E música? Você compra pela capa?
Era inevitável… Eu mesmo provoquei falando, no post anterior, sobre capas de livro. Até já tinha me programado para escrever hoje sobre a nova novela de João Emanuel, “A favorita”. Mas a força dos comentários me venceu (sempre vence, não vence?). Assim, Flora, Donatela – perdão! Semana que vem a gente se fala, porque eu vou apresentar hoje aquela que é, na minha sempre modesta opinião, a melhor capa de disco de todos os tempos. Mas antes…
Quando falei acima da “força dos comentários” estava talvez exagerando… Afinal, apenas alguns leitores comentaram que também compram discos pela capa – Ramon-ES, Leo, Henrique, Gabriel MG/RJ. Mas bastou essa modesta manifestação espontânea para eu perceber que, ao falar do impacto que uma imagem pode ter sobre nós, estava abrindo um leque de possibilidades ainda maior do que apenas o universo dos livros. Hesitei um pouco em tocar no assunto, já que a quantidade de capas de álbuns que eu teria para comentar talvez superasse – e muito – a de livros. Só uma passada rápida, de memória, parecia me oferecer opções vertiginosas.
Porém, essa “autopesquisa” acabou me ajudando: lembrei também que, há muito tempo – estamos falando de décadas! – eu já havia selecionado “a melhor capa de disco do mundo”. Veio como num flash – acho que hoje chamam de “sinapse” -, e tudo que tive de fazer foi chegar, diante de algumas favoritas recentes, se a imagem do tal disco (originalmente lançado em vinil, ou seja, “mesozóico”), ainda poderia ostentar este título. Cheguei à conclusão de que sim, ela ainda é “a melhor capa de disco do mundo”, e dada a vitalidade com que ela garantiu o título, eu diria que ela é também “a melhor capa de disco de todos os tempos”. Mas antes…
Fiquei pensando se os mecanismos de atração da capa de um disco e de um livro são os mesmos. Talvez não… Para começar, tem o formato. Ironicamente, houve um tempo em que as primeiras eram maiores que as segundas. Sério! É na época em que os discos eram feitos de vinil, e precisavam – imagine – de uma agulha para serem tocados! Naquele tempo, elas mediam um pouco mais de 30 centímetros por 30 centímetros, grandes o suficiente para contem um disco de vinil, ou, como diziam as civilizações desse período, LPs (para poupar sua pesquisa na wikipédia, a abreviação referia-se a “long play”, ou “longa duração”, já que, ampliando a capacidade do “compacto” de vinil – que, quando era “duplo”, vinha no máximo com quatro faixas – esse formato permitia juntar algo entre 10 e 14 músicas num só artefato, ou seja, 0,00000000000000003718 da capacidade do seu iPod). E eram lindos.
Qualquer pessoa que tenha, no mínimo, a minha idade, deve confessar que desenvolveu um certo fetiche por alguma capa de LP – e aí, a paixão pelo artista sempre se misturava à relação com o próprio objeto. Sinto que é impossível descrever (e cheguei a essa conclusão empiricamente) para alguém com menos de 30 anos a sensação de ouvir um LP ao mesmo tempo em que se segurava sua capa de papel cartão: tato, audição e olhar executando juntos uma mesma sensação. Um prazer tão grande que, só de lembrar dele agora – percebo – quase saio do meu raciocínio.
Enfim, voltando às capas dos discos de vinil (LPs), elas tinham bem mais espaço do que a minúscula área à qual essas imagens foram confinadas com o advento do CD. Elas ficariam ainda mais reduzidas – a uma reprodução de dimensões menores que a unha do seu polegar – nas telas de MP3, eu sei, mas quem aprendeu a consumir música nesse formato dificilmente se preocuparia com isso. Porém, para minha geração, que idolatrava essa arte, a passagem da capa do LP para a do CD foi um trauma difícil de ser superado. E foi assim, claro, que elas ficaram menores que as capas de livros.
Podemos argumentar, porém, que se uma imagem é forte, ela é forte em qualquer tamanho – e formato. De fato, “a melhor de todos os tempos” (já já!) é “a melhor de todos os tempos” independente das suas dimensões. Isso quase derruba meu argumento inicial sobre as diferenças entre capas de livros e de discos? Vejamos outros pontos.
Por exemplo, o investimento necessário para cada produto – investimento de tempo, claro, já que até pouco tempo atrás, antes de música brotar “espontaneamente” no seu computador e antes de o preço médio de um bom volume bater o teto dos R$ 50,00, os preços de discos e livros estavam ambos em faixas similares (e acessíveis). Por maior que seja a sedução de uma capa de livro sobre seu olhar – e por mais compulsivo que você seja (e eu sou, novamente, um bom exemplo) – antes de comprar um livro, você, ainda que inconscientemente, calcula o esforço de se envolver com ele. Enquanto que o disco demanda menos: é comprar, chegar em casa, escutar, e escutar, e escutar (ou pelo menos era assim…). Por isso, talvez, sua capa é mais “eficaz”: ela enfrenta menos obstáculos para te ganhar!
