Boas histórias, mas não só

qui, 27/11/08
por Zeca Camargo |
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Um dos meus primeiros empregos foi num pequeno escritório de eventos culturais. Pequenos mesmo – não esses mega-festivais que a gente se acostumou a ver hoje em dia, com mega-patrocínios, mega-cobertura da imprensa, e mega-público assistindo. Não, o escritório onde eu trabalhava publicava pequenos livros, promovia pequenos eventos culturais, e buscava pequenos patrocínios para artistas pouco conhecidos (mas quase sempre bem talentosos). O que eu fazia exatamente lá, nem eu mesmo sabia. Acho que eu era uma espécie de secretário. O que eu me lembro bem era que eu lia muito – o que deve significar que eu não tinha um expediente muito cheio…

Mas não era só o ócio que me fazia ler tanto. Um dos sócios do escritório, entusiasmo com meu interesse pelos livros, me sugeriu um itinerário literário como uma espécie de educação social. Não posso afirmar que as coisas eram ditas exatamente dessa maneira, mas os livros que ele me indicava eram para me ensinar a viver em sociedade – sobretudo numa sociedade urbana, “aculturada” e esnobe como a que eu começava a penetrar naquela época em São Paulo (era o início dos anos 80). Também não me lembro de todos os livros que esse cara me deu para ler, mas nunca esqueci o primeiro nem o último da lista (que, vagamente, ia se aprofundando mais e mais nas engrenagens, nem sempre muito polidas, que movem a sociedade dos homens): comecei com “Bel ami”, de Guy de Maupassant; e terminei com “As ligações perigosas”, de Choderlos de Laclos.

tigrebranco271108.jpgFácil entender porque comecei com “Bel ami” – um retrato ligeiro de uma Paris de frivolidades, onde as festas e os salões funcionavam como verdadeiras provas de alpinismo social (ponha na sua lista de leitura para um fim-de-semana mais… solto). Adorei, claro – uma vez que tudo se parecia tanto com o que eu via à minha volta. Mas foi “As ligações perigosas” que mexeu realmente comigo. Não vou me aprofundar demais hoje aqui – para continuar, basta saber que o livro é uma espécie de manual de manipulação social, um guia de como mentes perversas podem competir para destruir a vida de corações inocentes (mais ou menos como mais um dia daqueles no colégio, só que entre adultos experientes). É uma obra que exige uma certa dedicação – e se você quiser cortar caminho, pode começar a ter intimidade com a história pela excelente adaptação para o cinema de 1988, com Michelle Pfeiffer, John Malkovich e Glenn Close.

Mas me prometa que depois você vai se debruçar sobre o original, pois foi nessa leitura que eu descobri uma maneira diferente de ser seduzido por um livro. O truque de Laclos não consistia apenas em contar uma boa história – “Ligações perigosas” tem uma trama digna das maiores audiências de novelas no horário nobre -, mas também em apresentá-la de uma maneira totalmente original: seus breves capítulos são cartas entre os protagonistas – e de vez em quando entre algumas das vítimas de seus caprichos. Não há ação, nem diálogos diretos. Apenas relatos de encontros, conversas, ameaças e outras malvadezas. Fiquei maluco com o livro – e desde então tenho “Ligações” como parâmetro quando estou procurando não só uma boa história, mas também um jeito diferente de contá-la.

Desde que li Laclos até hoje – vinte e tantos anos! – deparei-me com vários títulos que se encaixam nessa combinação de história e estrutura originais – ou se preferir, para atualizar a proposta, autores e obras que dançam “fora do quadrado”. E dois livros que li recentemente me fizeram mais uma vez lembrar dessa mistura: “O tigre branco”, de Aravind Adiga (que acaba de ser lançado no Brasil pela Nova Fronteira); e “Atmospheric disturbances”, de Rivka Galchen – ainda inédito no Brasil (por pouco tempo, espero). Ambos contam histórias incríveis – beirando o improvável: um miserável camponês indiano que se torna um grande empresário e um homem que desconfia que sua mulher foi trocada por um clone, respectivamente. E ambos as apresentam de uma forma inusitada: cartas do empresário endereçadas ao primeiro ministro chinês que está prestes a visitar a Índia, no primeiro livro; e uma investigação amadora mesclada com um tratamento de um caso sério de esquizofrenia.

“O tigre branco” ganhou este ano o Booker Prize – o prêmio literário mais importante da Inglaterra. Num primeiro momento, porém, ainda que a história te seduza desde a carta inicial, você tem dificuldade em entender o motivo da premiação. Usando uma linguagem simples – muitas vezes ordinária – você pode ler o trabalho de Adiga como uma história comum, contada numa linguagem comum, de um indiano pobre que ficou rico invertendo a ordem natural das coisas naquele país, tudo bem. Mas à medida que você começa a prestar atenção aos detalhes, começa a perceber também que a simplicidade da voz que nos narra é proposital, e que a vida de Balram Halwai – que era chamado de Munna (ou “menino”) quando era criança – é apenas uma desculpa do autor para pintar um painel muito maior: o de uma sociedade tão complexa, e com tanta dificuldade de adaptar a tradição à modernidade como é a da Índia.

Quer um bom exemplo de como ele pinta essa sociedade? Sobre as “aranhas humanas” que trabalham por anos a fio como garçons nas casas de chá – uma ocupação que ele teve quando adolescente -, Balram pondera:

“Esse, porém, é seu destino, se trabalharem direitinho – com honestidade, dedicação e sinceridade, exatamente como Gandhi teria feito, sem dúvida alguma. Eu trabalhava com uma desonestidade quase total, se a menor dedicação e com toda insinceridade – portanto, a casa de chá foi, para mim, uma experiência profundamente enriquecedora”.

“Educado” nessa filosofia, esse é o mesmo Balram que anos mais tarde, já como empresário respeitado em Bangalore, descreve assim um comissário-adjunto de uma delegacia que lhe quebra galhos:

“Era um indivíduo da pior espécie., que não pensava em mais nada a não ser em tirar dinheiro de quem quer que entrasse no seu escritório. Um verdadeiro salafrário. Mas era o meu salafrário”.

É possível se interessar por um “herói” como esse? Adiga consegue não só essa proeza, mas também que o leitor torça com entusiasmo para que essa criatura vil seja recompensada. O que é relativamente fácil quando o mundo à sua volta – o mundo dos ricos, no interior da Índia ou na capital Nova Déli – é ainda mais hediondo.

A Déli de Balram é “a capital não de um, mas de dois países: duas Índias. Tanto a luz quanto a escuridão se encontram nessa cidade”. Nos bairros com condomínios chiques e isolados do mundo (lembrou da Barra, no Rio?), os prédios, shoppings e hotéis são tão amontoados que mal sobra espaço para uma caminhada: “Do lado de fora, tinha uma calçada, mas era para os pobres terem onde morar”. Para este que vos escreve, que conhece Nova Déli relativamente bem (já visitei a cidade cinco vezes), não poderia haver descrição melhor.

Nos dentes vermelhos de tanto mascar folhas de “paan”, no contraste absurdo entre os interiores impecáveis dos shopping centers e a sujeira das ruas, nas filas de homens fazendo cocô nas favelas, no entra e sai glamuroso das portas de hotéis gigantescos e sofisticados, Nova Déli – e boa parte da cultura urbana da Índia, floresce na narrativa de Balram – que, mesmo depois de se dar bem na vida, tem dificuldade para esquecer que foi humilhado boa parte da sua vida.

Não que sua condição inferior lhe negasse prazeres:

“Esta é uma velha e respeitável tradição entre os criados: esbofetear os patrão quando ele apagou. Ou pular em cima dos travesseiros quando não tem ninguém por perto. Mijar nas plantas da casa. Ou ainda chutar ou estapear seus cachorrinhos de estimação. São prazeres inocentes dos empregados”.

Ecos do Brasil? Acho que divago… Antes que eu comece a enlouquecer demais com “Tigre branco”, deixe-me falar um pouco da outra narrativa, ainda mais enlouquecida, com a qual me deparei recentemente, que é a do Dr. Leo Liebenstein, o personagem criado por Rivka Galchen.

“Dezembro passado, uma mulher entrou no meu apartamento e ela parecia exatamente com a minha esposa”, declara Leo (na minha tradução livre) já no primeiro parágrafo de “Amospheric disturbances”. Perturbadora como deve ser, essa constatação – logo percebemos – é apenas a introdução a um cotidiano extremamente bizarro, que Rivka vai apresentar nas páginas seguintes.

atmospheric271108.jpgUsando um rico léxico para descrever a suposta “substituta” de sua mulher, Rema – clone, “doppelgänger”, simulacro, duplo, imitação, “Rema” (entre aspas mesmo) – o personagem principal nos convida a uma sutil meditação do que seria acordar um dia diante de alguém que pensamos que conhecemos a vida inteira, mas que, de uma hora para outra, passa a ser uma estranha total. Parece maluco? Eu ainda nem comecei a falar da Academia Real de Meteorologia…

Leo tem um paciente esquizofrênico, que declara ser um agente secreto de uma instituição com esse nome pomposo – e que tem a missão (secretíssima!) de controlar o tempo em todas as regiões do mundo. Quebrando todas as regras da boa psiquiatria, Leo, por sugestão de Rema (a verdadeira) mente para seu paciente e diz que também faz parte da imaginária Academia, na tentativa de evitar que ele desapareça temporariamente – o que vinha acontecendo com freqüência. Quando “entramos” na história, Leo está com a tal “estranha” em casa e diante de uma recaída do seu paciente – que acabou de sumir depois de um longo período de bom comportamento.

