligada numa sala com a luz apagada, os componentes do vôo do inseto vistos numa seqüência de perfeitas silhuetas –, Shamas se pergunta absurdamente se aquele homem não era uma aparição vista só por ele, enviada para fazer o bem. Mas o momento passa e o inseto desaparece na escuridão de onde saíra”.

Este é um trecho, escolhido quase que aleatoriamente, do recém-lançado livro de Nadeem Aslam (Editora Record), “Mapas para amantes perdidos”. É dele que queria falar hoje. Dele e de outro livro, também recém-lançado, de onde extraí o seguinte diálogo:

“– Milarga mãi! Ele a afastou com um repelão, dizendo, Kual eh seu problema?
– Você eh uproblema! Sua respiração era pesada, os tendões tensos do pescoço expostos por uma aba de seu troçopano. Axa kieu um sei prakê tuduiçu?
– Comuassim? O Fulano estava muito aflito. Soh fiz uki C midissi prafazê.
– Eudissi? Eudissi? Naum falu kum você faizanuz! Agora ki C tah enrabixadu aatrais di Caff Ridmun vai sofre asconsekuências. C axa ki vai sissafah dessa purkê eh ispertuprakaraliu, maiz num vai, uchofeh vai tah aki comu todu veraum, i todu mundu ki fikô dibikufexadu vai ti fudê.”

Chegou até aqui na leitura? Bravo! Acontece que “O livro de Dave”, de Will Self (Alfaguara), não tem apenas um diálogo assim – numa língua do futuro chamada “mokni”. São vários – muitos –, espalhados numa narrativa delirante por mais de 400 páginas (na tradução brasileira). Os trechos em “mokni” (uma adaptação para “mockney”, do original em inglês, que é, por sua vez, um trocadilho com o sotaque “cockney” inglês – “mock” é algo como “de gozação”) são tantos, que o autor achou necessário colocar um dicionário (ou como eles dizem em “mokni”, um “bibici-inglês”) para ajudar o leitor. E acredite: o leitor precisa de ajuda para atravessar o livro de Dave…

Li esse trabalho de Will Self há uns três anos, logo que foi lançado na Inglaterra. Sou fã desse escritor há tempos – na verdade, desde o início dos anos 90, quando li seu primeiro livro: duas novelas reunidas sob o título “Cock & Bull”. Rapidamente, na primeira história, uma mulher vê seu clitóris transformado num pênis; na segunda, um homem acorda um dia e descobre que “ganhou” uma vagina na parte de trás de seu joelho. Estranho? Experimente ler as novelas por inteiro (aqui, a edição mais recente que encontrei é da Geração Editorial).

Tão entusiasmado fiquei com “Cock & Bull”, quando o li no original, que cheguei a comentá-lo numa coluna que eu escrevia na época e, por conta disso, fui convidado a traduzi-lo para o português. Fracassei nessa empreitada (o livro acabou saindo, mas com outra tradução), mas tive – imagino que pela minha “campanha pró-Self” – a oportunidade de mediar um debate com o autor, quando ele veio participar da Bienal do Livro de São Paulo, em 1994. Isto é, se o debate tivesse acontecido…

Ainda desconhecido por aqui, o “evento” juntou menos de uma dúzia de fãs num espaço para centenas de pessoas (o auditório do Masp) – e Self, ligeiramente indignado e ligeiramente indiferente, chamou todo mundo para tomar uma cerveja num bar ali mesmo ao lado do museu. Depois de várias rodadas da bebida – ele é inglês, vale a pena lembrar –, ele me convidou para fazer uma leitura “performática-bilingüe” do seu livro ali mesmo, na mesa da calçada do bar. Aceitei – e a cena ficou na minha memória como um dos momentos mais ensandecidos que já vivi.

Desnecessário dizer que, depois disso, virei devoto de Will Self. Orgulho-me de ter lido quase tudo que ele escreveu – o “quase” fica por conta de alguma edição obscura que talvez tenha me escapado. Para a sorte do leitor brasileiro, boa parte da sua obra já ganhou tradução – e se você ainda não conhece esse autor eu sugiro que você comece por dois de seus livros que são meus favoritos: “Como vivem os mortos” (Alfaguara), que, como o título anuncia, é uma descrição hilária de um cotidiano “extremamente normal” de quem “já não está mais aqui” (nessa fantasia, as pessoas não morrem, mas simplesmente mudam-se para o norte de Londres); e “Grandes símios” (também Alfaguara), que, resumindo bem, é uma parábola ambiciosa (e engraçadíssima) sobre um mundo dominado por chimpanzés – bastante inteligentes…

Ou então você pode ser apresentado a Will Self através de “O livro de Dave”, mas – gostaria de reforçar –, vá com cautela. “Dave” é daqueles livros que demandam não só sua atenção como um enorme esforço para acompanhar não só sua narrativa, mas também seu “dialeto”. A história acontece em dois planos: um, contemporâneo, é a rotina de um motorista de táxi londrino (Dave), que tem ódio da ex-mulher com quem disputa a guarda do filho; o outro se desenrola numa sociedade do futuro (mais ou menos 500 anos para frente), onde um livro que Dave escreveu – misturando suas frustrações e suas observações misóginas e ultraconservadoras – é descoberto pelos sobreviventes de um terrível desastre natural e é adotado como uma bíblia.

Parece pretensioso, mas, como tudo que Will Self escreve, trata-se de uma grande sátira – no caso, dos perigos de um fanatismo religioso. Entrar nesses universos surreais (a Londres de hoje descrita no livro não é menos absurda que a ilha de Ham do futuro) dá trabalho – mas a recompensa, eu garanto, é enorme.

“O livro de Dave” é daqueles livros que fazem você suar, que oferecem uma leitura complicada, cheia de obstáculos, como se quisesse que você desistisse mesmo dela. Mas quem persevera sente-se gratificado. Como em “Mapas para amantes perdidos”, de Nadeem Aslam. Antes de falar dele, no entanto, esclareço que não quero aqui defender a idéia – deveras ridícula – de que “livro bom é livro difícil”. Poderia facilmente listar aqui, de cabeça, uma centena de livros brilhantes e que são, comparados com o próprio “Dave”, um exemplo de simplicidade. Assim como é fácil também citar títulos que, pelo excesso de malabarismos, impressionam à primeira vista, mas são medíocres – por exemplo, lembro-me, com muita raiva, de ter atravessado o estranho “Behindlings” (2002), da inglesa Nicola Barker, apenas para ter vontade de jogá-lo longe depois da última página…

Mas tem vezes que a “dificuldade” de um livro é realmente compensadora. O trabalho de Aslam cai nessa categoria, mas não pelos mesmos motivos que “O livro de Dave”. “Mapas” sofre de dois males muito comuns na literatura contemporânea: primeiro, uma irritante estrutura de fórmula fácil; e, depois, o excesso de metáforas. A fórmula, ainda que disfarçada, é a mesma que empesteia alguns “elogiados” lançamentos contemporâneos: uma história contada através da seqüência de retratos de personagens (eu sei: parece uma estratégia inocente, mas quando você começa a identificar isso em vários livros, alguma coisa está errada…). E as metáforas… Bem, aqui vão alguns exemplos: “Há um leve cheiro cítrico no ar, como se ele estivesse num recinto em que uma laranja tivesse há pouco sido comida”; “Ela junta os cabelos, tirando as mechas molhadas que estão delicadamente coladas aos seus ombros, cada qual deixando uma impressão de si na pele fresca, uma sombra sensória de baixa temperatura”; “O orbe de papel seda enfardado em que Mah-Jabin trouxe açucenas-brancas continua a farfalhar ao expandir-se e abrir-se complicadamente dentro da lixeirinha, de dentro da qual tulipas mortas recurvam-se como pescoços de cisnes embriagados, flácidas”.  Uau…

As imagens que Aslam cria são muitas vezes preciosas – poéticas até. Mas quando você as encontra uma atrás da outra (raro é o parágrafo de “Mapas” que não traz uma), o efeito é exatamente o contrário: de exaustão. É possível ver o esforço (e o talento) do autor para criar essas imagens – e só posso admirá-lo por isso. O problema é que na quantidade que essas metáforas são apresentadas, elas acabam se anulando. E, pior, impedindo o leitor de entrar numa história fascinante de uma família paquistanesa e sua enorme dificuldade de se encaixar no “ocidente” – no caso, uma cidade não identificada o norte da Inglaterra.

Shamas – um comunista fervososo – e Kaubab – uma muçulmana devota – criaram seus três filhos (Charag, Mah-Jabin e Ujala) num ziguezague cultural entre as idéias progressistas do pai e a ortodoxia da mãe. Resultado: nenhum deles, já nos seus vinte anos, mora mais em casa. Todos preferiram fugir da família, cultivando um ódio do fracasso ideológico do pai e da suposta ignorância da mãe (resultado, como pensam os filhos, de uma rigorosa interpretação da sua religião).

“Kaubab nunca perdera a fé de que Alá encontraria uma maneira de ajudar o seu cunhado viúvo (…). As coisas acabaram funcionando para todos, e na fantasia silenciosa dos dois últimos anos da garota – sua fantasia silenciosa e extravagante, inocente e desmedida –, Kaubab viu a prova de como Alá cega suas criaturas quando Ele necessita implementar os desígnios do destino”.

Todo o mal do mundo que ela conhece fora do Islã, para Kaubab, é culpa dos infiéis (e as glórias, como no trecho acima, são seus méritos). Tudo bem, mas vai convencer seus filhos – educados na Inglaterra de hoje – disso… Esse conflito, que permeia toda a história, está por trás também do “escândalo” que mexeu com a comunidade paquistanesa na cidade: o assassinato do irmão de Shamas (Jugnu) e sua namorada (Chanda) – que viviam “em pecado” –, pelos próprios irmãos dela – um crime que, como é comum nesse universo, é “justificável”, como uma questão de honra…

É essa história – repito, fascinante – que está escondida entre uma metáfora rebuscada e outra em “Mapas para amantes perdidos” (e na estrutura banal da história). Assim como – e ainda que de uma maneira diferente de – “Dave”, esse é um livro que dá trabalho… Mas se você insistir, será também recompensado (especialmente pela tradução de ambos, que é, nos dois casos, um “tour de force”).

Porém, se você não estiver a fim de esquentar a cabeça nessa temporada (mesmo que esse esforço se reverta para o bem), tem um outro lançamento que eu recomendo com louvor: “Mental Floss apresenta: Qual é a diferença?” (Matrix). Ali, de maneira simples e bem-humorada, você vai aprender como se passar por sabichão numa conversa social. Dúvidas sobre a diferença entre Socialismo e Comunismo? Anfetaminas e metanfetaminas? Bach e Beethoven? Monet e Manet? Está tudo lá. E mesmo que, digamos, você saiba essas diferenças, o texto é divertidíssimo – como tudo que leva assinatura da revista “Mental Floss” (aqui já comentada).

