O choque no novo

qui, 29/01/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Então você quer saber como foi a entrevista com Alanis Morissette? Tudo bem, mas, antes, posso te fazer uma pergunta? Como você conhece um novo artista, uma banda que está fazendo alguma coisa interessante, um som que você nunca ouviu?

Há muito tempo li um artigo que me impressionou muito sobre nossa capacidade de incorporar novos gostos. Foi na “New Yorker” – só peço desculpas porque, por assumida incompetência mnemônica, não posso dar aqui o link, já que eu mesmo não tenho certeza de quem escreveu nem quando exatamente ele foi publicado (no mínimo há uns dez anos, mas pode ser mais…). Mas a ideia do texto ficou comigo até hoje – não é assim que acontece quando você encontra algo bem escrito e bem exposto? – e constantemente eu o cito em conversas, sem nunca, porém, dar o crédito… Essa ideia é: existe uma idade onde “cristalizamos” o nosso gosto – e isso acontece mais ou menos quando estamos na faixa dos vinte e poucos anos.

Quem escrevia era um cientista (cujo nome, repetindo, não me lembro) de uma área ligada ao comportamento – ou talvez ao estudo dos animais (não seria a mesma coisa?), e sua observação partiu da reação de um assistente seu, mais jovem, que não suportava a música que ele – o cientista – ouvia em seu laboratório. Se não me engano era reggae – ou um outro estilo que floresceu nos anos 70 -, e seu assistente, “educado” no rock alternativo dos anos 90, reclamava constantemente desses que, para ele, eram “flashbacks” (mesmo que o cientista colocasse um artista mais moderno de reggae). Ou talvez fosse o contrário: o cientista não suportava a música que seu assistente ouvia… O fato é que esse “desencontro musical” fez o contista ponderar se existia uma época onde nossa preferência – por música, por uma estética visual, pela moda, por uma tendência gastronômica – “congelasse”, como se a gente dissesse: “é disso que eu gosto mesmo e quero repetir essa experiência pelo resto da minha vida”. Pesquisando, ele concluiu que isso acontece nessa faixa etária – dos vinte e poucos anos.

Qualquer pessoa que já foi a uma “noite do flashback” – anos 60, 70, 80, 90… – sabe do que eu estou falando (nunca foi? tem certeza?). Por que, com tanta música boa sendo feita a cada dia, gostamos de ir a um baile para dançar apenas músicas de um determinado período? Talvez porque elas nos levem à memória de uma “época de ouro” das nossas vidas – 21, 22 anos, talvez? Ponto para o tal cientista!

Mas será que isso também não é uma maldição? Como não deixar de se sentir excitado pelo “choque do novo” (pegando emprestado o título de um livro que fez muito sucesso nos anos 70)? Ao ler o artigo da “New Yorker”, lembro-me comecei a imaginar como seria possível “driblar” esse destino. Assumindo que algumas pessoas – como este que vos escreve – estão sempre interessadas no que está sendo feito de novo, como não ficar escravo do gosto da sua juventude? O que faz esses “curiosos perpétuos” irem sempre em busca de uma novidade? O cientista – pelo menos na minha fraca memória do artigo – não tinha uma resposta para isso. Mas, inspirado no artigo, passei a me checar constantemente para saber se estou aberto às coisas novas. Passei a fazer isso com todas minhas áreas de interesse – mas sobretudo naquela arte que é mais acessível para mim (e, hoje em dia, para qualquer um que tem acesso a internet): a música pop.

Um dos principais instrumentos que me ajudam nessa checagem é o número anual (que sai sempre no início do ano) do “NME” – o “New Musical Express” inglês -, no qual eles indicam as bandas que vão chamar atenção na temporada. As apostas do semanário musical para 2009 foram publicadas recentemente – e corri para conferi-las. Antigamente essa tarefa envolvia anotar as coisas mais interessantes numa lista, esperar uma oportunidade de viagem – ou de algum amigo que vai viajar – para então conseguir os “singles” ou os álbuns daqueles novos artistas. Ou então confiar em importadoras de discos – uma espécie extinta na nossa era. De dois anos para cá, porém – e este ano ainda mais imediatamente -, basta um clique rápido no myspace para você testar as novidades e concordar ou não com o “NME”- lembrando que eles já acertaram em cheio no passado (Franz Ferdinand!), mas também erraram feio…

Foi exatamente o que eu fiz esta semana, com o elenco de estreantes indicado por eles (todas as bandas citadas aqui têm sua página no mysapce – e sugiro que você faça o mesmo). E, para a minha satisfação – sempre com o teste do “gosto cristalizado” em mente – posso informar que ainda sou capaz de me entusiasmar com novidades. Não só pelo frisson do ineditismo, mas porque a maioria desse time que vem por aí tem coisas muito boas para oferecer.

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Como a maluca, da foto acima, chamada Florence – cuja banda atende pelo nome de Florence and the Machine. É sensacional! “Dog days are over”, por exemplo, é uma mini-ode anárquica, com um vídeo inacreditavelmente psicodélico. Ela cantando em “A kiss with a fist” mostra mais atitude do que todas as bandas alternativas de 2008 juntas (inclusive as brasileiras). Só pelos títulos das músicas, você já se apaixona: “Girl with one eye” (“Garota de um olho só”), “My boy construct coffins” (“Meu garoto faz caixões”), “Between two lungs” (“Entre dois pulmões”). Acontece que as músicas também são geniais e inesperada – “Lungs” parece que veio do espaço sideral! Desde já, ela é a artista de 2009 – e, em algum lugar do passado, imagino que Karen O deve estar feliz por ter encontrado uma herdeira em Florence.

Tem ainda, na categoria “banda alucinada” (será uma tendência?) um bando chamado Empire of the Sun – e se você achou o nome esquisito procure por eles no youtube para conferir o visual. Com seus mais de cinco milhões de acessos no myspace “Walking on a dream” já é um hit “dance pop” animado. “We are the people” tem uma ótima levada (bem anos 80) e “Swordfish hot kiss nite” é tão esperta que lembra até o Tom Tom Club.

Ainda nos (meus) favoritos, The XX é um achado com seus discretos e efetivos arranjos. “Blood red moon” tem uma batida mínima, cordas idem, e um vocal distante – e é uma modesta obra-prima. Gostei também de “VCR” e não acreditei quando reconheci o clássico “Teardrops”, de Womack & Womack, numa versão. Recomendadíssimos! E tem uns caras chamados The Big Pink que também são excelentes: “Tooyougtolove” é meio hipnótica e lembra a perfeição fria do Section 25; “Dominos” tem um ótimo refrão; e “Abriefstoryoflove” (os títulos pareces que são todos assim, grudados) tem toques orientais e uma levada de “summer of love” do final dos anos 80 (pense em Primal Scream, “Screamadelica”).

A seleção do “NME” para 2009 tem ainda outras coisas interessantes – que, embora não tenham me entusiasmado muito, podem dar um caldo. Como The Virgins (a única banda que eu já conhecia dessa leva), com seu som típico de Nova York (lembra Vampire Weekend); The Soft Pack (lembra Franz Ferdinand); White Lies (lembra Ultravox – quem se recorda? – e às vezes, bem de leve, Joy Division); The Chapman Family (mais pesado, mas com boas melodias, como “Sound of the radio”); Little Boots (vá direto ao remix de “Stuck on repeat”); e Kid CuDi (prova de que ainda é possível inventar algo no hip-hop). Se precisar de mais diversões, de uma lista mais breve (“o melhor do resto”, como está no título do “NME”) ainda pincei Young Fathers (bem dançante), Dinosaur Pile-up (que tem a ousadia de lembrar Nirvana), La Roux (boa promessa pop), e os redentores do pop eletrônico dos anos 80: Delphic.

Só isso já nos dá assunto para o ano inteiro. Sem contar que, em meados de 2009, vamos inevitavelmente esbarrar em mais “sangue novo” – e seremos também inevitavelmente seduzidos por ele… Por isso mesmo, agora eu faço outra pergunta para você: com tanta música nova aparecendo, como ficam os artistas veteranos que você aprendeu a gostar no passado? Devemos rejeitá-los, com medo de “cristalizar” nosso gosto? Ou ouvi-los com a mesma atenção que as novidades? É possível escutar um artista que você conhece há mais de uma década como se fosse pela primeira vez?

Tive a oportunidade de testar essa última hipótese recentemente, quando entrevistei Alanis Morissette em Manaus. Não estava exatamente diante de uma estranha: já havia feito nada menos que cinco entrevistas com ela – mais até do que qualquer artista nacional que já cruzei! A explicação: por uma feliz coincidência, sua carreira deslanchou mais ou menos quando eu estava começando no “Fantástico”. Fiz a primeira entrevista em 1996. Depois dessa, vieram as outras – e sempre calhava de ser comigo. Até que na quarta vez em que nos encontramos ela me reconheceu, achou graça da coincidência e… bem, tudo ficou mais fácil. Não que a gente tivesse criado uma intimidade – isso raramente acontece no “show business” entre artista e jornalista (para ambos os lados, as entrevistas são encontro de trabalho). Mas na quinta – e sobretudo nessa sexta vez, semana passada em Manaus – a conversa inevitavelmente rolou mais solta.

