Estranhos retratos

seg, 30/03/09
por Zeca Camargo |
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Hoje eu ia escrever sobre… Já não é a primeira vez que começo um post assim – você que me acompanha há um tempo é capaz de reconhecer. Mas eu ia escrever sobre dois documentários excelentes que vi recentemente: aquele que ganhou o Oscar neste ano, “Man on wire” (um trabalho do diretor inglês James Marsh, sobre o qual me lembro já ter prometido escrever por aqui), e “Santiago”, de João Moreira Salles. Achei que poderia traçar paralelos interessantes entre os dois, mas este fim de semana fui assistir ao novo filme do diretor Mike Leigh, “Simplesmente feliz” – e mudei de idéia. Por estranhas associações acabei achando que Moreira Salles e Leigh, obviamente sem querer, tinham mais coisas em comum para serem exploradas. Assim, “Man on wire” vai esperar mais um pouco – quem sabe, uma possível estreia em circuito nacional (eu, o eterno otimista…) – pois eu resolvi fazer diferente. Até porque, como o próprio João Moreira Salles diz (na voz de seu irmão Fernando Moreira Salles, que narra o filme), “tudo deve ser revisto com uma certa desconfiança”. Qual o problema em mudar de planos?

O exemplo vem dos próprios diretores que cito hoje aqui. Em “Simples- mente feliz” (em cartaz no Brasil), Mike Leigh, talvez para espantar os temas pesados da maioria de seus filmes (já viu algum filme mais inocen- temente triste do que “Agora ou nunca” – ou um trabalho tão arrebatador quanto “Segredos e mentiras”?), resolveu fazer o retrato de uma mulher que é aparentemente impermeável ao mau humor. E em “Santiago” (recém-laçado em DVD), Moreira Salles, retoma um material de 1992, que ele simplesmente não conseguiu concluir – e faz, de uma reflexão sobre esse semi-fracasso, um belíssimo filme que nos consola da terrível constatação, como o próprio texto nos lembra já no final, de que “as coisas não fazem mesmo muito sentido”.

Santiago foi durante décadas mordomo de João Moreira Salles, na casa em que o diretor cresceu durante a infância e a adolescência. Essa constatação nos é apresentada em uma das últimas cenas do documentário, e serve de lembrete, para quem àquela altura ainda não tenha percebido, que essa é a relação que rege todas as filmagens. Não se trata de “documentarista e personagem” – nunca, em nenhum momento –, mas de “mordomo e patrão” (ou melhor, filho do patrão). A informação é dada em tom discreto, como toda a narração do filme. Mas, já hipnotizado por mais de uma hora de “material bruto” (quando foi lançado no cinema no ano passado, o filme tinha o sub-título “Reflexões sobre o material bruto” – que é, para quem não tem intimidade com edição, exatamente o que foi gravado, sem nenhum filtro), você ouve essa confissão do diretor – da sua impossibilidade de olhar Santiago de outra maneira que não um “subordinado” – como um soco.

A informação que vem em seguida – a de que uma tentativa de expressão pessoal de Santiago não mereceu nem que o diretor ligasse a câmera (e foi despistada com uma instrução ríspida para que seu personagem fizesse outra coisa) – chega como uma luva pesada de boxe do outro lado do seu rosto. Assim, numa involuntária referência a “Touro indomável”, você leva uma de esquerda, seguida de uma de direita. Pá-pum! E, quando acorda, percebe que pelos seus dedos acaba de escorrer uma  fabulosa história comum.

Nas suas animadas, ainda que solitárias divagações, mostrado sempre à distância (em enquadramentos declaradamente inspirados pelo diretor japonês Yasujiro Ozu), o mordomo desfila características fascinantes. Fala de seus escritos – longas (por vezes longuíssimas) compilações de fatos sobre a nobreza de vários cantos do mundo e de várias épocas -; das suas Madonnas (uma pequena coleção de reproduções clássicas, que inclui, claro, aquele que é para Santiago o grande mestre pintor, Giotto); das antigas canções em dialetos italianos que nunca se esqueceu; de como organizava (e batizava) os arranjos de flores que fazia na casa dos pais do documentarista; da voz suprema – pelo menos no canto lírico – da soprano Lily Pons; e, claro, de sua prodigiosa memória.

Cá e lá, Santiago termina uma história com um “c’est fini” – como quem diz, “assunto encerrado”. Palavras em várias línguas que domina (francês, inglês, italiano, espanhol e, claro, português) escapam nas suas frases, carregadas com forte sotaque portenho, na mesma velocidade com que seus pensamentos atropelam seu discurso – e, na tentativa sôfrega de acompanhar tudo que está sendo despejado, este espectador que vos escreve sentiu-se mais de uma vez uma espécie de vertigem verbal. É nesses momentos que é possível se solidarizar com Moreira Salles: o que fazer com aquilo tudo? Entregar-se ao desconsolo de aceitar que “as coisas não fazem mesmo muito sentido”? Ou simplesmente retribuir o exercício do diretor, de alinhavar tudo de maneira intencionalmente frouxa, e completar as costuras – as emendas – você mesmo? Intuitivamente você acaba escolhendo a segunda opção – nem que pelo encanto vão de tentar interpretar um personagem tão naturalmente (e não intencionalmente) complexo (ou não) como Santiago.

Poppy também poderia ser descrita dessa maneira – não fosse ela uma personagem de ficção. Protagonista do filme de Mike Leigh, ela é maravilhosamente interpretada Sally Hawkins (que chegou a ganhar um Globo de Ouro, mas foi esnobada pelo Oscar…) – e ela é simplesmente feliz. Logo na primeira cena, pedalando pelas ruas de Londres como se tivesse acabado de saber que ganhou na loteria, sua reação ao ver que sua bicicleta (que estava estacionada na rua enquanto ela visitava uma livraria) foi roubada é: “Puxa, nem pude me despedir dela…”. Em seguida, bêbada depois de uma noitada com as amigas, ela simplesmente não consegue parar de rir diante da ressaca matinal da sua melhor amiga, com quem ela divide a casa. E o instrutor de auto-escola ranzinza? Ah, que maravilha… vamos fazer piada de tudo isso.

O último filme de Mike Leigh é, de fato, bem mais animado do que os dois últimos – “O segredo de Vera Drake” era sobre uma mulher que fazia abortos nos anos 50, em Londres; e “Agora ou nunca” é um retrato de uma família pobre inglesa cujo casamento é um desastre e só perde para a relação dos pais com os filhos. Mas junto com toda a “alegria” de Poppy vem um enorme incômodo – aquele que ela mesma acaba causando com seu bom humor. Chega a ser aflitivo a maneira como ela enfrenta as piores situações. Grosserias, tons de voz mais altos, leves insultos – tudo ela retruca com o mesmo recurso que faz dela uma função fática ambulante: respostas prontas que não querem dizer absolutamente nada nem servem para nada a não ser manter uma conversa andando.

Assim como Santiago tem seu “c’est fini”,  Poppy tem sua “interjeição clássica”: “Isn’t that just?” – algo como “não é mesmo?”. Repetida à exaustão, ela não chega nem a ser uma pontuação – apenas um suspiro para ela continuar a sorrir. Até quando? Bem, esse é o suspense que Leigh consegue criar. Nós, tão cosmopolitas, moderno, urbanos, dinâmicos – e eventualmente arrogantes – não podemos conceber alguém que é pura alegria. No entanto, as coisas vão acontecendo com Poppy, os obstáculos normais, de uma vida, de uma rotina normal, vão se desenrolando e… você acha que alguma coisa tem que acontecer com ela e… bem, você vai ver o filme.

Se Santiago tinha seus códigos de comportamento – quase todos moldados pela própria profissão e pela sedução da “nobreza” (na verdade, “riqueza”) para a qual trabalhou, Poppy também parece viver num restrito estilo de vida – só que aquele ditado pelos incontáveis artigos de revistas femininas progressistas e livros de auto-ajuda: “vá em frente, menina!”; “não deixe os problemas do dia-a-dia te derrubarem!”; “enfrente os problemas com leveza!”; “você pode ser feliz!”. Santiago, seguindo sua “cartilha” ganhou uma vida interior riquíssima, mas também a solidão. E Poppy? Cercada de amigos, uma festa constante ao seu redor. E o que mais? Nada demais.

Hawkins é da trupe de Leigh – já fez vários de seus filmes e, como sempre, é brindada com o os frutos precisos da marca de improviso do diretor. Mas em “Simplesmente feliz” ela ganhou um presente muito maior: uma personagem daquelas de definir a carreira – mas não no clichê hollywoodiano… Ela não faz uma prostituta de coração bom, uma mulher que enfrenta a justiça americana, uma mãe que luta pelos seus filhos, uma esposa desesperadamente tentando salvar seu casamento. Poppy é brilhante porque é a garota mais normal do mundo – e é retratada como tal. Só que o filme, que poderia ser uma bobagem, é genial justamente por isso. Porque não é nada.

Santiago também era um homem normal – um mordomo que escondia (ou melhor, disfarçava) uma erudição secreta, é verdade, mas visto de longe (e, lembrando, todos os planos do documentário nos faz vê-lo de longe), absolutamente normal; e também genial. Ambos são a celebração não do extraordinário, mas do mero ordinário. E são sublimes.

Quantas dessas histórias assim, não deixam de ser contadas – em filmes, em novelas, em livros, no teatro? O mérito de João Moreira Salles e Mike Leigh – um na “vida real” (real mesmo?) e outro na ficção (ficção mesmo?) – é nos encantar com esse quase nada.

Presente ou “Merchan”?

qui, 26/03/09
por Zeca Camargo |
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Para comemorar os dois anos e meio de blog – isso mesmo, dois anos e meio! – ofereço aqui um presente. É uma prévia do livro que lanço agora sobre a série de reportagens que fiz pelo mundo visitando patrimônios da humanidade. Mas será mesmo um presente? Ou será que estou simplesmente usando este post para fazer um merchadising do meu livro?

A questão está longe de ser ordinária. Pensei um bocado antes de decidir postar isso. Fiquei na dúvida sim, mas, pelo simples fato de ter publicado esses dois trechos do livro abaixo, você já sabe a que conclusão que eu cheguei: se alguém quiser achar que é um “merchandising” descarado, um abraço!

Para você que resolveu avançar a leitura além do parágrafo anterior, acho que vale a pena explicar minha decisão. Nada muito elaborado, mas é que tem a ver com o que estamos discutindo aqui nesses últimos dois anos e meio: cultura. A viagem – que talvez você tenha acompanhado no “Fantástico” (e se não acompanhou e quiser dar uma conferida pode encontrá-la aqui) era focada nos patrimônios espalhados pelo mundo, e nas pessoas que tinham sua história relacionada a eles. Mas a experiência de viajar para esses lugares – e de conhecer tanta gente – foi bem maior do que isso. E é para descrever coisas assim que um livro é bom.

Decidimos lançar um livro sobre a viagem – “Isso aqui é seu! – A volta ao mundo por patrimônios da humanidade (Editora Globo)” – não apenas como um desdobramento da série da TV, mas como um complemento dela. Você pode imaginar a quantidade de informações que passaram por mim em cada uma daquelas escalas – e processar tudo isso não é simples: esse é um tipo de exercício que só a escrita proporciona. E aqui estão dois exemplos disso.