E, para acompanhar a leitura, por que não sugerir a trilha do momento: Stefhany! Não conhece? Ah… então já temos assunto para quinta-feira…

É assim que as pessoas amadurecem

qui, 23/04/09
por Zeca Camargo |
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Todo disco solo de Morrissey tem pelo menos uma faixa que faz você pensar: “essa poderia estar num disco dos Smiths”. No caso de “Years of refusal”, seu mais recente trabalho, essa música é “That’s how people grow up” – cuja tradução, sempre apressada, figura no título do post de hoje. Em “Viva hate”, que inaugurou sua carreira em 1988 (há mais de vinte anos!), era “Suedehead” (e, talvez, “Everyday is like sunday”). “Your arsenal” (1992) também aparece com duas candidatas: “We hate it when our friends become successful” e aquela canção que certamente figura na final de qualquer concurso dos títulos mais debochados da história do rock, “You’re the one for me, Fatty” (algo como “Você foi feito/feita para mim, gordinho/gordinha”). “Now my heart is full” é a “smithsiana” de “Vauxhall and I” (1994) – assim como “Let me kiss you” é a de “You are the quarry” (2004).

Esse inocente exercício de um fã masoquista – o de identificar uma possível pincelada do antigo líder dos Smiths no Morrissey de cada álbum solo que é lançado – já é quase um ritual. Algo inevitável – uma espécie de reflexo condicionado para admiradores da banda que, como eu, até hoje não se recuperaram da notícia de que ela acabou. Também, não era para menos…

Para aqueles que beberam e se abastaram na fonte do pop dos anos 80 como eu, poucas bandas são tão icônicas – ou poderosas, ou transformadoras, ou transcendentais (acrescente aqui outro adjetivo do seu gosto) – como The Smiths. Quase todos meus amigos que gostam de música conseguem se lembrar da primeira vez que ouviram “This charming man” ou “Hand in glove” (minha “estreia” foi ouvindo um programa de rádio – do Kid Vinil, é claro – na casa de uma colega de faculdade). Mas mesmo admiradores de outras gerações são capazes de descrever com precisão o impacto de ter recebido a banda Morrissey e Marr nos seus ouvidos pela primeira vez – e é sempre uma história de sedução imediata.

Lembro-me bem da corrida desesperada que foi para possuir aqueles primeiros “singles”. Bastava eu saber que o concunhado de um primo de quarto grau da mãe de uma amiga da faculdade passaria por Londres numa escala de mais de seis horas, que lá estava eu implorando para que ele me trouxesse o precioso pedaço de vinil (comprar alguma coisa pela internet, entenda bem, não era exatamente uma opção nos idos dos anos 80). E não bastava um disquinho de sete polegadas: eu tinha que ter também a versão de 12 – e, em alguns casos, como no compacto de “What difference does it make”, o objetivo era possuir até as capas alternativas (o ator Terence Stemp implicou em ter sua foto ilustrando o “single” oficial e boa parte das cópias saiu com o próprio Morrissey reproduzindo a mesma pose).

Foram incontáveis reproduções no meu toca-discos. Ainda tenho todos esses originais na minha coleção e posso assegurar que “surrados” é no mínimo uma maneira elegante de descrever o estado deles (recentemente comprei uma caixa especial com a reedição de todos os “singles” de sete polegadas – só pra garantir a sobrevivência dos antigos…). E tinha ainda os dois primeiros álbuns – um celeiro infinito de inspiração (e de identificação). Memorizei todas as letras – e não foram poucos os versos que me davam a sensação de que Morrissey os tinha composto para mim (“the sun shines out of our behinds”; “the devil will find works for idle hands to do”; “I decree today that life is simply taking and not giving”; “why do I give valuable time to people who don’t care if I live or die”; “I know what hands are for and I’d like to help myself” – tantos, tantos…).

Eis que então, em fevereiro de 1985, eu – ainda enquanto modesto mochileiro – estava de passagem por Londres justamente na época do lançamento de “Meat is murder”. Que coincidência mais feliz! Um evento que, para descrevê-lo, as palavras me fogem até hoje. E nenhum vocabulário parece conter as significados que pudessem traduzir o meu êxtase ao simplesmente andar pelas ruas da capital inglesa, enfrentando frio e vento castigantes, mas sempre surpreendido pela preciosa imagem de um soldado cujo capacete tinha o radical slogan que dava nome ao disco. Era o nirvana – não, claro, a banda que ainda levaria pouco menos de uma década para arrebatar o mundo, mas o estado de alma que só os que se sentem realmente agraciados por uma força divida se dão o direito de sentir. E tudo isso me atravessava antes de ouvir o disco!

Quando escutei “Meat is murder” então, veio a constatação: um clássico instantâneo! O susto suntuoso de “The headmaster ritual”; a frustração desesperada de “I want the one I can’t have”; o frisson frenético de “What she said”; o convite onírico de “Well I wonder”; a improvável levada dançante de “Barbarism begins at home” – cada detalhe das outras faixas… Tudo parecia feito para me enlouquecer – e eu tive a certeza de que ali estava o registro musical mais contundente que minha juventude poderia ter. E olha que não estou nem computando aí uma certa “obra prima” chamada “How soon is now”, que só foi incluída nas edições seguintes do álbum…

Claro que depois ainda viria “The queen is dead” – com sua coleção de faixas imprescindíveis dos Smiths (preciso citar?) – e “Strangeways here we come” – a despedida mais triste desde “Let it be”, que também trouxe sua meia dúzia de músicas indispensáveis em qualquer biografia da banda. Mas nada na minha relação com os Smiths se compara ao lançamento de “Meat is murder” – talvez a alegria de cantar a plenos pulmões “I’m going to meet the one I love” (“Shakespeares sister”), na época da minha primeira paixão pós-adolescência, mas eu divago…

O que não significa que eu deixei de me emocionar com cada nova música deles até o final. Como definir minha própria educação musical sem, por exemplo, “Panic”? Ou como esconder que, até hoje, “Ask” é uma espécie de mantra para mim? O estranho fascínio de “Shoplifters of the world unite” ainda perdura – sem um arranhão. E eu poderia fazer um post com o dobro do tamanho deste (que eu ainda nem sei quão grande vai ficar) sobre “Girlfriend in a coma”…

Diante dessa pletora de canções inclas- sificáveis de tão perfeitas, fica fácil entender o dilema que expus aqui no post anterior: o da impossibilidade de reduzir toda essa obra a apenas cinco músicas favoritas – dilema este que, como tive um estranho prazer de perceber, compartilho com vários de meus leitores que mandaram suas listas… E é esse fascínio infinito com o trabalho de uma banda que acabou há 22 anos, que uso como muleta para explicar porque a cada disco solo de Morrissey, estamos sempre querendo achar alguma coisa dos Smiths.

Não é mero saudosismo – garanto. É mais a vontade vã de querer viver de novo todas as sensações que me enriqueciam a cada vez que eu ouvia um poema desesperado de Morrissey acompanhado da sonoridade criada por Johnny Marr. Que delírio que era (e ainda é) se afogar na desesperança de versos como (me perdoem a tosca tradução): “Quando você diz que vai acontecer agora, o que você quer dizer exatamente? Eu já esperei tempo demais”. Ou, pior (melhor?): “Se você quiser, tem um clube para ir, onde você poderia encontrar alguém que realmente te amasse, e você vai e fica sozinho, e sai sozinho, e vai para casa, e chora, e quer morrer”? Nem vou falar qual música estou citando, ok?

Haverá um épico adolescente mais bem resumido do que os seguintes versos de “Half a person”: “Se você tiver cinco segundos sobrando, eu posso contar a história da minha vida: dezesseis anos, desajeitado e tímido, eu vim para Londres e me instalei na A.C.M.”. Um pedido mais pungente do que o de “Please please please let me get what I want”: “O Senhor sabe que será a primeira vez”? Ou um “final infeliz” mais sensacional do que aquele cantado em “There is a light that never goes out”: “Morrer ao seu lado, bem, o prazer – o privilégio é todo meu”?

As citações são inúmeras (este post poderia ser infinito) – e valem ser revividas, não importa com que desculpa. Nem que seja para comentar um disco solo menos brilhante de Morrissey… Sim – e agora, finalmente, vamos falar de “Years of refusal” – mesmo os fãs mais ardorosos do cantor (entre os quais eu me incluo) têm de admitir que nem tudo que saiu dessas duas décadas de carreira solo é exatamente bom…

Não quero citar nomes, mas entre os altos e baixos desses nove álbuns, você sabe bem quais estão no primeiro grupo e quais pertencem ao segundo… A boa notícia é que “Refusal” cai na segunda categoria! Na primeira vez que você o escuta, vem a já conhecida reação, recorrente a cada lançamento: “não é mais aquele Morrissey”… Mas, calma. Aprendi que esses discos solos sempre merecem uma segunda chance – e é aí que você começa a descobrir pequenos prazeres.

Primeiro, é bom saber que nosso bardo continua impecável na tarefa de criar títulos estranhos. “Não é mais seu aniversário”, “Tudo que você precisa sou eu”, “Da última vez que falei com Carol”(todos aqui traduzidos literalmente), são apenas alguns deles. Depois, é bom saber que atrás da parede de som que Morrissey geralmente usa para esconder composições menos inspiradas surgem bons arranjos dessa vez – como na própria “Carol” ou na curiosa “I’m throwing my arms around Paris”. E sobretudo – como tenho o prazer de reafirmar – a tal “faixa que poderia bem ter saído de um disco dos Smiths” é, em si, um presente à nostalgia desses fãs de coração mole (sim, estou falando novamente de mim…).

Quantas vezes eu ainda vou ouvir “Years of refusal” por inteiro? Certamente apenas uma fração do que eu já ouvi (e ainda vou ouvir) qualquer álbum dos Smiths. Mas quem disse que eu preciso de repetidas audições para memorizar versos como esses de “That’s how people grow up”: “I was wasting  my time praying for love, for a love that never comes, from someone who does not exist” (versos esses que, já pedindo desculpas, vou deixar assim mesmo sem tradução – talvez porque, só para variar, Morrissey mais uma vez falou muito perto do meu coração)? E a cota de espera de dois anos para ter pelo menos uma faixa como essa – como “nos velhos tempos” -, convenhamos, não é tão sacrificante assim…

A crueldade das listas

seg, 20/04/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Eu mesmo já escrevi aqui o quanto as adoro… Mas hoje, ao esboçar um post sobre os Smiths – com o gancho do novo disco de Morrissey, “Years of refusal” – deparei-me com um dilema: não consigo fechar uma lista. É uma lista simples, mas – talvez até por isso – não está fácil chegar à sua forma definitiva. Qualquer fã de música já passou por isso. Mas como se trata de uma das melhores bandas de todos os tempos (justamente The Smiths), a dificuldade parece ainda maior. Simplesmente não consigo me decidir pelas cinco melhores músicas deles!