O cotidiano de Leo está desmoronando, mas nos envolvemos como se não pudéssemos perder tempo admitindo isso. Pela narrativa incrivelmente sedutora de Rivka, acompanhamos seu personagem principal nas inquietude da sua convivência com uma mulher que ele acha que é uma estranha; nas suas lembranças do início do relacionamento com Rema (a “original”); com os percalços de um tratamento psiquiátrico pouquíssimo ortodoxo; e – pasme – com detalhes acadêmicos dessa ciência tão complicada que é a meteorologia.

“Atmospheric disturbances” ainda não ganhou nenhum prêmio. Mas posso “casar” dinheiro como ele estará na seletíssima lista de melhores livros do ano do jornal “The New York Times” (cobre de mim se isso não acontecer!), entre outras indicações e premiações de reconhecimento. Este leitor, pouco ortodoxo – como você sabe-, admite aqui que releu vários trechos do livro apenas pelo prazer de reencontrar o fio de uma meada labiríntica proposta pela autora – e, só por isso, o livro já mereceria muitos prêmios…

Com o sucesso que está fazendo lá fora, imagino que sua tradução não demore a chegar aqui no Brasil. E que essa edição, junto com a de “Tigre branco”, tenha fôlego para inspirar futuras gerações de leitores como “As ligações perigosas” me inspirou. Se não numa educação social (e, talvez, sentimental), pelo menos em algumas centelhas de lucidez – no que diz respeito às estruturas sociais do mundo moderno, no caso do livro de Aravind Adiga, e às percepções da mente, no trabalho de Rivka Galchen -, em tópicos que sempre serão fundamentais para a sobrevivência nesse ricochete que é nossa vida moderna.

Onde nenhum homem tinha se atrevido a estar antes

seg, 24/11/08
por Zeca Camargo |
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Reconhece a frase acima? Parece familiar, mas um pouco diferente do que você esperava? Pois é ela sim: aquela da narração da imbatível abertura da ainda mais imbatível série de TV “Jornadas nas estrelas” – só que na versão que ia ao ar na TV portuguesa (onde, aliás, o seriado chamava-se “O caminho das estrelas” – ah, as coisas que a gente descobre na internet…). Mas este não é um post sobre a série – se bem que nada me custa começar a falar de Spock, Kirk, Magro (!), Scott, Chekov, e (meu personagem favorito – talvez porque cuidasse da comunicação da Enterprise?) Tenente Uhura. Quero falar de dois músicos sensacionais – e não exatamente estreantes – que lançaram novos trabalhos recentemente. Trabalhos esses tão originais – e mais ainda por não serem discos de estréia – que me inspiraram a evocar a famosa frase de “Jornadas nas estrelas” que você vê lá em cima: Marcelo D2 e Juana Molina.

marcelo-d2.jpg

Primeiro Marcelo – já que seu “A arte do barulho” era um dos álbuns que eu estava mais ansioso para ouvir este ano. Fã incondicional de “À procura da batida perfeita” (2003), ligeiramente insatisfeito com “Meu samba é assim” (2006) – que me pareceu muito, hum, calculado -, minhas expectativas eram altas para este novo trabalho. Expectativas, felizmente, todas preenchidas – e superadas.

Assim como “À procura da batida perfeita”, “A arte do barulho”, coincidência ou não, pega emprestado seu título de uma conhecida expressão em inglês – que é também o nome de uma banda seminal dos anos 80: The Art of Noise. Parece pretensioso – e essa banda à qual me refiro ficava apenas aquém do esnobismo musical (para os curiosos, recomendo a completíssima edição especial, lançada em 2006, “And what have you done with my body, God?”). Mas, pelas mãos laboriosas de D2, a frase transcende como título de um álbum e torna-se uma tradução natural das suas últimas experiências sonoras.

“Onde nenhum homem tinha se atrevido estar antes”, eu escrevi lá em cima – e quanto mais ouço seu novo disco, mais acho que essa descrição é perfeita. Enquanto boa parte do pop brasileiro regurgita o que sobrou das variações sobre o tema “emo” (apesar de ninguém admitir isso) – e uma pequena parte finalmente descobriu a onda neo-folk e tenta tirar disso uma tendência – D2 segue seu caminho totalmente original. E livre do peso da responsabilidade de prestar tributos formais ao samba brasileiro ele retoma o que havia apresentado em “Batida perfeita”: uma mistura única de hip-hop “brazuca”, ritmos brasileiros e africanos (e alhures!), sons da rua, rimas finas – e “samples” para lá de inesperados.

Como o de Cláudia, em “Desabafo”. Cláudia quem? Numa breve linha biográfica, ela foi uma das vozes mais cristalinas dos anos 70, que teve o azar de ficar conhecida mais pelo papel principal da montagem do musical “Evita” no Brasil do que pelo seu idiossincrático repertório – que inclui o mini-clássico “Deixa eu dizer”, ressuscitado então por D2. Mas não é só uma questão de “samplear”, claro. Brincando com o nome daquele álbum de 2003 (que ele inclusive cita em “Desabafo”), o que Marcelo encontrou nessa faixa é a levada perfeita.

Depois da forte faixa-título de abertura, “Desabafo” dá o tom do que vem a seguir: uma seqüência de puro prazer – um clima que só é cortado lá na última faixa, da qual falamos já já. É samba? É sim senhor, mas com uma cara ligeiramente diferente, que você tem que se entregar para reconhecer. Cheio de malandragem – seria fácil rotular. Mas o que é malandragem num disco de música como esse?

Seria a ousadia de usar um clichê tão cândido como cantarolar “laiá láia”, como ele faz em “Pode acreditar”, para poder dizer “Nego é burro, burro, e continua votando errado”? Ou a tentativa (bem-sucedida) de reinventar o suíngue em “Ela disse pra mim”? Criar um refrão com jogo de sílabas – “à la deixa que digam que pense que falem” – como o da faixa chamada “Oquêcêqué”? Não esconder a inspiração descarada do rap francês do início dos anos 90, que faz uma aparição surpresa em “Afropunk no Valle do rap” (cujo Valle é em maiúscula sim e tem dois “eles” porque é do Marcos Valle, que participa da faixa)? Usar uma flauta safada em “Atividade na laje”? Ou o “golpe baixo” (também bem sucedido) de chamar a voz perfeita de Roberta Sá para iluminar “Minha missão”?

Malandragem aí é um pouco de tudo isso, mas não de qualquer jeito. Todos os ingredientes que parecem compor tão espontaneamente “A arte do barulho” são, na verdade, fruto de uma curiosidade preciosa de D2 – que é, mesmo sem conhecê-lo a fundo (fizemos só uma matéria juntos, há anos, com Fat Boy Slim, no Pão de Açúcar), é um dedicado pesquisador. Ninguém hoje no nosso pop faz tanta justiça à frase (tirada de sua própria poesia): “Me mostra que tem cultura e aí a gente conversa” (em “Meu tambor”, a faixa mais “minimal” do novo disco).

“Anytime”, Marcelo, “anytime”.

juana-molina.jpgComo escrevi anteriormente o clima do disco só é quebrado lá no final, com aquela que eu achei a melhor canção do álbum: “Vem comigo que eu te levo pro céu”. O tom ali muda completamente: D2 passa de MC Solaar a Eminem sem aviso, e deságua uma letra fantasmagórica acompanhada de um refrão hipnótico e, eventualmente, de guitarras carregadas. Ah! E uma imperdível assinatura, que fecha todo o álbum dando um recado para “o povo parar de jogar lixo”! São suas últimas (e brilhantes) cartadas nesse jogo esperto de referências, onde D2 não só nos oferece um trabalho totalmente original – que também é, ironicamente, uma continuidade do que já vinha fazendo -, mas também inspira fortemente aqueles que, como eu, gostam de ser surpreendidos com algo que não se parece com nada que está sendo feito. Exatamente como faz Juana Molina em “Un día”.

Leitores de longa data talvez se lembrem que, em junho do ano passado, eu já havia dedicado um espaço aqui a essa cantora argentina. Não cheguei a me aprofundar muito, mas a usei como uma boa referência para quem estava a fim de descobrir o inventivo pop argentino.

Quando vi que ela tinha um novo álbum, tratei logo de encomendar. Foi um pouco antes de a volta ao mundo começar, e eu temia que o CD não chegasse a tempo de eu colocá-lo na seleção musical que eu iria levar para a viagem. Dei sorte: chegou um dia antes de eu embarcar e foi um prazer extra adaptar “Un día” como trilha sonora para as paisagens extremas que fui conhecendo. Suas estruturas delicadas – mais aquela voz surreal – casaram de maneira estranha, porém perfeita, nas paisagem sem limite da Mongólia (entre outros lugares visitados…).

Assim como no caso de D2, seria fácil (e apressado, e errado) dizer que Juana está fazendo “mais do mesmo”. Seus discos anteriores seguem uma mesma receita muito simples, com voz, violão e sintetizadores mínimos. Porém, “Un día” tem uma diferença fundamental: se ela parecia que estava se tornando cada vez mais hermética e abstrata a cada novo álbum – “Son”, de 2006, está mais para uma colagem sonora e é quase irreconhecível como uma coleção de canções -, Juana agora traz faixas distintas e fortes, cada uma com uma pulsação própria e vibrante.

