Lição de férias
Não tem nada que eu queira ver mais em 2008 (ok, na primeira metade de 2008 – ou melhor, nas primeiras semanas de 2008) do que “Cloverfield”. Já viu o trailer? Ah, mas você vai ver. E vai querer assistir também – nem que seja só para entender aquela cena onde a cabeça da estátua da Liberdade rola pelas ruas de Manhattan… Mas vai levar um tempo para você ver esse filme, pois as salas de cinema brasileiras ainda estão apinhadas daquele lixo que os distribuidores empurram para a gente nesta época do ano.
Exagero? Experimente procurar nos cinemas de sua cidade por “Juno”; ou “Onde os fracos não têm vez”; ou “Sweeney Todd”; ou “There will be blood”; ou “4 meses 3 semanas e 2 dias”; ou “Gone baby gone”; ou “O escafandro e a borboleta”, ou “Os selvagens”, ou “Reparação”; ou (para não ficar só nos filmes “cabeça”) quero saber também onde está “Eu sou a lenda”. Nada disso está atualmente em cartaz, mas, em compensação, você tem várias opções se o programa dos seus sonhos for assistir a alguns do mais imbecis lançamentos para crianças – que se são espertas mesmo já baixaram isso no computador de casa -, comédias medíocres (alguém pode me explicar como “Antes só do que mal casado” foi parar, na semana do Natal, em nada menos que 37 salas só na capital paulistana?) ou filmes de ação tipo B – ou C (“Hitman – assassino 47″ estava, nesse mesmo período, em 40 salas em São Paulo!!).
Será que a culpa é dos distribuidores mesmo, ou de um público desinteressado, que joga coisas interessantes como “Leões e cordeiros” para a sala Raposo Shopping 8 (só mais dois outros cinemas exibiam este filme em São Paulo antes do Natal)? Ai ai ai… é fim de ano, e acho que estamos todos cansados demais para puxar uma briga como essa (se bem que eu gostaria de saber sua opinião sobre o assunto…). No lugar disso, então, vou apresentar apenas uma breve lista de coisas que quero fazer nesses dez dias em que este blog vai entrar em recesso.
No meu tempo de escola – e lá se vão mais de trinta anos – existia uma coisa que se chamava “lição de férias”: algo que as professoras passavam com o que a gente achava que era o intuito velado de arruinar nossos dias livres. Será que alguém ainda passa essa tarefa – especialmente em tempos como esse onde praticamente nada é exigido dos “pobres e sobrecarregados” alunos? Duvido… mas, de qualquer maneira, peguei a expressão emprestada para sugerir um outro tipo de lição de férias: uma que eu estou colocando para mim mesmo (claro, com um ligeiro intuito de, quem sabe, inspirar você que me lê, se não a abraçar a mesmíssima empreitada, talvez dedicar esses dias ociosos de final/começo de ano a debruçar-se sobre alguns produtos culturais). Esta é minha lista – e, quando eu voltar a escrever de novo, dentro de 10 dias (o próximo post será em 07 de janeiro de 2008), você pode conferir, aqui mesmo, o que eu consegui emplacar…
1) Ler “Persépolis” de uma só vez – os fãs da autora iraniana Marjane Satrapi já podem comemorar o lançamento da sua “saga” em quadrinhos num volume só. Se você, como eu, esperava ansiosamente por cada lançamento dessa que é uma das mais aclamadas “novelas gráficas” (você também não adora esse eufemismo?) ao longo dos últimos anos, e, com isso, tinha uma ligeira sensação de descontinuidade da história, a boa notícia é que a Companhia das Letras acaba de lançar tudo num livro só. Torço que isso seja indício de que o filme de animação, aparentemente reproduzido fielmente dos quadrinhos, esteja para estrear por aqui…
2) Matar as saudades de “Twin Peaks” – um pouco de nostalgia aqui… Foi no comecinho dos anos 90 – pré-internet, um período obscuro sobre o qual você pode se informar mais pesquisando aqui mesmo na “rede”… Uma rede de amigos trocava intrincados códigos e mensagens em secretárias eletrônicas (um artefato do século passado – vale a pena pesquisar!), para deixar a turma saber que mais uma fita de VHS (veja a observação anterior), com uma cópia de terceira geração de mais alguns episódios da série de David Lynch, tinha chegado via “parente próximo de passagem pelos EUA/conhecido que trabalhava em companhia aérea/membro da família que era coagido a trazer tal tesouro”. Nos reuníamos em noites frias, regadas a vinho tinto barato, e assistíamos uma primeira vez aos gritos, uma segunda vez concentrados, e uma terceira vez comentando profundamente cada esquisitice daqueles personagens. Quase 20 anos depois, não me lembro de ter visto algo tão ousado em televisão aberta. Talvez “Lost”… mas deixa eu rever “Twin Peaks” na caixa de DVDs recém-lançada para poder comparar.