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Num fim de tarde à beira do rio Negro, Alanis estava bem feliz de estar no Brasil. Todo artista diz isso quando já está aqui – ou prestes a chegar por aqui -, como estratégia para agradar seus fãs (é um dos maiores clichês dessas entrevistas). Mas Alanis estava genuinamente contente de ter chegado por aqui – e animada com a perspectiva de passar três semana viajando e se apresentando pelo país. Em encontros anteriores, ela sempre foi doce, suave e agradável. Mas desta vez percebi que ela estava também relaxada. Seu último disco, lançado em meados do ano passado, foi bem recebido pela crítica e pelos fãs – e apesar de ter como tema uma separação (“Not as we” é uma das canções mais tristes  e bonitas que ouvi recentemente), não faz a linha “baixo astral”. Ela estava num país que já visitou e que sempre quis conhecer melhor. Então, para que se preocupar?

Nesse clima totalmente descontraído falamos de música, de carreira, de amadurecimento, de espiritualidade, de fãs – até de separação. Mas o assunto que pegou mesmo, adivinha qual foi? Viagens! Fã da Índia – como eu -, Alanis contou que sempre quis conhecer outras culturas, e que depois que começou a viajar para lugares cada vez mais distantes (para nós aqui no “ocidente”, pelo menos), agora não quer mais parar. Consegui convencê-la a visitar o Laos imediatamente (por coincidência, o episódio dessa minha volta ao mundo que vai ao ar este domingo passa exatamente por lá, num patrimônio lindíssimo da humanidade chamado Luang Prabang) – e deixamos várias portas abertas para pensarmos em outros destinos. Numa sétima entrevista, talvez?

Mas o melhor do encontro mesmo foi eu ter me sentido tão excitado de estar perto dela novamente. Como já disse, para mim ela não era novidade. Mas o brilho da artista que Alanis é me faz sempre considerá-la como nova (será que algum dia vou achar isso também de Florence?). Nesse sentido – e pegando aquela ideia do cientista que contei acima -, nem ela na sua arte, nem eu no meu gosto, ficamos “cristalizados”. E posso garantir que o dia em que você chegar nesse estágio com alguém que admira, vai estar perto do nirvana (sem trocadinhos, por favor…).

Para nascer de novo

seg, 26/01/09
por Zeca Camargo |
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“Música para mim está sempre associada a otimismo. Eu tive uma sensação imediata de camaradagem quando li que um dos prazeres da velhice de Isaiah Berlin era comprar ingressos de concertos com vários meses de antecedência (eu sempre o via, no mesmo camarote no Festive Hall). Ter as entradas, de alguma maneira, é uma garantia de que você vai ouvir a música e prolonga sua vida pelo menos até o último eco das cordas finais que você pagou para ouvir desapareça”.

Quem conta essa história sobre o famoso filósofo – fácil de qualquer um apaixonado por música (como eu) se identificar – é o escritor Julian Barnes, no seu novo livro – ainda inédito no Brasil, “Nothing to be frightened of” (“Nada a temer”, em português – ou talvez, agora que terminei o livro, talvez  tradução “Nada que possa assustar” faça mais sentido – e esse é o tipo de livro onde sutilezas assim são importantes… boa sorte tradutor!). Por uma estranha coincidência – nem tão estranha assim para quem acompanha aqui meu culto ao acaso – estava justamente finalizando essa leitura quando fui assistir a “O curioso caso de Benjamin Button” – um dos mais fortes candidatos ao Oscar de melhor filme este ano, alvo de várias apostas desde que a lista de nomeações deste ano foi divulgada na última quinta-feira (e aqui, de maneira breve, deixo meus sentimentos aos que mais estão sofrendo nessa hora: os fãs de “O cavaleiro das trevas” que sugeriram que eu teria uma “lição” quando saíssem as indicações ao prêmio máximo do cinema, só porque eu não achei que a última aventura de Batman a coisa mais incrível que apareceu nos cinemas nos últimos tempos, mas apenas um filme competente, com falhas suficientes para colocá-lo na mesma lista do recém-lançado “Austrália”, de Baz Luhrmann – se você não “captou” a comparação, cobre-me uma explicação uma outra hora… Em tempo, Heath Ledger – onde quer que você esteja – saiba que meu voto seria seu, se eu fosse membro da Academia…).

Retomando, tanto “Benjamin Button” quanto o livro de Julian Barnes me fizeram pensar sobre um assunto que geralmente rejeitamos num primeiro momento, mas que sempre que discutido num mero grau acima da superficialidade – e de maneira abstrata, isto é, sem termos de falar dele porque perdemos alguém querido – pode ser interessante: a morte.

A história de “Button” você já deve ter ouvido falar – mesmo que ainda não tenha assistido ao filme: um bebê que nasce velho na sua aparência e que vai ficando cada vez mais jovem à medida que sua idade avança. Este personagem principal da história é vivido por Brad Pitt, que passa por um impressionante trabalho de maquiagem (minha aposta também para o Oscar nessa categoria, para a qual o filme também está indicado) – quando não de computação gráfica – num tremendo “tour de force” de efeitos especiais. E tudo isso para contar uma simples história de amor – que, diga-se, não é tão simples assim, já que a dona do coração de Button, Daisy (vivida por Cate Blanchett) envelhece como o resto dos mortais (inclusive eu e você, como Julian Barnes gosta sempre de nos lembrar em seu livro – já já falamos sobre ele).

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Claro que a certa altura da vida de ambos os personagens, o romance foi finalmente consumado. Mas, apesar de Button ficar cada vez mais jovem – e bonito -, e mesmo com Daisy na pele de Blanchett envelhecer muito, mas muito bem, os dois inevitavelmente tendem a se separar. Sem contar o final do filme – se bem que não é preciso um grande esforço de imaginação para adivinhar como a história deve acabar – queria apenas registrar a lição que fica: a de que aquilo que parece ser uma boa alternativa para nosso implacável destino – ei! não seria o máximo se a gente fosse ficando cada vez mais moço por fora? – é, afinal, uma ideia estúpida. Como o filme (que, afinal, eu gostei muito) nos faz pensar, independente do que acontece com nosso corpo – por dentro e por fora – estamos fadados a cometer os mesmos erros, a cair nas mesmas armadilhas da felicidade, e a aprendermos, sem nunca assimilar, que nada é muito fácil nessa vida.

“O curioso caso de Benjamin Button” é baseado em um conto do autor americano F. Scott Fitzgerald – o melhor cronista da chamada “era do jazz” nos Estados Unidos. Notoriamente deslumbrado com a fútil sociedade do início do século 20, Fitzgerald escreveu, entre outros bons livros, “Suave é a noite” – que recomendo com louvor. Não li o conto original, mas imagino que a magia proposta pela história foi bem preservada na transcrição para as telas: para tentar viver o melhor da nossa juventude (a “era de ouro” que Fitzgerald desfrutou), que tal jogá-la lá para frente, quando então poderemos apreciá-la com mais sabedoria? Ah, se tudo fosse tão simples…

As complicações da vida de Button vão além da questão da idade (por exemplo, a parte que mais me emocionou no filme foi a do caso que ele tem com Elzabeth Abbott, interpretada pela genial Tilda Swinton). E ao longo de toda sua trajetória (contada em quase três horas de filme que você mal vê passar), mesmo que raramente mencionada, paira aquele assuntinho… a morte. Muita gente, inclusive eu, antes de ver as imagens estava curiosa sobre como seria um bebê que nascesse velho. Com isso resolvido, porém, logo nos primeiros minutos do filme, a questão principal passa a ser: como é que ele vai morrer?

barnes.jpgNão é aqui neste blog que você vai ter essa resposta… Mas quero usar a pergunta apenas como um gancho para passar para o livro de Julian Barnes. “Nothing to be frightened of” (que eu torço para ser lançado em breve por aqui) discute, entre muitas coisas, qual seria a melhor maneira de morrer. O autor – que logo de cara admite que não acredita em Deus, mas que sente falta dele (você leu direito!) – começou a escrever esse trabalho quando completou 60 anos – uma idade na qual, segundo ele, já é uma boa hora de começar a pensar mais seriamente sobre a morte.

Barnes, como a maioria das pessoas (mas não a totalidade delas), incomoda-se com a ideia de morrer. Apoiando-se na literatura e na filosofia (especialmente num dos meus filósofos favoritos, Montaigne – não que eu tenho muitos entre os quais escolher), e misturando muito da sua história familiar – em mais de um momento o livro dá a impressão de ser um acerto de contas com seu pai, que ele sempre vagamente admirou à distância, e com sua mãe, cuja presença opressiva ele sempre odiou -, o escritor nos apresenta uma série de questões relacionadas à morte, num divertido convite a compartilhar seus piores temores. Ou, no mínimo, a ampliar uma discussão sobre a vida.

