Abertura, destemidez, otimismo
Para os interessados numa explicação rápida, foi uma celebração! Sim, este blog acaba de completar um ano e meio de existência e, como eu disse aqui em “aniversários” passados (quando chegamos aos seis primeiros meses), um semestre na internet vale bem mais que 180 dias. Dezoito meses, então, são um lustro! E chegamos – “chegamos”, né, pois foi um esforço coletivo! – a esta marca apesar de todas as intempéries: compromissos e viagens; períodos de grave seca e exuberante abundância cultural; bloqueios e inspirações; elogios e críticas (nunca menos que divertidas, note-se – reparou numa do post anterior, da Ellem, que declara como uma “fatwa” que só voltará a visitar este blog “se” um dia eu voltar a ser normal… Estamos em 2008 e alguém ainda vê a normalidade como algo uma meta a ser atingida? Quer mais divertido que isso?). Por tudo isso, e em nome dos que me acompanham desde o início (mais os sempre bem-vindos neófitos), eu digo “Hell yes!” – uma expressão bem comum em inglês, já brilhantemente cantada por Beck no seu álbum de 2005, “Guero” (e que, para a minha surpresa, só foi lembrada em um comentário, o do Mike) e incrivelmente bem apropriada pelo artista suíço Ugo Rondinone, num trabalho de 2001, escolhido pelo New Museum para figurar na sua fachada recém-inaugurada por “encapsular a filosofia de abertura, destemidez, e otimismo” que cerca o museu na sua reaparição na comunidade de arte contemporânea. Abertura, destemidez (que meu corretor ortográfico insiste em contrariar o Houaiss, recusando-se a aceitar sua grafia – e mesmo sua existência!), e otimismo… Se alguém estava precisando de um “liberdade, igualdade, e fraternidade” para o século 21 – considerando, claro, que os ideais da revolução francesa já estão conquistados –, aí está! E que seja esse também o lema deste blog “per secolum seculorum”…
Sim, essa foi a explicação rápida. Passemos à longa…
Eu estive no New Museum esta semana – quando passei 48 horas em Nova York (e antes que você atire a primeira pedra dizendo que estou me exibindo, foi a trabalho). Já sabia que seria muito corrido – teria de “acomodar” as coisas que eu tinha de fazer e mais todas as outras que eu queria fazer. E tinha me programado para mandar de lá um post que era exatamente a foto da obra de Rondinone, mais uma primeira versão do texto que abre o post de hoje. Só que, sem nenhuma explicação filosófica mais profunda, decidi, de repente, provocar você e mandar apenas a foto. Qual seria sua reação? Bem, até a publicação deste texto de hoje, encontrei 96 reações diferentes – que maravilha! Mais que nunca, como bem observou a Íldima, virei espectador e você, protagonista deste post.
E foi isso mesmo: por puro impulso, pedi aos editores do Pop & Arte que postassem apenas a foto. Cheguei até a pensar em suprimir inclusive a linha de título – mas, temendo um prejuízo gráfico, preferi abolir as palavras e preencher a linha com aqueles pontos de interrogação. Uma provocação? Talvez – mas garanto: foi um processo muito mais intuitivo do que meticulosamente calculado. E o resultado? Bem, some a sua própria reação ao se deparar com a foto por aqui na semana passada às dezenas de comentários espertos que foram deixados por aqui com relação à imagem.
De bíblicas interpretações sobre nossa relação com o inferno (e o céu) ao previsível ataque às cores da bandeira do orgulho gay (espertamente apropriada por Rondinone), das propostas de tradução literal da expressão ao puro prazer de descobrir um novo artista (o próprio Rondinone), as contribuições foram todas preciosas – não porque eram especialmente brilhantes (e algumas até o eram), mas simplesmente pelo fato de elas refletirem uma inquietação. E ninguém fica inquieto se, antes, não se sentir provocado. E é uma provocação dessas que, para mim, define uma obra de arte de verdade.
Ponto para Rondinone, claro – talvez até com 10% para mim, já que, ao mencioná-lo no blog, ampliei (ainda que marginalmente) o público afetado pelo seu trabalho (não precisa agradecer, estamos aqui para servir!). Os louros de Rondinone, porém, são os mesmos de inúmeros artistas que estão sempre a nos provocar – boa parte deles, aliás, celebrada aqui nesses dezoito meses. O que faz esses artistas e seus trabalhos instigantes o suficiente para provocar reações/ pensamentos/ respostas é, pelo menos para mim, até hoje um mistério. Não sou capaz de construir teoria nenhuma em cima disso (são tantos os teóricos mais competentes do que eu nessa seara!), mas sei detectar bem quando uma obra de arte é forte o suficiente para mexer comigo.
