Onde as pessoas (ainda) conversam

qui, 31/05/07
por Zeca Camargo |
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Onde as pessoas (ainda) conversam

Desde quando ficou decidido que qualquer boteco onde você passa para tomar uma coisa, comer um aperitivo ou até mesmo jantar, tem que ter uma tela de plasma ligada transmitindo não importa o quê – filmes, competições variadas ou ainda aquela caquética forma de expressão artística que os antigos sumérios chamavam de videoclipe?

Não faz muito tempo, me lembro de ter visto algumas reportagens sobre a “febre” dos “sports bars” por aqui – mais uma tentativa constrangedora de reproduzir um hábito norte-americano: você vai num lugar para beber e… na falta de um assunto melhor, você e seu amigo (se você saiu para beber com ele, é um amigo, certo?) se viram para a TV e começam a acompanhar a partida que está passando – qualquer coisa serve, não precisa nem ser um jogo decisivo. Funciona bem lá nos Estados Unidos – já conferi. Mas no Brasil? Não somos famosos justamente por sermos bons conversadores?

Enfim, o que eram pequenos pontos isolados começaram a se espalhar – primeiro porque as TVs de plasma foram ficando mais acessíveis (pelo menos mais acessíveis para o orçamento de um botequim) e, depois, veio a última Copa do Mundo – quando, se você quisesse ter alguma clientela na hora dos jogos do Brasil, era bom ter uma daquelas maiores e mais modernas pendurada em algum canto do seu salão principal. Só que aí a Copa passou – sem comentários… – e, no lugar da tendência diminuir, ela só cresceu. E infestou não só os bares, como também restaurantes (falo, claro, baseado principalmente em São Paulo e Rio, por onde circulo mais, mas já detectei o fenômeno também em outras capitais, e posso apostar que, mesmo fora desse circuito, a TV de plasma “coletiva” chegou para ficar).

Não quero, no entanto, dedicar todo este espaço a essa ranhetice e ficar reclamando de uma tendência que eu não gosto. Já aprendi há tempos que, quando não gosto de uma coisa, deixo de usá-la/ freqüentá-la/ recomendá-la. Deixei de ir, por exemplo, a dois bons restaurantes em São Paulo por causa de uma TV de plasma (uma certa cozinha portuguesa vai me fazer falta…). Mas se as pessoas não se incomodam (pelo número crescente de estabelecimentos que adotam a mania, parece que são poucos os que se incomodam), boa sorte…

As pessoas são mesmo estranhas – não consigo entender como você chama uma turma para sair, olha um para a cara do outro, conclui que vocês não têm muito assunto e… viram-se todos para o plasma! Ainda prefiro a conversa e, por isso, quero celebrar neste post uma outra tendência, mais que bem-vinda: a das aberturas de livrarias cada vez maiores – e melhores! – por todo o Brasil.

São Paulo recebeu recentemente dois bons presentes nessa categoria: uma nova Livraria da Vila, nos Jardins, e uma megalivraria Cultura no Conjunto Nacional – bem na Avenida Paulista. Já falo um pouco mais sobre ela, mas, só para dar mais peso a essa idéia, é bom citar que outras cidades além da capital paulistana também têm o que comemorar. A Livraria Saraiva têm aberto superlojas, por exemplo, em Florianópolis, Ribeirão Preto e – soube há pouco – também em Salvador. As Fnacs, pioneiras, já estão presentes em várias capitais – para não falar da de Campinas! Em Recife, a Livraria Cultura (novamente) é um dos espaços mais bonitos para vender livros que já vi no mundo. No sul, a rede das Livrarias Curitiba marca presença não só nas capitais, mas também em cidades como Londrina e Joinville. E tem o Rio, onde a Livraria da Travessa se impõe como referência principal – especialmente num espaço que geralmente não prestigia esse tipo de estabelecimento… o shopping center!

Para não ficar só na celebração das mais grandiosas, ainda no Rio, é um prazer gastar algum tempo na Timbre e mais um pouco de tempo na Argumento (lamentei muito o fechamento da Contra Capa… mas fazer o quê?). Em São Paulo, a Livraria Boa Vista, a antiga (bem antiga) Livraria da Vila. Em Belo Horizonte, o Café com Letras. Em Santos, a …

Conheci boa parte desses lugares em eventos de lançamentos dos meus livros, mas já voltei a várias dessas livrarias por iniciativa própria. Freqüentar livrarias é um hábito antigo – e só fiz questão de escrever sobre isso porque esta semana fui conferir a nova Cultura, do Conjunto Nacional. Fiquei tão encantado com aquele lugar quanto com todos os outros que citei aqui – talvez um pouco mais pela imensidão. É a maior delas? Muito provavelmente. A mais bonita? Acho que ela encontra concorrentes fortes dentro da própria cadeia (vide o que falei sobre a de Recife). Mas não é sobre tamanho que eu quero falar, mas sim sobre a atmosfera que sempre contagia do momento em que você cruza a porta de entrada de uma livraria.

Cito a Cultura recém-inaugurada porque foi lá que, mais uma vez, me senti em casa fora de casa. Você que gosta de livros já passou por experiências assim. Você está andando com um volume na mão, alguém passa e pergunta se aquele autor é bom. Ou faz um elogio à sua escolha. Ou apenas olha com uma certa inveja inofensiva por você ter pego aquele último exemplar da prateleira. Alguém comenta que está procurando o DVD de um livro muito bom (algo cada vez mais comum, uma vez que as livrarias estão expandindo a variedade do seu estoque, vendendo CDs e DVDs). Você observa que um grupo de três senhores parecem estar sentados naquela mesa de café há dias (sim, porque qualquer livraria que se preze hoje em dia tem que ter o seu café) e quase comemora quando vê num pufe no fim do corredor duas crianças lendo o mesmo livro. Uma pessoa que você nunca viu te reconhece – e não é da TV, mas de uma outra livraria.

Pegou o espírito?

Isso pode ser aqui ou em qualquer lugar do mundo. Já vivi cenas assim na imponente Ateneu, em Buenos Aires. Ou na Pêndulo do bairro de Condessa, na Cidade do México. Na Pandora, em Istambul. Na Bertrand, em Lisboa. Na Book Soup, em Los Angeles. Nas imensas Borders de Chicago, nas inúmeras Waterstones de Londres. Na primeira Fnac que visitei (onde sempre faço questão de voltar, nem que seja por nostalgia), aquela do Forum Les Halles, em Paris – onde eu me lembro de ter ficado desorientado com a imensidão daquelas galerias… eu olhava e não conseguia enxergar o fim das prateleiras. Em tantas outras livrarias, grandes e pequenas, em Bangcoc, Tóquio, Hong Kong, Berlim – que eu não consigo lembrar o nome agora, mas certamente me lembro da visita.

Faço questão de citar esses exemplos internacionais justamente para dizer que, bem aqui, neste país onde as pessoas adoram repetir o clichê de que ele é carente de cultura – aqui no Brasil, o universo das livrarias não fica nada a dever para qualquer outro lugar. Os breves encontros que tive na Cultura esta semana (ou na Travessa, no fim de semana, ou na nova da Vila, na semana passada, ou tantos outros) me deixam confiante de que esse é um circuito que nem a mais poderosa livraria virtual será capaz de destruir – a prova de que elas são um precioso oásis, um lugar onde as pessoas (ainda) conversam.

De certa maneira, as livrarias hoje convergem todos os assuntos que eu abordo aqui neste blog – e acho mais do que justo celebrar o excelente momento que elas vivem (se hoje fosse dia de Curva de Expectativas, eu as colocaria certamente antes do “ponto de saturação”…). E, sobretudo, comemorar os diálogos que elas estimulam, a troca entre as pessoas, as possibilidades de descoberta.

Sempre é mais fácil, quando dá aquele silêncio e você se tortura para procurar um assunto com aquele seu amigo que você queria tanto sair, virar-se para a tela de plasma e tomar mais um gole da cerveja já morna… Mas eu não tenho dúvidas de que um café recheado de histórias e “causos” (tem horas que a minha mineirice escapa…), contados sem esforço, numa sala cercada de livros, é bem mais interessante. Para não dizer memorável…

Seria mesmo necessário assistir a “Piratas do Caribe 3”? Estudo de caso

seg, 28/05/07
por Zeca Camargo |
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Seria mesmo necessário assistir a “Piratas do Caribe 3″? Estudo de caso

Quantas vezes você viu o trailer de “Piratas do Caribe 3 – No fim do mundo”? Eu vi três. No cinema. E mais três na internet. Eu já vi o redemoinho prestes a engolir os navios. Já vi uma nau descomunal navegando por dunas de areia – cruzando geleiras, se aproximando de uma enorme cachoeira (isso é o que eu chamo de “variar sobre um tema”…). Vi duas ou três piadas de Jack Sparrow – as faladas (para fazer justiça aos símios do elenco, uma delas envolve um macaco) e as acrobáticas (como aquela em que o canhão que ele detona acaba o içando com violência pelos ares). Vi a luta (emocionante!) sobre uma das velas rotas. Vi bons closes de Keira Knightley e de Orlando Bloom, matei saudades da incrível maquiagem de Bill Nighy, no papel do temível Davy Jones. E li blogs e jornais o suficiente para saber qual é a… bem… a trama dessa terceira parte da trilogia. Dito isso, pergunto: preciso assistir ao filme?

Se você é um dos devotos do capitão Sparrow, provavelmente abandonou este texto à deriva no último parágrafo. “Que espécie de pergunta é essa?”, provavelmente se perguntou esse fã. Sob pena de ir para prancha, ouso aqui expor minhas razões para duvidar das sensações que esse tipo de filme pode oferecer. Tipo de filme – esclareço logo – que adoro. O que vem a seguir não é uma consideração esnobe de um crítico de cinema – quem vem sempre aqui sabe que não dou para nenhuma dessas coisas, nem esnobe, nem crítico de cinema.

Ocorre que, no lugar de “Piratas do Caribe 3″, fui assistir, na semana passada, a um filme que não tem nada a ver com esse universo – uma produção tão alternativa que me surpreendeu até ser lançada comercialmente no Brasil. Leitores distantes das capitais (e vocês são muitos, eu sei, pelos comentários) provavelmente não vão ter a oportunidade de vê-lo nas telas de sua cidade (quem sabe em DVD?), e mesmo quem mora perto de um cineplex nem deve estar sabendo que ele estreou.