Começa já na faixa-título, que te coloca em um transe irreversível em menos de 10 segundos – a ponto de quando entra a percussão (mero meio minuto depois) você nem percebe que já está balançando a cabeça no compasso doido dá música desde o seu início. As coisas ficam um pouco mais suaves em “Solo”, a faixa seguinte, e você quase acha que ela resolveu suprimir sua voz do disco em “Los dejamos”. Mas aí vem a intensa “Los hongos de Marosa”, o lamento de “Quién? (suíte)”, e a quase dançante “El vestido” (um bom “remix” seria capaz de produzir um “hit” instantâneo para as pistas deste verão que vem chegando!). E quando você se dá conta que está perdido naquele labirinto sonoro de Juana Molina, já é tarde demais. Já nem quer mais sair.

Assim como o trabalho de D2, as sonoridades da cantora argentina escapam uma definição. Desorientam justamente porque não encontramos um referência para nos apoiar. Lembram de longe – bem de longe – o Young Marble Giants. Mas são um pouco mais desafiadoras. “Un día” é daqueles álbuns que você quer um amigo seu descubra, que outras pessoas escutem, e que elas passem adiante como uma descoberta rara.

Eu estava até guardando esse título para a lista “Os 12 melhores discos que você não ouviu em 2008″ – que vou publicar aqui em breve, nos moldes da do ano passado. Mas resolvi “adiantar” essa informação por dois motivos. Primeiro, porque a lista deste ano já ameaça ultrapassar os 12 álbuns (isso que dá sair comprando CDs pelo mundo…). Segundo, porque eu já estava devendo um destaque há um certo tempo para essa artista – e não agüentava segurar mais essa vontade de recomendá-la para todo mundo, e especialmente para você.

Com D2 e Juana Molina, a gente pode renovar as esperanças de que a criatividade da música pop irá sempre muito além até dos limites da própria Enterprise…

“Nossa cabeça é redonda para permitir ao pensamento mudar de direção”

qui, 20/11/08
por Zeca Camargo |
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haring.jpgLogo quando pensei em escrever sobre “Vicky Cristina Barcelona”, o mais recente filme de Woody Allen, quis usar uma frase do próprio diretor para o título deste post. Assim, logo após ter visto o filme, na última sexta-feira, comprei uma excelente coleção com entrevistas de Woody ao jornalista e escritor americano Eric Lax – “Conversas com Woody Allen” (Cosac Naify). Ali mesmo, pensei, havia dezenas de pensamentos interessantes para minha minúscula homenagem: uma frase do próprio diretor para figurar lá em cima!

Ocorre que hoje, antes de começar a escrever, checando meus emails, recebi um link que me levou a um trabalho daquele que é provavelmente o artista mais famoso dos anos 80, Keith Haring (a história é um pouco mais comprida do que isso, mas como hoje eu acho que vou escrever bastante, vou apenas resumir…). Nunca havia visto este desenho – que, aliás, é meio diferente do que a gente se acostumou a ver desse artista: sobre um papel onde estava escrita uma frase de outro artista – um dos mais curiosos e inesperados do século 20, Francis Picabia -, apenas alguns traços que evocavam seu trabalho, e a assinatura inconfundível do próprio Haring. Qual era a frase? Justamente a que eu usei para o título deste post – e não sem motivo.

Primeiro, porque é uma variação de um tema que gosto muito – em cima de um verso de uma música do New Order que eu sempre gosto de citar: “Pensamento que não muda vira uma mentira estúpida” (do original “A thought that never changes remains a stupid lie”, em “Your silent face”). Depois, porque a frase se aplica maravilhosamente ao trabalho de Woody Allen – e ainda por cima aos comentários sobre meu último post.

Como se diz em Portugal, gostei imenso da discussão que o relato da minha ida à Bienal de São Paulo provocou. É mais um daqueles momentos que justifica todo o sacrifício de escrever neste blog (e, acredite, com a quantidade de coisas que eu tenho de fazer, é sim um sacrifício): um instante de debate lúcido – sem aqueles chiliques que às vezes aparecem por aqui -, onde mesmo as opiniões mais diferentes da minha são colocadas com clareza e boa argumentação (não incluo nisso, claro, as risíveis exceções, que você identifica facilmente). Mesmo os que distorceram um pouco minha colocação – eu não me incomodo de tirar fotos com pessoas que admiram meu trabalho, mas apenas fiquei perturbado com a falta de foco daquela turma que visitava a Bienal -, colocaram-se de maneira convincente. Quando eu vejo que entramos num debate assim – eu e você – logo penso: é para isso que eu faço este blog! Ah, se eu pudesse responder um a um…

Mas não posso – não haverá nunca tempo suficiente para isso, infelizmente… Porém, na frase de Picabia (emprestada por Keith Haring), encontrei, se não uma resposta geral para os que me escreveram, pelo menos um argumento para levarmos essa discussão adiante. Algo que, claro, vai acontecer num outro momento, já que hoje vamos falar de “Vicky Cristina Barcelona” – o trabalho mais recente desse diretor que faz um excelente uso da forma arredondada de sua (nossa) cabeça.

woody.jpg“Só jogo as idéias fora depois de realizadas”, diz Woody a Lax no final do primeiro capítulo do livro – onde eles discutem justamente as idéias (outros capítulos falam de vários aspectos de seus filmes, como atores, locações, direção e até, para minha alegria particular, trilha sonora – por exemplo, quem diria que a inclusão de óperas antigas em “Ponto final” é resultado de um “precinho de ocasião” que uma gravadora fez ao diretor porque estava interessada em promover um pacote de CDs com toda a obra de Enrico Caruso?). E essa afirmação me fez pensar: desde quando Woody Allen estava pensando em filmar uma história tão sensual, tão perversa e tão… normal?

Pelo livro de Lax, soube que o diretor carrega consigo sempre uma sacola cheia de papéis onde anota suas idéias. Parece uma anedota inventada, mas quando ele confessa, a certa altura, que a sacola original, que ele tinha há anos, acabou rasgando (e agora ele usa uma nova), resolvi acreditar nesse, digamos, “processo criativo”. Mesmo assim, essa inquietação não me sai da cabeça: o argumento “Vicky Cristina Barcelona” estava naquela sacola há muito tempo, ou ele foi escrevendo o roteiro à medida que foi se ambientando em Barcelona – e, sobretudo, conhecendo melhor os atores com quem decidiu trabalhar dessa vez?

Tudo bem, Scarlett Johansson (que faz o papel de Cristina) já é praticamente sua musa assumida (fez não somente “Ponto final”, mas também o sub-apreciado “Scoop – o grande furo” como protagonista) – ou seja, é possível compreender a facilidade com que o diretor explora seu potencial diante das câmeras. Mas como explicar a naturalidade com que Javier Bardem e Penélope Cruz costuram a história, com uma parte de sensualidade, uma de caricatura (ah, esses catalães esquentados…), uma parte de romance, e uma de humor. E ainda tem a (para mim) desconhecida Rebecca Hall, no papel de Vicky, a perfeita “moderna e reprimida” jovem americana! Impossível imaginar que Woddy tinha tudo isso no bolso, ou melhor, na sacola antes de começar a rodar “Vicky”…

rebeccascarlett.jpgPara quem ainda não assistiu – e sem tirar a graça de você que ainda quer ver – a história é simples: duas amigas americanas vão passar o verão em Barcelona. Vicky (a que aparentemente sabe o que quer) está prestes a se casar com “o homem perfeito”. Cristina (a que tem certeza apenas do que não quer) saiu de mais um fracasso amoroso e profissional. As duas encontram o artista plástico Juan Antonio (Bardem) que nos primeiros dois minutos de conversa declara sua intenção de levar as duas para a cama. Sem aceitar de primeira, as duas se aproximam dele, sabendo apenas que ele acaba de sair de um casamento tumultuado, depois que sua ex-mulher, Maria Elena, tentou matá-lo (preciso dizer quem faz o papel de Maria Elena?). Maria Elena, claro, reaparece a certa altura para ver o que se marido anda aprontando…

Imagine as possibilidades de sedução de uma história como essa – com um elenco como esse! Imaginou? Agora multiplique por dez. Como quem parece contagiado pela temperatura de um verão ibérico, Woody Allen desenrola entrelaces delirantes, como se, pelo menos por uma estação, o racional fosse suspenso e as pessoas se entregassem aos seus desejos. De uma maneira extremamente orgânica – nada ali, mesmo no ritmo de fantasia que predomina no filme parece que é forçado – os personagens vão descobrindo – ou melhor, vão convencendo uns aos outros, e ao mesmo tempo se convencendo – de que tudo pode, tudo é possível (a ponto de você se sentir desconfortável de assistir o filme ao lado de sua namorada ou seu namorado, ou marido, ou esposa, com quem você inevitavelmente se sentirá compelido a discutir seus desejos – ou não, reprimindo talvez uma relação que já não anda muito saudável…). A facilidade com que eles aceitam isso é rapidamente absorvida por nós, meros espectadores, a ponto de a certa altura, sem que percebamos, já estarmos a ponto de aceitar todos os jogos amorosos e sensuais ali propostos sem nos preocuparmos em perguntar se não existe um preço a pagar por tudo isso…

Claro que existe – e quando ele é cobrado no filme, você já está tão envolvido com toda a trama que sua vontade é amaldiçoar o diretor por ter (mais uma vez) interferido como um “deus ex machina” no destino daquelas pessoas… (algo que Woody, como criador, faz com freqüência – e que já deixou até explícito, por exemplo, em “Poderosa Afrodite”, onde é a própria figura de um “deus ex machina” que decide que, no final, os dois personagens principais vão viver separados, cada um levando o filho do outro sem saber – um dos seus finais mais lindos de toda sua obra).

bardemwoodyetc.jpgDepois do tobogã de possibilidades de relação que ele pinta em “Vicky Cristina Barcelona” – que inclui até um beijo sutilmente erótico entre duas das atrizes mais sensuais do cinema atual, Johansson e Cruz -, você se sente quase traído por ele ter dado uma solução tão corriqueira para todos os dilemas. Mas a vida é assim, não é? – parece que Woody pergunta a você, como uma provocação. (O que me lembra uma das entrevistas do livro na qual ele diz: “A minha percepção é que você é forçado a escolher a realidade em vez da fantasia. E que a realidade acaba por machucar a gente, e que a fantasia não passa de loucura”).