Os trechos que separei têm a ver diretamente com cultura – mas não exatamente ancestral. São observações feitas a partir de elementos de cultura pop – de dois lugares que, talvez, você nem imagina que produzam cultura pop: Mongólia e Indonésia! Mas claro que lá tem cultura pop sim – e como. Nessa breve passagem sobre hip-hop mongol e televisão indonésia, encontrei dois exemplos preciosos daquilo que eu mais acredito: que a cultura de cada lugar é, na verdade, uma cultura só. Não é a primeira vez que bato nessa tecla aqui no blog. Mas agora ofereço duas passagens desse meu novo livro que é, na sua essência, uma grande defesa desse caldeirão cultural único – não porque é excepcional, mas porque é humano.

“Merchan”? Leia com vontade – e me diga se o que está no livro não poderia muito bem ser um assunto nosso aqui de segunda e quintas… (em tempo: para não dizer que é uma mera reprodução do livro, estes são os textos “brutos”, praticamente como eu os escrevi no meu diário, feito durante a viagem, antes da edição final para a publicação; a versão que você vai eventualmente encontrar no livro é ligeiramente diferente… mas acho que você, como leitor fiel, merece esse “bastidor”).

De qualquer maneira, como sempre, ficarei encantado com sua opinião. Ainda nem absorvi, é verdade, todos os comentário sobre o Radiohead (que sucesso!), mas mesmo assim, mande seu veredicto sobre a ponderação de hoje – nem que seja para me acusar de querer vender um livro… “Buen provecho”!

MONGÓLIA

“Hip-hop na MTV Mongólia. Surpreso? Eu fico um pouco surpreso, sim, de ter uma MTV na Mongólia (eu sou do tempo em que nenhum lugar da Europa, fora o Reino Unido, tinha a sua MTV – mas são tempos pré-cambrianos), mas não de ter hip-hop, cantando em bom mongol por um grupo local. Entre um clipe e outro do “rapper”, o “making of” do sucesso recente – tudo certinho, como deveria ser uma programação de MTV em qualquer lugar do mundo. E por que não? Num mundo globalizado como o de hoje? Antes de achar graça de um bando de mongóis cantando hip-hop, pense numa boa banda de rap brasileiro que você goste. Pode, não pode? Então, aqui também pode.

Acabo de subir de um jantar aqui no hotel mesmo, em Ulaan Baatar (capital da Mongólia), onde parece que o sábado à noite acontece. No bar/restaurante, meninas produzidas, rapazes com pinta de descolados – alguns caras mais velhos com cara de cafetão, e um inevitável punhado de gringos (é um hotel, lembre-se). Dando uma geral assim, nada muito diferente de tantos sábados à noite que eu já presenciei.

Mais uma vez penso que o mundo é muito parecido – e que eu não acho isso nem um pouco ruim. Quanto mais a gente se acostumar com isso, melhor. Aqueles que se acham tão especiais, por dominarem a noite da sua cidade, e acharem que o único tempo e o único lugar é lá, precisam conhecer Ulaan Baatar… É tudo a mesma coisa – é tudo legal.

Insisto um pouco nisso, ainda mais depois dessa volta ao mundo, estou cada vez mais cansado do que eu costumo chamar de esnobismo cultural. Sabe gente que tem aquela atitude tipo “não existe cultura como a minha”? Ah, mas existe sim – nem melhor, nem pior, mas diferente. Aliás, já que estamos no assunto, que negócio de “minha” cultura é esse? O mundo, felizmente, sempre foi mais poroso do que os limites territoriais que temos hoje – a maioria, rabiscos políticos traçados ao longo do século passado, que ainda estão sendo corrigidos. Assim, não me venha falar de fronteiras quando – como descubro mais e mais quando viajo – o ser humano vive da troca. E se existe alguma cultura que valha mesmo a pena defender, é a humana.

A gente sempre viajou, sempre encontrou o diferente, sempre trocou – e vamos continuar fazendo isso. A essa altura, minha anfitriã de ontem deve estar fazendo sua última ordenha do dia – já que ela me contou que costuma dormir à meia-noite – e as meninas lá embaixo estão retocando a maquiagem para ir para o próximo pub. Na MTV daqui já está passando um clipe de uma menina que eu nunca vi (mongol) e parece uma mistura da Pitty com a Amy Winehouse. Há pouco um carro derrapou e bateu na esquina daqui do hotel – e, pelo que eu pude ver da janela, ninguém se machucou. Devia estar indo para uma festa – quem sabe a mesma para onde ia um grupo de adolescentes bem arrumados – de gravata e jeans – que eu vi passar na rua no começo da noite, no último passeio que eu quis dar pela cidade. É sábado à noite em Ulaan Baatar – e nunca eu tive tanta certeza de que esse dia e essa hora é um estado de espírito.”

INDONÉSIA

“Na sala de espera do aeroporto de Djôdja (Djojacarta, Indonésia), esperando a inevitável conexão em Jacarta para voltarmos a Bangcoc e seguir viagem – muitos televisores ligados em canais diferentes. Nada de muito bom, pensei – já que era a primeira vez que eu prestava atenção à TV indonésia. A cada programa que conferia, porém, me lembrava mais intensamente de um comentário muito lúcido de uma amiga, algo como: todo mundo diz que é difícil fazer TV, mas é fácil… vai lá, liga a câmera, fala alguma coisa, inventa uma história, dá uma notícia, faz uma gracinha – e pronto! Agora fazer TV bem feito…

Vejamos o cardápio dessa noite de sexta-feira, nos monitores do aeroporto: primeiro, uma novela de época – ou pelo menos que parece ser de época, já que a ação se passava numa caravela antiga, apesar de as pessoas parecerem estar vestidas com roupas contemporâneas. Muitos personagens… não fiz questão de investir. Na tela oposta a essa, um telejornal estático e monótono (em indonésio). E na tela no fundo da sala, outra novela – tão familiar que, mesmo sem falar uma palavra de indonésio, era capaz de dizer exatamente o que estava acontecendo: uma amiga pega a outra no pulo com um colar de diamantes numa sacola barata de compras (traição!); os olhares são fulminantes; há uma terceira amiga que parece desesperada, tentando consertar a situação; corta pra um flashback (ou o que parece um efeito de flashback) com outra heroína recebendo uma boa notícia de um homem mais velho, mas não tão mais velho que possa ser seu pai – se bem que detalhes assim são sempre irrelevantes em novelas; a cena volta para as três amigas em conflito e a que parecia desesperada oferece um acordo; a amiga traída hesita em aceitar e as duas outras saem da sala deixando-a pensativa. Adoraria assistir o resto, mas estavam chamando para embarcar…

Apenas 45 minutos depois, já estava em frente a outra TV – essa, numa arejada sala de espera do aeroporto de Jacarta-, que mostrava um programa com dicas de moda para mulheres que usam véu (que imediatamente relacionei com as revistas que vi hoje à tarde em Djojacarta). Consegui acompanhar duas variações – uma que realça as linhas do pescoço, deixando o véu bem justo, e outra onde o pano faz uma espiral sobre os ombros da modelo (um efeito interessante!). Quem disse que elas não podem respeitar a religião e serem… criativas!

Em outros canais, mais duas atrações. A primeira é um tipo de programa que eu havia lido em algum lugar que está fazendo o maior sucesso na Ásia: a transmissão de jogos de videogame! Isso mesmo: já chegamos nesse estágio… Esse que eu via era uma corrida de carros, onde quatro participantes entram num cenário poderoso, s!ao recebidos por uma mocinha bem maquiada, vão para a frente de um computador e… corta para seus “carros” disputando um circuito cheio de obstáculos. De vez em quando a câmera voltava para o cenário onde moças em roupas “esportivas” faziam as vezes de “cheer leaders” – e a platéia (tinha platéia, claro!) respondia animada! Será que isso demora para chegar ao Brasil?

Depois vi ainda um programa de “horário nobre” – tipo aqueles de entrevistador no sofá. O anfitrião usava um smoking e recebia dois grupos de comediantes – um casal bem jovem (e bem caricato) e quatro senhoras muito arrumadas e engraçadas (e olha que eu não entendia uma palavra!). Elas pareciam quatro “Nair Belos” – só que indonésias. E arrancavam gargalhadas da platéia (toda feminina, 80% com véu), que ainda respondia a um sinal do apresentador com um violento gesto do braço para frente, fazendo o que parecia mais um número dois com a mão direita do que o sinal de paz e amor…

De fato, é fácil fazer TV – lembrei-me novamente da minha amiga. Aqui, do outro lado do mundo, programas que a gente nem imagina que existam – uma cultura pop nem melhor nem pior do que a nossa, apenas diferente (e irritantemente igual…). É por isso que eu viajo…”

Tudão

seg, 23/03/09
por Zeca Camargo |
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Tudo no seu lugar certo. Mesmo sem nunca ter ido a um show desses caras, eu já sabia que seria aquilo – a perfeição. De quem eu estou falando? No caso de alguém ter chegado agora de um retiro de dez anos no Círculo Polar Ártico, vale a pena dar um pouco mais de informação sobre nosso tema de hoje: a apresentação de uma das bandas mais esperadas por estas terras, que finalmente aconteceu neste fim de semana. Como diziam as manchetes de quando os Rolling Stones finalmente vieram ao Brasil, a espera acabou: o Radiohead tocou na sexta-feira (20) no Rio, e domingo (22), em São Paulo.  Nessa segunda noite eu estava, digamos, “ocupado” – trabalhando. Mas a do Rio eu peguei, depois de um dia atribulado (minha sexta começou cedo em São Paulo entrevistando o estilista Marc Jacobs, e continuou numa usina de reciclagem de lixo no bairro do Caju, no Rio). Já no início da noite, de volta à Redação do “Fantástico”, eu olhava constantemente o relógio, torcendo para que a lista de coisas para adiantar não colocasse em risco a operação que eu tinha montado para ver o Radiohead no Sambódromo.

Veja fotos do show

Morto do pescoço para cima – essa era a minha imagem olhando para a tela do computador da minha mesa, às 20h30: um zumbi tentando ficar livre de todas as obrigações, para sair do bairro do Jardim Botânico no horário limite de não perder o show – 21h30 (não cheguei a duvidar nem por um momento da pontualidade prometida – e cumprida – pelo Radiohead). Saí no último segundo possível, e, quando o táxi me deixou na boca da Sapucaí – um lugar que costumo freqüentar só no Carnaval para experimentar a incomparável sensação de passar da concentração da escola onde saio para o desfile em si –, pouco depois das 22h, ao ouvir nos auto-falantes lá longe um reggae indistinto, sabia que aquela não era “minha” banda. Eu havia chegado no intervalo. E que não era entre Los Hermanos (que lamentavelmente perdi) e Kraftwerk (que adoraria ter visto mais uma vez), mas entre Kraftwerk e Radiohead. Alguma coisa estava para acontecer, porém…

Só porque você a sente, não significa que ela está ali. Será mesmo que eles, os caras do Radiohead iriam entrar dali a alguns minutos naquele palco? Obviamente, meu nível de expectativa estava nas alturas. Os amigos que encontrava pelo Sambódromo já estavam em diferentes níveis de, digamos, excitação – e eu tentava decidir em qual deles me encaixar. Antes que eu fizesse essa escolha, porém, como que trapaceado pelo meu relógio que esqueci de consultar, as luzes se apagam e em questão de segundos reconheço “15 step”. “Achtung baby!” – o show já é.