Eu mesmo só fui vê-lo porque li numa manchete que esse era o novo filme de Mira Nair – uma diretora que admiro (mais dela adiante) -, pois o que poderia me chamar atenção (o nome original do filme), recebeu uma tradução estranha para mim. Explico: o roteiro foi adaptado de um livro que li há dois anos e que gostei muito, “The namesake” – no Brasil, “O xará”. Sua autora, Jhumpa Lahiri, é uma das sensações literárias da nova geração de autores com herança indiana (ela é nascida na Inglaterra) – uma turma que, como eu não me canso de falar aqui, me é muito cara… O livro é realmente muito bom (a edição nacional, da Companhia das Letras, é de 2003, mas você consegue achar sem muita dificuldade), e com um nome fácil de lembrar… Só que os distribuidores brasileiros, negligenciando o potencial que os fãs de Lahiri poderiam representar às bilheterias (será?), resolveram rebatizá-lo de “Nome de família”.

Não deixa de ser uma ironia esse título, já que o nome em questão – o do personagem principal – não é o da família, mas o próprio. Um menino, de quem vamos acompanhar a história da infância até a juventude, é batizado provisoriamente (coisas de “bengali”, como eles diriam) de Gogol – numa referência “torta” ao grande escritor russo (nascido na Ucrânia) Nikolai Gogol – e passa o resto da vida “brigando” com seu nome. Mas esses são detalhes: a história mesmo é uma bela fábula sobre o choque de culturas. Resumindo (mas resumindo bem mesmo), Gogol nasce em Nova York, de pais indianos, abraça a cultura americana, e só quando uma tragédia pessoal atravessa sua vida (não se preocupe, não vou contar o filme…), ele resolve procurar suas raízes.

Já tinha gostado do livro “O xará” (se possível, procure, da mesma autora “Intérprete de males”, também da Companhia das Letras) e fiquei emocionado com o filme – “Nome de família”. E foi uma emoção genuína, desprendida da carga que um ator ou uma atriz muito conhecido(a) pode agregar, uma vez que ninguém do elenco sequer passou perto de Hollywood (a diretora sim: depois do sucesso inesperado com o independente “Casamento indiano” – numa locadora perto de você -, ela foi convidada para dirigir uma adaptação do clássico de William Thackeray , “Vanity fair”, com Reese Whiterspoon – também numa locadora perto de você -, que não deu muito certo… mas mesmo assim, eu adorei!).

Esse elenco “desconhecido” (as aspas são importantes, uma vez que o site imdb.com lista 67 filmes – nenhum americano – no currículo da atriz principal, a indiana Tabu) só contribui, claro, para nosso envolvimento com a história. E foi justamente isso, esse envolvimento, que me fez pensar no dilema de ver ou não ver “Piratas do Caribe 3″.

Não descrevi as cenas principais do trailer desse filme lá no início à toa. A sensação que tive, depois de ver os trailers repetidas vezes, era de que o filme realmente se resumia àquelas cenas. Fora o show de imagens dos efeitos especiais, os ângulos impossíveis de algumas tomadas (me esqueci de mencionar, mas aquele ataque de um navio para o outro onde um exército de piratas “voa” sobre os mares é maravilhoso) e – vá lá – o charme das estrelas principais, o que eu vou levar desse filme? Não, não vou querer meu dinheiro de volta: duas horas e quarenta e oito minutos com os olhos grudados na tela cobrem muito bem o preço do ingresso. Mas depois que eu sair do cinema… o que vai comigo?

A diferença de “Nome de família” – e tantos outros títulos que não contam com os apelos e os truques de uma superprodução para agradar – é que eles tiram de você um real interesse por aqueles personagens ali mostrados. O filme acaba e você, surpreendentemente, se vê preocupado com o que vai ser de Gogol depois que os créditos finais passarem. Que mistérios a mãe dele deixou de revelar? Como o segredo que o pai de Gogol repercutiu quando ele, Gogol, foi pai? Dava para saber um pouco mais sobre a irmã? De inúmeras maneiras, você continua a elaborar as histórias daqueles personagens como se fossem pessoas que você conhecesse. E Jack Sparrow? Confesse: você está mais interessado em saber se Johnny Depp vai assinar contrato para mais um filme da série do que especular sobre os próximos inimigos que o capitão pode eventualmente enfrentar.

O que filmes como “Nome de família” fazem com a gente é oferecer a chave da elaboração, prolongar o exercício da imaginação – e, arrisco, essa é a verdadeira fantasia. Todas as peripécias de “Piratas” são pura aventura – mas funcionam apenas como fantasias instantâneas. Não duram nem até a primeira pizza chegar à mesa do seu jantar de domingo, que você combinou com os amigos logo depois do cinema. Mas quem disse que os personagens de “Nome de família” vão embora?

O filme tem muitas outras qualidades. Por exemplo, seria natural para alguém que filmou um casamento (indiano) com tanta beleza, oferecesse dessa vez um funeral com extrema reverência e poesia. A interpretação de Tabu é tão sofisticada que ela mal precisa de maquiagem para mostrar que quase trinta anos se passaram da primeira à última cena. O próprio Gogol (vivido por Kal Penn – esse sim, já com experiência de Hollywood, e participação até na última temporada de “24″) é representado com a dose certa de fragilidade e incerteza que o personagem pede. Mas sobretudo eu recomendaria o mais recente trabalho de Mira Nair como um antídoto para essa temporada de arrepios fáceis na tela.

Ah! E a resposta à pergunta inicial? Vamos assistir “Piratas do Caribe 3″, sim! E “Homem-aranha 3″, sim”! E sobretudo “Sherk 3″ – sim! Mas se der, compra um ingresso para “Nome de família” entre outra sessão e outra – só para experimentar o que é se envolver de verdade com uma história.

Minha biografia

seg, 28/05/07
por Zeca Camargo |
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Isso já deve ter acontecido com você também: você assiste a um espetáculo (um filme, um programa de TV, um show – qualquer evento cultural), e você tem aquela sensação de que ele foi feito especialmente para você, que, de alguma maneira, aquilo que foi mostrado com gestos (movimentos, imagens, palavras, músicas, sons – qualquer manifestação da criatividade humana) está lá para traduzir a sua história pessoal. Comigo isso já aconteceu várias vezes, mas nunca de uma maneira tão forte e intensa quanto na noite da quinta-feira passada, quando fui assistir a “Mar de gente”.

Foi uma semana abundante em ofertas performáticas em São Paulo, de ópera eletrônica (“O guarani”) a uma das companhias de balé mais respeitadas do mundo (Nederlands Dans Theater), passando, é claro pelos onipresentes humanóides do Blue Man Group (que também fui ver, mas prefiro guardar meu comentário para uma outra hora – aguarde a Curva das Expectativas Flutuantes na próxima quinta-feira). E entre tantas opções eu fui ver justamente a estréia do último trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo – o tal “Mar de gente”.

Não foi, claro, uma escolha gratuita. Ivaldo, que é uma das poucas pessoas que eu tenho a honra de chamar de mestre, foi alguém com quem trabalhei intensamente durante 12 anos. Comecei a freqüentar sua escola de dança em 1981 – e dois anos depois eu já estava dando aulas como seu assistente. Nesse período, participei de mais de 12 espetáculos (pelas minhas contas… pode ser que um ou dois tenham escapado) e passei por um processo de consciência corporal (uma expressão que infelizmente sempre parece mais pretensiosa do que ela realmente é) que carrego comigo até hoje. Trago a experiência do gesto, da dança, do movimento em cada momento do meu cotidiano – e faço isso sem o compromisso de um bom aluno que quer repetir a lição. Pelo contrário: as lições do mestre Ivaldo (para mim, é difícil chamá-lo de Bertazzo…) são assimiladas sem esforço e passam a fazer parte do nosso cotidiano como se tivéssemos nascido sabendo aquilo (e, quem sabe, não nascemos… já chego lá).

Ivaldo me deu, enfim, o presente da dança – essa mesma que já tentaram usar contra mim, numa tentativa pífia de desmoralizar o que é um dos ensinamentos mais preciosos que eu já tive nesses 44 anos. Um dia ainda vou escrever sobre essa minha experiência corporal (ah… os livros que ainda estão só em projeto…), mas, por hoje, vou preferir falar dela através de trinta garotos e garotas que eu vi no palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo (eles ficam em cartaz até o dia 08 de julho e depois vão para o Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre – e ainda devem confirmar outras cidades).

Não canso de repetir que minha vida teria sido diferente se eu não tivesse encontrado a dança. E, ao assistir ao elenco de “Mar de gente”, essa foi novamente a primeira coisa que me veio à cabeça. Aquelas pessoas dançando ali, mostrando um porte, um universo gestual, uma dignidade naqueles rostos – como eu digo no texto do programa que fui convidado a escrever – maior do que qualquer coisa que eles poderiam ter sonhado. Isso despertou em mim uma alegria (misturada com saudade, vitalidade e surpresa) que há tempos eu não sentia em nenhum espetáculo.

Antes de prosseguir, queria tirar do discurso um ruído que sempre aparece nos comentários sobre o trabalho de Ivaldo nos últimos anos. Já há algum tempo, ele trabalha com jovens de comunidades geralmente classificadas como carentes. Usei o “geralmente” porque sempre que ouço ou leio essa expressão sinto um leve incômodo… Essas comunidades, inevitavelmente situadas nas periferias das grandes cidades, são carentes sim – mas carentes de recursos básicos, que qualquer cidadão merece ter pelo simples fato de existir, desde que seja abraçado por um governo com um mínimo de consciência social (eu diria também “ética”… mas essa é uma palavra perigosa nos últimos tempos… se entrarmos nessa, vou me perder do que realmente quero dizer aqui). No entanto, essas mesmas comunidades são abundantes em todos os aspectos que as privações que a ausência de cidadania lhes impõe insiste em ignorar: talento, garra, criatividade, força de vontade, brilho – e todas essas outras coisas que os mais cínicos preferem chamar de “aspectos humanos”. Um breve passeio por uma periferia coloca todas essas qualidades dessa gente na sua cara – e, para os mais sensíveis, que preferem não circular por essas áreas, só assistir a um episódio de “Antônia” (ou mesmo o filme) pode te dar uma idéia do que eu estou falando.