“Eu imagino que minha partida será precedida de dor aguda, e irritação quanto ao uso impreciso e eufemístico uso da língua ao meu redor”, descreve ele uma de suas fantasias de estar no leito de morte, cercado de amigos e parentes. A frase parece dubiamente irônica fora do contexto, mas mesmo lendo-se todo o parágrafo onde ela aparece, o leitor fica sem saber direito qual é o tom que o autor quer dar. Essa sensação permeia todo o livro, mas ao contrário de despertar incômodo, oferece pura diversão – e, quem sabe, uma ou outra oportunidade para o nosso pensamento vagar.

Outro bom exemplo desse tom surge quando ele debate a ideia de que a morte é necessária para que vida continue, para que as outras gerações venham – a noção de que seu antepassados “precisaram morrer” para ele, Julian Barnes, estar ali, compondo aquele livro. Ele escreve: “Quanto aos trilhões e trilhões de criaturas vivas que ‘num certo sentido’ – uma frase de reveladora fraqueza – morreram por nós, desculpe. Eu não compro a ideia de que meu avô morreu ‘num certo sentido’ para que eu pudesse viver, muito menos meu bisavô ‘chinês’, antepassados esquecidos, macacos ancestrais, anfíbios enlodados, e itens nadadores primitivos”. Estaria ele falando a sério? Pouco provável – aliás, pouco importante.

Oscilando entre a melancolia – o momento em que ele lucidamente admite que vai chegar o dia em que ele será totalmente esquecido, assim como tudo o que ele escreveu me fez fechar o livro correndo, de tão forte – e o humor – “sempre tinha algo de heroico na famosas últimas palavras (ditas antes de alguém morrer), mas já que não vivemos mais tempos heroicos, o sumiço delas não será muito sentido -, Barnes escreveu um daqueles raros livros que você quer “economizar” e ler devagar, para que ele demore a acabar. Assim, você pode aproveitar passagens tão elegantes como essa (na minha tradução talvez deselegante), quando sua mãe esboçou um arrependimento de ter um dia se casado:

“Quando eu era um adolescente, ela  disse, ‘Se pudesse voltar no tempo, eu remaria minha própria canoa’, algo que na época eu interpretei como um ataque ao meu pai, não percebendo que qualquer reorganização de remos eliminaria seus filhos também. (…) O fato de que minha mãe não morreu de pesar (pela morte do marido), mas foi adiante mais cinco anos (sem ele) na sua própria canoa, quando ela estava menos equipada a remá-la, talvez não signifique muita coisa”.

E como está você na sua canoa? Só? Em boa companhia? À deriva? Contra a corrente ou a favor? Envelhecendo a cada remada ou ficando cada vez mais jovem? Graças a Julian Barnes – e um pouco graças a “Benjamin Button” – essas são as perguntas que circulam pela minha cabeça nessa temporada. E, ao contrário de evocarem morbidez, elas me despertam a saudável sensação de nascer de novo a cada procura por respostas.

This is not America

qui, 22/01/09
por Zeca Camargo |
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Escrevo agora de Manaus, aonde vim entrevistar Alanis Morissette. Foi uma boa conversa (mais sobre ela, em breve, aqui neste mesmo espaço), embalada pela intimidade canhestra que surge entre artista e jornalista que já se encontraram – como quem já leu meu livro “De a-ha a U2″ sabe bem – cinco vezes! Pois esse foi o sexto encontro – o que, em absoluto, fez dele um evento ordinário. Primeiro porque ele aconteceu justamente na Amazônia. Depois, porque nossa entrevista começou apenas algumas horas depois de um acontecimento que tanto eu como Alanis estávamos acompanhando de perto – e que você, se não o viu por inteiro, certamente captou algum fragmento dele esta semana: a posse de Barack Obama.

Antes de continuar, quero agradecer você por mais um debate interessante aqui nos comentários. Aliás, o primeiro elogio vai pro Sandro Menezes, autor da imagem que reproduzi aqui no post anterior. Foi sua inspirada “adaptação” da imagem icônica de Obama que abriu as portas para essa saudável discussão – que, devo admitir, às vezes tomou um rumo inesperado. Por exemplo, o deslumbramento brasileiro pela cultura americana, segundo Paulo Oliveira (que apóia-se no livro “Miséria à americana”, editora Record, da brilhante autora americana Barbara Ehrenreich – de quem eu também recomendo “Desemprego de colarinho branco”, também da Record, e, para quem quiser se aventurar no inglês, “Dancing in the streets – a history of colective joy”, ou “Dançando nas ruas – uma história de prazer coletivo”), foi um dos temas que mais provocou desdobramentos – ainda que, pegando emprestado o comentário da ANA, a simples referência a Obama (via Mussum) não quer dizer exatamente que eu nem os leitores que também se divertiram com ela sejamos esses deslumbrados…

Sobretudo o que me deixou mais animado foi a reação positiva ao bom humor da proposta de Sandro, que numa típica irreverência brasileira brincou com os estereótipos e – não sei bem se sem querer ou de propósito – colocou o dedo numa ferida desagradável da nossa sociedade que é a questão racial. Os comentários, claro, refletiram isso. A maioria deles aplaudiu a ironia da “troca de papéis” entre novo presidente americano e o saudoso humorista brasileiro. Mas teve gente que foi mais fundo. A Cristiane, por exemplo, mandou bem ao escrever: “Obama e Mussum são pessoas totalmente diferentes e talvez o recado da imagem seja EI! É apenas mais um presidente tomando posse, não se importem com sua cor!. Ora, temos negros em qualquer profissão, com sucesso ou não! Apesar de ser um marco na história do mundo não é necessário tanto confete, pois é apenas mais um presidente dos EUA”. E veja ainda o comentário do Lucas: “Falar do ‘presidente negro’ chegar a soar como um preconceito simplista quando na verdade o que se espera é alguém capaz de mudar a situação seja ele branco ou negro, seja ele obamis, mussuns, lulis e etc.”.

Do meu lado, tendo a simpatizar com quem vê Obama mais como um agente de mudança do que um símbolo da luta racial americana (que ele também é) – e, nesse sentido, como alguns chegaram a esboçar em seus comentários, ser fruto de um país que elegeu um ex-operário para comandá-lo nos coloca quase que na frente dos próprios americanos nessa atitude radical. Mas estamos falando do mesmo tipo de orgulho?

Como diz o nome de uma canção, que peguei emprestado para o título do post de hoje – uma bizarra colaboração entre David Bowie e o Pat Matheny Group, nos idos de 1985 (quem se lembra?) -, isso aqui não é os Estados Unidos. E, como muitos comentários também fizeram questão de apontar, nem os Estados Unidos são os Estados Unidos.

“Comunismo soviético, Hollywood e religião organizada (…) são fábricas de sonhos cuspindo a mesma fantasia”.

A frase é de um livro sensacional que estou lendo – e certamente será assunto de um post aqui em breve: “Nothing to be frightened of”, do inglês Julian Barnes (em português, “Nada a temer”). Esta é uma estranha obra autobiográfica, que não tem nada a ver diretamente com o novo presidente americano – o fenômeno cultural que estamos discutindo hoje aqui (você tem alguma dúvida de que ele é um fenômeno cultural, e não só político?). Barnes fala principalmente sobre a morte (acho que vou comentá-lo junto com minha opinião sobre o filme “O curioso caso de Benjamin Button”), mas não em resisti citar essa passagem do livro porque ela tem a ver justamente com o que muitos fizeram questão de assinalar sobre a cultura americana: que essa superação da questão racial, como a eleição de Obama parece demonstrar, é apenas mais uma ilusão.

Para os que apostam nisso (e estão com o inglês afiado), sugiro a leitura da coluna de domingo passado de Frank Rick, no “The New York Times”. Por ter passado boa parte da sua vida em Washington DC – uma cidade onde a tensão racial sempre foi jogada para debaixo do tapete – Rich desconfia da promessa de mudança. Entre vários momentos inspirados do seu texto, ele cita uma matéria do jornal satírico (também americano) “The Onion” como a abordagem mais precisa sobre o que a eleição de Obama significou. Sob a manchete “Homem negro ganha o pior emprego da nação” (percebeu a ironia?), o “Onion” descreve: “ele vai ter de passar de quatro a oito anos limpando a bagunça que outras pessoas deixaram para trás” (uma brincadeira que, por uma incrível coincidência, também aparece – não sei se intencionalmente ou não – no comentário que a Gisele Waltschanoff mandou para o post anterior…).

A piada do “The Onion” nos remete novamente à imagem do Mussum como Obamis. Ela inverte os estereótipos raciais – o negro “limpando” o que o branco fez – e ainda, como sugere Frank Rich, só pela via do humor somos capazes de ver a eleição de um negro para a presidência dos Estados Unidos como uma grande farsa.