Sem falar que, com música, é sempre possível que você já tenha sido conquistado por um determinado artista (ou por uma banda) antes mesmo do “encontro” com o álbum – numa rádio, na TV, ou mesmo aqui na internet. Nesse caso, a capa pode funcionar apenas como “um empurrãozinho” para a compra. Já o “trabalho” da capa de livro é muito mais árduo, porque é raro, mesmo hoje, nesses nossos tempos tão “mediáticos”, alguém ser alcançado pelo trabalho de um autor antes de comprar sua obra…
Mais raro ainda é encontrar uma capa de livro que funciona apenas com a cara do autor. Mas, quando o produto é música, às vezes basta a própria cara do artista, ou da banda, para o disco se vender. Quantas e quantas idéias foram desperdiçadas por pura preguiça de quem estava “criando” uma capa e preferiu apenas apostar no rostinho de alguém. Nada contra essa “muleta”, mas mesmo trabalhando só com a figura do artista, é possível inventar imagens inesquecíveis, como fizeram David Bowie (em inúmeras capas, mas em especial em “Alladin Sane” e em “Heroes”), Madonna (“True blue”, “Erotica”, “Music”) e Björk (gosto até da bizarrice de “Volta”, como já expliquei por aqui).
Mas o mais interessante de se notar é como, talvez pela forte associação entre música e cultura pop, muitas vezes uma capa de disco entra no imaginário coletivo, de uma maneira que a capa de um livro nunca poderia sonhar – até porque, um livro geralmente ganha capas diferentes para qualquer país que ele seja traduzido, enquanto que nos discos, raramente isso acontece: a mesma imagem criada, por exemplo, na Inglaterra, é reproduzida na Indonésia, no Japão, na Turquia, na Bolívia e no Brasil. Preciso ilustrar? Lá vai: a banana de Andy Warhol para o Velvet Underground; aquele jeans (e o que está por baixo dele) em “Sticky fingers”, dos Rolling Stones; a foto de Robert Mapplethorpe para “Horses”, de Patti Smith; a icônica linguagem visual de Jamie Reid em todos os primeiros “singles” dos Sex Pistols, culminando em “Never mind the bollocks”; o prisma de Pink Floyd em “The dark side of the moon”; aquele traço que se tornou sinônimo dos anos 80 por causa de “Rio”, do Duran Duran; o neo-psicodélico de “3 feet high and rising”; o disco amarelo dos B-52′s; “London calling”, do The Clash.
Curioso como, lembrando de todos esses exemplos, assim como no caso dos livros, criar um “manual da boa capa de discos” parece algo impossível. São tantas as possibilidades, que eu faria aqui papel de ingênuo se quisesse mesmo esboçar uma lista do que funciona ou não funciona. No máximo, posso tentar explicar o que funciona para mim… se eu mesmo soubesse o que se passa comigo quando entro numa loja de discos (e logo penso… por quanto tempo ainda vou poder desfrutar de uma experiência como essa?). Para contar só um momento desses – que descrevo brevemente também no meu livro “De a-ha a U2″ -, lá estava eu em Londres em 1985, bombardeado pelos cartazes que anunciavam a chegada de “Meat is murder”, dos Smiths, quando, finalmente, numa tarde gelada (qual tarde não é gelada em Londres em pleno mês de fevereiro?), eu peguei pela primeira vez o próprio álbum de uma das estantes da loja da Rough Trade…
Foi o primeiro de muitos (saí da loja com tantos “vinis”, que fiz uma grande amizade – que dura até hoje – naquele dia mesmo com um cara que, ao sair quase ao mesmo tempo da loja que eu, viu minhas sacolas e perguntou se eu não tinha conseguido vender todos aqueles meus discos, ao que eu respondi que eu não estava lá para vender, mas sim para comprar alguns discos!). Mas mesmo os outros que levei da Rough Trade não me provocaram o frisson de “Meat is murder”- os fãs dos Smiths sabem do que eu estou falando… Aquela imagem reproduzida do soldado com o título do álbum grafitado no seu capacete é uma das minhas memórias mais fortes daquela época em que uma rara viagem ao exterior significava um único objetivo nobre: trazer álbuns simplesmente impossíveis de serem encontrados no Brasil. Dessa temporada londrina, voltei com 80 deles – e não foi nem meu recorde… (hoje, com a internet, a gente não faz mais isso… mas que saudades de abrir a mala, colocar todas aqueles discos de vinil no chão e ficar olhando para eles, às vezes por dias, antes de sequer abrir um deles para escutar…).
Estou à beira de me perder em lembranças – mas antes que isso aconteça, retomo aqui a tentativa de explicar o que me fascina numa capa de disco. E acho que, se eu resumir bem, consigo chegar nessa definição: tem que me oferecer uma associação de idéias inusitada. Só assim, pegando emprestado o comentário do Nathanael (sobre o post anterior), eu “me permito espiar quem é ou foi o criador daquela criatura que descobri (ou que me descobriu?)”. É isso mesmo: quando uma capa é forte (seja de livro, seja de disco) a conexão é tão intensa que a gente fica meio sem saber quem fisgou quem…
Foi assim que eu cheguei na minha escolha da “melhor capa de todos os tempos” – calma, falta pouco… Mas mesmo tão cativante quanto ela é, essa capa não esgota as possibilidades que me fascinam. Pode ser um corte dramático de uma foto (“Diamond life”, Sade), uma foto surreal (“Speak & spell”, Depeche Mode), uma estranha ligação entre imagem e título (“Odelay”, Beck); uma simplicidade inesperada (“Autobahn”, Kraftwerk), um retrato estranhamente sensual (“Parade”, Prince, ou “This is hardcore”, Pulp), uma referência (e uma interferência) inusitada (“Power, corruption & lies”, New Order), ou simplesmente o inexplicável (“Kid A”, Radiohead). O que me encanta é justamente o inesperado.
E você? Qual (ou quais) capa(s) de disco despertaram seu interesse de maneira arrebatadora? Pode mandar seu comentário até o fim de semana. E na segunda, vamos de “A favorita”! Ah… quase ia me esquecendo… essa, abaixo é “a melhor capa de todos os tempos”. Imagem, título, nome da banda – e ainda por cima, a música que ela contém! Preciso explicar mais?