3) Assistir todos os especiais de dramaturgia de fim de ano – por falar em ousadia na televisão… “Casos e acasos”, “Guerra e paz”, “Faça sua história”, “Dicas de um sedutor”, “Os amadores”… e tudo num período tão curto de tempo, justamente nessa época do ano em que a gente tem que racionar o tempo livre… Não consegui acompanhar tudo – mas consegui gravar tudo. Será que, depois de assistir atentamente a cada um deles, vou ter boas notícias sobre o que vem de novidade por aí em 2008?
4) Terminar a leitura de “As benevolentes”, de Jonathan Littell – desde que voltei de férias, estava ensaiando para encarar o premiado livro desse autor americano – “educado na França”, como informa a orelha da minha edição. Até que um dia, vítima (pela enésima vez) do perene caos aéreo, resolvi comprar o volume para ler no vôo entre Recife e São Paulo. Preciso dizer que as quase três horas de vôo foram poucas para devorar 896 páginas do livro (na sua tradução em português, editora Alfaguara)? Por mim eu poderia estar indo para a Nova Zelândia – só para eu ter tempo de ler aquilo tudo de um fôlego só! Mas aí cheguei em São Paulo e a rotina maluca de fim de ano não permitiu que eu mergulhasse em “As benevolentes” com a dedicação necessária. Afinal, uma história sobre a Segunda Guerra Mundial, cujo personagem principal, lá pela página 76, declara “E foi assim, com o cu ainda cheio de esperma, que resolvi entrar para o Sicherheitsdienst” – onde Sicherheitsdienst, significa o “serviço de segurança” da SS nazista -, merece, no mínimo, pausa para sua consideração, e um tempo que não é esse frenético que vivemos ultimamente para reflexão.
5) Escutar (finalmente) os difíceis “segundos discos” de boas estréias do passado – eu até comprei esses CDs… mas com tantas novidades aparecendo a cada semana, fui adiando, adiando – e acabei não ouvindo com atenção, até agora, coisas como “Neon bible”, do Arcade Fire, ou “Proof of youth”, do The Go! Team. Outro dia achei, numa pilha de CDs ainda fechados, um disco de 2005, “Hey hey my my yo yo”, de uma banda em que eu já apostei todas as fichas há alguns verões: Junior Senior. Absurdo! Acho que está na hora de eu dar uma chance a esses “não-debutantes”…
6) Rever “Jogo de cena” pela segunda, terceira, quem sabe quarta vez – a partir de quantas vezes o último trabalho de Eduardo Coutinho começa a se esgotar? Acho que nunca… Assim como “Edifício Master” te obriga a redescobrir cada morador daquele prédio a cada nova assistida (se DVD “gastasse”, o meu já estaria “em branco”), é impossível não refletir sobre a arte de viver um personagem depois de uma sessão de “Jogo de cena”. Nessa colagem de depoimentos e interpretações de depoimentos, Coutinho mistura realidade e apropriações da realidade num exercício infinito de brincar com a verdade. Mas nada ali é brincadeira, claro. As histórias – das mais comoventes às mais enigmáticas – são desmontadas quando menos se espera e, a certa altura, você não sabe mais se é mais divertido deixar-se levar pelas narrativas ou discutir sobre o ofício de atriz. E essas são apenas duas possibilidades de leitura… Por isso mesmo quero rever – e rever e rever – “Jogo de cena”.
Infelizmente, porém, na cidade onde eu moro, e que se orgulha da sua ebuliente cultura, o filme de Edurado Coutinho, pelo menos nesta última semana do ano, só está “levando” (como dizia minha avó, com a reverência que a geração dela reservava ao acontecimento que era uma ida ao cinema) em uma sala. Isso mesmo: “Jogo de cena”, hoje, está em cartaz em São Paulo, em apenas uma sala.
Mas calma: isso não é um libelo contra o imperialismo do cinema americano – ainda que eu fique ligeiramente desconcertado com o fato de “Encantada” estar disponível em 67 (!) salas da cidade… Lá em cima, no começo do texto, eu já adiantei que não tem nada que eu queira ver mais no início de 2008 que “Cloverfield” (ok, talvez eu esteja também muito curioso para assistir “Meu nome não é Johnny” – mas isso é outra discussão). Não tenho nenhum problema com Hollywood – pelo contrário (aliás, fui ver ontem “Conduta de risco” e adorei!). Mas “Jogo de cena” em uma sala apenas? “Tem” dó…
Contudo, não quero terminar o ano com uma nota amarga… Se eu tenho esperança em alguma coisa, ela se traduz na minha fé de que tudo sempre vai melhorar – especialmente na nossa cultura. É também por isso que eu escrevo aqui – é por isso que eu leio tudo que você escreve aqui. Pegando emprestado de Gilberto Gil, na sua sábia tradução do verso eterno de Bob Marley, “tudo tudo tudo vai dar pé”. E em 2008, tenho que acreditar mais ainda nisso.
Assim, como diz um amigo meu… “bom feliz ano novo”!