Sim, empaquei. Como diz o título do novo “single” de Morrissey – “Something is squeezing my skull” –, é como se alguma coisa estivesse apertando meu crânio. Fato é que eu não cheguei a uma lista final. E é por isso que peço sua ajuda. Mas antes, alguns esboços…

Primeiro tentei escolher pegar as mais curtas:

- “Shakespeare’s sister”

- “Panic”

- “Ask”

- “William it was really nothing”

- “Girlfriend in a coma”

Boa, mas como deixar “How soon is now?” de fora? Com seus quase sete minutos, porém, ela certamente não poderia figurar nessa seleção. Então, decidi repensar a lista em função dessa faixa – e resolvi escolher usando o critério das que tinham as letras mais desesperadas:

- “How soon is now?”

- “I want the one I can’t have”

- “You’ve got everything now”

- “Please please please let me get what I want”

- “I know it’s over”

Hummm. O que fazer com “There is a light that never goes out”? Quem sabe encaixá-la numa lista que inclui as mais belas declarações de amor que os Smiths gravaram?

- “There’s a light that never goes out”

- “Shakespeare’s sister”

- “Hand in glove”

- “I won’t share you”

- “Reel around the fountain”

Mas isso deixaria a irreverência da banda – uma de suas características mais fortes – de fora. Nesse sentido, a seleção das músicas mais assanhadas (ou atrevidas) dos Smiths seria:

- “Still ill”

- “Ask”

- “This charming man”

- “Handsome devil”

- “I want the one I can’t have”

Morrissey, porém, era mestre também em compor letras bastante bem humoradas. Algumas beirando o “non sense” – como “Vicar in a tutu” –, e outras onde a ironia ácida do cantor podia escolher como o alvo a própria gravadora da banda – como em “Paint a vulgar Picture”. A essas duas, eu acrescentaria mais três para fazer esta lista:

- “Vicar in a tutu”

- “Paint a vulgar picture”

- “Frankly, Mr. Shankly”

- “William it was really nothing”

- “Stop me if you think that you’ve heard this one before”

“Vicar”, porém, nos remete a uma outra referência forte na poesia de Morrissey: as letras misteriosas, cujo significado desafia até os fãs mais dedicados. Nesta lista estão:

- “Vicar in a tutu”

- “Shoplifter of the world unite”

- “The dead of a disco dancer”

- “Cemetery gates”

- “Girlfriend in a coma”

Por falar em suas letras, não são poucas as que sugerem fortes referências auto-biográficas – clássicos da rejeição juvenil, ou mesmo mini-manifestos:

- “Half a person”

- “How soon is now?”

- “The boy with the thorn in his side”

- “Heaven knows I’m miserable now”

- “Panic”

Eu poderia pegar só o lado musical, e escolher as melhores introduções da guitarra de Johnny Marr…

- “Shakespeare’s sister”

- “How soon is now?”
- “The headmaster ritual”

- “Bigmouth strikes again”

- “Heaven knows I’m miserable now”

Ou simplesmente pegar as mais belas baladas da banda – que certamente estão também nas listas de mais belas baladas do pop…

- “Well I wonder”

- “I know it’s over”

- “Please please please let me get what I want”

- “I won’t share you”

- “Last night I dreamt that somebody loved me”

Para restringir um pouco o universo, pensei em escolher cinco músicas apenas entre os “singles”:

- “How soon is now?”

- “Shakespeare’s sister”

- “Panic”

- “Hand in glove”

- “This charming man”

Ou quem sabe assumir uma escolha totalmente pessoal e listar aquelas mais tocadas no meu iTunes (em ordem crescente de execuções):

- “Shakespeare’s sister”

- “Panic”

- “Hand in glove”

- “How soon is now?”

- “Ask”

Percebeu como o exercício não é nada simples? Por isso, mais uma vez, peço sua ajuda: como você dividiria a obra dos Smiths para fazer uma lista definitiva das cinco melhores músicas da banda? Quem sabe você não sugere um outro critério de corte para uma nova seleção… Ou então podemos tabular várias listas de favoritos (enviadas pelos comentários) e selecionar aquelas que aparecem com mais frequência?

Não é fã dos Smiths? Não se desespere – você ainda tem salvação! Nas last.fms, nos myspaces, nos youtubes da vida, você não vai ter a menor dificuldade para ser apresentado a este monumento pop – e preencher essa lacuna em seu currículo…

Achei que essa seria uma boa maneira de aproveitar esse hiato cultural do feriado de 21 de abril – aproveite a folga! Bem como um bom preparo para a gente então falar de “Years of refusal”, na quinta. Até lá.

Por onde terminamos?

qui, 16/04/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Se é que terminamos… Ou melhor, essa “coletiva”, que começou no post anterior, termina aqui – mas nada impede que daqui a um tempinho a gente retome a conversa. Assim, sem mais delongas – e com esse brinde da foto (não pergunte o que tinha no copo, que me ofereceram num restaurante em Istambul… só sei que era a coisa mais doce que já provei) –, aqui estão mais algumas respostas breves para perguntas interessantes que os leitores mandaram. Está até um pouco mais longo que o post anterior – espero que não seja um problema…

Pedro Henrique Gomes – O que um livro precisa ter para chamar sua atenção?

Zeca – Um primeiro parágrafo que seja original ajuda (“Lolita”, de Nabokov, claro, é o exemplo mais fácil – e certamente um dos mais bonitos). Ou, no mínimo, um primeiro capítulo, ou um prólogo, que te hipnotize desde o início e faça você não poder dormir sem saber no que aquilo vai dar (acabo de passar por essa experiência com “The mayor’s tongue”, de Nathanale Rich – que será comentado em breve por aqui). Sobretudo se apresenta, de cara, um personagem (ou mais) fascinante(s) – como nos trabalhos de Zadie Smith. Existem livros, porém, que não “pegam” desde o início, mas que conseguem te seduzir aos poucos, construindo a cada página uma trama envolvente (acabei de ler “Mapas para amantes perdidos”, de Nadeem Aslam, Record, que cai exatamente nesta categoria). E, cá e lá, ele tem que ter surpresas – na narrativa, na trama ou até mesmo numa simples metáfora.

Rick – Qual seria para você a entrevista perfeita: uma segunda vez na qual o entrevistado lembra de você e da conversa que tiveram anteriormente, ou uma conversa que ganhe o mundo por algo de novo apresentado?

Zeca – Já passei por situações onde o entrevistado lembrou de mim (salve Alanis!). Isso torna a entrevista mais agradável, mas não necessariamente mais interessante. Essa que, como você coloca, “ganha o mundo” é certamente mais recompensadora.

Eduardo – Fazendo um retrospecto de sua carreira você conseguiria identificar os aspectos que te levaram a ser o que você é hoje?

Zeca – Primeiro, uma curiosidade infinita. Depois, uma determinação de fazer tudo bem feito – mesmo o que eu nunca tinha feito antes. Sempre pensei nisso – num espetáculo de dança, numa palestra, na minha estréia na TV (nos idos da MTV).

Andréia – Estaríamos, finalmente, assistindo à democratização da cultura, uma vez que, por exemplo, podemos colocar nossos pensamentos na rede e ter acesso aos pensamentos de outras pessoas?

Zeca – Certamente! Sou totalmente otimista com relação a isso – e estamos falando, claro, de internet. Olha só o que estamos fazendo aqui – não só com essa “coletiva”, mas trocando informações. Há meros dez anos, esse tipo de diálogo seria impensável. E vamos comemorar!

Renato Negrão –Você já falou de seus lugares preferidos em Nova York e Londres (que eu me lembro). Visitei a Serpentine Gallery por sua indicação. Mas em São Paulo e no Rio, quais os 5 mais?

Zeca – Em São Paulo: as galerias de arte da Vila Madalena; a Livraria da Vila (Shopping Cidade Jardim); o Ritz; o Instituto Tomie Ohtake; o Sesc Pompéia. No Rio: MAM; almoço fim de semana em Santa Tereza; o Teatro Municipal; o calçadão da praia no domingo de manhã; os restaurantes “paulistas” que (como eu costumo brincar) estão transformando o Rio num “parque temático” de Sampa.

Regina Valler – O que você fez até seus 30 anos foi indispensável para formar sua identidade e valeu a pena?

Zeca – Será? Acho que sim. Sobretudo a vontade de experimentar – que sempre acompanha essa “década de ouro”. Aliás, o segredo é tentar que esse impulso vá com você para os 30, 40, 50…

Thiago_RJ – Você fala que está “aberto” a todo tipo de cultura e que a “diversidade” ou a “igualdade” cultural de todos os lugares te instiga, mas tem que haver uma espécie de seleção. Como você seleciona as coisas que vai conhecer?

Zeca – A seleção mais importante não é a do que você quer conhecer, mas do que você decide gostar. Conhecer, eu quero tudo. A partir daí, por associações, eu vou procurar mais coisas, num processo sempre associativo – e sempre com a ajuda do acaso.

Mayumi – Em que exato momento da sua vida você decidiu ser jornalista?

Zeca – Acho que seria honesto dizer que experimentei com o jornalismo quase um ano (entre “frilas” e trabalhos temporários) até ter a certeza de que queria me dedicar mais a essa atividade. E isso aconteceu no período inicial em que trabalhei no jornal “Folha de S.Paulo”, nos idos de 1987/88. Quando você percebe que aquilo que você reporta mexe de alguma maneira com as outras pessoas – sejam leitores, ouvintes, telespectadores, internautas –, isso parece que cria um sentido para o que você faz.

Jean Marcell – Se tivesse a oportunidade de fazer uma regressão e encontrar Freud. Imaginemos você como um paciente, um jornalista da época intrigado com a nova prática científica. Qual pergunta faria sobre o tal… Sigmund? Uma pergunta ingênua, levando em conta a pouca importância da psicologia na época e você, um paciente questionador…

Zeca – E por que o senhor acha que as pessoas deveriam levar essas suas novas idéias a sério?

Raul Carlos Freitas – Você é músico também? Toca ou canta? Já teve o sonho de formar uma bandinha? E a principal questão: quais músicas você canta de peito aberto e te emocionam mais?

Zeca – Sou incapaz de ler uma pauta musical (o que os mais engraçadinhos adoram usar para evocar o surrado clichê de que todo crítico é um músico frustrado). E, descontando desastrosas aulas de violão quanto eu tinha oito anos de idade – não passei de “Casinha pequenina” (mal tocada) – nunca me dei bem com um instrumento. Sonhos de banda, portanto, sempre passaram longe. O que não me impede de, até hoje, cantar a plenos pulmões – para o constrangimento dos amigos que me cercam – um repertório de “clássicos” que passa por “Como uma onda” (Lulu Santos), “Freedom 90” (George Michael), “Agora só falta você” (Rita Lee), “I touch myself” (Divynils), “A loirinha, o playboy e o negão” (Kelly Key), “Carpet of the sun” (Renaissance), “Dog days are over” (Florence and the Machine)… e por aí vai.

Geraldo – Quais são as bandas “injustiçadas”, na sua opinião? Bandas que tinham tudo para estourar, mas que não saíram da obscuridade? Isso daria até um ótimo post (ehehe) considerando que você deve conhecer um monte delas! Aqui vai umas que eu curto: Vaselines, The Sound, Superchunk…

Zeca – De fato, um bom assunto pra um post – vou guardar para mais tarde. Embora eu ache que qualquer banda que encontre um nicho de fãs está longe de ser “injustiçada”.