Nas entrevistas de Lax – recomendadas para qualquer pessoa que, como eu, é fã incondicional do diretor – ele não chega a discutir esse último filme (as entrevistas vão até 2006, quando “Vicky” era apenas um esboço de algo que seria filmado em Barcelona). Mas aqui e lá está clara a posição do Woody quanto à sua intenção de provocar os relacionamentos humanos. Admiradores de “Noivo neurótico, noiva nervosa”, por exemplo, têm muito para explorar nesse livro; mas há também detalhes preciosos para quem quer saber um pouco mais das intenções do diretor ao fazer “Maridos e esposas” e “Desconstruindo Harry”, dois da minha lista de favoritos.

E há ainda uma quantidade generosa de informação sobre “Ponto final” (onde ele queria colocar algo da sua filosofia pessoal, particularmente sobre a ausência de Deus – “sinto que consegui fazer isso”, afirma ele a certa altura), e sobre aquele filme que é o que fala mais comigo (apesar de o diretor, como descobri no livro, não considerá-lo perfeito – “um pouco mecânico demais”): “Crimes e pecados” – gostei não apenas de saber das suas intenções por trás do argumento (“Vale a pena viver num universo sem Deus? A cabeça diz que sim, mas o coração tem medo demais para agir e dar um fim a isso.”), mas também de conhecer bastidores engraçados, como a origem daquele diálogo surreal sobre um tratamento de oftalmologia com pêlo de gato (!) que ouvimos no fundo quando Judah (Martin Landau), durante um jantar em casa, recebe um telefonema do irmão confirmando que sua amante Dolores (Angelica Huston) havia sido assassinada, conforme seu pedido.

(Nas entrevistas, os admiradores de Woody Allen vão encontrar uma cornucópia de curiosidades sobre seus filmes. Ficamos sabendo mais, por exemplo, sobre “A rosa púrpura do Cairo” – outro filme que o diretor surpreendentemente não “adora”; “Celebridade” – de onde uma cena filmada com Vanessa Redgrave, isso mesmo, Vanessa Redgrave, foi cortada, e sobre o qual ele ironiza: “Faço o primeiro filme com Leonardo DiCaprio depois de ‘Titanic’ e não ganho nenhum centavo”;  “Hanna e suas irmãs” – Jack Nicholson foi a primeira escolha para o papel que deu um Oscar a Michael Caine?; “Tiros na Broadway” – Dianne Wiest, que também ganhou um Oscar por esse filme, quase desistiu de seus personagem, dizendo “Você precisa chamar outra atriz, não consigo fazer”; e, claro, “Zelig” – “Não era para ser um documentário quando comecei a escrever”. Entre tantos outros…)

E o livro não é bom apenas pelos bastidores dos filmes. É divertido também ser convidado a entrar na mente do diretor – que ainda se ressente pelo fato de as pessoas acharem que ele só deveria fazer comédia (ah… essas cabeças redondas…) e ainda conferir mais de uma vez rompantes de auto-depreciação – especialmente como ator! Sem falar que é um prazer vê-lo, como criador, lucidamente distanciado do seu trabalho. Como nessa passagem:

“Consigo dizer: ‘Este acabou ficando um bom filme’. Na verdade não sei como as pessoas reagiram ao filme, porque faz anos que parei de conferir, mas se gostaram, ótimo. Se não gostaram, não me importa muito, não porque eu seja indiferente ou arrogante, mas porque aprendi tristemente que a aprovação deles não afeta a minha mortalidade. Se faço alguma coisa que sinto que não é muito boa e o público aceita, até entusiasmado, isso não atenua em nada a minha sensação de fracasso. Por isso o segredo é trabalhar, se divertir com o processo, não ler a respeito de si mesmo, quando as pessoas estiverem falando de cinema mudar a conversa para esportes, política ou sexo, e continuar suando a camisa”.

(Quantos criadores, penso comigo mesmo, não poderiam tirar daí uma lição…)

Porém, mesmo completo como é, eu faço votos de que o futuro nos traga uma edição atualizada de “Conversas com Woody Allen”, só para saber um pouco mais do que passava pela cabeça do diretor quando ele escreveu “Vicky Cristina Barcelona”…

Vá à Bienal

seg, 17/11/08
por Zeca Camargo |
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Ver duas das mais sedutoras atrizes do cinema contemporâneo beijando-se vale R$ 42? Você levaria seu parceiro ou sua parceira para assistir a um filme que fala sobre desejos amorosos escondidos? Vale a pena, a essa altura, entrar numa discussão para defender Woody Allen? Respostas a essas questões crepitantes, você encontra neste espaço, na próxima quinta-feira, quando eu pretendo comentar sobre “Vicky Cristina Barcelona”. Hoje, porém, o assunto é a vigésima oitava Bienal de São Paulo, onde estive na última sexta-feira, numa espécie de “visita guiada”.

bienal.jpgGuiada, sim, mas não por monitores – ou melhor, educadores, como agora são chamados os solícitos estudantes de arte (quem sabe alguns até artistas?) que circulam pela mostra ajudando os quase sempre confusos visitantes. Uso “guiada” mais no sentido de “acompanhada”, uma vez que minha visita foi pontuada por olhares incisivos de dezenas de jovens que estavam lá numa atividade – quero acreditar – educadora. Todos pareciam estar na Bienal com um grupo de estudantes, e foi até curioso notar que nessa faixa etária, entre 14 e 18 anos, ninguém que estava na Bienal na manhã da última sexta parecia estar por iniciativa própria. Mais curioso ainda, foi ver como esses mesmos jovens, diante da possibilidade de tirar fotos com uma pessoa que trabalha na televisão, não hesitaram em trocar as parcas obras da exposição – mais sobre isso já já – por essa “experiência”.

Tudo é experiência, diriam os mais relativistas. Mas, como foco involuntário das atenções naquela manhã, eu diria não foi bem assim que eu percebi a situação. Para você entender melhor a situação, vou reproduzir aqui alguns diálogos que travei com esses visitantes – o primeiro deles, com uma menina que deveria ter no máximo 15 anos:

- Posso tirar uma foto com você?
- Você prefere tirar uma foto comigo “do que” continuar a visitar a exposição?
- Prefiro.
- Mas você não tá vendo nada legal na Bienal?
- Tô.
- Então por que você quer deixar ela de lado e tirar uma foto comigo?

Seguiu-se um silêncio mais profundo que eu encontraria se eu tivesse pedido que ela elaborasse sobre o vídeo de uma jovem Marina Abramovic penteando alucinadamente os cabelos, que nós dois havíamos acabado de assistir (num pequeno exercício de crueldade educativa, eu “obrigava” cada pessoa que se aproximava com uma câmera fotográfica a ver um dos trabalhos do “video lounge”, no mezanino do Pavilhão da Bienal, antes de facilitar sua aproximação para o pedido da foto… fiz mal?).

Mais adiante, subindo uma das rampas em direção ao segundo andar, outra menina, que já havia me abordado quando eu estava entrando na exposição (ela já estava de fora), me procurou novamente (entrou de novo na Bienal! Duas vezes!):

- Agora eu posso tirar a foto com você?
- O que você vai fazer com essa foto?
- Vou guardar.
- O que você vai guardar da Bienal?
- Essa foto.

Pelo menos uma outra menina que encontrei na seqüência – a mais educada de todas na abordagem do pedido da foto – foi adiante no raciocínio:

- Posso tirar uma foto com você?
- Posso te perguntar qual foi a coisa mais legal que você viu nessa Bienal?
- (silêncio)
- Qual a coisa que você mais gostou?
- O escorrega!

bienal-escorregador.jpg

Ah, o escorrega… Ela se referia, claro, aos dois escorregadores instalados pelo artista alemão Carsten Höller (que, se você está comigo desde os primórdios deste blog, já conheceu há tempos), no lado de fora do prédio, que é, obviamente, a atração mais popular dessa Bienal de São Paulo. (Chamei de “atração” o trabalho de um artista numa importante exposição de arte? Hummm…). Animado com essa última conversa, acabei não só apreciando, mas também incentivando algumas – num infame simulacro de arte performática, como se eu, contagiado pela qualidade dos trabalhos ali apresentados, achei que pudesse ser também um deles, dos expositores, e não dos visitantes. Não vou recontar todas aqui – quem sabe eu guarde o material para minha primeira exposição numa galeria de arte… Mas aqui vai só mais um, para a gente continuar:

- Você se incomoda se eu tirar uma foto de você?
- Você não é da segurança?
- Sou.
- Se eu parar para tirar uma foto com você, será que outras pessoas não vão querer fazer a mesma coisa e assim, quem sabe, dificultar o seu trabalho?
- Não, mas você não precisa parar pra tirar uma foto comigo. Pode ser de longe mesmo.

