Um outro tipo de história triste
Há pouco tempo escrevi aqui sobre minha infinita busca da história mais triste do mundo. De certa maneira – e pela onda de lançamentos de livros sobre o Oriente Médio que parece não dar trégua – algumas pessoas ficaram com a impressão de que só as grandes narrativas sobre as injustiças sociais merecem estar nessa lista. Os exemplos que dei naquele post, de fato, talvez passassem essa idéia. Mas existe um outro tipo de história triste, aquela que não fala sobre a vida de um refugiado, nem sobre o drama de quem perdeu tudo numa guerra, tampouco de quem vive um cotidiano de extrema repressão por conta de um regime político estúpido e brutal. Esse outro tipo de história triste é contado entre quatro paredes – mesmo: num quarto semi-iluminado, numa sala sem ar, num salão silencioso, ou em qualquer outro lugar por onde passe aquilo que se convencionou chamar de “família”. Não foi Tolstói que escreveu, no início de “Anna Karerina”, que “todas as famílias alegres se parecem”, mas “cada família infeliz, é infeliz à sua maneira” (com o perdão da tradução rápida, pois meu russo está meio enferrujado…)? Pois acabo de ler mais uma dessas pequenas tragédias, escrita por um mestre do suspense.
Calma, não estou falando de um livro de Stephen King – que é um mestre, sim; do suspense, sim; e que escreve excepcionalmente bem para o gênero. Mas estava pensando em outro tipo de suspense, mais tênue, menos aterrorizante, mais surpreendente e menos previsível. Estava pensando em Ian McEwan, no seu novo livro “On Chesil Beach” – lançado também no Brasil (“Na praia”, Companhia das Letras).
É um livro pequeno, nas suas breves 136 páginas (na tradução brasileira, ou mesmo nas 166 da edição inglesa que li) – e algumas resenhas na imprensa estrangeira já se adiantaram para dizer que é também menor, uma opinião da qual discordo radicalmente (mas já chego lá). Devorei de uma tacada no avião de volta de Lisboa (mais sobre essa viagem na semana que vem), num agradável vôo diurno – que se tornou mais prazeroso ainda pela companhia de Ian McEwan. Um prazer, como tentei descrever há pouco, sempre temerário, pois em todas suas histórias você tem certeza de que a tragédia é eminente.
Pode ser, por exemplo, uma viagem romântica a uma das cidades mais bonitas do mundo, Veneza, como a que me deparei no primeiro livro que li desse autor, “The confort of strangers”, que no Brasil recebeu, na edição da Rocco, o título de “Ao deus-dará” (a versão para o cinema, pouquíssima conhecida, foi rebatizada de “Uma estranha passagem em Veneza” – e ambas as obras são altamente recomendáveis). Tudo é tão perfeito, todos os personagens são tão elegantes, tão cultos, tão interessantes, e tudo se encaixa tão maravilhosamente nessa espécie de lua-de-mel informal que, quando a tragédia chega, você tem vontade de reler tudo desde o começo para ver se deixou escapar alguma pista de que aqueles horrores já estavam esboçados em algum trecho do livro. Se você também quer ser surpreendido nessa leitura (ou mesmo com o filme), pule esta frase – mas eu preciso dizer que o desfecho de “The confort of strangers”é tão chocante que faz com que “O albergue” pareça um filme infantil.
McEwan consegue o mesmo efeito – ainda que em um outro cenário – em “O inocente” (Rocco; Companhia das Letras). A história, também transformada em filme (Isabella Rossellini, num de seus papéis mais interessantes), acontece em Berlim, durante os anos 50, em plena Guerra Fria. A monotonia e o estado de permanente suspensão daquela cidade na época dão um tom sombrio, perfeito para o clímax maleficamente elaborado pelo escritor.
Outras vezes, o horror por trás de uma história está num passado enterrado – como em “Cães negros” (Rocco) – ou num segredo tardiamente revelado – como em “Reparação” (Companhia das Letras). Este último, que também foi adaptado para o cinema (mas ainda está inédito), é talvez seu esforço mais sofisticado. Precisaria de bem mais espaço que apenas um parágrafo para falar da força dessa história, da engenhosidade da sua construção e sobretudo da sofisticação de sua narrativa (naquilo que é talvez um dos meus capítulos favoritos de tudo que eu já li, ele mostra como a dona da casa onde se passa a primeira parte do livro acompanha tudo que acontece em todos os seus ambientes, sem sair do seu próprio quarto, onde está confinada com uma enxaqueca terrível; talvez só um capítulo de “Auto-da-fé” sobre petrificação, tenha me deixado mais extasiado – mas esse assunto é para uma outra hora…). Por isso, vamos deixar para comentar esse volume quando o filme sair por aqui.
