Boas histórias, mas não só
Um dos meus primeiros empregos foi num pequeno escritório de eventos culturais. Pequenos mesmo – não esses mega-festivais que a gente se acostumou a ver hoje em dia, com mega-patrocínios, mega-cobertura da imprensa, e mega-público assistindo. Não, o escritório onde eu trabalhava publicava pequenos livros, promovia pequenos eventos culturais, e buscava pequenos patrocínios para artistas pouco conhecidos (mas quase sempre bem talentosos). O que eu fazia exatamente lá, nem eu mesmo sabia. Acho que eu era uma espécie de secretário. O que eu me lembro bem era que eu lia muito – o que deve significar que eu não tinha um expediente muito cheio…
Mas não era só o ócio que me fazia ler tanto. Um dos sócios do escritório, entusiasmo com meu interesse pelos livros, me sugeriu um itinerário literário como uma espécie de educação social. Não posso afirmar que as coisas eram ditas exatamente dessa maneira, mas os livros que ele me indicava eram para me ensinar a viver em sociedade – sobretudo numa sociedade urbana, “aculturada” e esnobe como a que eu começava a penetrar naquela época em São Paulo (era o início dos anos 80). Também não me lembro de todos os livros que esse cara me deu para ler, mas nunca esqueci o primeiro nem o último da lista (que, vagamente, ia se aprofundando mais e mais nas engrenagens, nem sempre muito polidas, que movem a sociedade dos homens): comecei com “Bel ami”, de Guy de Maupassant; e terminei com “As ligações perigosas”, de Choderlos de Laclos.
Fácil entender porque comecei com “Bel ami” – um retrato ligeiro de uma Paris de frivolidades, onde as festas e os salões funcionavam como verdadeiras provas de alpinismo social (ponha na sua lista de leitura para um fim-de-semana mais… solto). Adorei, claro – uma vez que tudo se parecia tanto com o que eu via à minha volta. Mas foi “As ligações perigosas” que mexeu realmente comigo. Não vou me aprofundar demais hoje aqui – para continuar, basta saber que o livro é uma espécie de manual de manipulação social, um guia de como mentes perversas podem competir para destruir a vida de corações inocentes (mais ou menos como mais um dia daqueles no colégio, só que entre adultos experientes). É uma obra que exige uma certa dedicação – e se você quiser cortar caminho, pode começar a ter intimidade com a história pela excelente adaptação para o cinema de 1988, com Michelle Pfeiffer, John Malkovich e Glenn Close.
Mas me prometa que depois você vai se debruçar sobre o original, pois foi nessa leitura que eu descobri uma maneira diferente de ser seduzido por um livro. O truque de Laclos não consistia apenas em contar uma boa história – “Ligações perigosas” tem uma trama digna das maiores audiências de novelas no horário nobre -, mas também em apresentá-la de uma maneira totalmente original: seus breves capítulos são cartas entre os protagonistas – e de vez em quando entre algumas das vítimas de seus caprichos. Não há ação, nem diálogos diretos. Apenas relatos de encontros, conversas, ameaças e outras malvadezas. Fiquei maluco com o livro – e desde então tenho “Ligações” como parâmetro quando estou procurando não só uma boa história, mas também um jeito diferente de contá-la.
Desde que li Laclos até hoje – vinte e tantos anos! – deparei-me com vários títulos que se encaixam nessa combinação de história e estrutura originais – ou se preferir, para atualizar a proposta, autores e obras que dançam “fora do quadrado”. E dois livros que li recentemente me fizeram mais uma vez lembrar dessa mistura: “O tigre branco”, de Aravind Adiga (que acaba de ser lançado no Brasil pela Nova Fronteira); e “Atmospheric disturbances”, de Rivka Galchen – ainda inédito no Brasil (por pouco tempo, espero). Ambos contam histórias incríveis – beirando o improvável: um miserável camponês indiano que se torna um grande empresário e um homem que desconfia que sua mulher foi trocada por um clone, respectivamente. E ambos as apresentam de uma forma inusitada: cartas do empresário endereçadas ao primeiro ministro chinês que está prestes a visitar a Índia, no primeiro livro; e uma investigação amadora mesclada com um tratamento de um caso sério de esquizofrenia.
“O tigre branco” ganhou este ano o Booker Prize – o prêmio literário mais importante da Inglaterra. Num primeiro momento, porém, ainda que a história te seduza desde a carta inicial, você tem dificuldade em entender o motivo da premiação. Usando uma linguagem simples – muitas vezes ordinária – você pode ler o trabalho de Adiga como uma história comum, contada numa linguagem comum, de um indiano pobre que ficou rico invertendo a ordem natural das coisas naquele país, tudo bem. Mas à medida que você começa a prestar atenção aos detalhes, começa a perceber também que a simplicidade da voz que nos narra é proposital, e que a vida de Balram Halwai – que era chamado de Munna (ou “menino”) quando era criança – é apenas uma desculpa do autor para pintar um painel muito maior: o de uma sociedade tão complexa, e com tanta dificuldade de adaptar a tradição à modernidade como é a da Índia.
Quer um bom exemplo de como ele pinta essa sociedade? Sobre as “aranhas humanas” que trabalham por anos a fio como garçons nas casas de chá – uma ocupação que ele teve quando adolescente -, Balram pondera:
“Esse, porém, é seu destino, se trabalharem direitinho – com honestidade, dedicação e sinceridade, exatamente como Gandhi teria feito, sem dúvida alguma. Eu trabalhava com uma desonestidade quase total, se a menor dedicação e com toda insinceridade – portanto, a casa de chá foi, para mim, uma experiência profundamente enriquecedora”.