Eu costumava pensar que não existia futuro algum. Pelo menos não nos shows ao vivo. Meus leitores mais dedicados sabem – e quem já leu meu livro “De a-ha a U2” também – que eu tenho um “problema” com bandas se apresentando ao vivo. Essa é uma questão muito longa que não vale a pena discutir (novamente) hoje por aqui, mas basta dizer que eu sempre preferi a música gravada à interpretada no palco. No entanto, mesmo antes de “15 step” acabar, quando os primeiros acordes letais de “Airbag” ainda eram uma possibilidade, eu saquei que ali poderia voltar a sentir o mesmo entusiasmo por esse tipo de performance que vivi quando vi Kurt Cobain, no saudoso Hollywood Rock, cuspir nas lentes das câmeras que transmitiam o show do Nirvana ao vivo. Radiohead estava se apresentando – e, em questão de minutos, tinha tomado completamente o poder naquela noite: todos ali estavam irremediavelmente sob seu comando.

Por um minuto ali, eu me perdi. Estava tão atordoado de estar finalmente assistindo a um show do Radiohead que, a exemplo do fora que tomei de Michael Stipe (R.E.M.) quando me vi entrevistado esse grande ídolo pela primeira vez (ele, percebendo que eu estava à beira da tietagem, encerrou a entrevista na mesma hora – mais uma história do meu livro de encontros com os grandes nomes do pop), dei uma “descolada” de mim mesmo. Foi como se eu tivesse saído do meu corpo e tivesse tido assim a chance de ver eu mesmo vendo uma banda adorada tocar – e, pior (ou melhor?): como se eu não estivesse acreditando no que estava vendo. “There there”, “All I need”, “Karma Police”, “Nude”, “Weird fishes/Arpeggi” – o que estava acontecendo? Eu tinha a ilusão que eles estavam tocando todas as músicas que eu havia pedido. Será que Thom Yorke recebeu meu email? O bilhete que deixei na portaria do hotel?

Suas orelhas deveriam estar queimando. Não havia passado ainda nem uma hora de show, e você tinha a impressão de que já tinha ouvido todos os sons do universo. Mas aí, depois de “The national anthem” e “The gloaming” – ambas devastadoras – veio “Faust arp”. E tudo começou a desmoronar. Para cima. Na sua intrincada simplicidade, nos seus frágeis dois minutos e pouco, a música era o respiro necessário para fãs que, como eu, precisavam se conectar novamente com seus sentidos. Aos poucos, enquanto nossos pés se aproximavam novamente do chão, a serenidade ia voltando ao Sambódromo, e o único desejo desse humilde servo era que toda a experiência de até então, como diz a própria música, duplicasse e triplicasse. Um momento de paz, enfim – era o que eu pensava. Mas aí veio “No surprises”…

Eu estou surpreso que sobrevivi. Os cilindros iluminados, que definiam brilhantemente o espaço de apresentação da banda com cores, desenhos e movimentos coreografados, agora pintava uma forma geométrica estática, que lembrava uma igreja – mas nós ali na platéia sabíamos que não estávamos diante de nenhum templo, mas do próprio céu.  O impacto dessa dobradinha (“Faust arp/No surprises”) certamente vai ter conseqüências para o resto da minha vida. Mas enquanto estava ali, assistindo tudo, sem tempo nem sobriedade para codificar o que se passava, quem disse que eu conseguia elaborar sobre isso? “Jigsaw falling into place” não me ajudou em nada a recobrar a consciência – e foi só no pequeno hiato entre essa música e a introdução da seguinte (que eu custava a reconhecer), que reencontrei algum equilíbrio. Foi então que ouvi Thom Yorke murmurar “who’s in the bunker?” – e tudo ficou novamente fora de controle.

Aqui eu podia tudo o tempo todo. E esse estranho sentimento não era só meu. Muitas pessoas em volta de mim que demoraram ainda mais que eu para reconhecer “Idioteque” (uma das cinco melhores faixas que o Radiohead já compôs, na minha opinião) já dançavam involuntariamente – como que tomados pelo transe de uma pista de dança surrada às 4h30 da manhã. Mas ainda era por volta de meia-noite (se é que eu podia confiar nos relógios à minha volta) e eu não sabia mais explicar nada. “I might be wrong”, “Street spirit (fade out)”, “Bodysnatchers” e “How to disappear completely” encerraram o que era – um pouco obviamente demais – um “boa noite” de mentira.

Você vai para o inferno pelo que sua mente suja está pensando. Mas mesmo assim, você (e todo mundo) não sai do lugar desejando que o Radiohead voltasse logo e tocasse aquelas músicas que você passava incessantemente pela cabeça – as que você não tinha ouvido ainda. E poucos minutos depois, como que para recompensar esse seu esforço mnemônico, eles entram como uma seqüência inacreditável: “Videotape” (a segunda melhor faixa de “In rainbows”, depois de “Faust arp”), “Paranoid android” (!!!), “House of cards” (com o mantra “I don’t want to be your friend, I just want to be your lover”), “Just” (das antigas!), e, claro, “Everything in its right place”. Achei que tinha terminado. Fui deixando a praça da Apoteose vagarosamente, ainda com os ecos da introdução inesquecível da faixa de abertura de “Kid A”, quando, da maneira mais discreta possível, Yorke volta ao palco para cantar “You and whose army?” – discrição, no caso, marcada pela imagem do rosto multiforme do cantor cantando bem próximo a uma das câmeras do palco, enquanto também trabalhava o teclado. “Reckoner” veio em seguida – e, embora impecável, parecia uma canção improvável para fechar uma apresentação desse porte. Eles tinham que cantar mais uma… talvez “aquela”? Meu palpite era de que eles viriam com “Fake plastic trees” – que embora não fosse das mais animadas do cânone “radioheadiano”, fecharia o “set” como um clássico indiscutível. Mas aí veio “Creep”.

A poeira e a gritaria. Era só isso que eu via quando, com as luzes todas do palco no talo – e ajustadas para emitir um branco intenso –, vinha aquele refrão surreal, o maior hino (ao lado de “Loser”, de Beck) ao fracasso da adolescência que não acaba nunca. De vez em quando um flash multicolorido quebrava aquela claridade, surpreendendo os olhos que achavam que já tinham registrado todas as variações possíveis dos criativos enquadramentos dos próprios membros da banda pelo palco, projetados nos telões eletrônicos. “What the hell I’m doing here?” – quisera eu saber…

Sem alarmes e sem surpresas. Isso que acabei de relatar aqui – uma descrição aproximada da experiência de assistir ao primeiro show do Radiohead no Brasil –, por mais arrebatador que possa parecer, era exatamente o que eu esperava. Aliás, foi mais: eu esperava tudo – e veio “tudão”. Lá dos idos de 1993 – quando eu, por acaso, capturei a banda na primeira entrevista para a televisão da carreira deles (sim, outra história contada em “De a-ha a U2”) – até a primeira audição (e todas as outras que vieram) de “In rainbows”, eu já contava com isso. A surpresa maior seria se eles não cumprissem essa promessa. Mas eles não fariam isso comigo – nem com ninguém. E é por isso que prestei uma pequena homenagem à banda neste texto que, muito provavelmente, eles nunca vão ter a chance de ler. Que homenagem? Você me acompanhou até aqui e ainda não percebeu? Tem certeza de que é um fã do Radiohead? Se você descobriu a “charada”, seu comentário com a resposta será tão bem-vindo quanto outras opiniões sobre o show (a sede de saber o que as outras pessoas acharam desse evento é insaciável – passei o fim de semana discutindo esse assunto, e ainda quero mais!). Se não sacou ainda, na quinta eu desvendo o mistério. Quer uma pista para ajudar? O segredo está sempre no começo de tudo…

Meu U2 está de volta

qui, 19/03/09
por Zeca Camargo |
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Pobre Coldplay. Quando eles acham que deram um grande salto e conseguiram disfarçar a ambição de ser o U2 do século 21 (“Viva la vida” não era mesmo de todo mau – falo de coração!), vem o próprio U2 e lança um novo álbum para mostrar a todos que o U2 do século 21 é… o próprio U2!

Sim! – caso você não tenha sido atingido pelo tsunami de mídia que acompanhou o lançamento deste novo álbum, cabe a mim anunciar que eles estão de volta. E como! “No line on the horizon”, que acabo de comprar online, em MP3 (pois é… até eu), é exatamente o tipo de disco do U2 que eu gosto: diferente, experimental, grandioso e discreto ao mesmo tempo, e (o mais importante) sem medo de correr riscos. O U2, por exemplo, de “Achtung baby” – o álbum que me converteu num fã da banda.

Devotos do U2, não fiquem loucos comigo. Como já disse ao próprio Bono (na segunda vez em que o entrevistei), eu era apenas um admirador distante da banda durante todos os anos 80. Era impossível negar então a força de alguns de suas canções – “I will follow”, “Pride (in the name of love)”, e, claro, “Sunday bloody sunday”, para citar apenas três clássicos. Mas desde o início da carreira deles até 1991, o U2 me pareceu apenas uma banda competente – boa para oferecer aquelas faixas catárticas que funcionam num show de estádio, com um cantor extremamente carismático e sério, mas que ficava devendo um pouquinho num quesito que me é muito caro, a “experimentação”.

“The Joshua tree”, para fazer justiça, já havia tinha me chamado atenção por querer procurar um caminho diferente para a banda – flertando, sobretudo, com o a música americana. Como não reconhecer o potencial “romântico-messiânico” de uma música como “With or without you”, ou a perfeição exasperada de “Where the streets have no name”? Mas ainda não era o suficiente para mim… Só me convenci mesmo quando vivi a seguinte cena: reunida diante de um monitor de TV, a quase totalidade das pessoas que trabalhavam na MTV comigo assistia a um clip recém-chegado de uma faixa totalmente estranha chamada “The fly”.

O que era aquilo? – parecia ser a pergunta em cada par de olhos. Eu, muito particularmente, respondia a mim mesmo que o que estávamos vendo era uma epifania: uma banda pronta para dar um grande salto, apostando no desconhecido, e chamando os seus fãs para irem junto. Semanas depois chegou o clipe seguinte (era uma época antes da internet, entenda, e as novidades não “vazavam” na rede – trabalhar na MTV brasileira, no início dos anos 90, era, sem dúvida, uma das maneiras mais “quentes” de receber novas músicas antes de todo mundo). Que era, claro, “Mysterious ways”. Pronto: a transformação do U2 de uma banda relevante para uma transcendental estava confirmada. E eu acabava de me tornar irreversivelmente um fã incondicional deles.

Acho que ninguém vai discordar que qualquer elogio para “Achtung baby” está aquém do valor real daquele álbum. O disco é uma unanimidade – indiscutível (ou você vai me dizer que “One” é um “trabalho menor” da banda?). Mas o que dizer dos trabalhos seguintes, “Zooropa” e, principalmente, “Pop”? Já torceu o nariz, aposto… Pois eu adorei esses também. E o segundo – que geralmente é execrado -, mais ainda que o primeiro. A cada um desses trabalhos, a impressão que eu tinha era que eu encontrava um U2 ainda mais enlouquecido, testando limites musicais – para não falar dos limites da paciência de seus admiradores. E quanto mais eles me provocavam, mais eu aplaudia.