Divertido? Nem tanto. Mesmo descontando o viés de ser eu ali o “alvo das atenções” (algo que pode ser desconfortável, como já discuti aqui, quando você não está ali como pessoa pública, mas apenas como mais um visitante), me senti desconfortável. E não tinha nada a ver com o fato de eu estar sendo solicitado a fazer algo que não era meu objetivo ao visitar a Bienal (posar com pessoas que queriam uma foto ao lado de alguém da TV), mas com uma indagação sobre o quanto aquelas pessoas estavam aproveitando a própria Bienal.

Em apenas um dos grupos de estudantes – um que, coincidentemente, fazia fila num dos escorregadores de Höller – detectei um professor. Todos os outros pareciam estar adorando o passeio mais pela oportunidade de não estar numa sala de aula – e nem supervisionados! Será que aquela manhã renderia uma redação? Um breve relatório? “Depois de escorregar na Bienal, encontrei aquele repórter da TV…” – começaria uma delas?

Veja bem, não estou achando ruim que um grupo de pessoas que (provavelmente) nunca tinha visitado uma exposição desse porte, e de tal complexidade (é a “Bienal do vazio”, lembra?). Arte para as massas – como já escrevi aqui há quase um ano. Sempre! O que acho um desperdício é que eles aparentassem tão pouca vontade – com ou sem orientação – de refletir sobre as experiências que encontraram por lá (além, claro, da “emoção” de ver alguém da TV, como me explicou outra garota que me pediu uma foto). Especialmente porque, para quem quisesse investir, tinha muita coisa ali para se aproveitar – mesmo com essa edição notoriamente se orgulhar de ter convidado cerca de um terço do número de artistas das outras Bienais recentes (vazio, lembra?).

Para começar, a Bienal oferece, mais uma vez, a chance de ver de perto trabalho de artistas internacionais que brasileiros interessados por arte contemporânea e sem condições de viajar muito jamais poderiam aproveitar. Como as estranhas paisagens subjetivas dos vídeos da finlandesa Eija-Liisa Ahtila (“A casa”, em especial, é imperdível). Ou o intrigante exercício (aparentemente inútil) de repetição do americano Allan McCollum, com suas centenas de silhuetas emolduradas. Ou mesmo um dos resultados da famosa parceria entre a artista francesa Sophie Calle e o escritor americano Paul Auster. Ou ainda os próprios “escorregas” de Höller, uma coleção generosa de vídeos de Abramovic (muito além daquele das escovadas), vídeos brilhantes que provavelmente ainda não estão disponíveis no youtube (um veículo por onde a arte, estranhamente, ainda engatinha), e – aquele que é um dos meus trabalhos favoritos – a instalação absurda e cerebral da moçambicana Ângela Ferreira (que, para dar apenas uma idéia, alterna filmes de shows de rock dos anos 60/70, com entrevistas feitas numa Maputo que parece ser dos anos 70 sobre uma dança ao mesmo tempo tradicional e urbana, em estruturas bizarras de madeira). Mas não só isso.

Artistas brasileiros, talvez desafiados pelo tema “apenas um pouco menos provocador do que deveria ser” da Bienal – o vazio! – apresentaram trabalhos bem originais (mesmo para aqueles que já são conhecidos pela sua originalidade). Como as máquinas de escrever de Rivane Neuenschwander (para os visitantes usarem à vontade – e como usam!). As letras de papel de Valeska Soares. As repetições propositais das gravuras de Leya Mira Brander. As doações que Maurício Iânes, que começou nu, recolhe em pessoa no vazio do segundo andar do pavilhão. E sobretudo a pequena escultura de Iran do Espírito Santo – tão pequena, que só fui descobri-la quando o segurança que instalou na parede em frente a uma das rampas deslocou-se para outro ponto de observação.

E esses são apenas os trabalhos que mais me chamaram a atenção na minha visita de pouco mais de uma hora. Não vi nem uma boa fração dos trabalhos em vídeo – sequer uma das performances (cuja programação, pelo que acompanho em jornais, é farta e… intensa). Por isso, como dizia a propaganda que, ainda nos anos 70, me inspirou a visitá-la pela primeira vez, vá à Bienal! Se você morar em São Paulo, ou conseguir passar pela cidade até dia 06 de dezembro, tenho certeza de que vai descobrir por lá outras coisas além dessas que citei que falam talvez mais forte ainda com sua sensibilidade – só precisa se esforçar um pouquinho mais (pouca coisa mesmo) do que aquele pessoal que queria tirar fotos comigo naquela manhã de sexta.

Eu mesmo gostaria de voltar lá para novas descobertas antes de a Bienal terminar. E se estiver muito difícil de aproveitar a visita, eu já tenho como escapar… Demorou um pouco para eu ter essa idéia, mas quando me dei conta, percebi que estava do lado da saída mais estratégica daquele prédio: pelo escorregador de Carsten Höller.

007,5

qui, 13/11/08
por Zeca Camargo |
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Fiquei tentado a começar este post recomendando que os editores de “O cavaleiro das trevas” assistissem com atenção ao filme “007 – Quantum of solace”. Mas me lembrei, é claro, que a probabilidade de algum dos editores de “Cavaleiro” passar por aqui – e ainda por cima ler isso em português! – é muito próxima de zero. Eu também teria um recado para os roteiristas de primeiro filme – algo na linha “qualquer diálogo seco entre Bond e M tem mais nuance e profundidade do que qualquer solilóquio do Coringa (ou do próprio Batman)”. Mas concluí, sem esforço, que as chances de eles receberem a mensagem também são ridiculamente pequenas. Pensei ainda em fazer tais recomendações aos fãs do filme mais recente do homem-morcego, que defendem incondicionalmente “Cavaleiro das trevas” – e ainda adoram argumentar que o sucesso de bilheteria é um “cala-boca” para quem quer apontar defeitos na produção (um grupo que, imagino, respeita a arrecadação total superior de “Titanic” como uma prova de que este é o melhor filme de todos os tempo – inclusive melhor que “Cavaleiro”). Mas esse grupo já abandonou este blog faz tempo e hoje perambula no crepúsculo de Gotham City.

daniel-craig.jpg

Resta então eu dedicar essa recomendação a você, que, talvez como eu, gosta de ser surpreendido numa sala de cinema com cenas de ação bem editadas, diálogos razoavelmente interessantes, e uma trama que faz sentido – e não é um insulto à inteligência que conta apenas com a idolatria a um herói (seja da ficção ou dos quadrinhos) para poder agradar. Amigo, amiga: você tem que ver “Quantum of solace” (que, curiosamente, não ganhou uma tradução “criativa” no seu lançamento no Brasil – tipo “Com o perigo nunca se brinca” -, nem mesmo uma mais literal – se bem que, convenhamos, “Uma fração de consolo” não me parece um dos nomes mais chamativos para uma produção nessa linha…).

Mas vamos retomar o quesito edição. Não é de hoje que um filme de 007 começa com uma seqüência frenética e contagiante. O próprio filme que antecedeu esse, “Cassino Royale” (estréia de Daniel Craig no papel do agente secreto) veio com uma abertura forte. Só que “Quantum” não vem apenas com mais uma introdução eletrizante – mas sim com duas (ou mesmo três, se você contar as cenas no meio da corrida de cavalos de Siena, na Itália, e a dos andaimes de restauração como duas coisas separadas).

A primeira seqüência, que acontece numa estreita – e perigosa – estrada européia à beira de um penhasco é quase previsível. Mas a maior novidade para mim foi a grata percepção de que eu havia entendido tudo o que tinha acabado de acontecer. Geralmente, em perseguições de carro, você tem que adivinhar quem é perseguidor e perseguido, que carro exatamente está batendo em que carro, para onde estão saindo os tiros que não atingem ninguém, e como um automóvel que parecia estável – porém em alta velocidade – de repente é projetado num desfiladeiro. Não nos primeiros minutos de “Quantum of solace”. Mesmo atordoado pela rapidez dos cortes e pela violência das cenas, você entende direitinho o que está vendo. E reconhece, inclusive, que o fato de Bond ter chegado são e salvo – ainda que um pouco agitado (ou “stirred”, em inglês), como, aliás, ele não gosta que preparem seu martini – a um refúgio secreto com o vilão do filme anterior em seu porta-malas para um interrogatório é apenas uma concessão do diretor para que você dê uma respirada antes que venha outra perseguição alucinada.

Essa, então, é a tal que acontece primeiro no meio de uma multidão que assiste, na praça principal de Siena, a encenação de uma corrida de cavalos antiga e tradicional, e depois num espaço fechado – apenas com Bond e seu perseguido se engalfinhando num sobe e desce que desafia a gravidade entre andaimes que parecem estar lá para a restauração de frágeis obras de arte (que obviamente não sobreviverão ao corpo a corpo que assistimos!).