Antes que isso vire um discurso político, porém, só queria lembrar que fiz esse “parênteses” para dizer que os jovem do elenco de “Mar de gente” veio da periferia sim. Veio de comunidade carente sim. Mas não é só por isso que eles devem ser admirados. Eu tenho horror daquele olhar condescendente que diante de um trabalho como esse parece dizer: “nossa, para alguém que veio de onde eles vieram, ficou muito bom…”. A esse tipo de comentário, um sonoro verso do hit de hit de Cris Nicolotti. Estou aqui para celebrar o trabalho desses meninos e meninas primeiro – e depois ver o que significa isso, considerando o universo de onde vieram.

Logo quando o elenco vai entrando no palco, praticamente junto com a platéia, a primeira coisa que você percebe é que não se tratam de pessoas que você esperaria ver num espetáculo de dança. Pelo menos não aquele clichê com que as pessoas se acostumaram a pensar num grupo de bailarinos – mesmo depois de tanta Pina Bausch (e tanto Mark Morris , que infelizmente nunca veio ao Brasil com sua trupe) as pessoas ainda acham que bailarino “é tudo a mesma coisa”… Mas esse elenco, insisto, há de se juntar a tantos outros para derrubar essa idéia! Lentamente eles vão se sentando nas escadas no cenário e você vai vendo que cada um deles tem um traço diferente: uma boca enorme, uma cabeleira enorme, uma perna meio curta, uma bunda meio saltada, olhos que não poderiam ser mais distintos. Eles têm expressão! Vem coisa boa por aí.

Estou me referindo, claro, às coreografias – para mim, facilmente reconhecíveis, já que trabalhei tanto tempo com Ivaldo. A dança indiana (em especial o “kathak”, que é das muitas coisas que eu me orgulho de ter feito bem um dia…) é uma linguagem recorrente no trabalho do coreógrafo e volta em “Mar de gente” como uma onda renovadora. Mas estou também me referindo ao desenvolvimento desses bailarinos no palco.

“Desgraciadamente”, como se diz em espanhol, memorizei os nomes de apenas parte do elenco (por enquanto). Por isso, os que cito a seguir não são mais nem menos belos e belas do que os outros – são apenas aqueles que minha memória já claudicante conseguiu apreender. Como a Vanessa por exemplo, com aqueles braços e pernas poderosas – que a certa altura desliza pelo palco como um animal sinuoso e insinuante. Ou o Deivison, que também atravessa o palco, em outro momento, arrastando uma pedra, mas que oferece muito mais na despretensão de seus movimentos nas coreografias que participa. Deivison tem uma das caras mais honestas que eu já vi, e essa honestidade, não duvide, se traduz em todo seu gestual.

Tem o Douglas, que é como se o David, de Michelângelo, tivesse deixado crescer o seu cabelo de maneira descomunal e emprestasse um pouco da beleza dos traços africanos. Aquela massa que se move desafiando a gravidade é um imã para os olhos da platéia, assim como os braços da Ariane toda vez que ela ataca de “kathak”. Aliás, não faltam motivos para seu olhar se perder pelo palco: o rosto iluminado e delicado da Fernanda, em ligeiro contraste com o contorno forte da sua bunda; os lábios impressionantes da Samara (que vêm como um bônus para seus gestos precisos); o corpo longilíneo e elástico do Rubens, que termina sempre num sorriso largo; as extremidades impecavelmente definidas da Ariane, especialmente na dança indiana; a presença sutil de Josenilton, que mais parece um indiano nobre infiltrado no elenco; a alegria que esbanja da cara da Amanda; o centro gravitacional do Anderson (Dias da Silva), que ameaça influenciar o da própria Terra, certamente uma herança da dança de rua; e a inspiração infinita que foi ver o outro Anderson (Ferreira Xavier) se mexer de lá para cá, o tempo todo pelo palco com uma vivacidade que me remeteu à minha própria história.


Todos os bailarinos e bailarinas do elenco – mas talvez o Anderson, em especial, com sua altura não exatamente privilegiada, que é compensada por uma presença valiosa de um eixo natural e uma refinação na execução de cada passo raramente vista até nas companhias mais tradicionais – parecem provocar a própria definição da dança. Apenas de olhar aqueles corpos você pode tirar a conclusão apressada de que ninguém ali deveria estar fazendo aquilo. No entanto, com o talento de cada um deles trabalhado pelas mãos de um mestre, ali estão eles brilhando no palco: o Anderson, o outro Anderson, a Samara, o Rubens, a Vanessa, a Fernanda, o Deivison, a Ariane, o Douglas, a Amanda, o Josenilton – e mais todos que eu posso citar escolhendo aleatoriamente seus nomes na ficha técnica do espetáculo, Priscila, Mayara, Gilson, Lucas, Angélica, Silvana, Wanderley… São ao todo trinta nomes que insistem em contrariar uma observação careta que grita: “vocês não deveriam estar dançando!” – mas eles estão dançando sim, e estão assim suspensos num estado de beleza que vão levar para a vida inteira.

E é aí que minha biografia se cruza com a deles. Quantas vezes eu não ouvi que “eu não deveria estar dançando”? Até hoje, com o esdrúxulo episódio recente de um vídeo antigo meu dançando que foi ressuscitado pelo YouTube e pela TV, quantas pessoas não se aproveitaram para fazer seu comentário estreito e preconceituoso? A sorte é que eu passei por um aprendizado tão sofisticado quanto o que esses meninos e meninas que estão trabalhando com o Ivaldo acabaram de passar. E quem ganha um presente como esse – posso garantir – não fica derrubado com nada.

O que nos leva – agora sim – ao cotidiano da periferia de onde vêm o elenco da Cia. de Teatrodança Ivaldo Bertazzo. Depois de vê-los dançar, você acha que isso faz alguma diferença? Garanto que não para eles. Porque o que importa ali é a dignidade (sei que já usei essa palavra, mas aqui não cabe outra…) – dignidade essa que eles aprenderam a ter, através do movimento. Todos ali descobriram como usar esse corpo tão estranho – e qual corpo que não o é? – a seu favor. Mais do que isso: por mais de uma hora, eles se colocam no palco para mostrar que isso é possível para qualquer um. Eles são um exemplo sim – mas não um exemplo fácil de uma ONG barata (você sabe que existem ONGs e ONGS, não sabe?). Cada menino desses, cada menina dessas são dignos, apesar do lugar de onde vieram – e o serão para sempre. Eu sei disso…

A essa altura, já alcancei aquele estágio em que começo a pedir desculpas pelo tamanho do texto… Mas, se você veio comigo até aqui, por que não me acompanhar um pouco mais, só para eu poder falar um pouco das danças propriamente ditas de “Mar de gente”? Vai ser só mais esse parágrafo, pois tenho que registrar como Ivaldo consegue, como poucos, misturar linguagens num resultado totalmente original. Da grande roda romena às linhas de uma travessia pelo palco com o vigor que um Moussorgosky inspira; dos movimentos em tempos diferentes precisamente executados numa escada ao “duelo” de “kathak” moderno sobre uma cruz de papel; das acrobacias dos meninos oferecendo combinações impossíveis entre aqueles corpos ao múltiplo pas-de-deux já no final do espetáculo; e da briga de casais coreografada à valsa em marcha-a-ré que encerra a apresentação emprestando o giro dos dervishes, Ivaldo está se reinventando a cada momento – e, com isso, sendo cada vez mais generoso com seu público.

E esse público também sou eu. Que ironia…

Crédito de todas as fotos: Priscila Prade

Vem tomar na Curva das Expectativas Flutuantes

qui, 24/05/07
por Zeca Camargo |
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Você também reparou na ironia? Todas as pessoas que se mostraram indignadas com meu último post sobre o “hit” do momento, que, de maneira geral, reclamavam que, num país como o nosso, eu deveria usar esse espaço para falar de cultura de verdade (seja lá o que for isso!) – enfim, todos que deixaram um comentário nessa linha nem sequer se deram o trabalho de ler o post anterior e reparar que eu estava comentando sobre… literatura? Ah… essas são as deliciosas contradições da internet – com as quais, oito meses depois, eu já deveria estar acostumado, mas não…

E não vou nem perder tempo com a infinidade de outros comentários que faziam exatamente o que a lei do “vamos evitar ser óbvios” – também lembrada no último texto – recomenda: me mandavam fazer justamente o que a singela canção sugere. Esses destemidos internautas eram, claro, todos anônimos… Ah… a coragem que um mouse inspira…

Vamos logo então para o breve comentário sobre a Curva deste mês. Começando pela própria “Vai tomar no cu” – não exatamente pela música, que já foi mais que bem discutida, mas a peça da qual ela faz parte. Como perguntei da última vez, alguma dúvida de que vai ser um sucesso? Só o boca-a-boca gerado pela música (e vídeo) já garantiu altos níveis de expectativa – e é por isso que o trabalho (que deve se chamar “Se piorar estraga”) entra na Curva, justamente no buchicho. Junto com Feist. Quem?

Bem, se você reparar direito na curva, vai ver que a temporada está tão boa para a música que deu para colocar uma cantora em cada categoria. Feist, a artista canadense da hora, promete conseguir mais espaço de mídia que o Arcade Fire – um feito impressionante! Num estágio anterior, Becky Starck, cantora do Lavender Diamond, já é musa do circuito “under the radar” (“abaixo do radar”) – seja um dos primeiros a ouvir.

Logo logo ela vai estar arrancando críticas tão boas quanto Regina Spektor – comentada aqui no início deste ano, e que agora teve seu disco “Begin to hope” lançado no Brasil. E pode até chegar no patamar de Bebel Gilberto – que, para divulgar seu novo disco, o bom “Momento”, está a um passo de vender a alma… Mas como a gente gosta muito dela… está desculpada. Já Amy Winehouse passou um pouco do ponto – não dá mais para ser a queridinha do circuito alternativo quando… bem, todo mundo que você conhece fala que a adora! Alternativa? Acho que não.

E a pobre Lily Allen, está na ressaca: não conseguiu emplacar mais nada além de “Smile” e parece condenada a repetir eternamente aquele refrão que, se você reparar bem, vai ver que não cabe direito na frase musical… Ou quem sabe ela se reinventa para o próximo disco, como Joss Stone, que, quando todo mundo pensou que ela ia seguir o caminho de Macy Gray, lá vem ela com um álbum, o ótimo (e ironicamente batizado de) “Introducing Joss Stone”. Passou para a ressaca da ressaca.