Será mesmo? Será que nós aqui brasileiros conseguimos perceber essa sutil ironia? Será que o criador da imagem do Obama/Mussum pretendia um comentário social tão profundo? Bem, fosse ou não fosse essa a intenção, o que acabou acontecendo aqui, graças a essa simples associação de idéias, foi um interessante debate de identidades, expectativas e percepções (que, espero, pode até continuar).

Eu mesmo, numa opinião de leigo que nem pretende analisar aqui a situação geopolítica atual (isto é um blog de cultura, lembra-se?), me sinto inclinado ao otimismo quanto à nova era que se anuncia – ilusão hollywoodiana ou não. Assim como Alanis Morissette – conforme ela contou na entrevista. E assim como milhões de pessoas no mundo todo – inclusive, talvez, você. E o que me faz ter esse sentimento é não só a figura do próprio Obama, mas tudo que vem junto com ela. E não estou falando apenas de Aretha Franklin cantando “My country ’tis of thee” na cerimônia da posso de Obama. Nem do show de domingo em Washington – que foi sensacional – onde os artistas que apoiaram Obama (muitos deles, os suspeitos de sempre) provaram que arte tem sim tudo a ver com política (quando quer). Essas seriam conexões óbvias para quem me acompanha aqui neste blog.

Existem muitas outras coisas que vêm junto com Obama – e se você precisar de mais argumentos para defender essa idéia, dê uma olhada no portfólio que a revista do “New York Times” publicou este domingo chamado “Obamas’s people”. É um ensaio fotográfico (assinado por Nadav Kander) com as principais figuras do círculo de poder escolhidas pelo novo presidente americano. Cada imagem vem com uma pequena biografia – mas não precisa nem traduzir o texto para entender onde eu quero chegar. Não conheço a imensa maioria desses assessores – e o texto que os apresenta é sucinto demais para uma análise amiúde. Mas olhe para aquelas caras. Observe a variedade de etnias, o equilíbrio entre homens e mulheres, e a amplitude das faixas etárias – para dar um exemplo, Eugene Kang, assistente especial da presidência (provavelmente para assuntos ligados aos estudantes), tem origem oriental e apenas 24 anos! E depois me diga se esse é ou não um time que inspira esperança?

Não vamos nem comparar com o Brasil – o mesmo país do qual me ufano pela capacidade de improvisar com humor em cima de assuntos tão delicados quanto a questão racial (Obama/Mussum) não pode nem sequer ousar dizer que traz a mesma diversidade na cúpula de seu governo (nosso admirável ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, representando a gentil exceção). Aqui, num comportamento atávico do brasileiro, depositamos todas as esperanças num líder só – e se o que vier atrás dele não refletir exatamente os anseios da população, deixe estar… o importante é que o salvador da pátria (uma expressão, claro, que não foi inventada por mim) está lá. E não estou falando apenas, claro, da nossa maneira de encarar o governo vigente – nesses meus 45 anos, não consigo me lembrar de quando não foi assim…

arehta.jpgIsto aqui não é, definitivamente, a “América”. Não somos os Estados Unidos – e, cá entre nós, não acho nem saudável almejar que um dia sejamos. Mas, ainda que de maneira desconfiada, tenho de concluir que estou meio contagiado, sim, com o otimismo da era Obama. Parafraseando Frank Rich, na mesma coluna já citada aqui, não posso testemunhar como um negro – americano ou brasileiro – se sente celebrando a posse do primeiro presidente “afro-americano” dos Estados Unidos. Mas posso, sim, torcer para que ele signifique uma mudança de fato. Sem deslumbramento. Orgulhando-me de conservar a intocável capacidade brasileira de olhar tudo com humor – e um certo esculacho. E reconhecendo, sobretudo, que Aretha Franklin é a maior cantora pop de todos os tempos – mas que nem ela tem o direito de usar um chapéu daqueles impunemente (se Ellen DeGeneres pode brincar com isso, por que não eu?).

Porque me ufano de meu país (bis)

seg, 19/01/09
por Zeca Camargo |
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Já viu alguma capa das revistas desta semana? As editadas no Brasil, claro, você deve ter percebido mesmo numa passagem rápida por uma banca. Mas confira a da “New York”  – talvez minha favorita como sempre. Ou a da “New Yorker” – elegante como sempre… Vale ainda a da “Time” – mais previsível. Ou mesmo a da “Esquire“, que (mesmo a edição que chegou às bancas do Brasil) dá um adesivo para você destacar e colar. De todas essas imagens, porém, eu fico com essa acima. Essa, que só poderia ser pensada, imaginada, produzida e reproduzida aqui nesse meu Brasil. Por que? Bem, como eu sei que você gosta de um bom debate, pode dar o primeiro passo mandando seu comentário. E a gente continua a conversa na quinta-feira…

 Imagem: Sandro Menezes/Baile Curinga

 

Ratazanas, abandonem o navio!

qui, 15/01/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Quer fazer um filme para me agradar? Coloque um monte de gente – de preferência alguns parentes entre si – numa casa e deixe a ação desenrolar. Exemplos? Acho que nunca comentei aqui – não sei como! – que um dos meus filmes favoritos (assim, “da vida”), é “Bem-vindos”, do diretor sueco Lukas Moodysson – basicamente um bando de hippies (de várias idades) juntos numa casa enlouquecidos. Para matar minhas saudades dos anos 90, acabei de comprar “Metropolitan”, do americano Whit Stillman em DVD, um filme sobre um grupo de jovens ricos e de saco cheio conversando noite afora em Manhattan. Há apenas alguns posts, eu cheguei a citar o incomparável “Fanny & Alexander”, de Bergman – onde só aquele Natal já vale por uma dúzia de filmes com famílias reunidas. Mesmo exercícios ultra-coreografados – como o “Assassinato em Gosford Park”, do genial Robert Altman, onde apesar de estar todo mundo na mesma casa, a divisão é clara entre “o andar de cima” e o “andar de baixo” – me agradam imensamente (Quem sabe a origem disso tudo não é minha paixão antiga por “O anjo exterminador”, de Buñuel?)

Por isso, a primeira vez que eu li alguma coisa sobre “Um conto de Natal”, do francês Arnaud Desplechin, já fiquei entusiasmado. E depois de vê-lo, esta semana, não tive dúvidas: este entraria para a minha lista!

um-conto-de-natal.jpgAntes de você correr para um cinema porém – isto é, se você tem a sorte de morar em uma cidade que tem uma cópia do filme (em São Paulo, até o dia em que postei este texto, ele estava passando em apenas três cinemas e em horários alternados; coincidentemente, recebi um convite para a estreia no Rio por esses dias – o que me faz pensar que, hoje em dia, os distribuidores devem fazer um rodízio com a mesma cópia de um filme; ou melhor, agora deve existir um rodízio de títulos pelos cinemas do Brasil, o que tornaria impossível uma exibição simultânea de uma produção independente em várias cidades – será?) – enfim, antes de você correr para ver “Um conto de Natal”, queria avisar que não é um filme excelente. Em vários detalhes, ele é afetado, cheio de truques, recursos gratuitos, desvios da narrativa e, pelo menos na primeira meia hora (vá preparado, pois o tempo total de exibição é 150 minutos!), um pouco confuso. Mas todas essas distrações são desculpadas, uma vez que a história que ele conta é sensacional.

Difícil comentar alguma coisa do filme sem entregar algo da história. Para ficar realmente no básico: Junon (Catherine Deneuve) descobre que está com câncer e precisa fazer um transplante de medula; um alerta geral é dado para sua família imediata – filhos e netos – e todos saem para fazer testes de compatibilidade; com os resultados na mão, eles se reúnem por três dias na casa de Junon (e de seu marido Abel, interpretado por Jean-Paul Roussillon) para as festas de Natal; eu cheguei a falar que a relação entre pai, mãe, filhos, irmãos e netos está longe de ser exemplar – e que alguns dos membros dessa família se odeiam a ponto de se evitarem fisicamente?

Bem, com essa receita você já pode imaginar que a probabilidade de um desastre familiar é enorme – e Desplechin tira o melhor proveito disso. Sobretudo porque o elenco se apresenta com atuações que modulam com perfeição a frieza, arrogância e – sim – o carinho necessários para nos identificarmos com esses parentes que mal conseguem separar o amor e o ódio (em tempo, esqueci de incluir naquela relação inicial de filmes no início, o não menos sensacional “Festa de família”, o primeiro produto do “manifesto” Dogma, dos dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vintenberg – se bem que, na família de “Um conto de Natal” a relação entre os personagens não chega a ser tão destrutiva quando a de “Festa”…).