Foi na época da turnê de “Pop Mart” (1998) – a “estreia” da banda no Brasil -, que estive com Bono pela primeira vez. Eu assisti ao show semanas antes de eles virem ao Brasil, em Oakland, na Califórnia (quem abria para eles, só como curiosidade, era um uns caras que estavam tentando estourar nos Estados Unidos… um certo Oasis…). Entre as coisas que rolaram na entrevista, tive espaço para satisfazer minha curiosidade pessoal sobre o desejo dele (e da própria banda) de estar sempre se renovando. A resposta óbvia – para a pergunta, admito, nem tão original – foi que sim. Bono me garantiu que sabia que os fãs tolerariam aquelas sandices todas do álbum “Pop”, se, de vez em quando, eles voltassem a oferecer o tipo de som que os consagrou.

Que foi, diga-se, exatamente o que eles fizeram alguns anos depois com “All that you can leave behind”. De fato, os fãs se acalmaram, a crítica respirou aliviada, e o disco, como todos sabem, foi um sucesso. Este humilde admirador, porém, ficou um pouco decepcionado com a guinada, digamos, conservadora da banda. Veio então “How to dismantle an atomic bomb”, e, com exceção da delirante “Vertigo”, eu aplaudi o esforço, mas não reconheci ali o U2 das viradas mirabolantes. Mas eis que surge agora “No line on the horizon”, e meu peito se enche de alegria.

Adaptando os primeiros versos da própria faixa-título (que, aliás, abre o álbum), é como se eu estivesse diante de uma banda “que é como o mar, eu olho ela mudar todo o dia para mim”. Escutei o disco hoje inúmeras vezes – e quem disse que estou enjoado? Para não dizer que me rendi de primeira, confesso que me assustei um pouco com a grandiosidade da “comissão de frente”: tanto “No line on the horizon”, quanto “Magnificent” são quase U2 “de cartilha”, com Bono indo do sussurro ao grito na levada sempre impressionante do guitarrista The Edge (o breve solo em “Magnificent” é especialmente sedutor). Mas aí vem “Moment of surrender” – e a diversão realmente começa. Com mais de sete minutos (estou apostando que é a faixa de estúdio mais longa deles, será que alguém pode me confirmar?), ela vai te convencendo aos poucos, arrastando-se no seu ouvido até você chegar ao ponto que a própria música sugere no título: um momento de entrega (total).

Em seguida vem outra curiosa canção longa, ainda mais cheia de climas, chamada “Unknown caller”. Os arranjos ficam um pouco mais complicados em “I’ll go crazy if I don’t go crazy tonight” (êta banda que gosta de títulos compridos!) e empresta uma indiscutível beleza a uma letra (propositalmente) caótica. “Get on your boots”, você já conhece – foi o primeiro “single” e já está em altíssima rotação em mais de um site de vídeos na internet. Acho a faixa um pouco estranha – mesmo depois de repetidas audições -, mas acho que tem a ver com a vontade de experimentar. “Stand up comedy”, apesar de ter uma letra engraçada, é talvez a faixa mais convencional do álbum, mas não deixa de ser uma ótima pausa para o tobogã musical que vem a seguir.

“FEZ: being born” é daquelas músicas que não têm registro: um “mini épico”, que faz você ficar intrigado logo de cara – e vai requisitar um certo esforço para ser decifrado. “White snow”, que vem logo depois, é uma belíssima balada que deve ser um dos pontos altos de uma futura turnê. A faixa seguinte é “Breathe” e traz Bono exorcizando o Mick Jagger que existe dentro dele. E tudo termina numa misteriosa atmosfera evocada por “Cedars of Lebanon”, que fica entre o cabaré e o “chill out” – e que te desafia a ouvir tudo de novo.

Desde de 1997 eu não ouvia um U2 tão atrevido – e é por isso que estou celebrando tanto esse “retorno” à forma (pelo menos à forma que eu aprendi a gostar lá nos idos dos anos 90). E, pelo visto, não sou só eu. Como disse Jon Pareles, numa entrevista recente com a banda para o “The New York Times”, apesar de tudo que está acontecendo na indústria fonográfica, e da “idéia de um rock ‘mainstream’ parecer mais e mais uma miragem, o U2, descaradamente, ainda quer lançar um mega sucesso de vendas” – e está conseguindo: entrou direto na posição de número um na parada americana (e, posso imaginar, em vários outros lugares do mundo também).

Será que todos os fãs demonstrarão a mesma receptividade que eu? E você? Já ouviu? Concorda, pelo menos em parte, com a minha opinião – ou não? Eu mesmo estou interessado em saber o que as pessoas vão achar de “No line on the horizon”. E só o fato de uma banda que existe há mais de trinta anos despertar esse tipo de curiosidade já é mais uma prova de que, pelo menos no pop, ninguém é tão poderoso quanto eles…

(Tudo bem talvez o Radiohead seja… mas isso eu devo conferir neste fim-de-semana – não na noite de domingo, durante o show de São Paulo, quando eu vou estar “de serviço”… Mas sexta, no Rio – se eu não tiver de trabalhar até tarde… Será? Conto na segunda.)

Bonzinhos e não-bonzinhos

seg, 16/03/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Sabe quando você não consegue classificar um filme direito? Comédia? “Docudrama”? Suspense? Intriga policial? Drama de família? Crítica social? O diretor francês Laurent Cantet é mestre nisso. Pegue “A agenda”, por exemplo, seu filme de 2001. Eu achei que era apenas uma comédia de costumes: um olhar curioso sobre um executivo com cargo e salário altíssimos, que perde o emprego e, com medo de contar para a família, inventa que arrumou um novo trabalho na ONU (que o “obriga” a estar constantemente viajando), e não só não dá uma freada no seu estilo de vida, como passa a gastar muito mais para poder sustentar sua mentira.

Pois, ao contrário das minhas expectativas, esse filme entrou para minha lista dos títulos mais assustadores do cinema. O “terror” de “O emprego do tempo” não vem de nenhuma cena premeditada de susto – aqueles velhos truques -, mas do suspense criado pelo enorme vazio das horas vagas de Vincent, o desempregado “em negação”: longos espaços de tempo preenchidos com esporádicas ligações no celular ou – em sequências ainda mais insuportavelmente cruéis – simplesmente sem fazer nada, apenas olhando para o infinito, retorcendo ao máximo a idéia do título original em francês, “L’emploi du temps” (“O emprego do tempo”). No meio disso tudo, a perfeição do ambiente familiar (onde ninguém suspeita de nada) acaba provocando risos nervosos no espectador, que, ao fim do filme, já desistiu de controlar suas sensações, e só consegue admitir que saiu da sessão ligeiramente mais perturbado do que entrou.

Seu filme anterior a esse, “Recursos humanos” – que eu gosto menos, mas é também interessante – leva essa multiplicidade de nuances a uma fábrica, numa história em que causas trabalhistas, disputas de família, e contrastes entre “cidade grande” e “cidade pequena” estão indissoluvelmente interligadas. Não vi (apesar de tê-lo em DVD) seu trabalho de 2005, “Em direção ao sul” – sim, eu sei que é um crime duplo deixar um filme de Cantet com Charlotte Rampling “na gaveta”, mas espero me redimir disso logo. Até porque, o fato de ter assistido agora, no cinema, seu mais recente trabalho, “Entre os muros da escola” (nosso assunto de hoje), reacendeu meu interesse pelo diretor num nível, que eu acho até que vou rever também “A agenda”. Mas antes, vamos falar desse novo filme.

Ou melhor, antes de falar desse filme, posso sugerir que você veja este vídeo que tem pouco mais de um minuto no youtube (e que um amigo meu me mostrou esta semana)?

Pois bem, “Entre os muros da escola” não está diretamente conectado com este breve teste sobre a percepção de estereótipos brancos e negros, mas digamos que é um bom aperitivo para você entrar, hum, “sem preconceitos” numa sessão do filme de Cantet (que já está em cartaz no Rio e em São Paulo, pelo menos, e faço votos de que circule por cinemas – ou locadoras de vídeo – de todo o Brasil… mesmo!).

Baseado no livro homônimo de François Bégaudeau (traduzido para o português pela Martins Editora) – que conta sua experiência na vida real – “Entre os muros” faz o retrato de uma classe de alunos do equivalente à nossa sétima série, num bairro de periferia em Paris. A classe não podia ser mais multicultural: tunisianos, marroquinos, chineses, malineses – e, claro, franceses. Esses alunos, porém, estão bem distantes do “Petit Nicolas”, que é um dos personagens mais queridos da literatura infantil francesa.

A classe para a qual François (o nome do personagem é o mesmo do autor – que também interpreta o papel principal no filme) dá aula de francês é composta de nomes como Wei, Chérif, Boubacar, Rabah, Souleymane, Burak, Esmeralda e Khoumba – com só uma Julie aqui e uma Juliette acolá para nos lembrar que ainda estamos na França… Exceto que não precisamos nos lembrar tanto assim que estamos na França: se você passou por algum noticiário (na TV, na internet, no jornal) lá pelo final de 2005, vai se lembrar do quebra-quebra geral promovido pelos jovens da periferia de Paris (e outras cidades) indignados com a sua exclusão da sociedade. Pois é dessa França que fala o filme de Cantet – que mais uma vez embaralha as fronteiras da classificação.

É um documentário? Um drama social? Uma comédia (sim, porque os momentos engraçados, como em outros filmes do diretor, surgem de maneira inesperada nas cenas mais tensas)? Uma crítica de costumes? As possibilidades são tantas, que em poucos minutos de projeção você já não está mais preocupado com isso, mas sim em acompanhar essa classe tão peculiar de alunos – se é que ela é tão peculiar assim…

Como disse o próprio diretor numa entrevista recente a Diego Assis, aqui mesmo no G1, quando ele foi apresentar o filme no Canadá e nos Estados Unidos ele viu que as escolas daqueles países apresentam as mesmas questões daquela que ele mostrou em seu filme. Resumindo uma frase sua: “Todos esses jovens imigrantes (…) têm de sentir que a sociedade necessita deles”. Será que isso diz respeito também ao Brasil? Pode apostar – ainda que as grandes diferenças aqui não sejam étnicas, mas sociais. Porém – e a pergunta é inevitável – será que temos professores aqui tão preparados para enfrentar essas questões quanto François Bégaudeau? (Não tenho, obviamente, nenhum grande contato direto com o sistema educacional brasileiro, mas se você souber de alguma história de um professor de ensino primário e médio que enfrenta seus alunos “difíceis” de adulto para adulto, como o que foi retratado no filme, eu gostaria que você mandasse um comentário sobre isso…).