Isabella – Qual o lado ruim de ser “Zeca Camargo”?

Zeca – Ainda não fui apresentado a ele…

Tati – Uma pergunta que sempre quis fazer, desde que li na antiga coluna “Fora do Ar” – quando comecei a te ler (na “Capricho”, começo dos anos 90): se “The ballad of the sad café”, de Carson McCullers, fosse uma música, qual seria?

Zeca – Boa! “De cara a la pared”, Lhasa.

Pedro Henrique Gomes – Como você vê o futuro da literatura brasileira? Como acha que novos escritores surgirão se tudo continuar andando assim?

Zeca – Não entendi bem o “assim”… Mas acho que sempre vai ter gente escrevendo. E sempre vai ter gente escrevendo coisa boa.

Thais Helena – Tem alguma “tattoo” ou marca de nascença?

Zeca – Depois de “velho”, fiquei com vontade de fazer uma tatuagem. Queria escrever um verso de uma música do argentino Léo Garcia bem grande nas costas. Mas pensei melhor… Tenho uma marca de nascença sim, vermelha, bem na testa (acredite: “à lá” Harry Potter), mas ela só aparece quando estou muito cansado…

Marilia Barbosa  – Deus te questiona: ‘o que fizeste de tua vida?’ Qual seria tua resposta?

Zeca – Devolvi e espalhei toda a alegria que a vida me deu.

Olavo Valadares – Qual a sua melhor memória da infância?

Zeca – Da praia de Copacabana antes do aterro… ficar “pegando jacaré” até minha mãe colocar uma toalha na janela avisando que o almoço estava na mesa.

Izabel – Seus programas de viagem são bem turísticos. Já pensou em algo do tipo “aventura radical”?

Zeca – Primeiro, o direito a réplica… O que tento fazer nessas reportagens não é exatamente algo “turístico”, mas sim cultural. Nada contra o termo, mas do jeito que você colocou parece que é uma reportagem inconsequente, tipo “cartão postal”, quando a preocupação é justamente outra: a de mostrar a cultura que define determinado lugar. Mas enfim, acho que você usou a colocação mais para sustentar sua pergunta, então, vamos à resposta: já fiz algumas reportagens radicais, como uma corrida de aventura em Fiji (2002), ou mesmo um improvável salto de “bungee jump” (de 175 metros!) na Nova Zelândia (na volta ao mundo de 2004). Mas só faço se a câmera estiver ligada. Por prazer pessoal, não faço – não tiro nenhum barato disso. Acho legal na hora que estou lá, gosto da emoção – mas não fico “louco” para repetir a experiência tão cedo.

Ricardo Alexandre – Qual o futura da música? Você acha que surgirão outros Beatles, Rolling Stones, The Smiths etc.? Existirá CD no futuro?

Zeca – Começando pela mais fácil: não, não existirá CD no futuro – e estou falando de um futuro próximo. Snif… Para responder à segunda pergunta, vou tirar os Smiths dela… Sacou a resposta? (Em breve aqui, uma “sessão saudades” dessa banda, com o gancho do novo disco de Morrisey!) E o próprio futuro da música… bem, tem a ver com o futuro do homem! O dia em que a gente parar de fazer – e ouvir – música, acho que nem podemos mais achar que somos humanos…

Roberta M de Oliveita – Você já foi para muitos festivais? E qual ficou marcado pra você?

Zeca – Sem dúvida alguma o Hollywood Rock de 1993. Ver o show do Nirvana da coxia, no próprio palco onde Kurt Cobain cuspia nas câmeras de TV e ameaçava abrir as calças, foi uma experiência insuperável!

Kio  – Falou-se muito de encontros com ídolos. Mas já teve que entrevistar artistas cujo trabalho achava ruim? Ou no mínimo indigno de todo o prestígio?

Zeca – Já… Ô se já… Mas se eu der algum nome aqui tenho certeza de que vou arrumar confusão com algum fã-clube. Não foram muitos – eu diria que nem 5% das entrevistas que eu fiz foram com artistas cujo trabalho eu não admirava. Mas, só pra dar uma pista, quase todos desse grupo não sobreviveram o “hype” dos primeiros discos. Tem uma certa menina que fazia pose de roqueira… Mas deixa isso pra lá!

Thiago Lima de Souza – Levando em consideração tantos artistas “fabricados”, até que ponto o talento prevalece no aspecto da cultura pop?

Zeca – De certa forma continuando a resposta à pergunta anterior… só o talento prevalece. No pop, e em qualquer forma de expressão. Os “fabricados” não duram – são esquecidos logo que passa a “febre”. Já os talentosos, podem sumir do mapa, mas o trabalho fica para sempre…

Márcio Beloti – Dave Cullen acaba de lançar um livro chamado “Columbine”, sobre a tragédia ocorrida há dez anos. A “Time” disse tratar-se de um trabalho de investigação também de dez anos do autor. Você recentemente comentou que seu filme favorito de Gus Van Sant é “Elefante” e dedicou dois posts aos livros de não-ficção. O que lhe atrai em Columbine, o crime? Você seria capaz de dedicar um período importante de sua vida profissional a um único foco como esse, por exemplo?

Zeca – Nada, absolutamente nada me atrai num crime tão hediondo como o de Columbine. Nem a morbidez do massacre. O que me encanta em “Elefante” não é a escolha do tema, mas o tratamento dele – as longas tomadas, os silêncios, a elegância de Gus Van Sant. Agora, se eu me dedicaria a um trabalho nessa linha? Sem dúvida. Mas teria que ser alguma coisa mais original do que “Random family”, de Adrian Nicole LeBlanc. E já que coloquei um patamar tão alto, cadê a coragem para começar?

Luis Paiva – Você tem o hábito de “baixar” algum álbum, ou livro, ou filme nos sites do tipo “torrent”? O que você acha das pessoas que se utilizam desse mecanismo para ter acesso a um pouco da cultura pop ainda tão cara e pouco acessível no nosso glorioso Brasil?

Zeca – Não! Não! E não! Eu sei: e posso me dar o luxo de pagar para consumir esses produtos culturais que eu admiro tanto. É preciso encontrar uma outra fórmula para unir essas duas pontas. Mas acho que essa iniciativa (de oferecer seu trabalho a um público que não tem pode pagar por ele) não pode ser pelo caminho da pirataria. Cabe aos artistas encontrar maneiras de se comunicar com novas audiências (pense em Radiohead, em MySpace, na biblioteca universal que a Google quer disponibilizar). Só assim essa nova relação entre artista e público vai encontrar um novo equilíbrio.

Márcia G – Qual a comida que você provou em suas andanças que mais gostou?

Zeca – Todo mundo só lembra das coisas ruins ou nojentas que eu como nessas viagens… Por isso, obrigado por me dar a chance de falar das coisas BOAS que eu também experimento. Foram várias, claro. Vou destacar apenas duas dessa última viagem. Teve aquele almoço em Baku (Azerbaijão) nesta última volta ao mundo que foi estupendo! E o jantar de despedida de Rose Harbour, perto de Sgang GWaay, no Canadá – uma das últimas etapas da viagem. Essa refeição, porém, acabou nem entrando matéria que foi ao ar… Essa história, só no livro…

Jacqueline Sena – No livro “Novos olhares”, você, diante de tantos pensadores e filósofos com visões diferentes do mundo, teve algum momento em que discordou da opinião de algum deles?

Zeca – Não. O livro é resultado de uma série que fizemos no “Fantástico” em 2007. Os pensadores que escolhemos para fazer parte dela foram selecionados justamente porque eu já tinha achado as idéias deles interessantes. E, ao entrevistá-los, fiquei ainda mais fascinado com aquelas mentes. Não tinha como discordar…

Francisco Filho – Como ser brasileiro moldou e molda seu caráter? Que diferenças você vê entre nosso jeito de pensar e viver das outras pessoas no mundo? (P.S.: Vou conhecer Oaxacaaa! =D)

Zeca – Ter a consciência de que eu nasci e cresci num país que é justamente o fruto de várias misturas culturais me preparou bem para abraçar o diferente pelo mundo. O nosso jeito de pensar permite isso: temos uma curiosidade natural pela diversidade. E isso é que nos inspira a ir para frente! E aproveite Oaxaca!

Henrique Aragão – O que você acha do “fácil” acesso de hoje a “celebridades”? Isso tira um pouco a idealização e o glamour dos astros ou os torna mais humanos e mais “idolatráveis”?

Zeca – A relação entre as celebridades e seus fãs é certamente outra do que aquela da antiga Hollywood – ou mesmo da TV brasileira (para não falar da nossa “era do rádio”…). Mas não é necessariamente uma coisa ruim. Essa aproximação – que muitas vezes é só virtual – é muito mais simbiótica e interessante. Os dois universos estão cada vez mais próximos (pense nos “reality shows”) e, mesmo com todas as confusões que isso pode causar, acho um caminho positivo.

Bruno Andrade – Você concorda que o acaso é um evento que não foi assinado por Deus?

Zeca - Nunca tinha ouvido essa, mas achei uma colocação interessante… nem que seja pelo fato de ela admitir que Deus não “assina” tudo…

Micheline Petersen – Todas essas fotos que você tira, você não pensa em fazer um livro ou melhor uma exposição, ou são apenas para você lembrar desses lugares e esses momentos?

Zeca - Quem dera eu fosse um bom fotógrafo… As fotos que aparecem aqui – e no livro – são bonitas porque os lugares são simplesmente deslumbrantes. Eu diria até “à prova” de um fotógrafo mediano como eu…

Jefferson Pacaembu – Vi você no “Sem censura” (programa da TV Educativa) junto com o César Menotti e fiquei pensando qual é a sua opinião sobre a música sertaneja brasileira. Ela é uma expressão autêntica popular, que habita o gosto de milhões de pessoas no país, mas nunca aparece cotada entre as melhores que já produzimos nas lista de melhores de todos os tempo, por exemplo a sua.

Zeca - Essa é uma discussão interessante. A música sertaneja é mesmo uma “expressão autêntica popular”. Mas é um gênero específico demais (e em vários casos, sofisticado demais) para ser inserido numa lista “pop” – como você apontou bem, nenhuma canção do gênero aparece na minha lista. Aliás, assim, como o jazz também não aparece – e tantos outros nichos musicais… Tudo música boa, mas não exatamente “pop”.

Eurídice Assis – Alguma vez já se sentiu hostilizado ou fizeram você se sentir constrangido por ser brasileiro?

Zeca - Muitíssimo pelo contrário! É o melhor cartão de visitas que um viajante pode ter!

THAÏS HELENA – A impressão que tenho é que você vibra muito nesses lugares (que visita nas viagens), deixando sua marca, sua pegada, fazendo parte de uma história. O que passa na sua cabeça quando você está nesses patrimônios?