Na orelha de “On Chesil Beach” (estou usando esta referência porque ainda não vi a edição brasileira) estão listados os dez romances que McEwan já escreveu (incluindo “Amsterdam”, lançado aqui pela Rocco, que lhe valeu o prestigiado Booker Prize inglês), mais duas coleções de contos – e eu já li quase tudo… Quer dizer, se for escrever sobre cada um deles… Vou resistir fortemente comentar sobre “Amor para sempre” (que me inspirou tanto a ponto de eu fazer uma reportagem para a televisão sobre a síndrome de Clerambaut), e seu impecável primeiro capítulo sobre um acidente com um balão, para ver se sobra fôlego para falar de seu último trabalho.
Como comentei lá no início, “Na praia” só parece um livro menor. A premissa é deliciosa: um casal na noite de núpcias, diante da incerteza de ambos os cônjuges perderem a virgindade, transforma o que deveria ser um momento de realização num acidente irreversível. Se você se espantou com o fato de os dois protagonistas serem virgens, vale assinalar que o ano é o de 1962, pouco antes da revolução sexual sacudir todas as noções de intimidade – uma época onde, como escreve McEwan, ser jovem era “uma condição ligeiramente embaraçosa, para a qual o casamento era o início da cura”. Ele, Edward, só conhecia o “auto-prazer” – onde “prazer”, aliás, era apenas um “benefício acidental”: “O objetivo era o alívio – do desejo urgente e aprisionador de pensamentos algo que não poderia ser imediatamente obtido” (minha tradução). Ela, Florence, quando se forçava a se informar sobre o assunto, o fazia em almanaques “modernos”, direcionados a moças à beira do altar, mas lá só encontrava expressões que a aterrorizavam – especialmente uma palavra que “sugeria a ela nada além de dor, carne cortada diante da faca: penetração”. Como consumar o ato entre eles?
Não vou aqui estragar seu prazer em descobrir isso, na leitura desse livro. Vou só dizer que o enlace se transforma numa batalha – e aqui vai uma amostra dela, numa tradução bem livre (repetindo, ainda não vi a edição brasileira):
“Com seus lábios atracados firmemente nos dela, ele examinou o chão carnudo daquela boca, e então moveu-se contornando a parte interna de seu maxilar inferior até o espaço vazio onde três anos atrás um dente do siso cresceu torto e teve de ser removido com anestesia geral. Essa cavidade era por onde sua própria língua geralmente vagava quando ela estava perdida em pensamentos. Por associação, era mais uma idéia do que um local, um lugar privado e imaginário, em vez de um vazio na sua gengiva, e a ela parecia peculiar que outra língua pudesse chegar lá também”.
E isso é a descrição de só um beijo… Instantâneos como esse se revezam com “flashbacks” sobre o passado de Edward e Florence, e sobre o romance que culminou na tal noite de núpcias nesse hotel na praia de Chesil – no nem sempre deslumbrante litoral inglês. McEwan descreve em minúcias como a corte se desenvolve aos trancos – e como quando o clímax chega (se é que o momento pode ser chamado de clímax), a conseqüência dele é um processo triste e destruidor. Quase 95% do livro são sobre aquela noite e os caminhos que levaram até lá. O resto o autor usa para dar um avanço acelerado na vida de seus personagens, num truque que o leitor de McEwan conhece bem, mas que nunca deixa de apreciar. Nesse “fast forward”, você percebe que a tragédia ainda é muito pior, que a tristeza que foi imposta a esses protagonistas era ainda mais profunda – e tudo fica ainda mais claro quando o escritor coloca, na última página: ” É assim que todo o rumo de uma vida pode ser mudado – sem fazer nada”.
É nesse nada que esse escritor fica cada vez melhor. E eu só não declaro oficialmente que essa é história mais triste que eu já li de sua autoria, porque eu sei que logo logo ele vem com um novo livro.