O que exatamente François tem de enfrentar? Uma das primeiras cenas do filme, onde os professores se apresentam pouco antes de as primeiras aulas do ano letivo começarem, mostra bem a situação: logo que recebem suas pastas com a distribuição das turmas para as quais vão lecionar, um professor veterano confere a relação de alunos de um outro professor novato e vai dando a ficha de um por um: bonzinho, boazinha, não-bonzinho, nada-boazinha, nada-bonzinho-mesmo, não-não-não-boazinha-tome-cuidado-com-ela – e por aí vão as categorias…

Uma coisa, porém, é a indicação verbal. Outra, que vemos logo na sequência – e que nos cativa irreversivelmente dali em diante -, é a realidade da sala de aula. Irreverentes, insolente – e até mesmo indomáveis -, a turma de François não é para os fracos do coração. Um simples pedido para que uma aluna (Khoumba), leia um trecho de “O diário de Anne Frank” pode detonar uma resposta ríspida – na linha, “quem é você para me mandar ler alguma coisa?”. A discussão, é inevitável… e pesada.

Cenas como essa – ou uma outra em que Souleymane se exalta e acaba criando uma situação insuportável e fora dos limites na sala de aula – ganham ainda mais força quando você se lembra de que aquelas pessoas que estamos vendo ali não são atores, mas alunos de verdade, usando seus nomes próprios, que, ainda que dentro de um roteiro proposto por Bégaudeau (e sob a direção de Cantet) estão vivenciando experiências muito próximas de suas histórias da vida real.

Os adolescentes de “Entre os muros” não estão apenas com dificuldades para afirmar sua passagem para o mundo adulto, mas também sua identidade étnica numa sociedade dividida. Há, claro, o conflito básico de “nós x eles” – onde “nós” são os alunos de periferia, de diversas etnias, e “eles” são os professores “branquelos” e burgueses, que, como fica ainda mais evidente na aula de francês de François, não fala a mesma língua que os alunos. Mas esse é só o ponto de partida dos problemas.

Ao longo do ano que acompanhamos – marcado de maneira sutil pela mudança nos figurinos dos alunos – as coisas parecem não melhorar. E não vão melhorar mesmo. Em vários momentos, surge no espectador, aquela esperança (um mau hábito que certamente aprendemos com filmes americanos) de que uma solução mágica – tipo “Ao mestre com carinho” – vai resolver pelo menos alguns dos nós que se formaram. Pela leitura de “O diário de Anne Frank” e pela iniciativa do professor de pedir que seus alunos escrevam auto-retratos, “Entre os muros” até esbarra perigosamente numa chorosa produção hollywoodiana chamada “Escritores da liberdade” (2007), protagonizada por ninguém menos que Hilary Swank – onde todos os conflitos de uma classe também difícil, claro, acabam bem. Mas isso aqui, essa turma de François, definitivamente não é Hollywood – e o que acontece com seus alunos é simplesmente o que tem que acontecer: pequenos sucessos, embates cada vez mais ferozes dentro da sala de aula, expulsões, conversas difíceis com os pais e uma sucessão de fracassos.

O maior deles, talvez, resumido na tímida confissão que uma aluna que até então não havia aparecido com destaque (que acho que se chama Henriette) faz a François. Esse é daqueles momentos raros – que poucos filmes contemporâneos oferecem: uma declaração-chave que te permite entender melhor tudo que aconteceu até ali. Um “rosebud”, se você preferir – para citar, claro, “Cidadão Kane”. Não vou contar mais que isso – não se preocupe -, mas só vou dizer que num filme cheio de cenas que não são fáceis de engolir, esse foi o único momento em que as lágrimas vieram mesmo. E a emoção aí não vem de um recurso banal de roteiro, mas de uma constatação tão óbvia da realidade que, como em tantas passagens da nossa própria vida, mal conseguimos perceber.

“Entre os muros da escola” ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes no ano passado. Deixei essa informação para o final porque nunca sei bem se isso vai estimular alguém a assistir ou a evitar um filme. Mas dessa vez, o prêmio (com o qual eu nem sempre estou de acordo) foi merecido. Não tem ninguém fazendo filmes como Cantet no cinema de hoje: honestos, diretos, emocionantes e, sobretudo, inclassificáveis.

Não-ficção (2)

qui, 12/03/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

“Na State Road 54, havia uma comunidade com um portão chamada Hamilton Park. Perto de anoitecer, uma mulher estava sentada na sua garagem aberta, fumando e falando no telefone. Um Corvette coberto estava parado na rua. Exposta à rua que escurecia, a mulher parecia uma figura num palco iluminado, uma impressão reforçada pela quantidade teatral de objetos que a cercavam: potes e panelas, emblemas maçônicos, uma escrivaninha de metal, um caderno de rascunhos da aeronáutica da segunda guerra, um álbum de aniversário de cinqüenta anos de casamento, pilhas de fotos e cartas, cumbucas de porcelana marrom, uma câmera Kodak Brownie Reflex, com flash externo, o livro de receitas da Good Housekeeping.”

Este é um dos parágrafos da introdução de um artigo que li recentemente na “The New Yorker” (edição de 9 de fevereido deste ano), que me deixou exultante. Afinal, era (mais) uma reportagem sobre a crise imobiliária americana – ou seja, com um enorme potencial de ser aborrecido. George Packer, porém, está longe de ser um escritor que te aborrece . Já tendo lido (e apreciado) vários de seus textos na própria “New Yorker”, mesmo com um interesse bem limitado sobre esse assunto, decidi investir na leitura – e fui imensamente recompensado.

Veja, por exemplo, o parágrafo que reproduzi acima. Mesmo com minha tradução sempre apressada, ele é de um requinte quase cinematográfico. Quando você lê toda a introdução do artigo e percebe que o autor vai fazendo o mesmo exercício para cada morador que restou numa enorme região do estado americano da Flórida – que um dia foi a grande promessa de especulação imobiliária -, é impossível não reconhecer que seu talento está muito próximo da literatura. Afinal, a única coisa que diferencia essa descrição da mulher em sua garagem de uma cena de ficção contemporânea americana (ou mesmo internacional) é o fato de sabermos que se trata de uma reportagem.

Porém, todas as qualidades de um bom texto estão lá – e mais a apuração jornalística, é claro. Assim como Janet Malcolm – outra colaboradora da “New Yorker” que citei no post anterior -, Elizabeth Kolbert, Joan Acocella, Calvin Tomkins, David Remnick, Sasha Frere-Jones, Peter Schjeldahl, Anthony Lane e um enorme elenco de outros escritores (e não vamos nem falar do passado de mais de 75 anos da revista!), todos que viram seus textos publicados ali têm esse dom – nem tão mágico assim, já que uma boa escrita sempre é fruto de esforço mais que inspiração, mas sem dúvida precioso: o de cativar o leitor com sua narrativa.

Os exemplos que eu poderia pinçar aqui de artigos que mexeram comigo depois que os li na “New Yorker” dariam uma lista maior que os já longos posts que eu estou acostumado a escrever – e você, graciosamente, a ler. É um tema tão rico que, provavelmente um dia ainda vou buscar nele inspiração para outro assunto neste blog. Hoje porém, dando continuidade ao meu elogio aos textos e livros de não-ficção que comecei na segunda-feira, quero destacar aquele que talvez seja um dos mais impressionantes que já encontrei na revista – e cuja leitura do livro do qual ele foi extraído (é hábito da “New Yorker” adiantar trechos de obras que estão quase sendo lançadas), não só me deixou sem fôlego, como também me fez ver a própria missão do jornalismo sob um ângulo diferente.

Como citei no final do post anterior, este é o tal livro de não-ficção que lamentavelmente nunca foi lançado por aqui. Eu diria até criminalmente… (Posso estar até cometendo uma gafe, pois, de repente, ele foi lançado por uma pequena editora com uma micro tiragem, que me passou despercebida – mas, pelo menos na minha semi-profunda pesquisa na internet, não achei nenhum registro dessa obra no Brasil). Trata-se de um trabalho assinado por Adrian Nicole LeBlanc, chamado “Random family – love, drugs, trouble, and coming of age in the Bronx” (“Família ao acaso – amor, drogas, problemas, e a passagem para o mundo adulto no Bronx”, na minha tradução). Este, só esclarecendo, é o nome do livro (que, se estiver com fôlego para investir no inglês, eu recomendo fortemente que você procure numa livraria virtual). O artigo publicado na “New Yorker”, no final de abril de 2000, chamava-se “Landing from the sky” (“Aterrissando do céu”) – e já era, para usar o primeiro adjetivo que me veio à mente quando o li, devastador.

Com uma dedicação – e determinação – que raramente encontramos hoje no jornalismo, LeBlanc acompanhou por anos uma geração de garotas e meninos no bairro nova-iorquino do Bronx, que, tentando entrar no mundo adulto, se depara com tráfico (e consumo) de drogas, gravidezes prematuras, desemprego, famílias disfuncionais, prisões, muito dinheiro, criminalidade – e toda sorte de elementos que contribuem para um amadurecimento, no mínimo, conturbado. São basicamente duas histórias: a de Jessica (e de seu envolvimento com um traficante de heroína chamado Boy George); e a de Coco, apaixonada por César, que é irmão de Jessica.

Como o próprio título do livro diz, é uma família escolhida ao acaso. Poderia ser qualquer uma de tantas outras no Bronx – ou em Chicago, Los Angeles, Miami. Poderia mesmo ser uma história contada na periferia de São Paulo – Vila Brasilândia, talvez? – ou num “complexo” do Rio de Janeiro. Porém, o retrato que LeBlanc faz da impossibilidade dessas adolescentes se desenvolverem numa atmosfera no mínimo saudável é universal. Só por isso, a história – que, lembrando, é uma pérola da não-ficção – já vale a pena ser contada. Mas além do impacto que um assunto desses sempre desperta, devemos acrescentar o talento da autora em nos colocar dentro da sua narrativa – como se estivéssemos não apenas lendo o que se passava com aquelas garotas, mas também as acompanhássemos pelas ruas do Bronx, nas visitas às penitenciárias, nas festas de traficantes, nas brigas de famílias em cozinhas apertadas e sujas.

“Random family”, reforçando, é talvez o melhor trabalho de não-ficção que já li – e que, infelizmente (alguém me corrija, por favor!), nunca foi lançado no Brasil. No entanto, para você que é fã do gênero – ou pelo menos tem curiosidade para se tornar um deles – tenho cá uma boa notícia: dois outros livros que já tinha lido há algum tempo em inglês tiveram lançamentos recentes no Brasil. Na verdade, foram eles que me inspiraram a escrever estes posts sobre não-ficção. São eles: “Querido menino”, de David Sheff (Editora Globo), e “Os caçadores de frutas”, de Adam Leith Gollner (Larousse).

Vou começar com o trabalho de Sheff – já que ele tem alguma coisa a ver com “Random family”… Sim, é um livro sobre drogas, mas ao contrário do trabalho de LeBlanc, ele não fala do cotidiano de quem comercializa (e eventualmente consome) o “produto”, mas de um garoto que cresceu numa família “saudável” e se envolveu, antes mesmo da adolescência, com maconha até chegar, antes mesmo dos 18 anos, ao que parece ser o pior de todos os vícios: o “crystal meth” (metanfetamina).

História velha – você pode pensar, naquela linha de quem (como eu já fiz muito) rejeita à primeira vista um trabalho de não-ficção. Porém, eu desafio você a me indicar uma história recente de um pai que não sabe o que fazer diante da dependência do filho, que seja mais emocionante que o relato de Sheff.