Zeca - Puxa, Thais, precisei de um livro inteiro (“Isso aqui é seu!”) para tentar descrever essas sensações – e você quer que eu resuma numa resposta curta? Seria fácil falar que eu chorava todas as vezes que tinha que gravar a abertura das matérias dizendo o nome da série… Mas tem tanta coisa por trás desse choro…

GuGa Guerra – Diga lá: o sentimento de frustração por estar trabalhando em algo tão descartável quanto o jornalismo (e não tome isso como uma crítica, longe de mim) também atinge as “celebridades” midiáticas ou é coisa somente de principiante mesmo?

Zeca - Desde o tempo em que eu trabalhava na mídia impressa, escuto a velha piada sobre a “verdadeira” utilidade de um jornal: embrulhar peixe no dia seguinte… É meio verdade – e vale também para mídia eletrônica. E não vamos nem falar em internet… Mas, quem aprende a gostar de jornalismo sabe que o mais importante no que a gente faz não é exatamente a “imortalidade” da informação que estamos levando, mas o próprio fato de a estarmos levando para outras pessoas.

Juliana – Como eu espero que a resposta seja “sim”, eu pergunto como e quando… Baseado na pergunta da Dinah: você já VIU seu trabalho fazendo a diferença?

Zeca – Tenho algumas histórias de “resultados imediatos”… Como quando eu fazia um quadro no “Fantástico” chamado “Altos papos”, e vários temas discutidos acabavam repercutindo imediatamente nas casas das famílias que nos assistiam. Mas, na maioria das vezes, as reportagens que faço não trazem um retorno instantâneo. Quando a gente trabalha com idéias – sobretudo tenta expor novos valores – é preciso tempo para ver algumas mudanças. Sobretudo quando estou relativamente longe das pessoas que quero fazer refletir.

Edna – Se hoje uma TV te chamasse para fazer um programa de entrevistas no mesmo formato que você fazia na MTV, (aquele que você relata no livro “De a-ha a U2″ e diz que sente saudades), estaria pronto a aceitar?

Zeca – Ah Edna, assim, não vale… estás lendo mentes à distância?

Lia – Encontrei (em um site de poesias) uma poesia com o título “Chega de Chega de Saudade”, e, logo abaixo tem assinado o seu nome. E a data do site é de 1999. Gostaria de saber se a poesia é sua.

Zeca – Nossa! Nem eu lembrava disso!! Acho que publiquei isso há anos na “Capricho”, com um belo alerta que era algo que eu havia feito na adolescência… Se ela transcendeu de um mero manifesto juvenil para algo que vale a pena ser resgatado para tocar outras pessoas (como aprendi uma vez com um certo compositor que admiro muito e que deu um curso sobre Fernando Pessoa numa redação onde eu trabalhava, o que faz de uma poesia banal arte é a universalidade dos seus versos), isso é com você… Por causa desse comentário da Lia, fui buscá-la na rede. E tive tomado de uma intensa onda de lembranças (sem, contudo, conseguir ter a certeza de quem era o objeto do tal poema…). Coisas assim que me deixam feliz de viver num tempo em que existe uma coisa chamada internet, que, entre outras coisas, permite uma troca como essa que a gente fez esta semana.

Segunda, voltamos à velha forma… que, aliás, de velha não tem nada! Novidades, sempre! Meu sincero obrigado – afinal, foi mais divertido do que eu pensava…

Por onde começamos?

seg, 13/04/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Então vamos para o que o Nunes Figueira chamou de “egotrip”, mas eu prefiro encarar como um raro exercício de interatividade numa área que é quase que exclusivamente unilateral – a dos blogs. Como você talvez tenha acompanhado na semana passada, convidei você e outros caros leitores para participar de uma grande “entrevista coletiva”, numa tentativa saudável de inverter um pouco os nossos papéis. Fiquei, claro, felicíssimo com o resultado – sobretudo porque, como expliquei no texto anterior, ultimamente, ao ler uma entrevista, me interesso mais pelas perguntas do que pelas respostas. Os 167 comentários que chegaram – pelo menos até o momento em que postei este texto – resultaram em quase trezentas perguntas. E a maior parte muito boa!

O que, claro, causou um agradável impasse. Como responder a tudo? Nem a “folga” da Páscoa seria suficiente para tal tarefa hercúlea – nem mesmo (já respondendo a uma pergunta recorrente, sobre como eu arranjo tempo para fazer tanta coisa) me desdobrando em poucas horas de sono e aproveitado qualquer corrida de táxi para ler/escrever/ouvir as coisas que me interessam. Assim, evoquei a sabedoria de uma antiga editora minha na “Capricho” (além de grande amiga), que não se cansava de repetir que “editar é escolher” – e tive de fazer uma seleção.

Assim, caro, cara, algumas perguntas que vocês mandaram não serão respondidas aqui hoje – desculpe. Quais serão? Não necessariamente apenas as melhores, mas, como deixei claro na proposta, as mais instigantes – não apenas para mim que vai respondê-las, mas também para quem vai ler minhas respostas. É fácil por exemplo dizer quantos países já visitei (82), mas aonde isso nos leva? Preferi assim responder a coisas que podem levar nossas discussões adiante – além de ter incluído na minha seleção uma ou outra pergunta pelo mero prazer inconsequente de respondê-la (ou mesmo por uma razão inexplicável).

Para pegar emprestado de David Foster Wallace – autor americano que, injustamente, só tem um livro traduzido para o português (“Breves entrevistas com homens hediondos”, Companhia das Letras) -, liberdade é “ter consciência e noção suficientes para escolher no que prestar atenção e escolher como você vai construir significado para as experiências”. Wallace, que se suicidou no final do ano passado, disse isso numa palestra em 2005 – que foi citada num artigo recente da “The New Yorker”, e eu não podia estar mais afim de exercer essa liberdade do que agora.

Por onde começamos? Pelo começo, claro, com o primeiro comentário recebido – e daí em diante, com o nome de quem mandou o comentário, a pergunta reproduzida (e eventualmente editada), e, em seguida, minhas “divagações”. Espero que (“façam como eu digo, mas não como eu faço”) vocês se divirtam também com as respostas… E que os barbantes que me amarraram nos pulsos quando passei por Luang Prabang me protejam!

Caio – Se você tivesse que escolher entre os países mais pobres que foi visitar, em qual deles moraria?

Zeca - Índia – se é que esse ainda se “qualifica” como um país pobre. É uma das culturas mais fascinantes que já visitei – uma que eu realmente gostaria de penetrar mais e mais. Mas, se como o nosso Brasil, você considerar que a Índia está num outro patamar (já ouviu falar de BRIC, né?), acho que escolheria então São Tomé e Príncipe, na África.

Sergio Vitorino Gonçalves – Você teve problemas de adaptação na sua estadia em Nova York? Foi difícil e demorada a sua inserção na cultura e nos hábitos diferentes desse novo país?

Zeca - Morei lá em 89, e cheguei tão assustado, que fiquei mais de um mês com medo de usar o metrô (mané…). Ao mesmo tempo, foi a própria Nova York que me ensinou a ser “cidadão do mundo”: algumas semanas depois, eu já me sentia o dono da cidade. E não há lugar melhor para você absorver – e transmitir – diferenças culturais.

Marcelo Pacheco  – 1) O médico diz: “Zeca, você vai ficar surdo para sempre daqui a cinco minutos”. Que música você escolheria para ouvir? 2) É seu aniversário. Qual faixa abriria a festa?

Zeca - 1) “Nights of the living dead”, Tilly & the Wall; 2) “Come together”, Primal Scream.

Rodrigo Basso – Com certeza você já entrevistou artistas que você é muito fã do trabalho que eles desenvolvem, certo? Como é a sua percepção do trabalho desse artistas antes e depois da entrevista, ou seja, a forma como o artista se comporta durante a entrevista muda o seu jeito de analisar e absorver a sua arte?

Zeca – Foram vários “ídolos” entrevistados, e a atitude deles durante a entrevista faz toda a diferença – mesmo que ela não seja das mais simpáticas. Às vezes a arrogância de um artista só me faz admirá-lo mais – como foi o caso do Damon Albarn, do Blur (ou não: o “famoso” cano do Chris Martin, do Coldplay, traduziu-se como pouco profissionalismo). Mas tudo é uma questão da postura do entrevistado: nossa função é despertar interesse dele/dela de conversar – e quando isso acontece (como com o Kurt Cobain, Sting, Bono – e até Courtney Love), é o próprio Nirvana (sem trocadilhos, por favor).

Mara Vanessa – A possibilidade de acúmulo e troca de experiências através de blogs, por exemplo, não reduz todas as expectativas e conteúdos ao mero senso-comum? Há como fugir disso?

Zeca - Uau… Vamos lá: o senso comum sempre existiu (e sempre vai existir). O que é interessante, em tempos de blog, é que hoje ele é mais transparente. Temos o privilégio de viver numa época em que podemos ter a consciência de participar de um processo desses. E simplesmente não consigo achar isso uma coisa ruim.

Eu – Minha pergunta: o que você ouvia na sua casa de infância? Essa diversidade musical veio de lá?

Zeca – No “playlist” lá de casa era MPB direto. Lembro-me de vários Clara Nunes, Antônio Carlos e Jocafi, Toquinho Vinicius e Maria Creuza, Elizeth Cardoso, Maestro Erlon Chaves e Banda Sabor de Veneno (!), Chico e Caetano, só Chico (mas não só Caetano, curiosamente), e uma coletânea de músicas com a Banda do Canecão que se chamava “100 anos de Carnaval”- e que marcou muito o pequeno Zeca…

Henrique Mendes – Quando você entrevistou o Cazuza e ele te revelou sobre a doença, qual foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça?

Zeca – Que eu teria de mudar a pauta! Não fui lá para ouvir aquilo: achei que seria apenas mais uma entrevista em que ele não revelaria nada. Tive que, em questão de segundos, improvisar todo o resto da conversa para uma nova direção. Você sempre tem que estar pronto para ouvir o que o entrevistado te fala – e, se for necessário, repensar toda a pauta.

Célia Maciel – Para você qual seria o primeiro passo para que a humanidade caminhe em direção à solução pacífica de conflitos?

Zeca - Perceber que o fato de você ter nascido num território político, numa família com determinada situação financeira, num contexto de uma religião, num quadro em que você não passe fome (por exemplo, entre tantas privações), é tudo uma questão de acaso. Você poderia ter nascido do outro lado do próprio muro que você está jogando pedra…

Joana – Você já escreveu alguma vez na vida uma poesia?

Zeca - Sem contar as da adolescência (por que a gente acha, quando é adolescente, que é a poesia que vai nos redimir?), escrevi algumas ainda na faculdade (muito influenciado pelo meu tio Cacaso, que foi um grande poeta). De vez em quando ainda as leio, mas acho que sobram poucas para a “posteridade”…

Marcos Macon – Em todo o tempo em entrevistas, qual foi a que você mais ficou paralisado do tipo “não acredito que estou na frente dele(a)” e como foi que você conseguiu dar a volta?

Zeca - Passei por isso só uma vez, como conto no livro “De a-ha a U2″. Foi com o Michael Stipe, do R.E.M. – e foi uma bela lição. Ele percebeu que eu estava “tietando” e encerrou a entrevista abruptamente. Nunca repeti o erro…

Pedro Garcia – Você já criou algum vínculo pós-entrevista com alguma celebridade (tipo: ir pra balada, jantar, conversas no telefone etc.)?