Para começar, tem a própria Catherine Deneuve – que podia muito bem estar escondida atrás de papéis glamurosos e breves (que são sempre uma muleta para atrizes que já passaram o pico de sua beleza nas telas), mas prefere fazer personagens como esse (o glamour não passa nem perto de Junon – seu marido, como ele mesmo menciona a certa altura, é um sapo gordo, e a roupa mais chique que ela veste durante o filme todo é uma que experimenta numa loja de departamentos, e que ela desiste de levar porque a envelhece). Henri, o filho mais problemático, é vivido por um dos meus atores contemporâneos favoritos (talvez perdendo atualmente apenas para Javier Bardem): Mathieu Amalric, que tem talento suficiente para sobreviver ao papel de um vilão de James Bond (isso, depois de ter mostrado uma das interpretações mais sensíveis dos últimos tempos como protagonista de “O escafandro e a borboleta”!). Já conhecia Anne Consigny do próprio “Escafandro”, mas aqui, no papel de Elizabeth, a irmã mais velha (ou melhor, que tornou-se a irmã mais velha quando o primogênito morreu, ainda na infância, também de câncer, sem ter encontrado um doador compatível para um transplante – para dar mais um detalhe dessa história ultra bem construída), ela é uma revelação – sua mágoa com Henri, apesar de nunca explicada claramente, é a maior nuvem negra que paira sobre a reunião de família.

E ainda tem Chiara Mastroiani, casada com o irmão mais novo da família; Laurent Capelluto, como o primo agregado; Françoise Berlin, como a companheira lésbica da avó – e bisavó – que já morreu há alguns anos, mas que mesmo assim é sempre convidada para a festa de Natal com a família (e que é apresentada sem nenhum alarde às crianças como “a companheira da vovó” – em mais uma prova de que certos assuntos, em certas famílias, são mais que bem resolvidos); o jovem Emile Berling, que faz o filho de Elizabeth com tendências suicidas (as surpresas não param…); e – talvez a melhor descoberta para mim – Emmanuelle Devos, que como Faunia, a namorada judia de Henri (que se recusa a celebrar o Natal), rouba qualquer cena em que está com um estranho charme e uma sutileza absurda.

Esta não é a lista completa do elenco, muito menos dos personagens. Mas, mesmo só com essa amostra, o que você me diz? É ou não é um filme capaz de te interessar por um par de horas?

De certa maneira, “Um conto de Natal” me lembrou um dos meus livros favoritos de todos os tempos: “As correções”, de Jonathan Franzen (Companhia das letras), que também é sobre uma reunião de Natal – ou, descrevendo melhor, sobre a preparação de uma Natal contada por narrativas individuais de cada membro de uma família americana extremamente “não-funcional” (há pouco tempo alguém me perguntou num comentário qual era o melhor livro que eu já tinha lido… bem este está sim entre um dos melhores – e o dia em que eu me animar para fazer uma lista das minhas leituras mais caras, esse título certamente estará lá… e “A feira das vaidades”, e “Auto-da-fé”, e “Memórias póstumas de Brás Cubas”, e “The mezzanine”, e “A música do acaso”, e “A paixão segundo G.H.”, e “English passengers”, e “Desonra”, e “O Buda do subúrbio”- mas eu divago…).

Não vou entrar em detalhes aqui sobre o trabalho de Franzen, mas cito o livro apenas como mais uma evidência de que, não importa o veículo – pode ser um livro, um filme, uma peça de teatro, uma novela, um esquete no YouTube… Se você não tiver uma boa história para contar, e não souber orquestrar seus personagens e suas interações, vai ser trabalho perdido.

Pois não é qualquer reunião de família que dá certo – como disse acima, as chances de eu gostar de uma história assim são grandes, mas pode sempre dar errado. Para responder ao Pedro H.Gomes, que ficou curioso para saber se eu havia gostado da peça que vi em Nova York com Katie Holmes (“All my sons”, de Arthur Miller), aí está um exemplo onde esse tipo de trama não funcionou – ninguém estava particularmente bem no elenco, nem Holmes, nem mesmo a geralmente irrepreensível Dianne Wiest. E eu só posso achar que a “culpa” é da história…

Mas quando dá certo… Quando dá certo, temos algo tão cativante – descontando os floreios fúteis, que parecem inseridos no filme de propósito, apenas para testar sua atenção – como “Um conto de Natal”. Ou até… “A favorita”!

flora.jpgEscrevo este post, claro, sem ter visto o final da novela – até agora, “parei” no capítulo de quarta-feira, 13 de janeiro. Mas o triunfo final do seu autor, João Emanuel Carneiro – que obviamente não precisa do aval deste humilde blogueiro para ser reconhecido, já que a consagração maior é mesmo a do público -, é algo que já não se questiona.

Uma historinha para ilustrar… Semana passada, quando estava embarcando para Nova York, na sempre constrangedora fila para apresentar o passaporte no aeroporto de Guarulhos, vivi um cena inusitada. Dois televisores instalados na sala – um em cada canto – estavam sintonizados na novela. Geralmente o que se vê ali – e, acredite, eu passo nessa sala com certa freqüência – é um canal a cabo de esportes ou de notícias. Novela? Nunca havia visto. Mas era um capítulo da penúltima semana de “A favorita” – e alguém não deve ter resistido à tentação de ir lá e mudar de canal. Os viajantes, pelo menos os brasileiros, pareciam gratos, dada a lentidão com que eles avançavam a fila, distraídos pelo que viam na TV. Os próprios agentes da polícia federal pareciam menos preocupados com o fluxo de despacho de passageiros do que com a trama que se desenrolava nas telinhas. E me lembrei de o último capítulo de “O astro” (você provavelmente não tem idade para se lembrar dessa novela), a que assisti no Rio de Janeiro, e que me fez ver a avenida Atlântica, em Copacabana, vazia pela primeira vez. Me lembrei também de alguns comentários carinhosamente enviados quando escrevi pela primeira vez sobre “A favorita” – mas eu divago de novo (hoje é dia…).

Só queria encerrar explicando que o título deste post é uma fala recente de Flora (e viva Patricia Pillar!) – que, enlouquecida na sua festa de casamento, revolta-se contra os convidados que ela pagou para ter na cerimônia, e manda todo mundo embora com essa frase triunfal: “Ratazanas, abandonem o navio!”.

Serviu perfeitamente naquela cena. Serviria perfeitamente para a cena de “Um conto de Natal” em que Catherine Deneuve deixa a sala enquanto a família calcula em números precisos quanto tempo ela teria de vida. Serviria para qualquer personagem de “As correções” que tivesse um mínimo de fibra proferi-la. E serve sempre que alguém quer ir adiante e deixar um monte de bobagens para trás.

Nesse sentido, ela serve até para um cara que vai estar ligeiramente em evidência a partir da semana que vem. Quem? Segunda-feira faço aqui uma singela homenagem a ele – e mais do que em qualquer post que publiquei recentemente, eu estarei bastante curioso para saber da sua reação.

Fio mental

seg, 12/01/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

mental-floss.jpgNão são muitos os trocadilhos que podem ser traduzidos do inglês para o português, mas o título dessa revista americana conserva sua piada implícita nas duas línguas: “Mental Floss”, no original – “Fio Mental”, no nosso “patoá”. O trocadilho, claro, é com a expressão “fio dental”, que antes de significar o traje oficial do verão brasileiro, denotava apenas uma tira bem fina, muitas vezes com sabor de dentifrício, usada para limpar as impurezas entre os dentes. Pois assim como o produto para uso bucal a tal revista pretende “arejar” os espaços – não entre sua arcada dentária, mas, quem sabe, nos minúsculos espaços da nossa massa encefálica.

Descobri essa revista por acaso, em 2003, numa das minhas incursões por aquela que eu acho que é a banca de revistas mais completa do mundo (e incluo até aquelas de Buenos Aires e as melhores mega-livrarias de Tóquio nessa avaliação!): a Universal News, perto do Columbus Circus, em Nova York (se você gosta de revista como eu, e tiver a oportunidade de visitar esse lugar um dia, prepare-se para ter a certeza, ao entrar lá, de que você morreu e foi levado ao céu). Não me lembro o que me chamou a atenção pela primeira vez – talvez o “slogan” que ela trazia na capa então, a modesta frase “simplesmente a melhor revista de todos os tempos”. Na capa desse número, uma chamada para dicas de como apontar a diferença entre “conceitos meio confusos” como Bach e Beethoven – ou Monet e Manet, Cabernet e Merlot e até Einstein e Einstein de peruca (a imagem da capa)!

Achei a proposta irresistível, e comprei imediatamente a “Mental Floss”. Dentro, encontrei, se não “a melhor revista de todos os tempos”, certamente uma das mais divertidas. Seu humor não vem de bizarras invenções em cima do já bizarro cotidiano americano – gênero em que o jornal satírico “The Onion” se especializou e fez escola. “Mental Floss” simplesmente rearranja todo o “conhecimento” que a humanidade já juntou e oferece para você com o inocente intuito de “melhorar sua cultura geral”. Você nunca sabe se eles estão brincando ou falando sério (alguém precisa mesmo que lhe expliquem a diferença entre Manet e Monet para uma discussão?), mas assumindo que todo leitor é um ignorante em potencial – e está louco para se fazer passar por um “expert” em algum assunto – a revista oferece um humor dos mais sofisticados… para não falar de algumas informações realmente interessantes, especialmente se você gosta dessa categoria tão desprestigiada que é a “cultura inútil”!

