Estranhos retratos
Hoje eu ia escrever sobre… Já não é a primeira vez que começo um post assim – você que me acompanha há um tempo é capaz de reconhecer. Mas eu ia escrever sobre dois documentários excelentes que vi recentemente: aquele que ganhou o Oscar neste ano, “Man on wire” (um trabalho do diretor inglês James Marsh, sobre o qual me lembro já ter prometido escrever por aqui), e “Santiago”, de João Moreira Salles. Achei que poderia traçar paralelos interessantes entre os dois, mas este fim de semana fui assistir ao novo filme do diretor Mike Leigh, “Simplesmente feliz” – e mudei de idéia. Por estranhas associações acabei achando que Moreira Salles e Leigh, obviamente sem querer, tinham mais coisas em comum para serem exploradas. Assim, “Man on wire” vai esperar mais um pouco – quem sabe, uma possível estreia em circuito nacional (eu, o eterno otimista…) – pois eu resolvi fazer diferente. Até porque, como o próprio João Moreira Salles diz (na voz de seu irmão Fernando Moreira Salles, que narra o filme), “tudo deve ser revisto com uma certa desconfiança”. Qual o problema em mudar de planos?
O exemplo vem dos próprios diretores que cito hoje aqui. Em “Simples- mente feliz” (em cartaz no Brasil), Mike Leigh, talvez para espantar os temas pesados da maioria de seus filmes (já viu algum filme mais inocen- temente triste do que “Agora ou nunca” – ou um trabalho tão arrebatador quanto “Segredos e mentiras”?), resolveu fazer o retrato de uma mulher que é aparentemente impermeável ao mau humor. E em “Santiago” (recém-laçado em DVD), Moreira Salles, retoma um material de 1992, que ele simplesmente não conseguiu concluir – e faz, de uma reflexão sobre esse semi-fracasso, um belíssimo filme que nos consola da terrível constatação, como o próprio texto nos lembra já no final, de que “as coisas não fazem mesmo muito sentido”.
Santiago foi durante décadas mordomo de João Moreira Salles, na casa em que o diretor cresceu durante a infância e a adolescência. Essa constatação nos é apresentada em uma das últimas cenas do documentário, e serve de lembrete, para quem àquela altura ainda não tenha percebido, que essa é a relação que rege todas as filmagens. Não se trata de “documentarista e personagem” – nunca, em nenhum momento –, mas de “mordomo e patrão” (ou melhor, filho do patrão). A informação é dada em tom discreto, como toda a narração do filme. Mas, já hipnotizado por mais de uma hora de “material bruto” (quando foi lançado no cinema no ano passado, o filme tinha o sub-título “Reflexões sobre o material bruto” – que é, para quem não tem intimidade com edição, exatamente o que foi gravado, sem nenhum filtro), você ouve essa confissão do diretor – da sua impossibilidade de olhar Santiago de outra maneira que não um “subordinado” – como um soco.
A informação que vem em seguida – a de que uma tentativa de expressão pessoal de Santiago não mereceu nem que o diretor ligasse a câmera (e foi despistada com uma instrução ríspida para que seu personagem fizesse outra coisa) – chega como uma luva pesada de boxe do outro lado do seu rosto. Assim, numa involuntária referência a “Touro indomável”, você leva uma de esquerda, seguida de uma de direita. Pá-pum! E, quando acorda, percebe que pelos seus dedos acaba de escorrer uma fabulosa história comum.
Nas suas animadas, ainda que solitárias divagações, mostrado sempre à distância (em enquadramentos declaradamente inspirados pelo diretor japonês Yasujiro Ozu), o mordomo desfila características fascinantes. Fala de seus escritos – longas (por vezes longuíssimas) compilações de fatos sobre a nobreza de vários cantos do mundo e de várias épocas -; das suas Madonnas (uma pequena coleção de reproduções clássicas, que inclui, claro, aquele que é para Santiago o grande mestre pintor, Giotto); das antigas canções em dialetos italianos que nunca se esqueceu; de como organizava (e batizava) os arranjos de flores que fazia na casa dos pais do documentarista; da voz suprema – pelo menos no canto lírico – da soprano Lily Pons; e, claro, de sua prodigiosa memória.
Cá e lá, Santiago termina uma história com um “c’est fini” – como quem diz, “assunto encerrado”. Palavras em várias línguas que domina (francês, inglês, italiano, espanhol e, claro, português) escapam nas suas frases, carregadas com forte sotaque portenho, na mesma velocidade com que seus pensamentos atropelam seu discurso – e, na tentativa sôfrega de acompanhar tudo que está sendo despejado, este espectador que vos escreve sentiu-se mais de uma vez uma espécie de vertigem verbal. É nesses momentos que é possível se solidarizar com Moreira Salles: o que fazer com aquilo tudo? Entregar-se ao desconsolo de aceitar que “as coisas não fazem mesmo muito sentido”? Ou simplesmente retribuir o exercício do diretor, de alinhavar tudo de maneira intencionalmente frouxa, e completar as costuras – as emendas – você mesmo? Intuitivamente você acaba escolhendo a segunda opção – nem que pelo encanto vão de tentar interpretar um personagem tão naturalmente (e não intencionalmente) complexo (ou não) como Santiago.