E o texto ainda tem outras qualidades. Para começar, qualquer um que cite a nota de suicídio de Kurt Cobain (“É melhor queimar-se do que desvanecer”), para compará-la com uma entrevista que da própria autoria com John Lennon (que teria dito a Sheff: “É melhor desaparecer como um soldado velho do que queimar (…) Eu venero as pessoas que sobrevivem. Fico com os vivos e saudáveis”), já tem o meu respeito. E “Querido menino” vai ainda mais além. Na busca de respostas sobre o que teria levado seu filho a um estado que, em acidentes de carro, a gente chamaria de “perda total”, Sheff é de uma transparência comovente.

Desde a emoção dos primeiros anos da vida de seu filho, Nic, ao abandono com que ele admite seu fracasso nas páginas finais, você lê o livro como que segurando na mão desse pai. Sabendo de antemão que essa é a história de um dependente, cada parágrafo é como uma curva que um carro faz num despenhadeiro: há potencial de desastre a cada momento – e você pode ter certeza de que ele virá… “Em todo lugar que vou agora há lágrimas. Lágrimas por toda parte. Um dilúvio. Uma inundação” – escreve Sheff já quando Nic desaparece por dias pela enésima vez e ele procura um grupo de apoio para pessoas que estão em situação semelhante. E você não tem como não chorar junto.

“Querido menino”, porém, não é nada piegas. Se é um livro comovente, é menos pela apelação do sentimentalismo, do que pelo talento de Sheff para contar a história – que acontece no seio de sua própria família – com um desprendimento comovente e contagiante. Nos relatos de suas próprias experiências com drogas, esse pai (que é “fruto” dos anos 60) tem a honestidade de reconhecer aí alguns questionamentos que possa ter passado para o filho. Sem entrar em julgamentos morais, porém, admirei a clareza e o desespero aberto de Sheff – que venceram, inclusive, minha declarada antipatia por histórias que vitimam usuários de drogas. Ponto para um bom texto, que abriu meu interesse para um tópico pelo qual eu não tinha a menor boa vontade.

Sem dúvidas, eu gosto mais de falar de frutas do que de drogas, mas não posso dizer que sou um amante do assunto. No entanto, o livro “Os caçadores de frutas” me deixou completamente fascinado por esse universo – e é de fato um universo. A inspiração de Gollner surgiu – surpreendentemente (mas nem tanto) – aqui mesmo no Brasil. Mais especificamente, no Jardim Botânico. Instigado pelas sensações – gustativas, olfativas, visuais, táteis (e, quem sabe, até auditivas!) – que experimentou com frutas brasileiras, este jornalista canadense saiu em busca de referências “frutíferas” pelo mundo – e acabou nos oferecendo um livro fascinante. Sim, sobre… frutas!

O ponto de partida então é o Brasil, mas o autor nos leva para os cantos mais inesperados do mundo em busca das frutas mais exóticas – e dos “malucos” que as perseguem. Sua primeira “aventura” depois que decide escrever sobre isso é no Havaí – e de cara já ficamos impressionados com a variedade que é possível encontrar por lá. Entremeando suas descobertas com referências históricas (alerta de chatice!) e científicas (alerta vermelho de chatice!), Gollner faz você se interessar por cada detalhe, num texto tão bom que sobrevive até a (às vezes) descuidada tradução (por exemplo, ao discorrer sobre de nozes – “nuts” – logo no início, você se depara com a frase: “Um coco não é absolutamente uma noz; é um fruto” – sem o menor aviso de que a frase só faz sentido no original, em inglês, onde “coco” é “coconut”…).

Do respeitadíssimo chefe espanhol Ferran Adriá (famoso por sua experimentação) ao desconhecido oficial da inteligência francesa Amédée-François Frézier (que enlouqueceu com morangos chilenos em 1714!), “Os caçadores de frutas” tem uma quantidade de informações curiosas suficientes para te entreter até a Páscoa – e quem sabe além!

E, quando você acabar de lê-lo, tenho certeza de que um outro livro de ficção será capaz de seduzir você a mergulhar num assunto que você nem imaginou que um dia pudesse te interessar…

Não-ficção (1)

seg, 09/03/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Poucas vezes fiquei tão emocionado com o retorno dos comentários. O motivo, claro, é que o assunto fala perto do meu, hum, coração. Meio brega falar assim – você pode até achar. Mas quem gosta de discos vai me entender… Viajei em todos os lugares indicados: do Dino (do interior do Paraná) que ia sempre no sacarão que não só vendia discos, mas também trocava, ao Sebo do Disco em Brasília, dos irmãos Isnaldo e Ismar (lembrada pelo Gian); da All Wave em BH (obrigado pela dica, Bruno Perillo!) à lembrança da Camila Fronza de Camargo (não é minha prima!), que encontrou o paraíso numa feirinha no Lago da Ordem, em Curitiba. Fiquei até com vontade de voltar no tempo e conhecer O Disquinho, em Lins (SP) – dica da Hellen –, bem como a banca de revistas da rodoviária da sua cidade que também vendia discos… São tantas lembranças legais: Castelo do Rock (Ricardo Delfino), Múscia Viva (Maco Aurélio), Urban Cave (Adriano), Wine & Music (Adriana), Acervos Discos (Patrícia Silva)… Citando o comentários do Izaias, “quantos amigos, quantas tardes, quantos sábados, quantas horas de almoço”…

E o mais legal é que não foram lembranças cheias de chororô – a nostalgia insigne, como comentou a Ariana, para falar não de uma loja de discos, mas de uma biblioteca onde passou parte da sua adolescência, “o esconderijo dos polissíndetos, das antíteses, das metáforas”. Foram relatos de boas memórias. E assim, por uma inesperada coincidência, a melhor trilha sonora para ler esses comentários acabou sendo o próprio álbum do Beirut, “March of the Zapotec”, que eu já queria ter comentado desde a semana passada.

Coloquei-o mais uma ver para tocar ao começar a escrever este post, e fui vítima de uma estranha associação de idéias – um caminho inretessante que eu convido você agora a me acompanhar.

O ponto de partida, então, foi a curiosa faixa do primeiro CD (“Zapotec” tem o a ousadia fora de moda de ser duplo!), chamada “El zócalo”. Com exatos 28 segundos, a faixa tem cara de que foi gravada ao vivo, numa apresentação de banda popular numa praça de cidade do interior (“zócalo”, no México, refere-se justamente a esse espaço urbano) – parece ser uma espécie de inspiração primária para Zach Condon, o cara por trás da banda Beirut. Quando fui ver as notas da capa do CD, veio a confirmação: gravada durante a performance de uma banda desconhecida na “praça” Zócalo, em Oaxaca (México).

Com seus sopros esfuziantes, pratos frenéticos, e ritmo de festa, “El zócalo” é um instantâneo de alegria. Por um momento me lembrei até do “sampler” usado por Villalobos no seu clássico moderno “Fizheuer Zieheuer” (já comentado aqui); e também das várias bandas dos Bálcãs que inspiraram tantas danças de roda (do tempo em que eu ainda era bom em ensinar ou outros a dançar!); e do próprio som do Beirut, apresentado aqui no final de 2007, e revelado para um público maior por aqui desde a inclusão de uma faixa sua na sensacional minissérie “Capitu”.

Esse clima da abertura vaza para todas as outras músicas de “March of the Zapotec”, e se mistura à sutil melancolia do Beirut para um efeito cativante. As outras breves faixas do CD são emocionantes o suficiente para você ouvi-las de uma tacada só e achar que foi pouco. Mas isso não chega a ser uma surpresa – ainda mais para quem já é fã de Zac Condon. O choque vem mesmo no outro CD, que se chama “Realpeople Holland”, e é… como vou colocar isso? Eletrônico! O susto foi tão grande, que quando ele começou a tocar no meu iPod, achei que eu tinha apertado sem querer a tecla “shuffle”.

Não se parece em nada com o som que a gente está acostumado a esperar dessa “banda” – e, o melhor de tudo, é que é ótimo: primeiro, algumas notas claramente digitalizadas, é só quando entra a voz de Zach que você acredita que aquilo é mesmo uma obra do Beirut. O título dessa primeira música (que pode ser traduzido como “Minha noite com a prostituta de Marselha”) também ajuda a dar o clima, que se estende pelas faixas seguintes – apenas mais quatro, que primeiro te fazem lembrar de Depeche Mode, e, em seguida, remetem a outra banda ainda mais interessante na sua perversão, o Soft Cell.

Estranhamente, essa coleção eletrônica combina perfeitamente com o “acústico” gravado em Oaxaca – e, talvez por isso, me lembrei de quando visitei essa cidade mexicana. Foi na primeira volta ao mundo que fiz com o “Fantástico”, em 2004. Naquela viagem – como você talvez se lembre –, o público escolhia toda semana meu próximo destino. E logo de cara, na saída do Brasil, entre a Guatemala e o México, a maioria quis que eu fosse para o segundo destino. E lá, nossa missão era chegar a Oaxaca – que é, diga-se, uma das cidades mexicanas mais charmosas (como a foto aqui, tirada naquela época, não me deixa mentir).

Como era o primeiro lugar que visitava naquele projeto, aproveitei cada minuto. Explorei todos os cantos da cidade – inclusive, claro, o “zócalo” – e ainda tive tempo para ouvir um pouco da música que tanto inspirou o Beirut. Na verdade, gostei tanto de lá que quis levar todo tipo de recordação – inclusive um curioso livro chamado “Oaxaca journal”. O que me chamou a atenção nesse volume era seu autor: Oliver Sacks, o famoso neurologista americano que tornou-se também um autor de sucesso.

Seu livro mais recente (para dar uma referência), “Alucinações musicais – relato sobre a música e o cérebro” (Companhia das Letras), examina de maneira deliciosa – às vezes tristes, às vezes divertidas – a estranha relação que nós humanos temos com a música. Neste trabalho, assim como nos outros, Sacks mostra que é mestre em transformar histórias bizarras – seu primeiro “bestseller” chamava-se “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu” – em narrativas cativantes. Fã seu desde meados dos ano 90, comprei “Oaxaca journal” (até hoje inédito no Brasil) sem pestanejar. Um autor que eu já admirava escrevendo sobre uma cidade pela qual eu estava me apaixonando? “Claro que si!” – como se diz no próprio México.

Imagine então minha surpresa ao descobrir que o livro trata menos de Oaxaca do que uma paixão “secreta” de Sacks: ele foi até o México em busca de raros tipos de samambaia! Como? Bem, resumindo o que ele conta no livro, Sacks descobriu uma espécie de “sociedade de amantes de samambaias” em Nova York e, meio por impulso, acabou embarcando numa excursão para o México com um grupo que ia atrás dessas “raridades”.

Um assunto aborrecido – você já está pensando… Mas nenhum tópico fica chato quando quem escreve tem talento – e Oliver Sacks tem de sobra. O livro nem é muito grande, mas me debrucei sobre ele como uma longa aventura. E mais uma vez, lá estava eu, totalmente absorvido por um livro – que não era uma obra de ficção… (falei que o texto de hoje era uma livre associação de idéias, vamos em frente).