Vejamos, por exemplo, uma rápida passada pelo site da “Mental Floss”. Na lista de dez itens rápidos (“The quick 10”), uma relação de dez selos que incomodaram muita gente, como um com uma listra a mais na bandeira americana (um erro do serviço postal americano!) e outro com a imagem de Freddie Mercury, onde o baterista do Queen, Roger Taylor, também aparecia ao fundo (quem protestou alegava que pessoas vivas não podem aparecer em selos!) – curiosamente a lista deixa de citar que outro selo com Freddie Mercury, nascido em Zanzibar, na Tanzânia, causou furor no seu país de origem, simplesmente pela bissexualidade do cantor… (como eu sei disso? Digamos que ter visitado Zanzibar nesta volta ao mundo que está no ar ajudou – o episódio de ontem foi justamente por lá).

Ainda no site, curtas “biografias” dos homens por trás de suas bebidas alcoólicas favoritas – como Jack Daniel ou o cara que criou o Campari (começou a misturar drinques aos 14 anos!); um guia rápido sobre o pintor Wassily Kandisky em 5 lições (cortesia da colunista de arte Andréa Fernandes, cujos artigos anteriores também são altamente recomendados); a origem de cinco estranhos penteados (inclusive o de Marge Simpson!); e até uma nova entrada na categoria “como apontar as diferenças” – que fez tanto sucesso que virou uma seção (agora “separando” o Trópico de Câncer do de Capricórnio!). Tem muito mais, mas não quero roubar seu deleite, caso você queira navegar um pouco por lá.

metal-livro-1.jpgAté porque, o que eu queria mesmo comentar hoje aqui (como já esbocei na semana passada) é um “filhote” da revista: “The Mental Floss history of the world” (“A história do mundo segundo a Mental Floss”), de Erik Sass e Steve Wiegand, que comprei semana passada, durante a passagem por Nova York (mas que, tenho certeza, você pode achar numa boa livraria da internet). Imagine toda a filosofia da revista aplicada a nada menos que a história mundial… O livro é isso! Você também sempre teve “medo de História” (com maiúscula mesmo)? Os próprios autores espantam isso logo na introdução:

“Nas páginas seguintes, você vai ler sobre bebês criados no ópio, cerveja com sabor de galinha, testículos cosméticos, czares disfarçados e gim como estilo de vida. Também temos assaltos multibilionários, segredos das selvas da América Central, uma duquesa que saiu nua pela cidade para que ele baixasse os impostos, e orgias romanas que até os romanos ficaram escandalizados.”

Tem certeza de que você não gosta de História?

Cada capítulo – começando pelo… bem, pelo começo, na origem da humanidade, na África, há mais ou menos 60 mil anos – traz primeiro um resumão de um determinado período; depois, um giro pelo mundo (para você se situar do que estava acontecendo lá e cá naquela época); uma lista de quem estava por cima e por baixo (por exemplo, lá nos primórdios, o trigo estava em alta, assim como a bebida alcoólica e os moradores do mediterrâneo, em baixa); há ainda algumas “criações” da época que deixaram saudades e outras que a humanidade depois se arrependeu, e mais um bom número de listas e “boxes” com informações paralelas. Didático – mas não exatamente da maneira que pretendia seu livro do ensino básico…

Folheando o livro – que justamente por se tratar de uma história, digamos, conhecida pode ser aberto em qualquer parte sem prejuízo na compreensão – você pode escolher qualquer recorte do nosso passado para se divertir! Exemplos?

Sobre as Cruzadas:

“O filósofo escocês do século 18, David Hume, chamou as Cruzadas de ‘o monumento mais durável sobre a loucura humana que apareceu em qualquer época e qualquer nação’. É um argumento difícil de discordar.”

Sobre Napoleão:

“Ele era um megalomaníaco: em 1804, corou-se imperador da França, colocando a coroa na própria cabeça porque nenhum mortal era bom o suficiente para tal honra – embora o próprio papa estivesse presente”.

Sobre a Primeira Guerra Mundial (a versão de 50 centavos – uma de 9,99 dólares, apresentada logo em seguida, é mais detalhada, mas não menos escrachada – ou correta):

“Um arquiduque fio baleado; um bando de países escolheu de que lado cada um ia ficar e todos foram para a guerra; armas terríveis foram usadas, matando muita gente; doenças mataram um outro bocado; todo mundo ficou cansado de lutar e concordou em parar; impérios desfizeram-se e ditaduras afloraram.”

“The Mental Floss history of the world” não tem previsão de lançamento no Brasil – uma pena, pois um país que tem um apetite enorme por uma visão um pouco mais bem humorada da sua história (como o sucesso de Eduardo Bueno e o próprio “1808” podem comprovar), certamente pode emprestar o mesmo olhar para a história universal… Vale a pena então começar desde já uma campanha para que alguma editora traduza esse volume (e qualquer outro que tenha saído da revista – inclusive um só sobre “como apontar as diferenças”!).

livro-2.jpgAlgo me diz, porém, que um outro livro, que também encontrei nessa viagem, talvez tenha mais chances de ser lançado logo por aqui: “The intellectual devotional – modern culture”, de David Kidder e Noah Oppenheim. Ele se encaixa na mesma freqüência do livro da “Mental Floss”, mas, lamento informar, com uma proposta mais séria…

Não é um livro ruim. Suas intenções são honestas, e apresentadas logo na introdução: “Por gerações, leitores têm mantido na sua mesa de cabeceira um ‘devotional’ – uma coleção de 365 breves leituras diárias selecionadas para alimentar o crescimento espiritual. O ‘Intellectual devotional’ também é uma coleção de leituras diárias e este volume tem seu foco na rica tapeçaria da cultura moderna”.

O problema é que, ao contrário da proposta da “Mental Floss”, esse livro é feito para ser levado a sério – isto é, é indicado para quem realmente quer aprender mais para não dar fora numa conversa com outras pessoas mais, hum, “cultas”. Dúvidas sobre quem foi Freud, Charles Mason, Truman Capote, Barbie, Lassie, Elizabeth Taylor, Winston Churchill? Procure respectivamente as páginas 1, 204, 177, 154, 91, 242 e 50. Quer falar de filmes clássicos que você nunca viu, como “Cidadão Kane”, “E o vento levou”, e “2001: uma odisséia no espaço”? Páginas 144, 109 e 270. Se alguém puxar o assunto sobre Fascismo (página 75), clonagem (p. 348), “Glasnost” (p.327), Woodstock (p.231), a “geração de 68” (p.264) – ou mesmo minissaias (p.210) – é só agradecer que sua leitura chegou a essas páginas e deixar a conversa rolar.

Fiquei meio invocado com o livro, mas devo fazer uma ressalva. A proposta é mais infame que sua execução. Embora eu desconfie de qualquer trabalho que tenha a pretensão de ser um volume de auto-ajuda, “The intellectual devotional” tem bons textos – e, para quem não sabe nada de nada mesmo, informativos. Ou melhor, até quem já conhece alguma coisa sobre os personagens (ou assuntos) pode encontrar coisas curiosas. Alguns exemplos (para ficar só na música pop):

The Velvet Underground:

“Como o produtor de rock Brian Eno supostamente teria dito, pouquíssimas pessoas compravam discos deles quando eram lançados – mas todos que o fizeram foram formar uma banda.”

Madonna:

“Ela também se inspirava em fontes mais obscuras: alguns críticos, por exemplo, notaram semelhanças entre seus vídeos e o filme “Vinil”, a adaptação de ‘Laranja mecânica’ feita por Andy Warhol e nunca distrubuída.”

The Clash:

“A banda acreditava realmente que o rock n’roll significava alguma coisa e que poderia mudar a sociedade para melhor.”

Nirvana:

“O som da banda era bruto, lírico e alto. Embora fosse obviamente um desafio ao pop convencional, ‘música alternativa’ rapidamente tornou-se uma categoria de música popular (…). ‘Alternativo’ virou um termo genérico para vários nichos musicais que antes não vendiam bem numa gravadora”.

Nada mal… Aliás, o “Devotional” tem outros méritos. Afinal, um volume que faz você passear de “O estranho” (livro de Albert Camus) a Led Zepellin, do Papa João 23 a Don de Lillo, de bambolê à corrida espacial, de Bette Davis a Oprah Winfrey, e de Pelé (o único brasileiro citado no livro) a Tiger Woods, tem sua serventia (só não precisa se levar tão a sério).
Faltam alguns nomes, claro, mas, sempre vai faltar alguma coisa – quem faz e ama listas (como eu) sabe disso.