Zeca - Não rola mesmo! Como gosto de insistir, essas entrevistas são encontros de trabalho. Acabou? Acabou! Entra o próximo entrevistador – e a fila anda…

Dinah – Por que ainda não se arriscou na ficção?

Zeca - Não foi à toa que citei David Foster Wallace no texto de hoje… Escrever ficção é um processo exaustivo e que exige uma dedicação da qual eu acho que não seria capaz – por enquanto. Não faltam idéia de histórias, porém…

Sonia – Nas suas andanças mundo afora, o que te deixou deslumbrado? E o que te deixou chocado?

Zeca - Fico sempre deslumbrado em ver como as pessoas são parecidas. E chocado de perceber como elas se acham diferentes…

Andréia – Como nesse tempo de blog você já fez alguns “experimentos” quanto à apresentação dos posts (fotolog, twitter…), estaria disposto a testar um post sonoro? Um “podcast” de vez em quando?

Zeca – Só para registro… não é uma má idéia…

Flávio Kleen – Há possibilidades de, em um dia não tão distante, a grande massa ter acesso (digo, compreender), realmente, ao que interessa (conteúdo deste blog) – ou será que pregaremos, sempre, para gatos pingados?

Zeca - Posso ser simplório, mas acredito que os gatos estão cada vez menos pingados… Um exemplo rápido: encontrei gente no show do Radiohead que não conhecia nenhuma música da banda – tinham ido só para ver Los Hermanos. Isso é que eu chamo de contaminação! Junior (sim, da Sandy) sonha em ser Lenny Kravitz. Vik Muniz leva multidões aos museus. As pessoas estão lendo (sim, blogs). E a quantidade de pessoas que passam por aqui e deixam comentários do tipo “nunca achei que você tivesse uma coisa interessante para dizer”… Então, mesmo ciente de que esse otimismo vai acabar comigo, eu prefiro acreditar que, como diria Martinho da Vila, a vida vai melhorar…

Adriana – Já tive a oportunidade de ver uma entrevista sua pela Marília Gabriela e posso dizer que vocês chegaram ao nível da “conversa”. É fácil chegar a esse nível com você nas entrevistas mesmo a pessoa não sendo conhecida?

Zeca – Fácil não é. Mas quando a gente chega lá (como nesse exemplo que você citou), deixa de ser entrevista e vira conversa. E aí sempre é bom. Lembrando que o mérito disso é sempre do entrevistador (e viva Gabi!).

Edna Marques – Por que você nunca escreveu sua auto-biografia?

Zeca – Está lá nos planos mais remotos… Mas por enquanto esse projeto de biografia só tem o título: “Más notícias”.

Andressa Frós – Axl Rose (numa entrevista para Kim Nelly, em 1992, no auge do Guns N’Roses): “E então minha mãe teve uma filha. E meu padrasto a molestou por cerca de vinte anos. E batia em nós. Me batia constantemente. Eu achava que essas coisas eram normais”. E se fosse você o entrevistador, Zeca? Que tipo de comentário você teceria após uma “revelação” dessas? Ou apenas passaria para outra pergunta?

Zeca - Veja a resposta para a pergunta do Henrique Mendes

Gisele Waltschanoff – Esse blog é super visitado, sempre há muitos posts e posso afirmar que é um sucesso. Você acredita que esse sucesso todo é devido a sua interação? Ou devido apenas aos assuntos?

Zeca - Acho que é uma combinação das duas coisas. Quando comecei a escrever este blog assumi comigo mesmo um compromisso de nunca ser previsível. E acho que os leitores se sentiram respeitados com isso – e vieram! O compromisso, claro, está mantido.

Sandro Caldas -É possível ouvir emocionado uma música que racionalmente não gosta?

Zeca – A gente só pode dizer que não gosta de uma música depois de ouvi-la. Assim, a emoção vem sempre antes do “gostar ou não gostar”. São processos diferentes – e me divirto com os dois.

CAMILETBARTENDER – Supondo que a sua opinião sobre a violência, não só no Brasil, mas também em todo o mundo, pudesse ser explicada através da música, qual seria a sua trilha sonora?

Zeca - “Rise”, do PIL

Andréia – De todos os álbuns do “Tintin” qual é o seu favorito?

Zeca - Delícia de responder: “As jóias da Castafiore”. Não! É “O lótus azul”. Espera! É “Rumo à lua”. Humm… “As sete bolas de cristal”, talvez?

AQUELA MENINA – Se você tiver que escolher um único livro para ler por toda vida, que livro você escolhe? Uma única música? E o único filme?

Zeca - Perguntas de uma crueldade insensível para com um entrevistado tão gentil… Se tive dificuldade em selecionar 1000 músicas, imagine reduzir essa escolha a um título só… Meu problema com esse tipo de pergunta é que as interpretações a partir dela são sempre parciais e injustas. Uma pessoa pode ser julgada por três indícios culturais? Por exemplo, virando o jogo, o que você pensaria de mim se eu respondesse: “Auto-da-fé”, de Elias Canetti, “Upside down”, do Jesus and Mary Chain, e “A rosa púrpura do Cairo”, de Woody Allen? Ou: “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector, “Say a little prayer”, de Aretha Franklin, e “Happy together”, de Wong Kar Wai? Ou ainda: “Um delicado equilíbrio”, de Rohinton Mistry, “Im Abendrot”,de Richard Strauss (cantada por Jessie Norma), e “Aperte os cintos, o piloto sumiu”, de Jima Abrahams e David Zucker? Três retratos completamente diferentes, concorda? E, no entanto, três retratos meus…

Ana Lima – O título do epílogo do seu último livro é uma pergunta: “Quando será a próxima?”. Esta seria um prenúncio de uma nova aventura?

Zeca – Já tenho dois projetos diferentes para dar outras voltas ao mundo. Ele é um só, mas é impressionante como podemos “recortá-lo” de jeitos infinitos para poder explorá-lo…

Marcelo Menoli – Marcelo – Cara, você acha que teria essa mesma cultura que vc tem hoje, se por um acaso você não fosse o Zeca Camargo do Fantástico. Se você fosse só o Zeca Camargo de Uberaba, você seria o mesmo Zeca up-to-date?

Zeca - Muito provavelmente – sobretudo hoje, com esta ferramenta maravilhosa que é a internet. Essa curiosidade – que me move – depende menos do que eu faço (com o que eu trabalho) do que quem eu sou (como eu sou). Prova disso é que já encontrei gente assim em Colombo (no Sri Lanka), em Bucareste (Romênia), em Siam Reap (Camboja) e até em Soure, na Ilha do Marajó…

Camila Nardini – Você já fez inúmeras matérias ao redor do mundo, existe algum lugar que você não gostaria de voltar nunca mais?

Zeca - Uma vez falei num programa de TV que não queria voltar a Angola – e fui surpreendido quando alguém na platéia, que era angolana, disse que eu deveria voltar à Luanda, pois a guerra civil que eu havia visto tinha acabado e o clima era de esperança. Assim, aprendi que não existe “país ruim”, mas “épocas ruins para visitar um país”.

Angélica Santini – E você falou também que adorava dar aulas de dança, mas porque resolveu tornar-se jornalista?

Zeca – A culpa é do acaso… sempre do acaso. Como tudo na minha vida – inclusive a própria dança – aconteceu por acaso. Aliás, quem disse que não posso voltar a dar aulas de dança um dia?

Heverton Nascimento – Você acha que o jornalismo cultural (cultura pop, no caso) com esse formato “Rolling Stone”, Zeca Camargo, Lúcio Ribeiro, vai acabar ou deixar de interessar às pessoas?

Zeca - Se acabar, não quero estar nesse mundo. Vou me divertir com o quê?

Dinah – Na primeira parte do seu novo livro (“Isso aqui é seu!”, Editora Globo), você disse que muitas vezes, chorava diante de tanta miséria! Você sente vontade de ajudar de alguma forma, essas pessoas tão necessitadas?

Zeca - Claro. Mas a ajuda pontual (um esmola, um dinheirinho ali…) ajuda por um momento, mas não resolve nada. Como jornalista, acho que ao mostrar uma realidade que mexeu comigo – e julgar que ela vá mexer também com outras pessoas – estou de certo forma ajudando a criar uma consciência (que é, afinal, o papel de uma mídia responsável). Essa é a minha parte.

Fred – Essa naturalidade é algo próprio do seu jeito de ser ou foi algo construído ao longo do tempo do tipo que no início você não transmitia espontaneidade?

Zeca - Sou um péssimo ator (quem me viu na minha única incursão pelo teatro, lá nos idos de 1994, pode comprovar isso). Não daria para ser diferente, nem construir nada que não fosse eu mesmo.

Fernanda Rabelo – Você se acha capaz de transformar uma entrevista com uma pessoa comum em algo mais que “interessante”?

Zeca - E como! Um dos trabalhos mais legais que já fiz foi a série “Novos olhares”, no “Fantástico, em 2007. Nela, entre escritores e professores discutindo temas atuais com profundidade, conseguimos apresentar personagens fascinantes – e que eram pessoas comuns. Comuns e maravilhosas. Só para dar um exemplo, você pode conferir aqui o episódio sobre “Felicidade”. Dona Maria Luiza simplesmente “não existe”…

Robson Maciel – Zeca, existe alguma música que quando você ouve ou lê a letra “bate” em você uma vontade de ter feito?

Zeca - “Bella”, Lorenzo “Jovanotti”. Especialmente pelo verso que diz “come la mia nonna in una foto da ragazza”…

Acabo de perceber que esta coletiva está um pouco longa… E ainda falta uma boa parte das perguntas que eu separei para responder… O que inevitavelmente quer dizer que vamos deixar o resto para quinta-feira (o que significa, claro, que tem um “chorinho” para quem quiser perguntar alguma coisa a mais…). Assim, na quinta retomamos, certo? A conversa está boa…

Letras de música (2)

seg, 06/04/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

O primeiro capítulo que fui conferir em “As melhores entrevistas da Rolling Stone” (Larousse) foi o de Kurt Cobain – uma das figuras mais interessantes que já apareceram na história do pop (rock), e cuja morte, há quinze anos (quinze anos!), é lembrada nesta semana (numa triste coincidência para mim, uma vez que seu corpo foi encontrado no mesmo dia do meu aniversário). Como o entrevistei (lá nos idos de 1993), eu tinha uma curiosidade natural de conferir o que ele havia dito. Sabemos que cada entrevista é um evento único, regido sempre por uma química incerta (o humor de um artista pode mudar em questão de minutos, de uma sessão de perguntas para a outra), e, por isso, é quase impossível comparar dois resultados. Mesmo assim, nós jornalistas não agüentamos: temos que saber o que aquele cara, aquela cantora, disse para o nosso “colega”…

Cheio de vontade como estava, quase desisti do texto, porém, quando percebi que a tradução poderia ser um obstáculo. Ao responder a David Fricke sobre a ausência de “Smells like teen spirit” num show em Chicago, Kurt disse que tocá-la “teria sido como jogar gelo no bolo”. Já ouviu isso antes? Em algum lugar da minha memória, resgatei a expressão em inglês “icing on the cake”, que significa algo como “colocar a cobertura no bolo”. Só podia ser isso que Kurt Cobain queria dizer! Senti ali que a tradução do livro (que em mais de um momento parece ser feita por um programa de computador) não era das melhores… mas fui em frente – e me senti recompensado (e não só com esse capítulo).