Aliás, voltando às 48 horas que passei agora em Nova York, não faltaram estímulos nesse sentido. Alguns exemplos? Posso começar pela Bienal do Whitney Museum – o eterno saco de pancadas da crítica norte-americana, mas que, apesar de sempre apresentar problemas (pelo menos desde que eu comecei a acompanhá-la, no final dos anos 80), nunca deixa de intrigar. Este ano, para citar apenas alguns nomes (pretendo falar mais só da exposição num outro dia), fiquei intrigado com os trabalhos do inglês Walead Beshty; com o inacreditável garimpo de imagens do americano William E. Jones (que até já passou por aqui, numa das edições do Mix Brasil); com a cruel ironia da vídeo-instalação do israelente Omer Fast; com o bizarro filme sobre viagens exóticas do suíço Olaf Breuning; com a sempre sutil pintura da americana Karen Kiliminik; com a inesperada poesia do vídeo do venezuelano Javier Téllez.
Tudo muito interessante, mas nada capaz de tirar o fôlego tanto quanto uma certa tela pintada há mais de 140 anos: “A origem do mundo”, de Gustave Courbet, “A origem do mundo”. Um dos pais do realismo francês, ele ganhou uma retrospectiva no Metropolitan Museum – e consegue, sem muito esforço, mas com enorme talento, fazer mais barulho com uma tela “antiga” do que toda a contemporaneidade da bienal do Whitney. (para os fortes do coração, aqui está o link da página do Musée D’Orsay, em Paris, sobre a imagem). Vi isso também.
E vi Nathan Lane na Broadway, com “November”, uma comédia rasgada (quase um “sitcom”) de David Mamet – engraçadíssima, especialmente pelo fato de que o personagem principal é um presidente dos Estados Unidos que está no fim do seu mandato sem chances de reeleição (“seu nível de aprovação está mais baixo que o colesterol de Gandhi!”, diz seu advogado)… qualquer semelhança com George W.Bush não é mera coincidência.
Vi o novo filme de Michel Gondry, o extremamente original (apesar de monocórdio) “Be kind rewind” – só pelo trailer você já pode ter uma idéia da maluquice proposta pelo diretor dessa vez. Fiz a visita de praxe à loja Other Music – onde comprei a “promessa da vez”, o CD de Hercules & Love Affair e mais uma coletânea irrepreensível de “pop hippie” espanhol dos anos 60 – “Papagayo!” (ainda não ouvi nada…). .
Passei pelo Museum of Modern Art cheio de expectativas para ver “Color chart” – uma exposição sobre a “reinvenção” da cor das artes, de 1950 até hoje –, apenas para me decepcionar com a preguiça dos curadores (convenhamos, uma coletiva com esse tema, que deixa de fora Hélio Oiticica, não merece meu respeito). Em compensação, no mesmo MoMA, esbarrei na mostra de desenho gráfico e industrial mais excitante da que vi nos últimos tempos: “Design and the elastic mind” (“Design e a mente elástica”).
Na minha livraria favorita da cidade, McNally Robinson, peguei os novos lançamentos de dois autores interessantíssimos: Nicholson Baker (“Human smoke: the beginnings of world war II, the end of civilization”) e Chip Kidd (“The learners”). E nas bancas de revista encontrei a capa mais inventiva, ousada, inteligente, irônica, engraçada, pertinente, séria, chula e sofisticada (pelo menos no plano das idéias) que já entrou para a minha coleção: a “New York” com o ex-governador Eliot Spitzer e apenas uma palavra como manchete, “Brain” (“Cérebro”) – de onde sai uma seta apontando para sua virilha (alguém consegue imaginar um político brasileiro que pudesse figurar numa capa assim? ou melhor, alguém pode citar uma revista brasileira que teria a coragem de publicar uma capa assim?).
A lista é grande, mas não é (como você, que me acompanha aqui há tanto tempo, já sabe) apenas uma desculpa para me exibir. Tudo isso que vi, experimentei, ouvi, é tão provocante e inspirador, que ainda vai render muita discussão para este blog. Assim como o “Hell yes!” de Rondinone. Assim como o refrão de Beck (“I’m working my legs”!). Assim como esse último ano e meio. Assim como seus comentários.