Aliás, para responder a esse eterno complexo de omissão, termino citando mais uma vez a introdução do livro da “Mental Floss”:

“Uma pergunta natural sobre qualquer volume que traz a história do mundo deve ser: ‘Está tudo aí?’ A resposta rápida é: não. Não que não tivéssemos tentado. Infelizmente a HarpersCollins (editora) rejeitou nosso manuscrito original com 500 milhões de páginas, classificando-o como ‘superentusiástico’ e ‘pouco portátil’. (Se seria comercialmente viável como o primeiro livro que poderia ser visto do espaço ainda pode ser debatido).”

New York (89), New York (09)

qui, 08/01/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

timessquare.jpg
Escrevo de Nova York, onde vim entrevistar um autor chamado Malcolm Gladwell. Talvez você já tenha ouvido falar dele, pois seus dois primeiros livros são extremamente populares – talvez menos populares no Brasil, mas mesmo assim são uma boa referência: “O ponto do desequilíbrio” e “Blink – a decisão num piscar de olhos” (ambos da Rocco). Seu novo trabalho chama-se “Fora de série – outliers” (Sextante), e é tão intrigante quanto os outros. Mas não vou falar dele hoje aqui – prometo para um outro post.

Fiz toda essa introdução apenas para justificar que estou em Nova York esta semana – exatamente 20 anos depois de quando eu vim morar aqui, em janeiro de 1989. Uma grande coincidência, claro – mas uma que só me chamou atenção quando eu passei pela imigração no aeroporto JFK, na última terça-feira. Foi uma cena corriqueira, mas que teve um significado especial para mim como eu vou te contar agora.

Ao examinar meu passaporte, o agente da polícia de imigração fez aquele comentário com o qual eu já estou acostumado: num misto de ironia e descrença, logo depois de ver vistos para países tão inesperados como o Mali e o Azerbaijão, ele (como vários já o fizeram) pergunta “por que você viaja tanto”? Sem esticar muito o assunto, eu respondo simplesmente que sou jornalista (o que satisfaz a maioria das pessoas, mas alguns sempre querem saber mais… por onde mais andei… se existe um país que eu gosto mais… ou qualquer outro tipo de questionamento que ajude a quebrar aquela rotina…).

Quando ele ouviu isso, a resposta veio em forma de pergunta como um reflexo: “Você veio cobrir a posse (do Obama)”?

Uma pergunta inofensiva, como você pode imaginar, mas que para mim trouxe uma associação curiosa. Afinal, quando cheguei aqui para morar pela primeira vez, no dia 19 de janeiro de 1989, eu ouvi exatamente a mesma questão ao chegar no mesmo aeroporto – a única diferença é que quem tomava posse naquela época era Bush “pai”. Eu estava me mudando para cá para ser correspondente de um jornal – isso é um fato. E provavelmente até cobriria a posse de Bush se eu não estivesse chegado tão em cima do evento (se não me engano, 19 de janeiro de 1989 foi exatamente o dia em que ele tomou posse). Mas respondi que não, que estava vindo para começar a trabalhar na semana seguinte. O que não impediu ao policial de me desejar efusivas boas-vindas.

Não foi muito diferente desta vez. Mesmo tendo vindo fazer uma entrevista simples, a reação foi positiva – e me desembaracei rapidamente das formalidades de imigração e aduaneiras, para então aproveitar a cidade. E como aproveitei (aliás, ainda estou aproveitando – vou embora só amanhã). Porém, diferentemente das outras vezes em que estive aqui nos últimos 20 anos, talvez por causa do rápido bate-papo na imigração, cada coisa que estou fazendo, cada experiência que vivo, tem um inevitável sabor de nostalgia. Não melancólica, diga-se. Mas eu, quase sem querer, comecei a comparar as coisas, em 1989 e agora, 2009.

newyork89.jpg

São detalhes demais para eu “alugar” você agora – desde a corrida básica de táxi (que era cinco dólares e hoje é quinze) até algumas lojas onde eu me alimentava musicalmente (a Rebel Rebel ainda está lá, na Bleecker St, e eu sempre tento passar lá, apesar de hoje eu achar mais coisas que me interessam na Other Music, na rua 4). Há museus novos – como o New Museum (sobre o qual eu já escrevi aqui no ano passado), onde vi, desta vez, uma bela retrospectiva de Elizabeth Peyton (já viu os retratos dela de Kurt Cobain e outros astros do rock?), e descobri, com muita euforia, o trabalho de uma louca genial chamada Mary Heilmann. O MoMa (Museu de Arte Moderna) foi totalmente repaginado (e está com uma exposição genial, entre outras, de uma artista sensacional de uma artista que eu adoro, Pipilotti Rist. E mesmo as instituições que pouco mudaram em duas décadas, como o Whitney Museum, ainda me fascinam com exposições como essa do grande fotógrafo americano William Egglestone.

Há restaurantes que fizeram parte da minha biografia nova-iorquina que já se foram – como o Florent, no Meat Packing District – e outros que, mesmo em outra vizinhança, me fazem sentir o clima da época em que eu morava aqui – como o Café Gitane, em Nolita. E tem os cinemas (sou do tempo em que a entrada no Angelika custava só seis dólares). Teatros (hoje fui ver “All my sons”, com Katie Holmes e adivinha se o maridão da atriz não estava na platéia…). Cafés – e as próprias calçadas (onde mais é possível esbarrar em Ricky Gervais?). Sem falar na paisagem urbana (comparar o Times Square de 89 com o de hoje, por exemplo, é pura covardia – e não vamos nem falar de torres gêmeas…). A lista é longa, e só tende a crescer quanto mais tempo eu ficar nessa viagem de relembrar “os velhos tempos” (que, insisto, não tem sido um exercício melancólico, mas divertido). Mas se tem alguma coisa que não mudou durante todo esse tempo, é minha excitação de entrar numa livraria em Nova York.

O Brasil já tem estabelecimentos bem à altura de várias dessas livrarias que eu gosto de visitar aqui (também já escrevi sobre elas neste blog). Mas a abundância, a quantidade de títulos, a variedade de assuntos e de ofertas e a inevitável atração das novidades das livrarias por aqui – tudo isso é imbatível. Pode ser nas gigantescas Barnes & Nobles (passei uma hora ontem na de Union Square e quase tive de ser internado) ou nas incrivelmente charmosas pequenas livrarias – e, nessa categoria, minha favorita atualmente (já que a Books & Co, na Madison, já não existe desde 1997) é a McNally Jackson, na Prince St. É impossível eu entrar numa delas e não ficar desorientado.

É incrível como hoje, com a facilidade de encomendar qualquer livro pela internet, eu ainda sinto a necessidade de comprar um volume para carregar na minha mala e levar para minha casa – pois mais pesada que fique a bagagem… E os dois títulos que estão justamente fazendo esse peso desta vez são “The intectual devotioner – Modern culture”, de David Kidder e Noah Oppenheim, e “The Mental Floss history of the world”, de Erik Sass e Steve Wiengand.

E é sobre esses livros que eu vou falar no próximo post, na segunda-feira. Ou melhor, é sobre eles que eu iria falar hoje. Mas acho que estou perdido demais de reminiscências relativas a esta cidade de onde escrevo para me concentrar em outra coisa. É esse clima todo de lembrança – ok, estou relutando aqui, mas a palavra mais adequada é “saudade” mesmo… – que eu acabei escolhendo para dividir com você hoje. E se isso te parece um pouco pessoal demais, idiossincrático demais, a culpa não é minha. Quem já passou por Nova York – ou mesmo quem sonha um dia passar por aqui (e é difícil você não estar em uma dessas duas categorias) acho que vai me perdoar por esse modesto devaneio.

E eu ainda tenho praticamente dois dias me afundar nessas lembranças – e descobrir coisas novas (que certamente vão acabar por aqui, comentadas neste espaço). Por isso, como diz aquele brinquedo que eu ganhei no último Natal (e que fez sucesso em todas as festas que levei): “deixa o Elmo quietinho”…

Foto 1: Imagem recente da Times Square (Crédito: mynameispaul/Creative Commons)

Foto 2: Cena do filme ‘Contos de Nova York’, de 1989 (Crédito: Divulgação)

A medida das coisas

seg, 05/01/09
por Zeca Camargo |
categoria Todas

fitas-zeca.jpgTalvez eu devesse começar o primeiro post do ano olhando para algo, algum evento cultural, que marcasse logo de cara 2009. Porém, isolado numa pequena cidade da Bahia com minhas listas de melhores coisas do ano, numa casa simples sem TV (muito menos DVD), longe de qualquer sala de cinema ou mesmo do meu iPod – que esqueci de levar, tamanha a correria com que saí para lá (minha trilha de réveillon foi aquele show dos Mutantes gravado em Londres e os afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, graças ao iPod de uma amiga que estava lá!) -, eu não tinha muito do que me “alimentar” nesse sentido. Levei claro, alguns livros, mas os dois nos quais mais investi minha leitura são tão densos (um, “The whisperers”, de Orlando Figues, pelo volume de histórias que abrange, e o outro pela complexidade lúcida do autor, Julian Barnes, escrevendo sobre a morte em “Nothing to be frightened of”) que mal posso dizer que absorvi-os na totalidade. Embora queira escrever sobre ambos aqui em breve, tenho de esperar um pouco para digeri-los melhor.