Até essa cena, o melhor exemplo que eu tinha para dar às pessoas de uma seqüência de ação bem editada num filme recente era o assassinato do jornalista que Jason Bourne estava tentando proteger numa estação de trem em Londres no “Ultimato Bourne”. Talvez essa cena toda ainda reine soberana no meu cânone pessoal, não apenas pela montagem precisa – e inteligível! -, mas também pelo esforço hercúleo de produção de filmar com centenas de pessoas num lugar público como a estação de Waterloo. Mas como estratégia de impacto, os primeiros minutos de “Quantum” me parecem imbatíveis – e sobretudo infalível na sua missão de te preparar para qualquer coisa que vier depois (perseguições a pé, de barcos, com mais carros e até, acredite, com aviões!). Simplesmente adorei – e olha que sou um fã relutante de James Bond.

O primeiro filme da série que vi estrear no cinema foi “O espião que me amava” (que é de 1977). Bond ainda era vivido por Roger Moore – um papel que ele encarnaria até meados dos anos 80; E era uma piada. Ou melhor, não exatamente uma piada, mas um monumento “camp” de celulóide. Tenho quase certeza de que fui ver “Espião” por causa da música tema – que eu adorava e era uma febre nas rádios da minha adolescência – e se não exatamente me decepcionei com o filme, me lembro de tê-lo considerado, na minha tenra pretensão crítica, como “descartável”.

Já no início dos anos 80, quando eu já estava na faculdade e tinha um senso crítico mais aguçado, achava que as aventuras de James Bond que eram lançados eram simplesmente uma piada – sem nem a preocupação de disfarçá-las filmes de ação. Cenas “clássicas” com “bond girls” (encontrei um site divertido sobre elas) tirando o capacete e perguntando “Kristatos?” – como em “Somente para seus olhos” – ou lançando um olhar fatal e declarando, em alemão, “Ich bin Octopussy” – em “007 contra Octopussy” (se é que minha memória não me falha), entravam para meu repertório risível de um “herói” que não se levava muito a sério.

sean-connery.jpgFui buscar consolo (“solace”!) nas cópias em VHS dos filmes mais antigos, dos anos 60 – que ajudaram na formação da “mitologia bondiana” (para não falar na reputação de Sean Connery como o melhor 007 de todos os tempos – um título que, há quem diga, já está sendo ameaçado por Daniel Craig). Extremamente datados no tratamento visual, mas com um charme perene e atemporal, “O satânico Dr. No” (que foi a estréia do personagem no cinema), “Moscou contra 007″, “007 contra Goldfinger” e “Com 007 só se vive duas vezes” (meu título favorito de todos da série!) me conquistaram – e aqui eu faço uma anotação mental para tentar reencontrá-los agora em DVD!

Esse meu entusiasmo, porém, foi se esfriando ao longo dos anos 80, com a substituição de Moore por Timothy Dalton no papel principal. E foi apenas marginalmente restaurada com a chegada de Pierce Brosnan. “Goldeneye”, “O amanhã nunca morre” e “O mundo não é o bastante” e mesmo o melhor deles, “Um novo dia para morrer”, tinham histórias incrivelmente improváveis, e mirabolantes o suficiente apenas para classificá-los como “entretenimento”. Mas aí veio “Cassino Royale” – e Daniel Craig – e a série 007 voltou a ser uma atração que você espera para ver.

A maior “sacada” de “Cassino” talvez tenha sido contar uma trama confusa de maneira clara e verossímil. Mas não apenas isso: o suspense foi privilegiado (você se lembra daquele jogo de pôquer?), as ações ficaram mais bem editadas, e – pela primeira vez desde Sean Connery – Bond era interpretado por um ator que não encarava o personagem como um deboche (pelo menos não um deboche absoluto). Com essa nova… identidade, 007 havia recuperado carisma e credibilidade suficientes para que “Quantum of solace” já chegasse como um sucesso garantido.

No entanto, o diretor Marc Foster (um inovador constante, que assina um dos meus filmes favoritos desta primeira década do século 21, “Mais estranho que a ficção”, comentado nos primórdios deste blog) foi além. Apresentou um James Bond com perigosos traços emocionais, ainda mais violento e, segundo a avaliação de M (sua “chefe”, interpretada por Judie Dench), um pouco descontrolado – uma receita para mim tão perfeita desse agente do serviço secreto inglês, que merece inclusive meio ponto a mais no seu número de identificação, como eu indiquei no título de hoje. E 008 que se cuide…

‘Colors’, finalmente

seg, 10/11/08
por Zeca Camargo |
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Mais de uma vez ensaiei escrever aqui sobre essa que é uma das melhores revistas que eu conheço. Praticamente desde o início deste blog, a cada nova “Colors” que saía (a revista já foi trimestral e agora é quadrimestral), eu me animava e me comprometia a escrever – prova disso: em maio passado mesmo, numa lista rápida de coisas que eu queria mostrar aqui, lá estava ela, novamente como uma promessa de algo que seria interessante falar aqui, na sua edição especial sobre dinheiro (na verdade, qualquer exemplar da revista pode abrir uma discussão interessante!). Mas outros assuntos apareceram e eu adiei mais uma vez a oportunidade de escrever sobre ela.

Agora, porém, com o número 74 chegando às bancas brasileiras – ou melhor, em algumas bancas brasileiras (dá um certo trabalho achar, mas eu garanto que todo esforço será recompensado!) – não tinha como não falar. Mesmo considerando que eu não consigo achar defeito em nenhuma edição na história da “Colors”, desta vez eles foram longe demais – nos melhores sentidos. No tema, no projeto gráfico, na edição, nas imagens, na proposta, na idéia, na emoção. É um número sobre vítimas. E é genial.

Para quem não conhece a revista– que é editada pelo grupo Benetton –, a melhor apresentação é a sua missão, que até pouco tempo vinha estampada na capa: “uma revista sobre o resto do mundo”. Parece um pouco esotérico, quase cifrado, mas é exatamente o contrário: totalmente pé no chão! Além de ser uma ótima indireta para o resto das publicações que só falam a mesma coisa sempre: celebridades (aquele rodízio de nomes manjados), o “agito” de cidades que todo mundo já sabe que são agitadas mesmo, as críticas dos mesmos discos, dos mesmos filmes, “dicas exclusivas” das mesmas modas e outras repetições afins. A “Colors” resolveu ser diferente – falar de lugares inesperados (muitas vezes nada glamourosos) e pessoas desconhecidas, assuntos temáticos originais (o toque, fronteiras – para dar apenas dois exemplos), ou pelo menos vistos de um ângulo original (o número sobre telenovelas é sensacional; ou o sobre o tempo; e o de favelas; e o sobre a noite – enfim… todos!).

bennetton.jpgCriada pelo fotógrafo Oliviero Toscani (responsável pela saudosa fase ousada da publicidade da Benetton – só para refrescar sua memória, aqui estão duas de suas fotos sobre o tema da Aids) e pelo artista gráfico Tibor Kalman (um dos nomes mais importantes do design gráfico do final do século 20), a “Colors” apareceu pela primeira vez em 1991. Não a conheci desde o número 01 (suei depois para encontrá-lo e completar minha coleção), mas num de seus primeiros exemplares, que era sobre o corpo humano, mas que obviamente não tinha nada a ver com os modelos que vemos em revistas de moda (nem nas de beleza e estética): nas suas páginas, um exuberante desfile de rostos sardentos, narizes largos, mãos irregulares, peitos fartos, pernas curtas – para não falar dos órgãos sexuais femininos e masculinos mais… exóticos! Nunca mais deixei de lê-la.

Para fazer justiça, deveria dedicar um post inteiro para cada um dos meus números favoritos. Como aquele sobre gordura (uma das capas mais repugnantes – e, por isso mesmo, ousada – que já vi nas bancas). Ou aquele sobre loucura. Tem um sensacional apenas sobre um prédio gigantesco na China, moradia de 43 mil pessoas, condenada à demolição. Também gosto em especial daqueles que são uma radiografia de uma cidade (Veneza, ou Birmingham, por exemplo) – ah! e aquele sobre a Amazônia. Até quando o assunto é apenas uma pessoa, como o que eles fizeram com um homem totalmente desconhecido, como Rolando Trujillo, o resultado é genial.

Cada um desses, insisto, merece um post, mas mesmo contando com o seu habitual entusiasmo e fôlego para me acompanhar aqui, acho que não é o caso de me estender demais hoje aqui – a não ser para falar um pouco mais sobre este último número, “Vítimas”. Aliás, nem é mesmo sobre ele que quero falar muito, porque eu prefiro que você vá até o site da revista e aceite o convite para participar da campanha que eles estão lançando. Não – não tem dinheiro nenhum envolvido nisso. A campanha gira em torno de orações. Orações para as dezenas de milhares de vítimas do terremoto de Sichuan, na China.

Não se lembra mais dessa que foi provavelmente a maior tragédia do ano? Não se culpe por isso… Eu sei como a gente consome notícia hoje em dia, e é normal a sua atenção acompanhar a da mídia e avançar para outros assuntos. Por isso mesmo esse número da “Colors” é tão brilhante. Imagino que na época, maio de 2008, a equipe da revista se reuniu e pensou: o que a gente pode fazer diante de uma desgraça dela? Ou melhor, o que a gente poderia fazer de diferente, para sair da cacofonia monótona da tabulação dos mortos e dos prejuízos que os veículos de comunicação convencionais pareciam não cansar de repetir? Que tal pedir orações para as vítimas? – imagino que alguém tenha sugerido? E se as orações fossem de monges tibetanos (que, numa triste ironia, são reprimidos e privados de sua independência pelo próprio governo chinês)? – creio que alguém tenha acrescentado. E outra pessoa ainda arrematou: “E se nós pedíssemos para todo mundo uma oração”?