Poppy também poderia ser descrita dessa maneira – não fosse ela uma personagem de ficção. Protagonista do filme de Mike Leigh, ela é maravilhosamente interpretada Sally Hawkins (que chegou a ganhar um Globo de Ouro, mas foi esnobada pelo Oscar…) – e ela é simplesmente feliz. Logo na primeira cena, pedalando pelas ruas de Londres como se tivesse acabado de saber que ganhou na loteria, sua reação ao ver que sua bicicleta (que estava estacionada na rua enquanto ela visitava uma livraria) foi roubada é: “Puxa, nem pude me despedir dela…”. Em seguida, bêbada depois de uma noitada com as amigas, ela simplesmente não consegue parar de rir diante da ressaca matinal da sua melhor amiga, com quem ela divide a casa. E o instrutor de auto-escola ranzinza? Ah, que maravilha… vamos fazer piada de tudo isso.
O último filme de Mike Leigh é, de fato, bem mais animado do que os dois últimos – “O segredo de Vera Drake” era sobre uma mulher que fazia abortos nos anos 50, em Londres; e “Agora ou nunca” é um retrato de uma família pobre inglesa cujo casamento é um desastre e só perde para a relação dos pais com os filhos. Mas junto com toda a “alegria” de Poppy vem um enorme incômodo – aquele que ela mesma acaba causando com seu bom humor. Chega a ser aflitivo a maneira como ela enfrenta as piores situações. Grosserias, tons de voz mais altos, leves insultos – tudo ela retruca com o mesmo recurso que faz dela uma função fática ambulante: respostas prontas que não querem dizer absolutamente nada nem servem para nada a não ser manter uma conversa andando.
Assim como Santiago tem seu “c’est fini”, Poppy tem sua “interjeição clássica”: “Isn’t that just?” – algo como “não é mesmo?”. Repetida à exaustão, ela não chega nem a ser uma pontuação – apenas um suspiro para ela continuar a sorrir. Até quando? Bem, esse é o suspense que Leigh consegue criar. Nós, tão cosmopolitas, moderno, urbanos, dinâmicos – e eventualmente arrogantes – não podemos conceber alguém que é pura alegria. No entanto, as coisas vão acontecendo com Poppy, os obstáculos normais, de uma vida, de uma rotina normal, vão se desenrolando e… você acha que alguma coisa tem que acontecer com ela e… bem, você vai ver o filme.
Se Santiago tinha seus códigos de comportamento – quase todos moldados pela própria profissão e pela sedução da “nobreza” (na verdade, “riqueza”) para a qual trabalhou, Poppy também parece viver num restrito estilo de vida – só que aquele ditado pelos incontáveis artigos de revistas femininas progressistas e livros de auto-ajuda: “vá em frente, menina!”; “não deixe os problemas do dia-a-dia te derrubarem!”; “enfrente os problemas com leveza!”; “você pode ser feliz!”. Santiago, seguindo sua “cartilha” ganhou uma vida interior riquíssima, mas também a solidão. E Poppy? Cercada de amigos, uma festa constante ao seu redor. E o que mais? Nada demais.
Hawkins é da trupe de Leigh – já fez vários de seus filmes e, como sempre, é brindada com o os frutos precisos da marca de improviso do diretor. Mas em “Simplesmente feliz” ela ganhou um presente muito maior: uma personagem daquelas de definir a carreira – mas não no clichê hollywoodiano… Ela não faz uma prostituta de coração bom, uma mulher que enfrenta a justiça americana, uma mãe que luta pelos seus filhos, uma esposa desesperadamente tentando salvar seu casamento. Poppy é brilhante porque é a garota mais normal do mundo – e é retratada como tal. Só que o filme, que poderia ser uma bobagem, é genial justamente por isso. Porque não é nada.
Santiago também era um homem normal – um mordomo que escondia (ou melhor, disfarçava) uma erudição secreta, é verdade, mas visto de longe (e, lembrando, todos os planos do documentário nos faz vê-lo de longe), absolutamente normal; e também genial. Ambos são a celebração não do extraordinário, mas do mero ordinário. E são sublimes.
Quantas dessas histórias assim, não deixam de ser contadas – em filmes, em novelas, em livros, no teatro? O mérito de João Moreira Salles e Mike Leigh – um na “vida real” (real mesmo?) e outro na ficção (ficção mesmo?) – é nos encantar com esse quase nada.