1 setembro, 2009 as 9:27 am
Eu adoro esse livro. Depois que eu vi a capa da edição brasileira, que aparece aqui no seu post, fiquei imaginando como uma história pode deixar um vermelho desses tão triste. Quando li, fui devorando as página e no final ficou aquela sensação de ‘já passou’? Tudo isso foi esse nada? E essa nada foi isso tudo? O incômodo foi causado. Muito bom ler seu texto e relembrar. Um grande abraço!
5 julho, 2007 as 7:01 am
oi seu blog e intressante, visite minha pagina no hi5, e vera que nos em Angola tbm temos arte. Beijo de Angola
4 julho, 2007 as 3:19 pm
ADORO SUAS ENTREVISTAS E ADMIRO SEU PROFISSIONALISMO
BEIJOS
3 julho, 2007 as 8:46 am
olá zeca tou adorando o G1 mas ainda acho que tem noticia que não seria nem bom para a fama do site .. colocar na capa “cadela que tem filhotes no buero é adotada” è infelizmente a mente de brasileiros ainda está assim gostaria de ver uma criança de rua ser adotada … sei que você não tem nada com isso mas seria uma forma de protesto ……
2 julho, 2007 as 6:27 pm
Bem acho interessante, suas idéias mais como você pode dizer que vai morrer? se está vivo, o mais provavél é que você está morrendo.
No Entanto queria te fazer uma outra pergunta, uma novela que fla puramente de satanismo, pode ser livre?
See? ou não?
2 julho, 2007 as 6:12 pm
“meu russo está enferrujado”…
Ô Zeca, não humilha a gente!
O blog tá cada vez melhor, congrats.
25 junho, 2007 as 1:57 am
Legal “Na Praia”, também gostei. Já leu “No one belongs here more than you. Stories by Miranda July”? É daquela diretora de “Eu, você e todos nós”. Saiu esse ano e reúne vários contos…tristes, de “gente como a gente”. É lindo, bem bacana.
21 junho, 2007 as 2:20 am
bom…oi zeca!!
é o seguinte,acho que o que vou escrever aqui não tem muito haver com os outros comentários!!!
é o seguinte,eu faço pedagogia,mas sonho em ser jornalista,e sei que você é apaixonado pelo que faz…então resolvi saber de você mesmo as maravilhas dessa profissão…sei também que nem tudo são flores…porém gostaria da opinião de quem realmente entende do assunto,e ninguém melhor do que você!!!
desde já muito obrigada pela atenção tá?
te admiro demais!!bom meu e-mail está ai…se possivel me responde!!!
beijo
21 junho, 2007 as 1:30 am
Zeca,
Quando der, vou ler um dos livros que indicou hj. Já li “Dois Irmãos” de Milton Hatoum e gostei bastante. Gostei da forma como o autor escreve, é diferente e emocionate. Comprei tb o “Feras de lugar nenhum” (ainda nãi li) – estou estudando muito, dando aulas e o tempo tem andado cada vez menor. Mas gostaria muito que comentasse sobre o livro “O mundo de Sofia”. Aposto que já leu… Ah, e sobre a coleção do Harry Potter, Nnão é sua praia? Li todos no ano passado e gostei d+ (olha que não sou adolescente, tenho 33 anos!!RSrsrsrsr).
Estou pensando em ler “A menina que roubava livros”, o que acha? Só li a resenha, não tive uma indicação pessoal de ninguém!!
Comenta aí, vai?
Bjs
20 junho, 2007 as 6:32 pm
Não resisti a comentar o post do dia 11. Nove Rainhas é simplesmente o máximo!!! Pena que ainda não lançaram em DVD (ou as locadoras de Campinas são mto desatualizadas). A trama é simplesmente fascinante, td o q não se pode imaginar acontece. Não fica nem um rastro do que pode vir a ocorrer, e a sensação de “como assim” é impressionante. De outro estilo, mas com a mesma sensação é “O Ilusionista”. Me senti uma idiota completa qdo terminou… rs
Agora, sobre seu post atual… Eu adoro ler, mas nunca tinha me aventurado pelos livros tristes, nem por best sellers… aí resolvi ler aquele “O Colecionador de Pipas”. Chegava no trabalho angustiada, de tanta tristeza! Mas aí, o autor se empolga e começa a enfiar um monte de coisas na história! “sem os braços, sem o estomago, sem a cabeça, mas ainda vivo”. Haja paciencia! Será q eu fui a unica pessoa do mundo q não gostou?