Quando aprendi a me apaixonar por livros – graças, entre tantos autores, à Agatha Christie –, leitura para mim era um contato com uma história inventada, fruto da imaginação de um autor, um exemplo da criatividade a serviço da palavra. Nesse tempo (sou das antigas…) as listas de livros mais vendidos vinham divididas em “nacionais” e “estrangeiros” – uma referência, claro, à origem dos autores. Aos pouco, porém, essa divisão foi mudando para “ficção” e “não-ficção”, e fui me acostumando a olhar essa “estranha” categoria com interesse, a princípio, moderado. Não-ficção, antes de eu me interessar de verdade e descobrir exatamente o contrário, era um rótulo para livros “presos demais à realidade”, ou “tratados desinteressantes em cima de um assunto só”. Como isso poderia ser atraente?, eu pensava – e como eu estava errado…

Não sei exatamente qual foi o primeiro livro não-ficção que me fez mudar de opinião, mas posso afirmar com certeza de que a leitura periódica da revista “The New Yorker” teve parte nisso. Eu já morava em Nova York, em 1989, quando fui convencido por um grande jornalista – que era mais ou menos meu mentor (mesmo que ele recusasse esse título) – a assinar a revista. Foi depois que ele leu, na íntegra para mim – em inglês, e pelo telefone – as duas partes de um artigo da jornalista Janet Malcolm na “New Yorker”, chamado “The journalist and the murderer” (“O jornalista e o assassino”). Foi uma ligação de horas, claro – durante a qual eu fiquei totalmente hipnotizado – e que mudou meus hábitos de leitura de duas maneiras. A primeira, passei a assinar a “New Yorker” (hábito que dura até hoje – acabei de renovar até abril de 2010!). A segunda, quando soube que o ensaio de Malcolm tinha virado um livro, comprei na mesma hora, e comecei a dividir meu interesse entre ficção e não-ficção.

“O jornalista e o assassino” (lançado aqui pela Companhia das Letras), resumindo um ensaio ultra-complexo, é uma fascinante meditação do papel de um jornalista diante de seu assunto – e sobre as implicações éticas e morais que essa relação entre um lado, que quer contar uma história inédita (ou, pelo menos sobre um ângulo inédito), e o outro que hesitar em colaborar, atento para as conseqüências que isso pode trazer. Mais uma vez você está tentado a pensar que assunto é chato. Que nada…

Por que estou aqui escrevendo sobre não-ficção? Bem, primeiro pelo prazer de fazer aqui um “meta” exercício – uma vez que este espaço, e mesmo essas palavras que estou escrevendo agora, não são trabalhos de ficção. E depois, porque acabei de ler recentemente dois belos exemplos desse gênero – um sobre uma paixão incomum por lago aparentemente tão ordinário como as frutas, e outro sobre um comovente relato da relação entre um pai e seu filho, dependente de drogas.

E era sobre eles que eu achei que ainda teria fôlego para escrever aqui hoje. Mas acabei avançando no texto… Felizmente, esse assunto rende o suficiente para garantir pelo menos mais um post. Assim, na quinta-feira, seguimos nessa associação livre, falando desses livros que tanto me entusiasmaram – e mais um clássico moderno da não-ficção que lamentavelmente nunca foi lançado por aqui…

Réquiem

qui, 05/03/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Esta semana chegou minha encomenda: um pacote compacto – como que um pequeno tijolo acomodado em um envelope semi-acolchoado. Sem surpresas: eu sabia muito bem o que tinha dentro dele – cinco CDs que eu encomendei pela internet. Se interessar: “Merriweather Post Pavilion”, do Animal Collective; “The pains of being pure at heart”, da banda com o mesmo nome; “Out of the Bachs”, The Bachs (uma raridade do final dos anos 60, agora relançada); “Vida e obra de Johnny McCartney”, De Leno (outra raridade, essa de 1971, e brasileira!); e a última surpresa de Beirut, “March of the Zapotec” – que, se der tempo ainda quero falar hoje. De onde vieram esses CDs? Lá de Nova York, da minha loja de discos favorita no mundo, a Other Music – talvez um dos últimos endereços para quem gosta de discos independentes, um dos poucos que vão sobrar para contar a história. Ou não…

Estive lá da última vez em janeiro deste ano – e foi um choque. Boa parte das suas prateleiras – espalhadas por um espaço de não mais que 25 metros quadrados – estava vazia. A variedade de títulos ainda era enorme, bem como a qualidade das esquisitices que eu me acostumei a encontrar por lá. Mas os espaços não preenchidos não deixavam dúvidas: cada vez menos pessoas estão passando por lá para comprar seus CDs.

A Other Music fica na rua 4, em Astor Place, pertinho daquele que foi um dos templos da música, a extinta Tower Records da Broadway com a própria rua 4. Em 1989 (antes de você nascer?), quando eu morava em Nova York, passar pela Tower duas vezes por semana era uma espécie de ritual sagrado. Não que eu tivesse dinheiro para comprar o que eu quisesse – naquela época, o orçamento (de correspondente júnior de um jornal) era bem curto, e eu me programava para levar apenas um CD por semana. O que eu fazia no resto do tempo que eu ficava lá? Olhava, olhava, olhava…

Se você é tão apaixonado por música quanto eu e já teve a chance de perambular por uma loja de discos sem compromisso de comprar nada, sabe bem do que estou falando. A Tower, poderosa com seus três andares, exercia um fascínio irresistível. Porém, mesmo com todos aqueles títulos e infinitos corredores para escolher, a loja que eu mais freqüentava quando morava lá não era a Tower, mas a Rebel Rebel. Está lá até hoje – quem sabe até quando? -, na rua Bleecker, entre a Christopher e Grove, em pleno West Village. E seu dono também, com os cabelos mais grisalhos, talvez, mas sempre ligeiramente mal humorado, como é de lei num lugar assim – mau humor esse que, automaticamente, é quebrado no mesmo instante em que você pergunta por um disco da “banda certa”.

O que é a “banda certa”? De preferência uma que só você e o cara que está te atendendo conhecem. Obscura, alternativa, desconhecida ou então novíssima! Acertou a banda? A loja era sua… Passei por esse “batizado” mais de uma vez na Rebel Rebel (e até hoje, quando eu entro lá, não tenho certeza de que ele me reconhece). Mas por mais maltratado que eu fosse – nem sempre eu perguntava sobre a “banda certa” – eu sempre voltava lá. Especializada em pop inglês (que, por muito tempo também foi meu fraco), eu considerava a loja meu segundo lar. Comprava pouco lá também – não sobrava dinheiro! – mas batia ponto todo fim-de-semana. Horas a fio.

Foi só quando a Other Music abriu – e o grosso do que era vendido na Tower deixou de me interessar – que minha, digamos, “pesquisa musical” deixou de ser feita exclusivamente na Rebel Rebel, em Nova York (houve um tempo em que não existia internet, acredite). Eu já não morava mais na cidade – era o início dos anos 90 – e já começava a expandir um pouco mais minha curiosidade musical. Para quem estava justamente procurando novos horizontes, a Other Music chegou como uma excelente bússola. Fui tanto lá que perdi a conta de quantas descobertas felizes fiz – a princípio do som alternativo americano, mas depois de outros cantos também –, enquanto vagabundeava por suas prateleiras, então abarrotadas…

Já ouviu The Books, por exemplo? Encontrei na estante de recomendados por lá. Numa tarde gelada fui “apresentado” a Papa M na loja – como acontece tão freqüentemente, uma música que está tocando te leva a perguntar que disco é aquele, e (inevitavelmente) comprá-lo (a música que me fisgou, apenas para registro, era “I am not lonely with cricket”). Godspeed You Black Emperor? Conheci lá. E mais inúmeras compilações de “disco” italiano, o melhor do pop turco, do psicodélico chileno, da pós-tropicália brasileira (um dos donos da loja foi quem relançou toda a coleção dos Mutantes nos Estados Unidos), do proto-eletrônico alemão, do “folk” japonês. Com certo esforço, a Other Music conseguiu até que eu me interessasse um pouco por reggae! E não vamos nem começar a lembrar dos sons da Etiópia que comprei por lá, se não vou me perder do assunto principal.

O que quero comentar hoje aqui é que esse mesmo lugar que me deu tanta alegria agora está agonizando. E não está sozinho nessa sua agonia. Nova York ainda tem sua cota de lojas de disco independente (Gimme Gimme Records, Generation Records e a própria Rebel Rebel – para citar algumas). Mas quem passa por lá a não ser teimosos quarentões como eu? Essas lojas estão sumindo – o desaparecimento total é questão de meses -, mas não sem uma modesta onda de protestos.

Por exemplo, fiquei feliz em ganhar, recentemente, um livro chamado “OLD RARE NEW – The independent record shop” (Black Dog Publishing). O casal de amigos que me presenteou com o volume conhece bem minha paixão por esse tipo de estabelecimento, e entendeu quando, ao folhear suas páginas, vieram as primeiras lágrimas. Organizado por duas mulheres de quem nunca tinha ouvido falar (Emma Pettit e Nadine Käthe Monem), trata-se de uma coletânea de textos em homenagem a esses lugares de peregrinação de todos nós, amantes dos discos. A apresentação é de Barry Seven – um dos caras por trás da banda “dance” alternativa Add N to (X), que confessa de cara que começou a fuçar em lojas de disco aos 12 anos de idade… Depois dele, dezenas de DJs, produtores musicais, donos de selos de gravadoras e até mesmo das próprias lojas citadas prestam sua homenagem a esses santuários, onde tantos de nós nos acostumamos a receber “revelações”…

Falei tanto das lojas de Nova York, e quase me esqueci de citar um outro endereço que fica do outro lado do Atlântico, e que é simplesmente a “meca” de todos os adoradores de vinil – um lugar que, quando fui pela primeira vez, cheguei a tremer depois de mais de duas horas lá dentro sem me decidir pelo que levar: a Rough Trade Records. Era o último dia do ano de 1986, e saí de lá com tantos discos de vinil, que um cara que, por coincidência, estava também na loja e, depois, no mesmo metrô que eu peguei, me perguntou se eu não tinha conseguido vender meus LPs por lá – achando que um volume daqueles, na mão de um moleque daqueles, nunca poderia ter sido ser comprado, só negociado no escambo… Esse cara – que é um grande amigo até hoje, mora em Nova York e eventualmente me acompanha nas visitas à Other Music – ainda ri da cena improvável que presenciou há mais de vinte anos em Londres. Aliás, uma lembrança tão forte para mim que,  mesmo na mais radical limpa de vinis que eu já fiz na minha coleção, nunca abri mão das “bolachas” que comprei naquela tarde na Rough Trade.

E mesmo no Brasil, bem no centro de São Paulo, eu já tive o que o saudoso Style Council (de Paul Weller) chamaria de “my favourite shop”. Chamava-se Bossa Nova e ficava numa pequena e escura galeria na rua 7 de Abril. Era uma sociedade de amigos – e me lembro que um dos donos era um cara ótimo chamado Pardal (esse que hoje é um DJ famoso, Mauro Borges, também trabalhava por lá, se bem me lembro). Em meados dos anos 80, eu ia lá duas, três vezes por semana, às vezes para ver os mesmos discos (não é que o estoque era muito rotativo, uma vez que a importação de discos não era exatamente fácil nessa época). Mas não importava: o mais legal era ficar lá, “respirando” música, ouvindo conversa, escutando algo novo, e raramente – só raramente – comprando alguma coisa.