E existe vida fora dos vocais femininos. Os próprios Los Hermanos, depois de anunciar o “hiato indefinido”, despertou compaixão até nos críticos mais ferrenhos – alguns até, como já ouvi, estão pensando em ir ao show de… “despedida” deles. Por isso, estão juntos a Joss Stone.

No campo dos livros, o sucesso merecido da estação é o de Nora Ephron, com seu “Meu pescoço é um horror”. E olhe que não são só as mulheres com mais de 50 anos que estão lendo não… Tomara que todas as pessoas que estão ainda inebriadas com a farta literatura sobre o Oriente Médio (Afeganistão, Iraque e cercanias) saiam desse transe e comece a devorar outras coisas – como Ephron!

Quem acompanha a cultura paulistana já está quase saturado de “eventos” que envolvam o universo da praça Roosevelt – da qual o grupo de teatro Os Satyros – é o maior expoente. É animador perceber que aí pode haver um esboço de uma estética, de uma linguagem – e, quem sabe, até de um movimento. Mas, só lembrando, quantidade, não é qualidade…

Esse critério, da quantidade, vale também para os filmes brasileiros em cartaz. Esta semana, contei seis num roteiro de jornal de São Paulo – fora os documentários (três), e fora “Xuxa gêmeas”. Coisas médias e coisas indiscutivelmente boas – e digo isso baseado em comentários que ouço (e que são sempre o termômetro para essa Curva), pois ainda não vi todos. Mas quem está vendo? Será que a produção nacional chegou a um ponto de saturação?

Pergunte à série “Heroes”… A avalanche de mídia americana parece ter influenciado os órgãos de comunicação daqui também – para não falar dos fãs… É legal – não brigue comigo. Mas entre isso e “Lost”… Bem, não quero começar a Terceira Guerra Mundial…

Encerro apenas registrando que apenas alguns dias depois de ter comentado aqui sobre a revista literária “Granta” (que saiu com um número especial sobre novos escritores americanos), veio a notícia de que ela vai ganhar uma edição em português a partir do segundo semestre. Uma coincidência, claro. Mas uma coincidência feliz.

Como os “mais chegados” já sabem, a Curva é uma obra aberta. Portanto, o convite do título acima é de duas mãos: não só você pode vir tomar inspirações nela, como pode também sugerir alguns itens – desde que, para não cutucar os leitores mais pudicos (ou os mais… hummm… cultos?), não seja uma contribuição para ampliar ainda mais (e pego a expressão de um dos comentários favoritos dentre os que recebi esta semana) a “seara da desinteligência”… Preciso registrar por escrito que a última frase contém ironia? Caros, um pouco mais de humor, que tal?

O maior fenômeno cultural da temporada

seg, 21/05/07
por Zeca Camargo |
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Homem-aranha? “High school musical”? Edson e Hudson? “O hospedeiro”? “Paraíso tropical”? Marley? Shrek? Alemão? Nada disso.

, aquele que tem dominado todas as rodas de conversa (das corretoras de valores aos recreios do ensino básico); aquele que é assunto nos salões de cabeleireiro, nas festas de casamento e nas reuniões de pauta dos mais conceituados órgãos de comunicação do Brasil (e, quiçá, do mundo); aquele sobre o qual eu nem vou precisar me debruçar mais de 5 mil toques (porque não tem muito como me alongar sobre o óbvio); aquele que, se você sentou na frente de um computador e entrou na internet nas últimas duas semanas (e, se você está lendo isso, é claro que você se encaixa nesse grupo) certamente já cruzou; aquele que faz o “tapa na pantera” parecer algo da era mesozóica; aquele que você, antes de ver o vídeo, apenas recebeu o arquivo sonoro e ficava imaginando quem teria feito aquilo; aquele que, se você quiser rever (“rever” sim, pois eu acho quase impossível que você ainda não tenha visto) vai ter que tirar as crianças de perto – ainda que, muito provavelmente tenha sido uma criança de menos de dez anos que tenha te apresentado isso; enfim, aquele fenômeno cultural que tem feito milhões de brasileiros chorarem de rir é simplesmente uma música de um verso só. Já sabe qual é, não sabe? Vou dizer, hein… (olha as crianças!): “Vai tomar no cu”.

Ruborizado? Ruborizada? Devo informar que você é a exceção. A totalidade das pessoas com que troquei informações sobre esse, digamos, tema musical, não recebeu a mensagem com o menor choque – até porque é simplesmente, por mais careta que você seja, é impossível não se desarmar quando a voz poderosa anuncia pela primeira vez… “Vai tomar no cu”. Mas, pode ser que você tenha chegado hoje de uma sonoterapia de seis meses numa cápsula submarina a 600 metros de profundidade do mar congelado de Marte e não saiba do que se trata. Para você, segue aqui uma descrição rápida.

Uma introdução brega (não o brega do Pará – apenas brega) anuncia o pior: mais uma balada açucarada para empestear as FMs. Geralmente, se você está ouvindo com um amigo que já conhece a “canção”, ele pede paciência – vale a pena esperar… De repente, sem aviso, a voz e o verso. Sua primeira reação – óbvia – é: “não foi isso que eu ouvi”. O ritmo lembra um “soul” antigo – quase um gospel. Você acha que é uma versão, que você já ouviu aquela música antes – mas o que você está reconhecendo não é a melodia, são as palavras. E não vai dizer que você nunca as disse em pensamento ou mesmo em voz alta. Hoje! Você sabe que você fala isso a toda hora – sabe que ouve isso a toda hora! O que você não consegue entender é como aquilo virou… uma canção. E boa!

Escrevi há pouco que ela é feita com um verso só, mas na verdade há uma variação: “vai tomar no meio do olho do seu cu”. E com isso, apenas com isso, ela se desenvolve. Quer dizer, você só percebe esse “desenvolvimento” todo quando a escuta pela segunda (ou terceira) vez, porque da primeira (ou segunda) você está rindo tanto que não consegue pensar em mais nada. No meu caso, a única coisa que me vinha à cabeça durante os breves minutos da primeira (e da segunda) audição era: “o que é isso? o que é isso? o que é isso?”.

Isso é humor – puro humor. Sensacional. Brilhante. Inesperado. E – é preciso acrescentar, pois boa parte do que recebe o nome de humor por aí não é digno desse adjetivo – engraçado! Não me venha com esse discurso besta de que é baixaria. Baixaria é a metade dos spams que eu recebo na minha caixa postal. Isso é humor. E vamos dar o crédito logo, porque a idéia – que, ao que parece, nunca foi concebida com a intenção de se tornar um “hit” dessas proporções – é de uma comediante chamada Cris Nicolotti (descobri mais sobre ela nesta entrevista), que começou a improvisar o que seria um “esboço do sucesso” nos ensaios de uma peça que ainda nem estreou e vai se chamar “Se piorar estraga”. Alguma dúvida de que vai ser um sucesso?

Como prometo a mim mesmo, não vou gastar nem 5 mil toques (sem espaços!) com um assunto que basta você ouvir para entender tudo.

E prepare-se, pois há duas semanas esse mantra não me sai da cabeça – e lá deve ficar por um bom tempo. Aliás, isso não sai da cabeça de ninguém. Logo no início da “febre”, ainda era legal, quando alguém entrava na sala, você virar para a pessoa do lado e, em sinal de “apreço” a quem chegava, cantarolar, sem as palavras, apenas a frase musical: “lá lá lá lá lá…”. Algumas vezes chegamos ao requinte de apenas levantar os braços e ondulá-los de um lado para o outro em silêncio, como se só a coreografia bastasse para… passar a mensagem…

Mas agora não dá mais – todo mundo já conhece, já deixou de ser um código… Já está difícil até fazer piadas, ou melhor, fazer variações de piadas sobre o tema. Na tentativa pífia de ser original, deixo você hoje com a melhor sugestão de uso da música (fora dos palcos, claro): colocar em espera telefônica. Já pensou?

- Posso falar com o Glayson
- Claro, só um minuto… (entra a música…)

Se tiver uma idéia melhor (não vale “deixar nos comentários do blog do Zeca” – já pensei nisso antes, mais criatividade, por favor!), mande pra cá. E quinta-feira nos encontramos de novo para mais uma Curva das Expectativas Flutuantes – quem diria, tanta coisa acontecendo!!

Jovens escritores – agora ainda mais jovens!

qui, 17/05/07
por Zeca Camargo |
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O título acima não é meu. É emprestado do último número da “Granta”, provavelmente a revista literária mais importante atualmente para quem escreve na língua inglesa. Ou talvez seja melhor chamá-la de influente – já que outras publicações competem na categoria de importância, como a “Paris Review”, para citar apenas uma. Mas a influência da “Granta” é inegável, especialmente se você pensa em novos escritores. Especialmente se você pensa na lista que eles publicam a cada dez anos de “melhores jovens escritores”. E a mais recente delas, que envolve autores americanos, acaba de sair.

É a segunda vez que a revista faz essa seleção – segunda, digo, com nomes americanos. As listas com escritores ingleses já são três (1983, 1993, 2003) e, embora a tentação de comentá-las seja forte (quem sabe uma outra hora), basta dizer, para comprovar o peso que a “Granta” tem, entre seus escolhidos no Reino Unido estão Martin Amis, Salman Rushdie, Ian McEwan (todos esses apontados em 83), Kazuo Ishiguro, Will Self, Allan Hollinghurst, A. L. Kennedy, Hanif Kureishi (93), Monica Ali, David Mitchell e Zadie Smith (03). Já a primeira lista de americanos trouxe – e trouxe antes de eles se tornarem sensações literárias, é bom lembrar – Jonathan Franzen, Mona Simpson e Jeffrey Eugenides.

A maior parte desses autores já é conhecido do público brasileiro que conserva essa arcaica teimosia de comprar – e ler – livros (se minha consulta na internet foi competente, acho que só Mona Simpson e A. L. Kennedy ainda estão inéditas por aqui – se bem que o melhor de David Mitchell, por exemplo, ainda não ganhou uma tradução para o português). Cada um deles merece – nem precisaria dizer isso – um post neste espaço só para si (do virtuosismo arquitetado de Franzen à sofisticada elaboração narrativa de Mitchell; do surrealismo de Will Self à melancolia de Kureishi; da precisão de Ishiguro à contemporaneidade de Zadie Smith – essa, só estou esperando o lançamento de seu último livro, “On beauty”, no Brasil para dedicar-lhe um espaço). Mas, como estou sempre brigando (comigo mesmo!) com o tamanho dos meus textos, vou ficar apenas na última lista – a de novos autores americanos.