“Educado” nessa filosofia, esse é o mesmo Balram que anos mais tarde, já como empresário respeitado em Bangalore, descreve assim um comissário-adjunto de uma delegacia que lhe quebra galhos:
“Era um indivíduo da pior espécie., que não pensava em mais nada a não ser em tirar dinheiro de quem quer que entrasse no seu escritório. Um verdadeiro salafrário. Mas era o meu salafrário”.
É possível se interessar por um “herói” como esse? Adiga consegue não só essa proeza, mas também que o leitor torça com entusiasmo para que essa criatura vil seja recompensada. O que é relativamente fácil quando o mundo à sua volta – o mundo dos ricos, no interior da Índia ou na capital Nova Déli – é ainda mais hediondo.
A Déli de Balram é “a capital não de um, mas de dois países: duas Índias. Tanto a luz quanto a escuridão se encontram nessa cidade”. Nos bairros com condomínios chiques e isolados do mundo (lembrou da Barra, no Rio?), os prédios, shoppings e hotéis são tão amontoados que mal sobra espaço para uma caminhada: “Do lado de fora, tinha uma calçada, mas era para os pobres terem onde morar”. Para este que vos escreve, que conhece Nova Déli relativamente bem (já visitei a cidade cinco vezes), não poderia haver descrição melhor.
Nos dentes vermelhos de tanto mascar folhas de “paan”, no contraste absurdo entre os interiores impecáveis dos shopping centers e a sujeira das ruas, nas filas de homens fazendo cocô nas favelas, no entra e sai glamuroso das portas de hotéis gigantescos e sofisticados, Nova Déli – e boa parte da cultura urbana da Índia, floresce na narrativa de Balram – que, mesmo depois de se dar bem na vida, tem dificuldade para esquecer que foi humilhado boa parte da sua vida.
Não que sua condição inferior lhe negasse prazeres:
“Esta é uma velha e respeitável tradição entre os criados: esbofetear os patrão quando ele apagou. Ou pular em cima dos travesseiros quando não tem ninguém por perto. Mijar nas plantas da casa. Ou ainda chutar ou estapear seus cachorrinhos de estimação. São prazeres inocentes dos empregados”.
Ecos do Brasil? Acho que divago… Antes que eu comece a enlouquecer demais com “Tigre branco”, deixe-me falar um pouco da outra narrativa, ainda mais enlouquecida, com a qual me deparei recentemente, que é a do Dr. Leo Liebenstein, o personagem criado por Rivka Galchen.
“Dezembro passado, uma mulher entrou no meu apartamento e ela parecia exatamente com a minha esposa”, declara Leo (na minha tradução livre) já no primeiro parágrafo de “Amospheric disturbances”. Perturbadora como deve ser, essa constatação – logo percebemos – é apenas a introdução a um cotidiano extremamente bizarro, que Rivka vai apresentar nas páginas seguintes.
Usando um rico léxico para descrever a suposta “substituta” de sua mulher, Rema – clone, “doppelgänger”, simulacro, duplo, imitação, “Rema” (entre aspas mesmo) – o personagem principal nos convida a uma sutil meditação do que seria acordar um dia diante de alguém que pensamos que conhecemos a vida inteira, mas que, de uma hora para outra, passa a ser uma estranha total. Parece maluco? Eu ainda nem comecei a falar da Academia Real de Meteorologia…
Leo tem um paciente esquizofrênico, que declara ser um agente secreto de uma instituição com esse nome pomposo – e que tem a missão (secretíssima!) de controlar o tempo em todas as regiões do mundo. Quebrando todas as regras da boa psiquiatria, Leo, por sugestão de Rema (a verdadeira) mente para seu paciente e diz que também faz parte da imaginária Academia, na tentativa de evitar que ele desapareça temporariamente – o que vinha acontecendo com freqüência. Quando “entramos” na história, Leo está com a tal “estranha” em casa e diante de uma recaída do seu paciente – que acabou de sumir depois de um longo período de bom comportamento.
O cotidiano de Leo está desmoronando, mas nos envolvemos como se não pudéssemos perder tempo admitindo isso. Pela narrativa incrivelmente sedutora de Rivka, acompanhamos seu personagem principal nas inquietude da sua convivência com uma mulher que ele acha que é uma estranha; nas suas lembranças do início do relacionamento com Rema (a “original”); com os percalços de um tratamento psiquiátrico pouquíssimo ortodoxo; e – pasme – com detalhes acadêmicos dessa ciência tão complicada que é a meteorologia.
“Atmospheric disturbances” ainda não ganhou nenhum prêmio. Mas posso “casar” dinheiro como ele estará na seletíssima lista de melhores livros do ano do jornal “The New York Times” (cobre de mim se isso não acontecer!), entre outras indicações e premiações de reconhecimento. Este leitor, pouco ortodoxo – como você sabe-, admite aqui que releu vários trechos do livro apenas pelo prazer de reencontrar o fio de uma meada labiríntica proposta pela autora – e, só por isso, o livro já mereceria muitos prêmios…
Com o sucesso que está fazendo lá fora, imagino que sua tradução não demore a chegar aqui no Brasil. E que essa edição, junto com a de “Tigre branco”, tenha fôlego para inspirar futuras gerações de leitores como “As ligações perigosas” me inspirou. Se não numa educação social (e, talvez, sentimental), pelo menos em algumas centelhas de lucidez – no que diz respeito às estruturas sociais do mundo moderno, no caso do livro de Aravind Adiga, e às percepções da mente, no trabalho de Rivka Galchen -, em tópicos que sempre serão fundamentais para a sobrevivência nesse ricochete que é nossa vida moderna.