Dessa reunião de pauta dos sonhos – dos meus sonhos! – saiu este número da “Colors”: a revista traz 30 fotos feitas durante o resgate de vítimas no terremoto, e 30 orações de monges tibetanos. Ah, e mais algumas páginas sem nada escrito para você mandar a sua oração. Todas as páginas podem ser destacadas e são perfuradas, para que as orações sejam penduradas ao vento, que vai levá-las pelo mundo (já viu aquelas bandeirinhas coloridas tibetanas? – essa é a idéia). Só isso.

Uma idéia tão simples e ao mesmo tempo tão sofisticada que me deixou simplesmente desarmado. Quem sabe você também não se emociona?

Aliás, nem precisa comprar a revista – que, como já contei, é geralmente difícil de ser encontrada. Vá ao site da “Colors” e descubra como participar. Ou se preferir, vá direto à página com reproduções das orações que aparecem na revista e imprima algumas delas para você mesmo pendurá-las ao vento. Melhor ainda: baixe as páginas sem nada escrito – e faça você mesmo a sua oração. (E, já que você está por lá, aproveite para dar uma fuçada nos links para os números anteriores da revista).

Acho que eu não preciso falar mais nada por hoje. Talvez uma oração…

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O meu “problema” com música brasileira

qui, 06/11/08
por Zeca Camargo |
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caixa-omara-nova-alta.JPGJá aviso que é uma coincidência – embora os mais apressados possam se ver no direito de, como fizeram no post anterior (que era sobre um filme, e não sobre um regime político), enxergar nisso uma campanha ideológica. Entre as coisas que, desde que voltei de viagem, andei “pescando” em livrarias (onde hoje, felizmente, é possível encontrar muito mais do que livros), fui seduzido por uma bela caixa de papelão impresso com um padrão que lembra uma chita. Na frente, apenas alguns nomes, dois de pessoas e dois de lugares: Omara & Bethânia; Cuba & Bahia.

Percebeu a coincidência? Recém-saído da experiência “Che” – o filme! -, decidi investir nesse “pacote”, que traz um belíssimo livro – “Omara e Bethânia – Cuba & Bahia” (Nova Fronteira), e mais um DVD de um show que essas duas cantoras fizeram em abril deste ano no Palácio das Artes, em Belo Horizonte – uma das escalas desse encontro feliz que excursionou pelo Brasil, Argentina e Chile (e que eu, apesar de fortemente recomendado por amigos, não tive a oportunidade de poder conferir ao vivo). E foi logo nos primeiros momentos que, imediatamente hipnotizado pelo poder dessas duas mulheres no palco, lembrei-me de um curioso protesto de vários leitores que visitaram minha lista das mil músicas que me fizeram ouvir a música de um jeito diferente.

Essa seleção, só lembrando rapidamente, não era das “mais importantes músicas brasileiras” – sequer das “minha músicas brasileiras favoritas”. Deixei isso claro desde o início. Não obstante, não faltaram protestos e cobranças. Muitos até beirando a agressividade, quanto à minha insensibilidade de deixar a “nossa” música de fora ou – num tom ainda mais hostil – acusando a minha negligência como criminosa, antipatriótica, esnobe, pecaminosa, e outras qualificações afins. Pois foi justamente desses comentários que me lembrei – ainda mais intensamente – quando, lá pelo meio da apresentação da baiana Bethânia e da cubana Omara, ouvi a versão mais solta e alegre de uma música que já é em si solta e alegre: “Só vendo que beleza (Marambaia)”, um clássico, às vezes esquecido, de Henricão e Rubens Campos.

Por que me lembrei dessa “pseudo” polêmica? Ora, justamente porque ali, diante daquela performance generosa de duas estrelas maiores – duas autoridades máximas do canto, duas vozes abençoadas, duas artistas de carisma inquestionável (se você quiser acrescentar outro superlativo à essa lista, fique à vontade!) -, enfim, diante dessas duas divindades – que são, é bom lembrar, de nacionalidades diferentes – ficou ainda mais claro que meu “problema” com a expressão “música brasileira” não é, obviamente o conjunto da obra que ela representa, mas sim qualquer adjetivo que tente limitar essa palavra que para mim é sagrada: música.

Nesse encontro eu vi mais uma vez – e agora de forma clara, que eu pudesse usar como exemplo acessível aqui mesmo neste blog – a insignificância, a pequenez, de qualquer rótulo que pretenda aprisionar o dom maior do ser humano que é de compor, de tocar, de cantar… de fazer música.

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Quando, por exemplo, logo no início do espetáculo Omara interpreta “Cálix bento”, emprestando toda a exuberância da alma cubana, o que exatamente está acontecendo ali? O que exatamente estamos ouvindo? Música brasileira? Cubana? Música brasileira com sotaque cubano? Vale a pena discutir isso, quando estamos diante de um momento tão mágico (um adjetivo que, você que me acompanha aqui sabe que uso com extrema parcimônia, mas que nesse caso se aplica com muita justiça)?

Essa sensação prazerosa volta em mais de um trecho do show – e mesmo nas músicas em que as cantoras estão sozinhas no palco, cada uma a sua vez. Bethânia, quando está só – e a cada vez que nos oferece um novo show – evoca sempre as palavras que ninguém melhor que seu irmão Caetano usou para descrever a experiência de apreciar seus traços fortes: “Trata-se de estar apto para captar a beleza exatamente nesses momentos importantíssimos em que ela dribla o olho viciado em admirar seus sucedâneos, para, assim, libertada, poder crescer, dominar, vencer”. (Para mais sobre o tema, dê uma olhada num dos textos de “O mundo não é chato”, de Caetano Veloso, editado pela Companhia das Letras, onde ele conta a história de uma mulher que fez um comentário justamente sobre a beleza de Bethânia). Soltíssima em “Escandalosa”, precisa em “Começaria tudo outra vez”, convidativa em “A Bahia te espera” – cada canto seu merece elogios mis.

Omara? É provável que você, como eu, a conheceu apenas quando participou do “histórico” álbum “Buena Vista Social Club” – e depois, também como eu, passou a correr atrás de tudo que essa digníssima cantora cubana já gravou. É incrível como, do alto de seus veneráveis 78 anos, ela consegue emocionar uma platéia inteira – e mesmo este humilde telespectador que a assistiu pelo DVD – quando canta “Dos gardenias”, “Tal vez”, ou mesmo “O que será (à flor da Terra)”. Sua dignidade é tão imponente que basta Omara esboçar o gesto de palmas – que ela nem chega a completar – para todo o público do teatro obedecer seu comando e entrar em êxtase quando ela canta “Guantanamera”. Feitiço? Só para quem acredita neles… Para mim, o poder que ela e Bethânia exercem nesse show chama-se simplesmente música.

Cubana? Brasileira?

Ora, afinidades entre as duas nunca faltou. Num dos melhores textos do livro – ilustrado com fotos belíssimas de Jô Name (Bahia) e Tatiana Altberg (Cuba) – que acompanha o DVD, o escritor e crítico cubano Frank Padrón faz um belo relato de como essas duas sonoridades (na verdade, essas duas culturas) foram se enamorando… E deu nisso. Pegando emprestado de Arnaldo Antunes, que também escreve no livro: “As bandas de salsa e os grupos de samba, a santería e o candomblé, os trovadores del son e os cantores de modas de viola – encontram-se aqui, como se matassem as saudades de um tempo perdido, mas guardados nas camadas subterrâneas do caráter dos dois povos”.

betiniemeyer1-bethaoma.JPGE quem ainda precisa de uma prova desse encontro feliz, é só ver e ouvir Omara e Bethânia cantando, com um prazer infinito e uma jovialidade quase infantil, uma das músicas que encerram esse show: “Havana-me”. Não conhecia essa música – que, depois de uma rápida pesquisa aqui na internet, descubro que é de Joyce! -, mas mesmo assim fui imediatamente seduzido pela interpretação que as duas deram a ela. Brincando o tempo todo com a letra e cantando com a soltura de quem não se preocupa em, quem sabe sem querer, esquecer um trecho da letra, Omara e Bethânia nesse momento jorram felicidade e admiração mútua – como se esquecessem das pessoas que estavam ali lhes assistindo e passassem a cantar uma para outra, como uma oferenda. O público, porém, ao contrário de se sentir excluído, recebe aquilo como se fosse um voyeur privilegiado, sem saber como agradecer mais por esse presente a não ser aplaudindo essa celebração.

Brasileira? Cubana?

Percebe como essas definições ficam obsoletas quando nos concentramos apenas na música? Naquela lista mesmo que eu fiz das mil músicas existem vários exemplos de sons que se misturaram pelo mundo para criar canções ainda mais belas do que poderíamos imaginar se vindas de uma só cultura – sonoridades que as patrulhas tão preocupadas em defender algo que jamais vai precisar de defesa porque é inatacável (nossa MPB), sequer se permitiram descobrir. Felizmente, vi pelos comentários que uma boa parte dos que acompanharam a seleção estavam abertos a essa descoberta – e a esses, já que estou mergulhado nessa minha “fase cubana”, eu recomendo um dos álbuns que mais mexeram com a minha cabeça, uma obra que eu gosto de falar que está para o pop mundial assim como “Les demoiselles d’Avignon” está para a pintura do século 20: “Zaire classics – The roots of rumba rock vols. 1 & 2″.