Já aviso que poucos deles foram lançados até agora no Brasil – o que é natural, uma vez que muitos deles nem sequer foram publicados comercialmente mesmo nos Estados Unidos. Por que falar deles então? Bem, pelo simples prazer de ter contato com esses nomes antes de eles se tornarem, como eu já brinquei acima, sensações do mundo literário. Em vésperas de Flip, nada como poder jogar numa conversa a noção de que você já tinha ouvido falar desse ou daquele convidado – e não precisa agradecer… esse é um serviço a mais deste blog… Ironias à parte (e tenho que acrescentar, para não ser injusto, que a próprio Flip antecipou alguns nomes que a revista selecionou dessa vez – já chegamos lá), aqui vai um breve comentário sobre essa “nota de corte” – que é a lista da “Granta”.

O primeiro – e irresistível – exercício é tentar adivinhar quem dali realmente terá algum futuro e quem é apenas um entusiasmo passageiro. Os nomes que citei acima como prova do bom faro – leia-se “julgamento” – da revista, foram, claro, os que “deram certo”. Alguém se lembra de Jeanette Winterson ou Lawrence Norfolk (lista inglesa de 93)? Ou de Melanie Rae Thon – ou mesmo Sherman Alexie (lista americana de 96), alguns dos nomes menos em evidência das listas anteriores? A seleção de melhores autores americanos desta década, como tudo na cultura desses nossos tempos tão midiáticos, é inevitavelmente passageira – e ninguém liga muito, já que o jogo é menos conferir o que deu certo do que esperar por uma nova lista de novidades… Nem por isso não vale a pena se debruçar sobre ela.

Mas antes vamos só esclarecer o título acima, que se refere à faixa etária dos escritores escolhido dessa vez. Na introdução do volume, o editor da “Granta”, Ian Jack explica que o teto de 40 anos foi esticado… para baixo! Ele faz uma divertida – se não caricata – argumentação de que há quatro décadas, a imagem do escritor era um senhor de capa de “tweed” fumando um cachimbo, e que as palavras “jovem” e “autor” faziam uma combinação pouco usual. Assim, nas primeiras listas, incluir alguém abaixo dos 40 anos era, de fato, uma ousadia. Hoje porém, com a velocidade (e a voracidade) das editoras em descobrir novos talentos, essa idade foi reduzida (ainda mais) para 35 anos. Nenhum autor ali selecionado nasceu depois de 1970.

Jovens, então. Mas bons?

Quem sou eu… Um leitor ávido, posso garantir. E alguém que não é facilmente impressionável – apesar de alguns textos aqui desse blog indicarem o contrário… Mas, sério, para chamar minha atenção, é bom caprichar… E foi com uma atenção aguçada que “ataquei” os fragmentos que a “Granta” oferece para justificar sua seleção – trechos de obras em andamento, contos inéditos e, em alguns raros casos, algo já publicado, mas com pouca visibilidade. “Teasers”, para usar uma expressão em inglês. Às vezes tão breves que eu me perguntei se era possível julgar o autor por uma amostra como aquela.

Akhil Sharma, por exemplo. De antemão, tenho uma boa vontade enorme com autores de referência indiana (como vários autores dessa nova lista, ele não nasceu nos Estados Unidos, mas cresceu lá e escreve principalmente em inglês – o que justifica sua inclusão), por todo o prazer que eles já me deram (e que já citei brevemente aqui). Mas “Mother and son”, o trecho do seu próximo livro, não me pareceu original. Tampouco Nell Freudenberger, uma das novas autoras mais comentadas na imprensa americana (seu romance de estréia, “The dissident”, ainda inédito no Brasil, provocou furor por lá – contra e a favor), me cativou com o conto “Where east meets west”. Ainda nas decepções, outra relativa aclamação literária americana, Maile Meloy, nem me fez ler seu conto “O Tannembaum” até o fim.

Mas, para não gastar mais espaço com o que não vale a pena, aqui vão algumas das boas surpresas – algumas nem tão surpresa assim, uma vez que já tiveram livros bem recebidos aqui no Brasil. Jonathan Safran Foer (foto ao lado), por exemplo, com seu genial “Tudo se ilumina” – e o não menos interessante “Extremamente alto e incrivelmente perto”. Ele vem com um curto e enigmático conto, “Room after room” – exatamente o que se esperava de alguém tão inesperado quanto ele. Ou Nicole Krauss – não por acaso casada com Foer e que os brasileiros já tiveram a oportunidade de conhecer com “A história do amor”. “My painter”, seu breve conto inédito é de uma rara perfeição, contendo, em poucas páginas a mesma torrente de nuances que ela mostrou no seu romance de estréia. Para falar de mais um que os brasileiros podem conferir, Uzodinma Iweala, que aqui já teve seu “Feras de lugar nenhum” traduzido (comentado aqui) dá um drible nas expectativas e escreve sobre outro universo (não o de uma África devastada por guerras sem sentido) no seu conto “Dance cadaverous”, publicado pela “Granta”. Não por coincidência, esses três autores vieram ao Brasil no ano passado – justamente na Flip – e, se não são exatamente “recém-descobertos”, sua presença na lista ao menos confirma a promessa de um futuro literário.

Mas vamos às novidades – mesmo! Sempre deixo o melhor para o final e descubro que, claro, já estou me alongando demais. Geralmente me arrependo… mas no post de hoje, a mera listagem desses autores que escolhi como favoritos, dentro da seleção da “Granta”, deve funcionar bem no sentido de provocar sua curiosidade. E é melhor eu ser breve mesmo pois se eu começar a falar, por exemplo, das qualidades de Daniel Alarcón (nascido no Peru, mas criado nos Estados Unidos), extrapolaria – e muito – este espaço. Estou lendo também seu livro de estréia. “Lost city radio” (ainda inédito por aqui) – vamos ver se consigo falar melhor dele alguma hora. “The king is always above the people”, a amostra oferecida, é a melhor abertura que essa seleção poderia ter.

Rattawut Laspcharoensap (nascido nos Estados Unidos, criado na Tailândia) justifica os rumores de talento emergente que conquistou entre os americanos. “Valets”, sua participação na “Granta”, é curta e sedutora – e já me fez encomendar pela internet sua coleção de contos “Sightseeing”. Fiz o mesmo com “The shell collector”, livro de Anthony Doerr, que me fisgou com a secura, a precisão e o suspense de seu conto “Procreate, generate”. Gabe Hudson, que já tinha um certo “pedigree” por sua colaboração com a McSweeney’s (talvez a segunda revista literária mais influente para novos autores de língua inglesa), superou todas as expectativas com “Hard core” – um trecho de seu próximo livro “American Buddha”.

Menções honrosas ainda a ZZ Packer (mesmo descontando o “hype” em cima dela), Yiyun Li, Christopher Coaker, Jess Row. Os outros… Bem, são 21 “jovens” autores… quem dera você tivesse mais tempo para me acompanhar. Queria ainda discutir a possibilidade de fazer uma lista dessas com autores brasileiros, falar um pouco mais sobre o formato de conto, repescar mais alguns nomes das listas antigas da “Granta”, fazer um balanço mais ponderado – mas hoje todo mundo anda tão sem tempo… Quem sabe em 2017?

Crédito da foto de Jonathan Safran Foer: Walter Craveiro/Divulgação Flip

Tudo e um pouco mais

seg, 14/05/07
por Zeca Camargo |
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Eu tenho uma teoria de que os Beatles fizeram muito mal ao experimentalismo no pop. Antes de você puxar seu revólver, deixe-me desfazer um possível mal-entendido. Os Beatles fizeram muito bem ao experimentalismo no pop. Eles enveredaram por terrenos, texturas, misturas, técnicas, sons e cores (!) que ninguém até então – pelo menos ninguém com tanto poder para influenciar o gosto musical de multidões – tinha ousado explorar. E eu (assim como mais de um bilhão de pessoas) sou extremamente grato por isso. Infelizmente, porém, eles construíram um patamar tão alto – e tão sagrado – que ficou impossível para qualquer outro artista superá-los. Ou melhor, ficou impossível para qualquer artista que veio depois deles ser reconhecido por qualquer conquista nessa área.

A culpa é menos dos Beatles do que de seus fãs – especialmente dos fãs que também são jornalistas especializados em música. Uma espécie de barreira intransponível foi criada por eles separando o quarteto de qualquer outra manifestação criativa pós-anos 60, como uma blindagem eterna para preservar a reputação de uma banda que – vamos combinar – não precisa, nem nunca irá precisar de nenhum artifício para ser considerada uma das maiores de todos os tempos.

Dito isso, vamos retornar à minha teoria. Pobre do artista que resolveu inventar qualquer coisa depois de 1969… E não foram poucos. Eles sabem o quão difícil é ser aclamado por experiências musicais inéditas. O adjetivo é importante, uma vez que, seguindo a linha de raciocínio anterior, é inegável que os Beatles experimentaram muito, mas muito mesmo. Mas não tudo. Sempre existe algum caminho novo, inédito, para traçar, e o que eu acho mais fascinante na música – um dom para o qual não tenho o menor talento, como já confessei várias vezes, a não ser o de escutar – é a capacidade dela sempre se reinventar. Por mais que Paul e John tenham esticado os limites da exploração sonora – ok, pode dar um pouco desse crédito também ao George, mas você, Ringo, desculpe… – esse é um campo que, felizmente, pode se expandir indefinidamente. Especialmente quando temos um mundo tão variado como este nosso à disposição.

(Parênteses importante: este não é um manifesto em defesa da “world music”. Tanto quanto David Byrne, eu tenho um certo problema com esse rótulo – e se você quiser saber exatamente que problema é esse, afine seu inglês e confira este texto. Assim, tudo que eu escrever daqui para a frente não é em defesa dos povos “exóticos” – aspas propositais – que habitam os confins da Terra, mas sim para exaltar o talento de quem sabe explorar toda a sonoridade mundial)

Nos quase 30 anos em que eu acompanho a música pop (e pode colocar aí algumas décadas a mais, já que fui beber – ainda que goles discretos – em fontes tão antigas quanto o começo do século 20), vários foram os exemplos de artistas que mereceriam um crédito bem maior do que tiveram por suas experiências. A lista, insisto, é longa, e se eu começar… mal vai sobrar espaço (e fôlego) para falar do novo álbum da Björk – que é o objetivo deste post.