De fato, Kurt contou ali coisas que não havia falado para mim – por exemplo, que ele era grande fã dos Beatles (na nossa conversa discutimos Mutantes!); e que sua dor de estômago já tinha despertado nele a vontade de se matar (nós só falamos da dor de estômago). Mas, tentando me consolar, digo a mim mesmo que nenhuma entrevista é universal. Nenhuma conversa é capaz de conter todos os assuntos – nem mesmo as da “Rolling Stone”. O que não as torna, claro, menos interessantes…

No final de sua entrevista, Kurt, ao falar do próprio Nirvana, dá – certamente involuntariamente – um conselho que muitas bandas deveriam acatar:

“Eu odeio ter até mesmo que dizer isso, mas não vejo essa banda durando mais do que uns dois álbuns, a menos que comecemos realmente a ficar experimentais. Quero dizer, vamos encarar a coisa. Quando as mesmas pessoas estão juntas fazendo a mesma coisa, elas são limitadas. Estou realmente interessado em estudar coisas novas, e sei que Krist e Dave (Novoselic e Grohl, respectivamente – seus companheiros de banda) também. Mas não sei se somos capazes de fazer isso juntos. Não quero lançar outro disco que soe exatamente como os outros três”.

Precisa ter um pouco de coragem para declarar isso no auge da carreira. Ou coragem ou lucidez. De preferência despertada por uma pergunta inteligente – ou, no mínimo, provocadora. E essa coletânea da “Rolling Stone” está cheia delas. Não se trata, nem de longe, do mesmo tipo de entrevista que discuti no último post (reunidas em “O som do Pasquim”). Para começar, trata-se de um cenário diferente: o da cultura americana, onde esse tipo de encontro entre imprensa e artista é extremamente coreografado. Depois, mesmo nas mais antigas (a de John Lennon, por exemplo, é de 1971; a de Brian Wilson, de 1976), a preocupação com a imagem, típica dos americanos, não favorece bastidores que transpirem nem uma fração do porre que a turma de “O Pasquim” tomava com seus entrevistados.

Nesse quadro “contido”, o que conta então não é a espontaneidade da conversa, mas a astúcia do entrevistador para perguntar o inesperado. Não de forma direta, transgredindo um acordo pré-entrevista que geralmente proíbe determinado assunto (algo de praxe nesse meio, especialmente no que se refere à “vida pessoal”). Mas de maneira sutil e engenhosa, dando a impressão de que é o entrevistado que quer falar daquilo espontaneamente. Esta é, de fato, a arte da entrevista.

Não é de hoje que desenvolvi um hábito curioso ao me deparar com uma entrevista no formato “ping-pong”: eu leio a pergunta, e, se não for interessante, pulo para a próxima. Sério: se for uma pergunta convencional, já aprendi que a resposta também o será. Para que vou perder tempo em ler uma coisa que o artista já falou dezenas de vezes e que vai estar provavelmente sem saco para responder? Isso tem a ver, claro, com meu próprio esforço ao exercer minha atividade: eu assumo um compromisso pessoal de não ser o entrevistador número 437. Principalmente depois de ter assistido o documentário “Meeting people is easy” (1999), feito durante a turnê mundial do Radiohead na época do sucesso “OK computer”…

Resumindo bem esse trabalho genial, boa parte do filme era uma simples colagem de entrevistas que a banda fazia nos países por onde passava. E o balanço do documentário era devastador – pelo menos para os que abraçam essa minha profissão: a maioria dos jornalistas parece que pode ser dividida em duas categorias (ambas devastadoras). A primeira é a dos que fazem sempre a mesma pergunta, aqueles cuja pauta é “de gaveta”, sem a mínima preocupação com a originalidade, e muito menos com o que o entrevistado responde. A segunda peca pelo oposto: é criativa demais – ou pelo menos tenta ser, com perguntas absurdas (que eles devem achar que são… inusitadas!) e brincadeiras que talvez parecessem engraçadas numa conversa informal num bar, pensando com os amigos como seria a entrevista, mas que simplesmente não funcionam na interação com o artista.

Felizmente há sempre a minoria, que por brilho ou excelência (sempre quis escrever um post onde eu pudesse usar essa expressão!), arranca momentos inesquecíveis dessas mentes brilhantes – e conseguem não apenas oferecer uma entrevista que encanta os fãs, como também tirar dez na difícil lição de não provocar seus perenemente aborrecidos entrevistados. E, voltando à coletânea da “Rolling Stone”, ali estão vários exemplos disso. Para não tirar o prazer da sua possível leitura, vou assinalar só alguns deles, apenas para provar que entrevista boa é aquela que: 1) o repórter faz a pauta, mas está sempre disposto a abandoná-la se o entrevistador sugere algo mais interessante em uma de suas respostas; 2) o repórter ouve e interpreta o que o entrevistado fala, e, por isso mesmo, pode aplicar livremente o mandamento anterior; 3) pode ser classificada mais como conversa do que como entrevista.

Como a certa altura da conversa com David Felton, quando, falando de drogas, Brian Wilson (o “mitolológico” líder dos Beach Boys) inverte os papéis e entrevista o entrevistador:

“Wilson – É que quando você experimenta drogas, você gosta delas e você as quer. Você toma drogas?

Felton – Sim, eu as experimento.

Wilson – Mesmo? Você cheira?

Felton – Claro.

Wilson – Foi o que pensei. Você tem alguma coisa aí contigo?

Felto – Não.

Wilson – Esse é o problema. Você tem alguma anfetamina?

Em fase de “detox” – pelo menos declarada (a entrevista é de 1976) –, você logo percebe que Wilson está brincando. Mas a franqueza de Tina Turner (entrevistada por Nancy Collins, em 1986), falando sobre a relação “ligeiramente” doente que tinha com seu marido Ike Turner é bem real – e emocionante: “Não queria uma vida horrível, mas fiquei presa em uma”. Assim como é “ligeiramente” chocante a transparência de Axl Rose (numa entrevista para Kim Nelly, em 1992, no auge do Guns N’Roses): “E então minha mãe teve uma filha. E meu padrasto a molestou por cerca de vinte anos. E batia em nós. Me batia constantemente. Eu achava que essas coisas eram normais”. E ainda tem a briga (e a reconciliação) entre Mick Jagger e Keith Richards – esclarecida na entrevista do vocalista dos Rolling Stones ao próprio editor da revista, Jann S. Wenner (em 1995)…

Mas vou parar por aqui, ressaltando que o não inclui apenas astros do rock, mas também do cinema americano (Jack Nicholson, Robin Williams), grandes diretores (George Lucas, Francis Copolla, Spike Lee), escritores (Truman Capote, Tom Wolfe), e até uns “coringas”, tipo o Dalai Lama e Bill Clinton!

Antes de encerrar, no entanto, só quero retomar aquela “inveja” que mencionei no último post, esclarecendo que, depois de ter lido esse livro da “Rolling Stone” e o de “O Pasquim”, fiquei ainda mais inspirado para as minhas próximas entrevistas – que eu ainda nem sei com quem serão. Talvez eu jamais vá reviver um clima de informalidade dos encontros do jornal carioca, ou ter a chance de esmiuçar o pensamento um grande nome da cultura pop como a revista americana um dia já fez. Mas sigo tentando ser original. Em respeito aos artistas – e a você, que vai ler (ou ver, ou ouvir) esse sempre imprevisível jogo de perguntas e respostas.

Aliás, por falar nisso, não achei de todo má a cara de pau (sic) do Marcelo Menoli que, no seu comentário sobre o post anterior, resolveu preencher o resto do tempo do seu expediente de sexta-feira “brincando” comigo de entrevista do “Pasquim”… Como já disse, hoje me divirto mais em ler perguntas do que respostas – e têm algumas ali interessantes (se bem que eu recomendaria mais rigor na apuração… morei em Nova York não em 87, mas em 89, como contei aqui mesmo no blog). Eu diria que até fiquei tentado a responder uma ou outra…

Por isso, queria propor (mais) um pequeno exercício interativo, que pode ficar interessante: vou abrir espaço para você me entrevistar. Como nesta quinta-feira não vou postar nada (considere uma “folga de aniversário”…), você tem uma semana para me mandar uma pergunta (ou mais). Mas tem que ser instigante o suficiente para que eu me interesse em respondê-la, ok? Como? Bem, passei boa parte deste post falando nisso. Mas se precisar de mais alguma dica, ainda que seja do que não mandar, eu diria para você deixar de lado seu instinto adolescente de fazer uma pergunta engraçadinha… Essas nem serão publicadas nos comentários – muito menos respondidas. De resto, use a sua criatividade – mas não muito (lembre-se do Radiohead!) –, sua inteligência, ou mesmo sua malícia. Lembrando, claro, que este é um blog sobre cultura pop.

Vou escolher as mais interessantes para que a gente possa, na próxima segunda, fazer o que, no jargão do jornalismo, a gente chama de “uma grande coletiva”.

Boa Páscoa! Sou todo ouvidos…

Letras de música (1)

qui, 02/04/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Não é fácil eu sentir inveja – sobretudo no que se refere à minha atividade profissional. Mas lendo esta semana um livro chamado “O som do Pasquim” (Desiderata), que acaba de ser lançado, fui tomado desse vil sentimento. Quer dizer, não é bem uma inveja, mas algo que ainda não inventaram uma boa palavra para definir – uma espécie de saudade de um tempo em que não se viveu. Reunidas neste volume, encontrei dez entrevistas com nomes importantes da música popular brasileira: de Tom Jobim a Raul Seixas, passando por Caetano Veloso, Chico Buarque – e até (antes que você entre em choque ao descobrir que esses nomes estão entre os “importantes da música brasileira”, é bom falar logo), Waldick Soriano e Agnaldo Timóteo.

E essa estranha inveja que senti não foi exatamente pelos artistas entrevistados – eu bem que adoraria ter tido a chance de falar com Raul Seixas, mas, já tendo eu conversado com boa parte do nosso elenco estelar (e registrado isso também em livro), essa não é a questão. O que me deixou passado foi a maneira como as entrevistas eram conduzidas, num clima – e numa intenção – que atualmente seria simplesmente impensável. Por mais de um motivo.

Hoje em dia, com a (bem-vinda) explosão de mídia, os pedidos de entrevistas a um artista quando está em época de um show ou um disco são tantas que nenhum ser humano teria tempo (que dirá paciência) para atender a todos – apenas para registro, estou em fase de lançamento de outro livro, e quantidade de pedidos de publicações (de papel e virtuais) para um “bate-papo rápido” é impressionante!