Ufa, chega de escrever! Daqui a pouco meu comment vira um post! rs…
bjos
20 junho, 2007 as 3:57 pm
OI, PESSOAL,
QUERO SUGERIR UM BLOG BEM LEGAL DA REPÓRTER DO PROGRAMA DO JÔ. É INTELIGENTE E BEM ESCRITO. VALE A PENA E FORA QUE O NOME É ENGRAÇADO O MUNDO GIRA A LUSITANA RODA E EU SÓ NA CARONA. O LINK É https://tatirez.blog.terra.com.br
ABRAÇOS!
20 junho, 2007 as 3:23 pm
o que tenho pra indicar não é um livro, mas é uma matéria que saiu na Sawary desse mês, tem a Daniella CIcarelli na capa, vale a pena… a história é linda e muito triste… e foi muito bem escrita!
20 junho, 2007 as 11:47 am
Opa,opa!!!
Ele escreve suspense?
Suspense fora do comum???
Mais um que vou adicionar a minha lista….
Valeu pela dica Zeca!!
Ahhh…para descontrair….rsss….Autografa meu livro??
=P
Abração!
20 junho, 2007 as 11:19 am
Dae Zeca, blz??
Na verdade, possuo uma lista de livros que preciso ler, que normamelmente amigos, professores, críticos indicam. E dentre os 21 já listados, 9 são seus, hehehehehheheh. O que é um numero alto. E é inegavel que o deste post tbm entrará na lista…. to frito!
OBS: Achop que vc já sabe, mas não custa dizer: o seu ídolo Tin Tin vai virar um filme, segundo Spielberg, que tambem é fanzasso do personagem. Bom, este eu pago para ver.
OBS2: Bem que vc podia vir na Bienal do Livro daqui de Vitória né? Seria um prazer ter o seu autográfo no meu livro. Começa dia 21/06 e vai até 01/07. Gostaria muito que viesse, vc é um dos meus favoritos. abraços!!!
20 junho, 2007 as 9:35 am
Zeca…é a primeira vez que acesso seu blog. Parabéns, você é uma pessoa de grande conteúdo e de uma capacidade enorme de conjugar conhecimento, isso é bonito de se vê e nos estimula a crescer, a conquistar. Histórias tristes é um gênero conhecido a nosso tempo, ao nosso espaço, demonstrativo da fragilidade humana…neste contexto, leio as histórias tristes subsidiado pela dialética hegeliana. Um Abração.
20 junho, 2007 as 12:14 am
“com o perdão da tradução rápida, pois meu russo está meio enferrujado…” . Tirou onda hein!?
19 junho, 2007 as 9:46 pm
Tô curiosíssima com este livro, Zeca…Vou correndo comprar! Como estava o passeio por Portugal? Ô terra linda aquela…E os fados? Põe fotos no blog, please!!! Bjs!!!
19 junho, 2007 as 9:28 pm
Zeca, assim você faz com que eu gaste todo o meu suado dinheiro adolescente com livros! Parabéns pelo blog, é ótimo.
19 junho, 2007 as 4:56 pm
Zeca, saindo um pouco do contexto, que, no caso, seria um comentário sobre o seu post, eu gostaria de dizer sobre uma biografia que será produzida por mim e pelo meu grupo na faculdade. Em primeiro lugar, você se importa se fizessemos isso? Em segundo, teria como nos ajudar nisto? Aguardo sua resposta o quanto antes! Abraços! E parabéns pelo seu trabalho. Sua atuação é fantástica! (Perceba que não é por um motivo qualquer que te apontamos como o escolhido para ser biografado!)
Meu e-mail é: [email protected]
19 junho, 2007 as 2:39 am
Eu e um amigo também adoramos eleger as histórias mais tristes de todos os tempos. Sempre que enviamos uma história dessa para o outro, colocamos um aviso antes “Não leia se estiver bem, também não leia se estiver mal”. Prometemos que um dia vamos reunir essas histórias, que geralmente são contos, e fazer um livro chamado “Histórias para não serem lidas”
E agora fiquei muito curiosa pra ler esse livro!!!