Já vamos entrar em “Volta” – o nome desse trabalho. Não resisto, porém, em citar apenas um grande injustiçado nessa categoria que podemos batizar de “alquimistas do pop”. Ele é Malcolm McLaren. Ele mesmo, responsável, entre outras coisas, pelos Sex Pistols e, ainda que indiretamente, por algo mais contemporâneo – algo até que muitos prefeririam que nunca tivesse acontecido: T.A.T.U. (embora eu ache “All the things she said” uma das pérolas do pop desta década). Mas seu trabalho mais interessante é um disco chamado “Duck rock”, de 1983. Não era nascido? Nem tinha idade para ouvir música que você mesmo escolhesse? Bem, vou descrever rapidamente: é genial.

Eu acabava de completar 20 anos e achava que a, então recente, “new wave” tinha resolvido meus conflitos musicais dos anos 70, quando meu gosto se dividia igualmente entre o punk e a “disco” – um dia falamos mais sobre esse período tão… turbulento. Mas aí chegou Malcolm McLaren e bagunçou tudo, misturando o som dos DJs nova-iorquinos com percussões da África do Sul, música country com “new grooves”, merengues com ritmos para pular corda, funk com vocais tribais – isso para dar uma idéia bem superficial do que é o álbum. Nesses anos todos (só lembrando, estou falando de um trabalho lançado há 24 anos!), nunca deixei de me surpreender quando escuto “Duck rock” – achei um site brasileiro vendendo cada faixa do disco por R$ 2,49, uma pechincha… Se não souber por onde começar, tente “Soweto”.

E, por falar em surpresas, eis que, na semana passada, me deparo com “Volta”. Foi um encontro forte – e ainda não estou falando da música… Refiro-me à capa do CD (que dificilmente será a mesma no Brasil – comprei o meu em Chicago): um fundo vermelho chapado, com um adesivo da própria Björk vestida de… – eu sei lá do que ela está vestida! Uma noiva psicodélica de pés gigantescos? Uma maçã lisérgica e descalça com um véu? O que é aquilo??? Ao abrir a capa, mais imagens incompreensíveis: fogo, bordados, pintura tribal, plástico (isopor?), lãs, cabelos – tudo misturado. E, ainda assim, tudo tão simples, quando você começa a descobrir as músicas.

“Volta” é – e digo isso sem hesitar – o trabalho mais maluco da tal alquimia que os Beatles… “inventaram”. O adjetivo aqui está longe de ser pejorativo – é um elogio rasgado, uma aclamação. O álbum não é só mais complexo do que qualquer coisa que foi feita nos últimos 40 anos, mas é ainda um oráculo de como a música deve ser no futuro – e estou falando de um futuro próximo (a música, especialmente o pop, infelizmente não vai ser assim no futuro próximo, mas não custa desejar isso…).

“Earth intruders” é a primeira faixa e um belo cartão de visitas. Um som, que parece de um exército marchando, cresce para uma percussão vagamente africana, e logo entra o vocal sempre bizarro (e bem-vindo) da cantora, embalando o que parece uma canção infantil, até que o ritmo fica mais forte, surgem vocais femininos do além, Björk reduz para um de seus trinados – e tudo é assinado com uma espécie de xilofone de Marte. Isso, em pouco mais de um minuto e trinta segundos – a música tem a duração de 6m30s, e termina com apitos de navio. Antes mesmo de a próxima faixa começar, você já está tão atordoado com as referências musicais, que chega a duvidar que ela possa vir com mais alguma coisa realmente surpreendente. Ah…

Aí a avalanche continua com uma banda de metais, os vocais de Antony (sim, do Antony and the Johnsons), um cravo (de cordas), um poema de Fyodor Tyutchev (tirado de um filme de Tarkovsky), vários instrumentos japoneses não-identificados (e a definição de “japoneses” aqui é bem vaga), trechos a capella, momentos urrados, possível gamelão, possível pandeiro, distorções variadas, gritos de guerra (“Declare indepence!”) – e tudo isso identificado (se é que “indentificado” é o verbo correto) sem nem olhar os créditos… A escrita fina traz algumas pistas (em nomes como Timbaland, Mark Bell, e o inesperado grupo congolense Konono No.1) e outros mistérios (“kora”, “likembes elétricos”, código morse – desafio você a identificar onde ele é usado na faixa “Wanderlust”!). E o desfile sonoro não pára.

“Volta” tem tudo e um pouco mais. E esse tudo é de uma exuberância que só faz renovar minha crença nas infinitas possibilidades de criação humana. Talvez você já esteja me chamando de exagerado. Tenha em mente, porém, que você está me julgando sem antes ter ouvido essas músicas. Depois de passar por essa experiência, garanto que vai achar que fui comedido. Cada detalhe desse novo trabalho de Björk é tão elaborado que não existe elogio rococó demais para descrevê-lo. Sem falar que, se essas são as músicas nas versões originais, imagine o que vem de remix por aí…

Já estou aqui no limite que eu mesmo me imponho de tamanho de texto e me sinto totalmente tentado a descrever pelo menos mais uma canção de “Volta”. Espero que você me acompanhe, porque “My juvenile” fecha o disco e, curiosamente, é de um minimalismo que contrasta com todo o resto das canções – e é uma pequena obra-prima da declaração de amor cantada. Não espere um refrão meloso, nem uma melodia que faça sentido: entre tantos sons que aparecem e somem sem avisar, o que fica são os vocais ecoantes de Björk e as interferências sutis de Antony. As vozes que se entrelaçam no verso simples do título são capazes de ficar na sua memória por horas, mesmo depois de a bateria do seu iPod ter se esgotado de tanto você apertar o comando “repetir”.

“Volta” é mais um marco dessa história tão mal contada do experimentalismo no pop. Não é certamente o marco final – já que, como eu mesmo disse, essa é uma aventura infinita. Mas é refrescante ver que, numa selva de baladas “à lá American Idol”, sub-emos em português, variações sobre o tema Beyoncé, dubs inúteis e folks de mentira, que permeiam nosso cenário musical, tem alguém que nunca se cansa de ir além para trazer o novo.

Björk “forever” – e Beatles também!

O dia em que eu fiquei mais velho. Mesmo.

qui, 10/05/07
por Zeca Camargo |
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Eu deveria só entrevistar gente da minha idade. Ou não… Esse é o dilema que encaro comigo mesmo, enquanto escrevo este post daqui de Chicago, no Estados Unidos, onde vim entrevistar uma banda chamada Arctic Monkeys. Acabo de chegar do show deles, num teatro caindo aos pedaços – construído por volta dos anos 30, no século passado – mas que servia como um estupendo cenário decadente para a pouco mais de uma hora de performance que acabei de testemunhar. Foi o tempo que bastou para que o Arctic Monkeys terminasse um involuntário e sutil processo de me deixar ligeiramente arrasado, iniciado no meio da tarde, durante a conversa com eles. Já chego lá.

Antes porém, um pouco do clima do show. A primeira coisa que me impressionou foi a variedade da platéia, fácil de identificar nos minutos que antecediam a entrada deles no palco. Pais barrigudos de cerveja levavam seus filhos pré-adolescentes para um programa “familiar”. Meninas de pele muito branca e cabelo muito preto se espalhavam estrategicamente pelos dois andares do Riviera (o nome do teatro), como que para dar um clima gótico – ligeiramente fora de sintonia com a própria banda que estava prestes a tocar. Grupos de amigos na faixa dos trinta anos comentavam a gafe da semana do presidente Bush, quando, num discurso de boas vindas especialmente para receber a rainha Elizabeth, ele se referiu a última visita da monarca por aqui (Estados Unidos) como se fosse em 1776 – data da independência americana -, e não meros 200 anos depois, em 1976, quando eles comemoraram o bicentenário da data. O detalhe da conversa é importante, pois revela uma facção do público relativamente informada – e não exatamente um bando de roqueiros temporões, que foram lá só para tentar entrar na onda do que o pessoal com uns vinte anos a menos que eles estava ouvindo. Mas tinha mais.

Meninas desavisadas (como aquelas que a gente via nas fotos do show de Jack Johnson ou Ben Harper no Brasil) estavam vestidas demais (e maquiadas demais) para o evento que seus namorados – ou candidatos a namorados – inadvertidamente as levaram. Muitas usavam o acessório da temporada – aquele cinto largo, por vezes brilhante, com um fivelão, usado no meio da barriga como uma espécie de espartilho (já fazendo seu estrago em varias silhuetas também aí pelo Brasil). Encontrei adolescentes que pareciam conservados no formol desde a época do “grunge” – um deles irritantemente parecido com o que seria um filho de Krist Novoselic, o baixista do Nirvana. E vi até um garoto que se parecia muito comigo aos 18 anos – talvez aos 15…

Enfim, um “mix” saudável de pessoas que haviam pagado a “bagatela” de 25 dólares (pouco mais de R$ 50,00) para estar lá . Enquanto divagava sobre o quanto esse mesmo ingresso custaria no Brasil – que vive sob a maldição das carteiras de estudante fajutas -, sou surpreendido por uma música clássica que invade o espaço – um furioso quarteto de cordas que cumpre com louvor a missão de irritar os fãs da banda. Assim, quando ela entra, é aclamada com gritos de quem recebe o Salvador. Merecidos, diga-se.

Porque eles são bons. Muito bons. Irritantemente bons. E você sabe que eu não gosto de shows ao vivo…

Eu escutei o segundo álbum do Arctic Monkeys, “Favourite worst nightmare”, há apenas alguns dias, meio como lição de casa – aquela que a gente faz quase que automaticamente quando está se preparando para uma entrevista. Talvez a obrigação de escutá-lo tirou um pouco do prazer das músicas – que, quando eu ouvi ao vivo, pareciam transformadas. Como descrever o conjunto? Bem, vou poupar aqui comentários sobre a nova faixa “Fluorescent adolescent” (e ganha um abraço forte quem acertar como Alex Turner, o vocalista da banda, pronuncia esse título…). Os elogios não dispensáveis, uma vez que essa é, desde já, e ao lado de “Relax (take it easy)”, do Mika (já comentado aqui), uma das grandes faixas pop de 2007 – se não da década! Não por coincidência ela é também um dos pontos altos do show, superada, talvez, apenas pela pauleira de “Brianstorm” (também do disco novo) e pela genial “I bet you look good on the dancefloor” – que eles provavelmente estavam tocando pela milésima vez, mas com uma energia de uma estréia.