Depois, tem a própria pauta das entrevistas de “O Pasquim”. Hoje, protegidos por assessores de imprensa, “administradores de imagem”, agentes, empresários, e “treinadores de entrevista” (sim, essa função existe: uma pessoa faz entrevistas de mentirinha com artistas – e às vezes até com empresários – para que ele não caia em armadilhas de “perguntas perigosas” que os “malvados jornalistas” estão ávidos para fazer!), artistas, músicos, atores e atrizes, celebridades e quejandos respondem “apenas perguntas relacionadas ao seu trabalho” (você já deve ter ouvido falar de pessoas que pedem para que o repórter mande as perguntas antes para que elas sejam aprovadas, e eu posso garantir que isso não é uma invenção). E depois ainda tem a própria duração das entrevistas de hoje, que, por um estranho cálculo tem seu tempo cada vez mais reduzido numa relação inversamente proporcional à grandeza da estrela que será entrevistada…

Nada disso acontecia nas entrevistas de “O Pasquim”. Para os mais jovens que eu – que devo pertencer a última geração que esbarrou nessa publicação (isso graças a longínquos verões no Rio de Janeiro, quando ficava hospedado na casa de um tio meu – e padrinho – que era professor de literatura da PUC carioca, além de poeta e letrista, e que tinha toda a coleção) -, esse era o jornal alternativo mais importante dos anos 70. Ele começou a ser publicado no Rio, em 1969, por um time que não só definiu a cultura carioca naquela época, como também o jornalismo: Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Jaguar, Ivan Lessa, Millôr Fernandes, Sérgio Augusto, Paulo Francis, entre outros – sem falar nas colaborações de nomes como Gláuber Rocha, e o próprio Chico Buarque. Os anos da ditadura militar formaram o “período de ouro” de “O Pasquim” – que sobreviveu bravamente até o início dos anos 90, mas já sem nenhuma expressão, sequer a mesma relevância que tinha na sua primeira década.

Referência da intelectualidade de então, ser entrevistados pela equipe de “O Pasquim” era um privilégio, não apenas pelo próprio prestígio da publicação, como pelo prazer de participar de uma conversa interessante, já que o tipo de entrevista que eles faziam não tem nada a ver com a massificação das assessorias de imprensa de hoje. Sentados em volta de uma mesa – de preferência, de um bar -, regados com drinques ilimitados, os entrevistadores estabeleciam uma clima para lá de informal com seu entrevistado. E os resultados, claro, eram momentos únicos de espontaneidade – insisto, difíceis de imaginar no mundo de hoje. Por exemplo, acompanhe este trecho da entrevista com Chico Buarque (de novembro de 1975), quando depois de contar como foi acordado pela polícia dentro de sua casa, o grupo faz pausa para mais um pedido no bar:

“Ivan – ‘Você só se politiza depois que for acordado às três da manhã com a polícia batendo na sua porta’. Bertold Brecht

Chico – Brecht falou por mim. (para o garçom) Traz uma caipirinha de vodca, pouco açúcar.

Jaguar – Duas! Pouco açúcar!

Ziraldo – Registro: o Chico já tomou Fernet Branca, chope e agora vai de vodca.

Chico – O chope é pra quebrar o Fernet, que, sozinho, dá dor de barriga. Tem que tomar os dois.”

Você consegue imaginar um diáologo assim publicado hoje em algumas dessas revistas de celebridades? Ou mesmo num jornal? Com quem? Com os bons moços (e moças) que dominam as nossas rádios? Duvido…

O grande barato dessas entrevistas, porém, não era a “indiscrição” de ver os grandes ídolos da MPB “comportando-se mal” – isto é, bebendo sem pudor. É o que aquela atmosfera de informalidade permitia revelar. Logo depois de pedir a capirinha, Chico conta de uma “fase ruim” de sua carreira, logo depois de o sucesso de “A banda”:

“Chico – Não aconteceu nada, começou a esfriar tudo. O segundo disco já não foi gravado, o show prometido já não pintou. Aí começou o horror.

Ivan – O que foi esse horror?

Chico – Começou o negócio de ter de trabalhar.”

Ou ainda, lembrando de um programa antigo de TV, “Essa noite se improvisa”, onde os convidados tinham de cantar uma canção em cima de uma palavra sugerida, Chico confessa que chegou a inventar uma música e depois acrescenta:

“Chico – Vinicius era engraçadíssimo. Sempre distraído na hora de apertar o botão. ‘A palavra é: Garota.’ Aí o Vinicius: pããã! Foi cantar, felicíssimo. ‘Olha que coisa mais linda, mais cheia…’ (Chico não consegue cantar de tanto rir) Não tem ‘garota’! Era Garota de Ipanema…

Agência Estado

(Crédito: Agência Estado)

Sabe quando seria possível chegar num nível de descontração desses hoje? Bem, eu não diria nunca – já consegui cá e lá alguns momentos assim… Mas que é bem mais raro, isso é…

Todas as entrevistas da coletânea tem momentos preciosos como este – e estranhas coincidências. Como as revelações de visão de discos voadores: “Eu vi uma vez em Santo Amaro, quando eu era menino, na porta da minha casa. Eu e minha irmã mais velha vimos. Passou no céu uma coisa prateada, redonda e rápida” (Caetano Veloso); “Foi… era meio assim… prateado. Mas não dava para ver nitidamente o prateado, porque tinha uma aura alaranjada, bem forte em volta. Mas enorme, entre onde eu estava e o horizonte”(Raul Seixas).

Ou ainda, a opinião sobre os “hippies” (que, acredite, ainda eram discutidos em meados dos anos 70) compartilhada por Moreira da Silva e Waldick Soriano: “Eu não gosto não. Esse negócio de roupa suja e piolho não dá pé. O negócio é botar Neocid na roupa deles…” (Moreira); “Hippie é marginal, é maconheiro, é safado. Eu sou contra” (Waldick). Aliás, por falar em “ser radical”, o mesmo Waldick dispara essa quando perguntado por Jaguar se “as mulheres têm o mesmo direito que os homens”:

“Waldick – Em que ponto?

Jaguar – Em todos os pontos.

Waldick – Em todos os pontos não pode, entende? Pra começar a mulher é fêmea. A fêmea é comandada pelo macho, entende? Isso vem desde o princípio, você pode observar até os animais. Num casal de passarinhos, o macho manda na fêmea, a vaca teme o boi, é assim…”

E já que estamos na fronteira do politicamente correto, veja esse interlúdio entre “O Pasquim” (nesta entrevista, ninguém assina as perguntas) e Lupcínio Rodrigues:

“O Pasquim – Sempre que a gente se vê, você está acompanhado de mulata. Você tem algum preconceito de cor, ou realmente é do nosso time e gosta de mulata?

Lupcínio – Pelo contrário, dificilmente estou acompanhado de mulata. Não sei por que, não dou sorte com mulata”.

E, numa “dobradinha” espontânea, mais adiante no livro, Millôr pergunta a Agnaldo Timóteo:

“Millôr – Mário de Andrade, esse que escreveu ‘Macunaíma’, era mulato. Ele dizia que o mulato brasileiro é sestroso, pernóstico e pachola. Você se coloca em algum deles?

Agnaldo – Pernóstico eu sei o que é; sestroso me parece que é um cara malandro; agora, pachola define exatamente a pessoa que escreveu: é um antipático, não sabe de nada”.

É na entrevista de Timóteo, aliás, que são ditos os maiores (e mais deliciosos) impropérios. Jornalistas? Uns canalhas! Especialmente aqueles que escrevem contra seu time: “Canalha (sic) são os caras covardes que agridem sem ter conhecimento de que estão agredindo (…) A campanha que os caras da imprensa estão fazendo contra o Botafogo: aquilo é canalhice que devia ser combatida com agressão”. Jornalistas musicais também não são poupados: “A Wanderléia, antes de pertencer à panela da imprensa, eles metiam o cacete nela, ela vivia entrando no pau (…) Hoje: a Wanderléia grava um disco e todo mundo diz que está bom, porque ela conseguiu a penetração na imprensa. Quase sempre um grande número de jornalistas especializados não são honestos, são hipócritas e mentirosos”. E sobra até para Chico e Caetano: “São a mesma coisa. Os dois complicam. Chico é mais simples, mas Caetano complica, Chico é melhor”.

Bizarrices, vitupérios e esquisitices à parte, nas entrevista de “O Pasquim” também podemos encontrar momentos inspirados (aliás, são a maioria), que nos fazem lembrar porque os grandes nomes da nossa música são… bem… grandes nomes da nossa música…

Veja Tom Jobim (em 1969!): “Quando você vê as favelas cada vez maiores, as pessoas pobres não terem o que comer, as pessoas ficando marginais etc., isso é um negócio que ninguém pode se conformar. É onde cessa o diálogo, porque a força das coisas é muito maior que o nosso blablablá. Eu levei toda minha vida, 42 anos, para comprar esse piano aí; em outros países, todo mundo que precisa tem um piano de cauda. Hoje em dia, eu posso pagar meu uísque, contratar um chofer para levar meus filhos na escola etc. Mas com muita vergonha. Depois que meus filhos tiverem a vida de deles, eu vou morar num apartamentinho no Méier, não vou mais me chamar Antonio Carlos Jobim e ninguém mais vai fazer entrevista comigo, não”.

Ou Caetano, sobre fama e anonimato (1971): “Todo mundo tem essa necessidade de ser uma pessoa que todo mundo sabe quem é, mas ao mesmo tempo, o que se consegue quando se passa de ser anônimo pra não ser anônimo vem dar no mesmo. Quando a pessoa é conhecida fica lutando pelo anonimato porque sente a mesma carência que o anônimo. Na verdade, são os dois lados de uma mesma moeda, é a mesma realidade, a mesma coisa, são umas tão carentes quantos as outras, em minha opinião”.

E, só para encerrar, Raul sobre as “novas gerações” de então (1973): “É uma juventude sadia, alegre, satisfeita. Feliz e contente. Comendo alpiste. Amém”. A mensagem parece um pouco enigmática, mas é que antes na mesma entrevista, Raul já tinha dito: “Tá aquela coisa de cabeludo, tá todo mundo estereotipado. Por isso faço questão de dizer que eu não sou da turma pop, que eu não tô comendo alpiste pop. Eu sei lá, acho que tá todo mundo de cabeça baixa, tá todo mundo Schopenhauer, todo mundo num pessimismo incrível. Essa geração audiovisual, e digo isso muito maldosamente, eu chamo eles de ‘audiovisuiaizinhos’ (…) Eles tão pensando como o John Lennon disse: ‘They think they’re so classless and free’. Mas não são coisa nenhuma, rapaz, tá todo mudo comendo alpiste. Tá todo mundo dentro de uma engrenagem sem controle”.

Não fechei com Raul citando Lennon de graça. Meu projeto inicial hoje era escrever sobre as entrevistas de “O Pasquim” e também as clássicas da “Rolling Stone”  – que incluem a do ex-Beatle), e que também foram publicadas há pouco tempo por aqui. Mas acho que este post já está ligeiramente longo – e vamos deixar a segunda parte dele para a semana que vem – bem como as conclusões finais sobre aquela tal inveja…



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