O livro “Alta fidelidade”, de Nick Hornby, que você provavelmente deve ter lido (se não, aqui vai essa tarefa para você durante a quaresma), capturou muito bem esse espírito – que eu, esta semana, inspirado pelo pacotinho que chegou da Other Music, resolvi lamentar que está com os dias contados…

Você certamente tem uma loja de discos favorita – ou já teve (se é que ela não fechou). Acho que eu gostaria de saber como ela é – ou era. Não quer mandar um comentário? Como é que se diz mesmo? Na tristeza, ficamos mais fortes?

(Como sugeri lá em cima, gostaria de ter falado hoje sobre “March of the Zapotec”, do Beirut. Acho que vou deixar para segunda-feira…)

Os incorrigíveis

seg, 02/03/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Teria o maior prazer de responder aqui ao Leonardo, que não entendeu a razão de eu ter achado uma piada a história do dublador que se recusou a emprestar sua voz à atuação – premiada agora com o Oscar – de Sean Penn. Poderia começar, citando inclusive um outro comentário (do Emerson), que “partindo do princípio de que o dublador é um ator”, ele se esquece de que o ofício da interpretação passa pelo desafio de encarnar um personagem que não é ele mesmo ou ela mesma, num louvável exercício de desprendimento do seu individualismo, e que é isso justamente que faz dele (ou dela) um profissional admirado – que celebramos o talento de uma Fernanda Montenegro não por ela interpretar Fernanda Montenegro nas telas, mas uma mulher que engana pessoas simples numa estação de trem (lembra de “Central do Brasil”?); ou aplaudimos o brilho de um Tom Hanks, para dar outro exemplo, não porque ele “vive” Tom Hanks no cinema, mas um paciente soropositivo (“Filadélfia”) ou um “sábio idiota” chamado Forrest Gump (dois papéis bem diferentes do que é o ator na vida real, e vindos de personagens com os quais, presumimos, ele sente-se seguro o suficiente para não ser confundido).

Essa seria a explicação mais, hum, técnica, mas tem também a mais, hum, “paz e amor”, que iria pela linha de a gente estar vivendo uma era de modesta esperança global, que vai desde a eleição de Obama nos Estados Unidos à tímida eliminação das diferenças sociais neste nosso país, um momento onde as pessoas celebram não só os modestos passos a caminho de um mundo mais igualitário, mas também a quebra de uma série de barreiras que não nos permitiam olhar para os outros seres humanos como de fato semelhantes – e que, num panorama assim, uma atitude (desculpe, uma “escolha”) como essa do dublador soa não apenas anacrônica, mas insignificante.

Mas, como você que aprecia uma boa ironia sabe bem, piada explicada perde automaticamente a graça. Então não vale a pena entrarmos nisso.

Até porque, o que eu tinha me proposto a discutir hoje aqui era o filme “Milk – A voz da igualdade”, que eu acho que merecia – mais do que “Quem quer ser um milionário?” – ganhar esse último Oscar. E, se eu tiver de esmiuçar “a última do dublador”, ficaria sem espaço para explicar esse meu voto para o filme de Gus Van Sant. Assim, parafraseando Sean Penn no seu discurso de agradecimento do Oscar de melhor atuação que ganhou pelo papel principal do filme, “you commie-homo-loving-sons-of-guns”, “Milk”.

Como você talvez tenha notado, 2008 não foi um grande ano para o cinema. A frase – que não é exatamente das mais originais, ainda mais diante das evidências – não é minha. Peguei-a emprestado de um artigo do crítico da “The New Yorker” David Denby, escrito quando a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou os indicados para os prêmios deste ano. É um texto que não recomendo especificamente para os fãs de “Quem quer ser um milionário?”, e menos ainda para os de “O curioso caso de Benjamin Button”, mas que aconselho fortemente para os que olham a produção cinematográfica de maneira geral – e sobretudo para quem gostou de “Milk”, que, como escreve Denby, como uma biografia “com um eletrizante senso de história e muita piada e sexo, [é o único filme que] tem a vida harmoniosa e a vitalidade humana que valida sua indicação”.

De fato, o que não falta em “Milk” – uma biografia de Harvey Milk, o primeiro político abertamente gay eleito para um cargo público nos Estados Unidos, nos anos 70 (São Francisco, Califórnia), assassinado depois de apenas alguns meses no poder por um ex-colega de gabinete – é vitalidade. Nem vida. Nem sexo. Nem piada.

A melhor delas, é provável que você tenha visto mesmo sem ter assistido ao filme, pois estava no trailer exibido em sessões de outros títulos tão “normais” – do ponto de vista de quem evita “Milk” por achar que é um filme sobre um estilo de vida “anormal” – quanto “Dúvida” (uma história sobre uma suspeita de pedofilia num colégio católico); “Foi apenas um sonho” (casal americano em crise discute aborto do terceiro filho); “O casamento de Rachel” (irmã da noiva chega para a cerimônia depois de um período numa clínica de reabilitação de drogados); ou “O leitor” (adolescente tem romance com mulher que tem o dobro de sua idade e que trabalhava num campo de exterminação nazista).  Enfim, a piada está na resposta que Milk dá a Dan White (Josh Brolin) quando ele, durante uma discussão “política” pergunta se dois homens podem se reproduzir: “Não”, diz Milk, “mas só Deus sabe como nós seguimos tentando”.

Entendo que nem todo mundo encare esse breve diálogo como “humor” – não é exatamente cena que se encaixaria num filme de Jim Carrey (alguém viu “Sim senhor?”). Mas Gus Van Sant, claro, nunca foi famoso por ser óbvio, mas sim sutil. Por falar em sutileza, a segunda melhor piada do filme quase passa despercebida. Não vou contá-la para não tirar a graça, mas é na hora em que um garoto de Minnesota liga para Milk para, digamos, “agradecer que ele existe”. Milk pergunta como o cara soube do seu trabalho e ele diz que viu uma foto do político num jornal da sua cidade – e aí, sua primeira reação é das coisas mais engraçadas que o filme oferece. É só uma frase rápida, mas (novamente) de uma sutileza que só Van Sant é capaz.

Se você, como eu, também foi apresentado ao trabalho do diretor em “Drugstore cowboy” (1989), conhece essa sua elegância há tempos. Ou talvez você acompanhe seu trabalho apenas desde “Gênio indomável” (1997), que lançou a carreira de Matt Damon – outro exemplo de mão leve com resultados profundos na direção. Meu filme favorito do diretor é “Elefante”, de 2003, sobre um tiroteio numa escola americana que lembra (nem tão vagamente assim) a tragédia de Columbine. Em todos esses trabalhos – até mesmo no insatisfatório “Last days” (uma recriação dos momentos finais do cantor do Nirvana, Kurt Cobain) –, a marca de alguém que não precisa fazer estardalhaço para passar grandes mensagens na tela.

“Milk” é simplesmente a culminação desse talento de Van Sant para nos fazer ver histórias aparentemente conhecidas – ordinárias e extraordinárias – sob um ângulo diferente. Em mais de um momento durante a sessão, tive a sensação clara de estar assistindo não uma biografia filmada, mas um documentário. Misturando bem pesquisadas imagens de arquivo, noticiários (de verdade) antigos, e uma cuidadosa reconstituição de época, o diretor consegue nos transportar para dentro da história como se fôssemos testemunhas do que estava acontecendo ali. E, com isso, sequestrar nossa emoção.

O envolvimento com a história de Milk é inevitável – e, antes que os defensores da “normalidade” se levantem, não é necessário ter as mesmas preferências sexuais de Harvey Milk para isso. A maneira como o roteiro de Dustin Lance Black (também premiado com o Oscar) retrata o personagem principal, a própria interpretação de Sean Penn, e, claro, a condução de Van Sant, transcendem os rótulos. E essa façanha, se me permite, eu acho que o faria merecedor do prêmio máximo do Oscar.

Seria a famosa “cereja no bolo” de uma conquista maior: fazer de um filme sobre essas criaturas “incorrigíveis”, como os homossexuais são chamados a certa altura no  próprio “Milk”, um evento maior – um filme que não é assistido (e muito menos comentado) apenas pela comunidade gay. E mais: um trabalho cuja lição universal de igualdade pode emocionar mesmo quem não tenha aquela queda por alguém do mesmo sexo (é uma amostragem pequena, eu sei, mas se o público que assistiu à mesma sessão que eu, na tarde da última segunda-feira, num shopping da zona sul de São Paulo, e que estava obviamente emocionada ao final da sessão, era toda composta de homossexuais – a sessão seguinte, pude conferir, também estava lotada – , eu diria que os bailes gays deste Carnaval deveriam estar bem vazios…).

Mais um ponto para Van Sant por levar a outro patamar temas controversos como esse para Hollywood. Como se diz em inglês, “you came a long way, baby” (ou, numa tradução apressada, “você fez um longo caminho, cara”). Há pouco tempo assisti a um DVD que comprei no início do ano em Nova York, de um filme que é geralmente citado como um dos primeiros sobre o mundo gay feitos por Hollywood. Não – não se trata de “Crepúsculo dos deuses” (1950) nem “O que terá acontecido a Baby Jane?” (1962), embora essa produção faça referências imediatas a essas duas outras… Trata-se de “The boys in the band” (1970) – uma adaptação para o cinema de uma peça sobre uma festa de aniversário onde oito homens gays – mais um amigo do dono da casa “inseguro sexualmente” – que pretendia pintar um grande quadro sobre o que era a vida gay urbana naquele período.

O filme – que, como uma transcrição seca do texto teatral, não funciona na tela – é um desastre, ainda mais visto da sombra de “Milk”: uma colagem de caricaturas afetadas, personalidades mal-resolvidas, homens que se odeiam – e alguns odeiam mesmo sua condição de homossexuais -, sobre um pano de fundo hedonista, onde o álcool e as drogas formavam o tortuoso caminho para o prazer. Apesar de ter vivido em Nova York (onde a história de “Boys” se passa) nesse mesmo período, duvido que encontraríamos Harvey Milk nessa festa…

Não que o herói do filme de Van Sant nunca tivesse frequentado ambientes como aquele… Mas a impressão que fica é que, para conseguir levar às telas uma produção com um assunto tão ousado como aquele, a condição imposta por Hollywood na época era tratar aquele bando de “incorrigíveis” como desviados decadentes – nunca como uma pessoa mais complexa, densa, quase “normal” (se você preferir) como Harvey Milk.

De “Boys in the band” a “Milk”, o cinema americano – e o público também, sem dúvida – mostra que passou por um enorme amadurecimento. Gus Vant Sant, mesmo sem o Oscar, pode se orgulhar de ter levado a discussão do que é retratar um personagem gay em Hollywood para outro patamar. E Sean Penn – que já teria meu voto apenas pela cena em que ele recebe a notícia de que foi eleito -, com seu triunfo da naturalidade sobre a caricatura, levou para casa algo bem mais valioso do que uma estatueta dourada: a certeza de que é possível fazer diferente (e diferença), e ainda ser admirado por isso.

Queria – ainda na onda do Oscar – comentar aqui sobre o genial ganhador do melhor documentário este ano, “Man on wire”. Mas, só para lembrar a mim mesmo de que este não é um blog só sobre cinema, vamos deixar mais para frente. Na quinta-feira, vamos tocar um réquiem para uma instituição que está agonizando lentamente: a loja de discos. Preparem seus lenços…



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