Vou pegar justamente por aí, pela energia, para tentar explicar o que se passou comigo nessa tarde antes do show, na entrevista. Nada que eles mostraram naquele encontro, dominado por uma timidez generalizada, indicava que eu veria um show poderoso como aquele. Quando eles estavam ali na minha frente, sentados, os quatro – Alex Turner, Matt Helder (bateria), Jamie Cook (guitarra) e Nick O’Malley (baixo) -, minutos antes de começar a conversa, eu mal podia acreditar nas caras que estava vendo. “Crianças”, pensei – do alto dos meus 44 anos. Não era, claro, a primeira vez que eu entrevistava uma banda jovem – mas talvez fosse a primeira vez que eu entrevistava alguém tão jovem. Crianças! – eu não parava de pensar. E, durante toda a entrevista, era exatamente isso que me cruzava a cabeça o tempo todo: o que eu estava fazendo ali conversando com aquelas crianças?

A resposta fácil: eu estava lá para conhecer melhor os caras que fazem um som muito bom. Meu questionamento, porém, era um pouco mais profundo (algo que eu havia começado num dos posts sobre Bob Dylan, e que pretendo continuar em breve). O que eles poderiam me contar que iria realmente me surpreender (e surpreender o público – que, em última análise, é o destino final de qualquer entrevista)? Sobre a vida na estrada? Sobre a ansiedade do segundo disco? Sobre a decepção com o “show business”? Sobre a ansiedade do terceiro disco? Sobre a importância da música para a reputação do Arctic Monkeys, que deve seu sucesso ao barulho que eles fizeram na internet? Sobre como é ter vinte e poucos anos?

De repente me vi, como em uma raras situação (e quem acompanhou meu relato de várias entrevistas no livro “De a-ha a U2″ sabe que foram raras): completamente desarmado diante de uma banda. De um bando de moleques! Veja bem… não uso o termo como uma ofensa. Eles foram gentilíssimos – quase dóceis. Eu diria até que bem treinados: por exemplo, quando perguntei se tinham planos de tocar no Brasil, Alex foi educado o suficiente para localizar nosso país na América do Sul.

Mas todas as vezes que a entrevista dava um hiato e eles começavam a conversar entre si, era como se os garotos voltassem a um universo muito particular – e muito mais divertido do que um papo com aquele cara bem mais velho sentado na frente deles. E eu não tinha como contornar isso. Aliás, pensando na situação agora, já de cabeça fria, não poderia ser de outra maneira: era eu que estava sim estragando o barato deles com as minhas perguntas (e olha que elas não eram ruins…). O que eu estava fazendo ali então? Como estava me sentindo?

Mais velho. Definitivamente mais velho.

Logo depois da entrevista, para matar o tempo até o show, fui passear numa enorme livraria (Borders) na frente do teatro. Totalmente por acaso, esbarrei no baterista, Matt, que estava ali, na seção de revistas. Ele, junto com outro amigo (que até então eu não tinha visto), folheava gargalhando uma publicação especializada – daquelas que tem “drum” (bateria) no título. E eu, como bem condiz com minha faixa etária, escolhia alguma revista entre as que tinham a ver com viagens. Nos falamos superficialmente – ele agradeceu pela entrevista e eu desejei um bom show. Mas eu não pude deixar de registrar esse sutil conflito de gerações.

Dali em diante, e numa velocidade cada vez mais rápida até o final da noite (onde então eu já não conseguia mais disfarçar o choque de encontrar um Alex tão apático na entrevista e tão energético no palco), todas essas idéias começaram a se misturar na minha cabeça. E o resultado é isso que você acabou de ler.

Tento disfarçar uma certo “incômodo existencial”. Afinal de contas, quero achar que ela chega um dia para todos. Vai chegar inclusive para você. Vai chegar para os quatro garotos do Arctic Monkeys. Mas hoje chegou para mim – e acho que até um pouco atrasado… Mas chegou – e agora eu tenho de aprender a lidar com isso. Quem sabe se eu começar a entrevistar só gente da minha idade… ou não…

(Todas essas reflexões saíram, me parece, um pouco mais intensas do que eu havia planejado. A culpa é de Björk, cujo o disco novo, “Volta”, estou ouvindo agora. As percussões absurdas, os sons inidentificáveis, as participações de Antony, do Antony and the Johnsons – tudo reverbera com tamanha força, que eu não vou ter outra saída a não ser comentar sobre isso neste espaço, na segunda-feira. Estou falando demais de música? Sinal dos tempos… Bom sinal, aliás…).

Los Hermanos e o filtro do iPod

seg, 07/05/07
por Zeca Camargo |
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Sabe aqueles relógios que aparecem em livros de biologia (pelo menos apareciam quando eu estudava biologia), que encaixavam a evolução da Terra e do homem, alguns bilhões de anos, numa circunferência só para mostrar que a presença humana nessa história é apenas uma ridícula fração desse espaço? Pois imagine quão ínfima, quase invisível, é a fatia correspondente ao tempo de vida do iPod… Nessa brevíssima existência, porém, o aparelho, como você mesmo talvez tenha concluído, já trouxe mudanças profundas no comportamento dos seres humanos – especialmente naquela subespécie em extinção, na qual eu me incluo: a que consome música.

Já me orgulhei muito de dizer, em entrevistas, que minha coleção de CDs superava os três mil títulos (sem falar nos mais de 400 discos de vinil…). Que bobagem… Faz tempo que eu não conto, mas já devo ter reduzido este número para algo bem próximo de dois mil – e a contagem, decrescente, continua (embora não a dos LPs)… Isso só foi possível, claro, graças ao iPod, capaz de, finalmente, fazer você ficar apenas com aquilo que gosta de um determinado artista. O formato de CD já era uma evolução sobre o vinil, no sentido de dar liberdade aos fãs de pular, sem traumas, aquelas faixas menos interessantes – “fillers”, como se diz em inglês, ou “recheios”, em português. Mas o iPod foi além: com ele, você nem precisa saber que essas músicas existem!

Eu, sempre o bom coração, ficava com um pouco de pena e acabava ouvindo tudo, álbuns inteiros, sempre na dúvida se aquelas músicas, pouco expressivas e muitas vezes indistinguíveis, eram composições de estimação do artista que, por esforço do seu autor, acabaram entrando no disco – ou se eram simplesmente algo que eles tinham colocado lá para justificar a cobrança daquele dinheiro todo por um disco com mais de dez faixas onde só uma ou outra valiam realmente a pena serem ouvidas mais de uma vez… Mas, com o iPod, isso foi resolvido! Culpa por deixar uma pobre canção abandonada? Nem pensar!

O aparelho (não é incrível como essa palavra parece pouquíssimo apropriada, quase anacrônica, para descrever um iPod – sendo que ele não é nada além disso mesmo, um aparelho?) é especialmente útil quando olhamos para a carreira de uma banda querida que decreta um recesso por tempo indeterminado. Como o Guns N’ Roses por exemplo. Ou como o Los Hermanos. Sei que hordas de fãs ainda estão se recuperando dessa notícia – alguns até fracos demais para pesquisar alguma coisa sobre eles na internet… Se você chegou até aqui, no entanto, é porque passa bem – e suportou até ler novamente sobre esse evento enigmático. Então me acompanhe.

Não há ironia no que eu acabei de escrever. De fato, lamento a separação (ainda que temporária – ou não… tudo é tão indeterminado…), pois a simples existência de Los Hermanos garantia, para mim, a possibilidade de debates interessantes sobre o pop – inclusive debates interessantes sobre a existência desses debates. Como com toda banda intrigante, os blocos de discussão se dividiam entre os fãs que entravam totalmente na viagem proposta pelos artistas e os que diziam que esse outro bloco estava apenas elogiando a roupa nova de um rei que desfilava nu. Quer coisa melhor que isso?

Sem necessariamente abraçar nenhuma dessas facções, acompanhei a trajetória deles (até aqui – é bom lembrar!!) com algo mais do que mera curiosidade. Era sempre bom encontrar alguma coisa genuinamente brilhante em um de seus álbuns – da mesma maneira que era divertido encontrar uma faixa onde eles davam de bandeja para seus críticos mais um motivo para chamá-los de pretensiosos. Talvez por nunca tê-los entrevistado – muito menos tido a oportunidade de ver um show deles ao vivo – recebi a notícia do hiato da banda como a de um sumiço de um cunhado… da sua prima: você sabe que ele vai fazer falta, mas não está exatamente disposto a dividir o sofrimento da ausência, nem a preocupação do que vai acontecer daqui para frente.

Achei, outrossim, que era hora de passar a obra do Los Hermanos pelo filtro do iPod: o que, afinal, eu queria ouvir deles daqui para frente, sem ter de pular nenhuma faixa? Muitas bandas (em recesso ou definitivamente dissolvidas) já passaram por isso na minha coleção: de Stone Roses a Pulp, de New Order a Everything But the Girl, de Legião Urbana a… bem, a Los Hermanos! Apliquei o teste e o resultado foi uma seleção bastante idiossincrática – como, aliás, eles merecem. Preparado?

Qual seria sua reação se eu começasse a lista com “Anna Júlia”? Ah… o horror! Mas não exagere… Você sabe que essa é uma boa música. Você sabe. Um dos piores videoclipes da história do pop brasileiro, é verdade – mas a música é boa. É ótima! E, pasme, ela faz mais sentido ainda no meio do contexto geral do álbum de estréia da banda, “Los Hermanos”. Sempre ficava meio constrangido com o constrangimento que os próprios “hermanos” sentiam ao ter de justificar “Anna Júlia” – mais ou menos como os Titãs, que durantes anos evitaram qualquer contato com “Sonífera ilha”. Qual o problema de ter feito algo tão… bom? É provável que alguns devotos mais radicais da banda, que repetem o credo que vêem nas entrevistas, já tenham abandonado esta leitura. É uma pena, pois eu ainda ia falar que, desse primeiro trabalho, que tem um exótico clima de “fanfarra punk” (seriam os metais?), eu coloquei no meu iPod: “Tenha dó”, “Descoberta”, “Azedume” (com seu breve e enxuto um minuto e vinte um segundos), “Onze dias”, e as duas grandes injustiçadas desse início de carreira do grupo, “Aline” e “Bárbara” – especialmente “Bárbara”, que faz a proeza de começar como se fosse Ramones, transformar-se em Gogol Bordello e terminar numas de Inspiral Carpets, com toques de Velvet Underground.