Assim, cheguei à conclusão de que o que tenho de melhor para oferecer neste início de 2009 para este blog é algo do finalzinho de 2008. Como você vai ver, não se trata de um mero “resto”, mas de duas experiências fabulosas que tive a sorte de viver na rápida viagem que fiz antes do Natal – a Paris e a Londres. Foram vários os motivos que me fizeram escolher esses destinos nessa época tão corrida do ano, mas não seria desonesto se eu dissesse que essas duas atrações que visitei estavam entre as razões mais fortes que me levaram até essas cidades. Numa época em que qualquer centro urbano – mesmo em tempos de crise – enlouquece com o frege do Natal, essas exposições me salvaram a alma – encaixaram-se na medida para recompensar um ano em que eu fiquei ligeiramente sem bússola (e a volta ao mundo pelos patrimônios da humanidade, claro, tem muito a ver com isso).

entra-cildo.jpgComeço então pela mostra que me ofereceu a imagem que ilustra a abertura deste post: Cildo Meireles, na Tate Modern. Soa como um nome brasileiro? É porque ele é um artista brasileiro. Se você já o conhecia – por exemplo, se você esbarrou com uma participação sua numa Bienal do passado, ou mesmo se você já teve o privilégio de visitar a fantástica instalação “Desvio para o vermelho” (que está na mostra da Tate) no Instituto Cultural Inhotim, em Minas Gerais, ou mesmo se você tem algum interesse pelas artes plásticas no Brasil, sabe que estou brincando. Mas não deixa de ser uma provocação…

Cildo Meireles não só é um artista brasileiro, como um dos mais importantes da nossa cena contemporânea – um dos poucos reconhecidos imediatamente no cenário internacional, a ponto até de ter uma retrospectiva numa instituição como a Tate.

Mas é possível também que você não tenha ouvido falar dele. Artes plásticas não formam exatamente a editoria mais popular de um jornal (seja em qualquer mídia). Se já é difícil acompanhar o que as novas gerações de artistas brasileiros – que não param de jorrar das galerias – estão fazendo, mestres modernos como Meireles são ainda mais difíceis de aparecer. Confesse: quantas matérias sobre essa exposição (que abriu em outubro do ano passado e está em cartaz até este domingo – em Londres, claro) você viu na imprensa, tradicional ou virtual? Elas existiram – como uma rápida busca na própria internet pode demonstrar. Mas quantas delas passaram pelo seu radar?

A culpa não é sua, claro, mas de um universo que infelizmente não privilegia este tipo de informação. Não estou aqui, nem de longe, para iniciar um manifesto que vai mudar isso, mas apenas para desejar que mais gente – blogueiros inclusive – estivessem a fim de dividir o entusiasmo que inevitavelmente toma conta de quem visita essa exposição. Eu, que passei por essa experiência, como brasileiro tenho inevitavelmente um viés. Assim como vibrei quando vi, na mesma Tate, a retrospectiva de Hélio Oiticica, ter um artista de seu país reconhecido com uma homenagem dessas é emocionante. Mas, pelo que pude ver nas salas do quarto andar da Tate, eu não era o único que se divertia com o que via.

Ao lado da exposição de Cildo, no mesmo andar, havia uma mini-mostra de Mark Rothko – um dos artistas mais venerados do século passado – com suas últimas séries de pinturas cromáticas (cheias de cinzas e pretos). Visitei essa também, mas percebi que a atitude de quem circulava por lá era diferente. Enquanto o público de Rothko ia de sala em sala em silêncio, como que refletindo a sobriedade das telas, o de Cildo estava mais para um clima bem brasileiro que dificilmente eu conseguiria achar um paralelo em inglês: um fuzuê!

“Meu trabalho procura uma condição de densidade, grande simplicidade, objetividade, abertura de linguagens e interatividade”, diz o artista num texto reproduzido num pequeno guia para os visitantes. Nesse aspecto, Meireles pode “sossegar” porque a exposição é um sucesso. A cada instalação, dezenas de pessoas aceitavam o convite de interação de Cildo – fosse na sala com seis mil fitas métricas e mil relógios (“Fontes”), na outra com uma torre de rádios sintonizados em estações diversas (“Babel”), no vasto playground sensorial de “Throught” (“Através” no original?), no pequeno espaço onde esferas aparentemente iguais tinham pesos diferentes (“Eureka”) – talvez meu trabalho favorito nessa mostra -, ou no quadrado onde você pisa em milhares de moedas, literalmente andando sobre dinheiro (“Mission/Missions”).

Isso para não falar na fila que os visitantes enfrentavam para ver duas instalações especiais: “Volátil” e a já citada “Desvio para o vermelho”. Mesmo esperando às vezes mais do que os 20 minutos em média (segundo me informou a pessoa que cuidava da entrada dessas salas), ninguém saía decepcionado. E não apenas pelo aspecto lúdico dos trabalhos – que é sempre o mais fácil de detectar -, mas pela própria inquietação que esses espaços criados por Meireles despertavam. Na primeira sala da retrospectiva, quatro cantos de paredes com rodapés – trabalhos antigos – formavam ângulos impossíveis de existir numa casa convencional. Na saída da exposição, depois de passar por tantos outros espaços inimagináveis antes de serem criados pelo artista, a sala onde você é obrigado a andar descalço sobre uma espécie de talco, sente cheiro de gás, e é iluminada apenas por uma vela (será que está tudo prestes a explodir?), é o ápice de um tobogã de propostas, que Cildo orgulhosamente (para este mero visitante que vos escreve, não – óbvio – para o artista) expõe para inglês (literalmente) ver – e viver.

Agora, Paris.

Essa exposição eu já havia programado há meses – desde que soube que teria a chance de estar na cidade em dezembro. Cheguei até a comprar o ingresso pela internet – o que foi providencial, pois quando cheguei lá, no Grand Palais, vi que a fila para os “sans tickets” (ou “sem ingresso”) era de horas – isso, sob a chuva fina da capital francesa… Perder uma oportunidade única como essa? Nem pensar! Viva a internet!

picasso.jpgTalvez você esteja se perguntando que oportunidade única é essa… Fácil: não sou exatamente um deslumbrado com Picasso – uma vez que já tive a sorte de poder conhecer boa parte de seus trabalhos em mais de um museu pelo mundo -, mas a chance de ver alguns de seus melhores trabalhos juntos com as telas que inspirou o grande mestre… é ou não é imperdível?

“Picasso et le maîtres” está montada no Grand Palais até dia 02 de fevereiro, e é um evento. Não apenas por ser uma reunião de ótimos trabalhos do artista que é certamente um dos mais reconhecidos (e familiar para o grande púbico) de todos os tempos, mas também pelos outros quadros que acompanham a exposição. Quer um exemplo? Vamos à sala de nus que, apesar de eu não gostar metáforas fáceis, é simplesmente de tirar o fôlego!

Oito nus femininos de Picasso – todos pintados na última década de vida do artista (que morreu em 1973). E, intercalados entre esses quadros, um Ticiano (“Vênus se diverte com o amor e a música”), um Velázquez (“Vênus no espelho”), um Goya (“Maja desnuda”), um Ingres (“Odalisca em cinza”) e um Manet (“Olympia” – “bien sur”). Percebeu o “elenco”? Tudo na mesma sala! Meus olhos ficaram ligeiramente desorientados – e com razão!

Isso porque eles já tinham visto coisas lindíssimas – ou melhor “parcerias” lindíssimas. Picasso e Rembrandt. Picasso e El Greco. Picasso e Renoir. Picasso e Delacroix. E mais e mais e mais. Aí vem a sala com as variações de Picasso sobre “As meninas”, de Velázquez – um dos quadros mais admirados do mundo (não é Velázquez o “pintor dos pintores”?). Embora o original não esteja presente (aparece apenas como uma reprodução projetada no alto do espaço), pois não pode sair nunca do Museu do Prado, em Madri, a quantidade de variações que o pintor catalão fez sobre o trabalho do maior dos mestres nos dá um efeito esfuziante e ironicamente cubista. É como se “As meninas” se fragmentasse em inúmeros reflexos pelo salão e Velázquez, embora presente na sua pincelada original apenas com um pequeno retrato da “Infanta Margarida”, estivesse ele mesmo se divertindo com os devaneios “picassianos”…

E depois disso vem a tal sala dos nus…

Saí de “Picasso e os mestres” completamente atordoado, no melhor dos sentidos. Ver tanta genialidade de expressão junta causou um impacto que dura até hoje em mim – quase três semanas depois de eu ter estado em Paris. A essa sensação, dois dias depois, juntei a euforia criativa de Cildo Meireles, na Tate. E quero achar que trouxe toda essa experiência para me inspirar em 2009.

Tomara que essa minha animação contagie você também.



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