Esse é um disco ao qual eu recorro sempre que esqueço que o segredo de tudo é a mistura – essa mistura que transformou o encontro de uma cantora cubana e uma baiana em algo tão transcendental. Omara, que prazer. E Bethânia? Triste aquele que nunca ouviu a sua voz…

Fotos: Beti Niemeyer (show) e Divulgação (capa)

Che & Che

seg, 03/11/08
por Zeca Camargo |
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Teria sido puxado mesmo para quem já estivesse encaixado no frenético ritmo cultural típico de São Paulo no último trimestre do ano. Para quem estava chegando de uma longa pausa, como eu, foi um pouco mais puxado: semana passada estive envolvido com dois eventos “de peso”. E olhe que nenhum deles era a Bienal de São Paulo (que eu pretendo visitar – e escrever sobre – em breve, saldando uma dívida de dois anos com você que me acompanha aqui). Refiro-me às três horas e tanto que investi na alternativa montagem de “Hamlet”, com Wagner Moura (em cartaz no teatro Faap, em São Paulo) – um projeto no mínimo ambicioso e desafiador (não só para o público, claro, mas mesmo para um ator tão consagrado e competente quanto Moura). E, em especial, às quatro horas (e meia!) dedicadas à dupla sessão do filme “Che”, de Steven Soderbergh, destaque da 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Vi os dois filmes (“Che – o argentino” e “Che – a guerrilha” – nos seus títulos em português) na manhã da última quinta-feira. E bem cedo, já que eu tinha de assisti-los antes de entrevistar o ator Benicio Del Toro – um encontro marcado para às 13h30 (a entrevista foi ao ar no último domingo no “Fantástico”). Estava com um pouco de preguiça: mais um filme sobre Che Guevara? Quatro horas (e mais) numa sala de cinema acompanhando uma história que você já sabe o final? Será? O que me deixava ligeiramente animado era o fato de esse ser um projeto (de longa data) de um ator que eu admiro há muito tempo (Del Toro), e a assinatura de Soderbergh. Tentando equilibrar essas duas forças antagônicas, levantei-me às seis e meia da manhã da quinta passada para encarar “el Che”, e pouco antes das 8h, ainda sonolento, vi as primeiras imagens de um filme que, como eu disse logo no começo da entrevista com Benicio, eu achei que Hollywood não fizesse mais. E dali em diante, essa primeira boa impressão foi só melhorando – até que, nos créditos finais da segunda parte eu estava totalmente derretido de admiração não só por Soderbergh e Del Toro, mas por todo mundo envolvido no projeto. Ah, e por Che também – mas vamos deixar isso para mais para frente. Primeiro, o filme.

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Ou melhor, os filmes. Parte 1 mostra o percurso para a Revolução Cubana, a empreitada pela mata de Ernesto, Fidel Castro (impressionantemente vivido pelo ator mexicano Demián Bichir) e seu irmão Raúl (interpretado por Rodrigo Santoro), desde o primeiro contato entre o futuro ditador cubano e “o argentino” – como muitas vezes se referiam a Che (este nome mesmo, um apelido que ele ganhou justamente por seu país de origem), até o triunfo da revolução que tiraria Fulgencio Batista do poder (o roteiro elegantemente não mostra a chegada à Havana, mas conclui o primeiro filme com uma belíssima e emblemática cena no meio da estrada, a caminho da capital, na qual Che/Benicio diz apenas a palavra “increíble” – atenção patrulhas do “spoiler”, está é uma história verdadeira, por favor não fiquem perturbados com o fato de eu ter “revelado” que a Revolução Cubana triunfa, quando isso pode ser ensinado por qualquer professor de história contemporânea… para não falar numa consulta rápida à wikipédia…).

Pois mesmo para quem sabe tudo o que vai acontecer,  o brilho de Soderbergh e o carisma de Benicio – para não falar no estranho prazer de ver Rodrigo Santoro desfilando um impecável espanhol com sotaque cubano – não deixam ninguém se desconcentrar por um minuto. Adaptado – segundo Del Toro afirma – com absoluta fidelidade dos textos do próprio Che, o filme tem um ritmo de suspense natural, e sutilmente incita a sua liberação de adrenalina, em cenas que parecem um bom antídoto para esses tempos em que nem pirotecnias “à lá” “Transformers” satisfazem o contingente de testosterona que uma sala de cinema pode abrigar. O modesto exército de guerrilheiros recrutado pelos líderes da revolução ao longo de suas marchas, vai nos ganhando com a mesma facilidade com que conquista a simpatia dos “campesinos” (os camponeses) pelo caminho – e vai também aumentando a expectativa e a excitação do público, a ponto de transformar a tomada da cidade da pacata Santa Clara (a última batalha antes da chegada a Havana) numa seqüência tão emocionante quanto uma boa cena de “Falcão Negro em perigo” – só que com muito menos recursos.

Pausa para o café. Mesmo.

Ainda eram dez horas e pouco da manhã, e eu tive de deixar a sala de cinema para dar uma volta (e literalmente tomar um café) e encarar a segunda sessão. Nesse “passeio”, encontrei um amigo jornalista que já havia assistido aos dois filmes (e esperava pela entrevista coletiva de Benicio), e que me desanimou com seu comentário. Segundo ele, a parte 2 era um pouco mais arrastada… Já imaginava algo assim, pois, pelo que eu havia lido no material de divulgação, ela enfocava a fracassada investida de Che na Bolívia – onde ele acabaria morrendo (atenção novamente: isso não é um “spoiler”!! – é fato). Mesmo assim, talvez estimulado pelo expresso duplo que encarei, entrei com animação renovada para ver a conclusão da “saga” – e não me decepcionei nem um pouco.

Sei que é talvez exigir demais de um público mimado como o de hoje em dia, que tem tantas opções de entretenimento para escolher todas as semanas. Mesmo assim, eu suplico: quando “Che” estrear comercialmente por aqui, não deixe de ver as duas partes. A segunda – embora seja sim mais arrastada, mais triste e, obviamente, menos triunfal que a primeira – tem de ser vista, não só para se compreender um pouco mais sobre essa figura tão fascinante que é Guevara, mas também como um exercício de reflexão sobre como as coisas funcionam (ou não funcionam mais…) neste mundo.

É bastante desconfortável perceber, por exemplo, que o “Che de Cuba” e o “Che da Bolívia” são, inevitavelmente, a mesma pessoa – um mesmo cara, com os mesmos ideais, a mesma determinação, e as mesmas convicções. Mas que todas as outras variáveis a sua volta, em breves oito anos, eram definitivamente outras. Assim, o mesmo herói que com extrema facilidade conquistava corações no final do anos 50, inutilmente buscava apoio de humildes bolivianos em 1967. A estratégia, a vontade, a obstinação, e mesmo os motivos que inspiravam Che, estavam lá nos dois momentos. Só que, da primeira vez, tudo deu incrivelmente certo. Da segunda, terrivelmente errado.

Benicio Del Toro está impecável nos dois retratos – nem exageradamente auto-vanglorioso da primeira vez (o que nos dá a medida exata de um Che que tinha compreendia bem sua missão) nem patético além da conta na sua visão quixotesca da segunda. Seu mergulho nesse personagem  crucial para a história do século 20 é tão intenso que, a certa altura, você como espectador até deixa de se admirar pela semelhança física conquistada pelo ator e passa simplesmente a acreditar que aquele que você vê na tela é o próprio Che. Para usar um clichê que a crítica americana adora, sua atuação é um triunfo. O que só me deixou mais nervoso diante da perspectiva de entrevistá-lo dali a alguns minutos, assim que eu saísse dessa segunda sessão.

Todos meus temores, porém, foram afastados no primeiro minuto em que nos encontramos. Como qualquer bom artista (não só atores, como músicos, bailarinos, pintores, escritores etc.), ele veio com a humildade de quem sabe que fez um trabalho brilhante – e que não precisa alardear tal conquista. Agradecendo com sinceridade meus elogios ao filme – e à ousadia de todo o projeto –, Del Toro tinha sobretudo aquele ar tranqüilo de quem cumpriu uma tarefa “con gusto”. Sem conseguir definir com precisão o processo que o levou a encarnar Che com tanta naturalidade e competência, o ator preferiu discorrer sobre a própria figura do revolucionário. “O Che ainda pode inspirar porque é o Che”, dizia ele vagamente otimista. “Não sei se sua luta hoje (se ainda estivesse vivo) seria com uma arma, um fuzil, mas, por seus valores, ele ainda poderia lutar em muitas partes do mundo”, completou.

Para alguém que, como eu, tinha apenas quatro anos de idade quando Che foi assassinado, e que, crescendo num país que só retomaria a liberdade de expressão no final dos anos 70 – quando então eu já estava na adolescência adiantada –, a figura daquele cara de cabelos compridos, barba rala e uma boina com a estrela olhando para um futuro que ele tinha certeza de que poderia ajudar a construir era mais uma curiosa estampa de camiseta do que um herói revolucionário, sua figura demorou para ser uma referência forte para mim. Foi bem aos poucos – já quando estava na faculdade, e além – que fui desvendando sua história e suas implicações para a História (com “H” maiúsculo mesmo).

Agora, com esse impressionante (e, de certa maneira, teimoso) trabalho de Del Toro – que é também o produtor dos filmes – e Steven Soderbergh, se não me tornei oficialmente um revolucionário no espírito de Che, pelo menos permiti que uma trajetória tão fulgurante e determinada e obstinada e heróica como a sua me emocionasse sem barreiras. E muito.



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