Bem servido desse disco de estréia, passo sem grandes arrependimentos por “Bloco do eu sozinho”. Para não dizer que rejeito por completo esse trabalho – que parece se esforçar ao máximo para provar que a banda não tinha nada a ver com “Anna Júlia” -, vão para o iPod, “Sentimental” e “Cher Antoine”. Por razões que eu mesmo desconheço, essas bateram.

Se as carreiras das bandas seguissem alguma lógica, eu deveria aproveitar ainda menos de “Ventura”, o terceiro álbum do Los Hermanos. Mas o contrário aconteceu: desse disco sofisticadíssimo (a partir do qual eu passei realmente a respeitar os caras), fico com todas as faixas – menos uma. Se fosse elogiar cada música aqui, teria de extrapolar meus padrões já nada econômicos no que se refere ao tamanho do texto. Vamos apenas comentar brevemente a originalidade de “Cara estranho”, o resgate de um pop antigo em “Deixa o verão”, o baião disfarçado (brilhantemente disfarçado) de “Além do que se vê”, a estranheza de “A outra” (na letra e na melodia), o lirismo de “O velho e o moço” (sempre me irrito quando algum crítico usa esse adjetivo, mas aqui, garanto, ele é mais que adequado), o “qualquer coisa” de “Conversa de botas batidas”, e toda a seqüência inicial do disco – quebrada apenas pela fraca “Do sétimo andar” (justamente, a única faixa de “Ventura” que não passou pelo filtro do iPod).

E assim chegamos ao complicado “4″ – complicado em mais de um sentido. Primeiro porque, depois de ter aperfeiçoado a arte de construir momentos pop impecáveis sem a muleta de um refrão, em “Ventura”, a impressão que eu tenho é a de que eles simplesmente desistiram do ofício. “4″ é uma bagunça sem graça, um monte de informação jogada para cima. E tudo fica ainda mais complicado quando você olha cada música de perto. Por exemplo, “Os pássaros” – um pastiche que lembra um clássico dos anos 60, “Viagem” (de João de Aquino e Paulo César Pinheiro), sem chegar aos pés do psicodelismo da letra do original, aliás, sem nem chegar aos pés da cafonice do original. “O vento”, que tem algo próximo de um verso memorável, demora demais para chegar até ele. “Horizonte distante”, “Sapato novo”, “É de lágrima”… nem os títulos se salvam. As duas únicas que foram para o iPod são “Paquetá” e “Morena” – ambas, agora que sabemos que o futuro da banda é incerto, ecoando como uma espécie de réquiem de um talento inegável para a poesia e para o inesperado que o Los Hermanos sempre mostrou.

Ao todo, vejamos, separei 25 músicas – mais ou menos um álbum e meio, quase dois -, que já estão à disposição no meu “shuffle”, sem susto de eu querer pular alguma delas. Gostaria de ter selecionado mais canções? Talvez. Gostaria de ter a esperança de ouvir um novo disco deles? Não sei. Mas que vou me deleitar com essas 25 faixas, não tenho a menor dúvida.

Foi um fim de semana agitado e variado musicalmente. Do meu encontro com o maestro e compositor italiano Ennio Morricone, passando pelo Skol Beats (que não fui, mas me contaram…), e chegando ao quebra-quebra no show do Racionais em São Paulo (hummm, meus dedos estão coçando…), não faltou assunto para escrever. E eu aqui discorrendo sobre Los Hermanos? Será que eu não tenho mais o que fazer? Você já sabe a resposta…

Um outro tipo de reportagem

qui, 03/05/07
por Zeca Camargo |
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Antes de mais nada, um esclarecimento – quase uma correção. No post anterior, eu sugeri que a febre de livros sobre o Afeganistão, Iraque e cercanias era tão intensa que não ia demorar muito até alguém lançar um livro com o nome de “Marley & eu a caminho de Kandahar”. Bem… tal livro já existe! Não exatamente com esse nome – e com um cenário que não é exatamente o afegão (mas sim uma cidade iraquiana, Faluja): “De Bagdá, com muito amor – um soldado e um cachorro na guerra do Iraque”, de Jay Kolpeman e Melinda Roth (Best Seller). Não li. Mas várias sinopses me informam que é sobre um cachorro encontrado por um grupo de fuzileiros americanos em uma casa suspeita e, apesar da proibição de manter qualquer bicho de estimação, eles o adotam e, em retribuição, o cão os “ensina” muito sobre a guerra, a vida, a morte – e, claro, o amor. Eu passo…

Passo, mas fico impressionado com a capacidade humana de inventar maneiras de reinventar as mesmas histórias. Mas, continuando na mesma região do planeta, passemos aos quadrinhos.

Foi com um certo atraso que encontrei, há alguns dias, numa livraria, um volume (de 2006) que quase comprei numa passagem recente pelo Beaubourg, em Paris (já descrita aqui). O motivo principal dessa visita eram outras exposições (Yves Klein e Tintim), mas, já que estava lá, por que não conferir uma pequena mostra paralela sobre repórteres quadrinhistas? Não sei se esse é bem o termo, uma vez que meu bom e velho corretor ortográfico se recusa a aceitá-lo. Mas minha dúvida já serve também para desarmar os fãs mais zelosos de quadrinhos sobre minha baixa intimidade com este universo – o que não deixa de me creditar para escrever sobre o assunto… (a última vez que enveredei nesse território, colocando o filme “V de vingança” na lista de um dos maiores micos de 2006, quase fui crucificado por defensores fiéis de Alan Moore, que obviamente ficaram indignados por eu ter manchado a reputação do filme – que, curiosamente, não saiu em nenhuma lista importante, nacional ou estrangeira, como “destaque do ano”… ah, a vingança, como os leitores da cruzada de V deveriam saber, é um prato que se come frio…).

Como um não-especialista assumido, o que me chama atenção em quadrinhos é a possibilidade de se criar uma narrativa cativante (como, diga-se é o “V de vingança” original) e diferenciada. Criança criada à base de gibis da Disney e de Mauricio de Souza (especialmente hipnotizado por um personagem chamado simplesmente de Louco), e mais alguns títulos obscuros – todos de terror – que eu achava no porão da casa da minha avó, em Uberaba (MG), não posso dizer que tive uma iniciação muito diversificada. Foi só muito tempo depois da adolescência que comecei a me interessar – ainda que perifericamente sobre o assunto (que acompanho, admito e insisto, de longe).

Tenho cá meus heróis – que vão de Glauco a Chris Ware (passando por Marjane Satrapi e Seth, entre tantos). Minha última remessa de uma livraria virtual incluía até uma coletânea de quadrinhistas americanos pioneiros (“Art out of time: unknown comics visionaires 1900-1969″), altamente recomendada, que provavelmente será comentada aqui em breve. Mas agora vamos falar de um volume chamado “O fotógrafo” (capa, ao lado), assinado por Didier Lefèvre (o próprio protagonista), Emmanuel Guibert (texto e desenhos) e Fréderic Lemercier (diagramação e cores). Ou deveria eu chamá-los de repórteres?

Afinal, a história de “O fotógrafo” foi a única que me chamou atenção na tal mostra paralela, “BD reporters”, no Beaubourg. “BD”, para os menos iniciados, é como os franceses chamada as histórias em quadrinhos – uma abreviação para “bande dessinée”. E “reporters”… bem, não é a falta de acento que vai te impedir de descobrir o que significa essa palavra em francês. Toda a exposição fazia uma ponte muito sutil com a dos 100 anos de Hergé, o criador do Tintim. Mas os cartunistas ali apresentados (um pouco a contragosto, vou usar “cartunista” daqui em diante, já que descobri sem querer que essa palavra – surpresa! – o corretor ortográfico aceita), com raras exceções, não me chamaram a atenção por qualquer inovação. Talvez tenha gostado do risco grosso e das cores fortes de Lorenzo Matotti. Ou da elegância de Loustal (se bem que o formato “caderno de viagem” está longe de ser uma novidade).

Mas quando vi o trabalho de “Guibert/Lefèvre/Lemercier”, fiquei verdadeiramente hipnotizado. Eram apenas algumas páginas expostas na parede, mas que me cativaram por longos minutos. Na loja do museu, tive de me segurar para não comprar todos os volumes (e acrescentar assim alguns quilos à minha bagagem), lembrando que sempre poderia encomendá-los depois pela internet – algo que estava adiando desde janeiro, até que encontrei aqui mesmo, em português, uma edição de “O fotógrafo” (lançada pela Conrad). Seria fácil começar elogiando o trabalho pela inclusão das fotos de Lefèvre, que se misturam aos quadrinhos. Só que, o que parece um truque fácil, no final se eleva à categoria de grande arte – arte gráfica, esclareço, antes que alguém torça o nariz…

Então vamos adiante, porque não são apenas as imagens – registradas numa expedição que o fotógrafo fez em 1986 com um grupo da ONG Médicos Sem Fronteiras, pelo interior do Afeganistão – que são estupendas. A história toda é contada com extrema economia – e com resultados exuberantes. Os desenhos são de rara elegância. E a diagramação… bem, digamos que, depois de ler todo o primeiro volume (quando serão lançados os outros???), fica fácil entender porque o crédito do diagramador está lá no alto com os outros dois nomes.

Caminhar Afeganistão adentro, partindo de Peshawar (Paquistão) e seguindo montanha acima (e abaixo) pode parecer apenas mais uma aventura ordinária – nesse nosso mundo já tão sem mistérios, de aventureiros tão “blasés”. Mas lembre-se que o ano era 1986, os russos (ou melhor, os soviéticos) ainda tomavam conta do país e tornavam a vida naqueles vilarejos, que já era dura, algo quase insuportável. Desse cenário devastador, “O fotógrafo” faz um retrato bonito, forte e honesto.

Os desenhos são econômicos (por isso, elegantes), como se não quisessem competir com os detalhes das fotos de Lefèvre. A narrativa é apaixonada, desde a descrição da agitação de Peshawar aos instantâneos de personagens reais como Najmudin (“Mais que bonito, impressionante”) e Juliette (“…à altura do seu papel, que não é simples…”). E todas as sequências “na estrada” são dramáticas (especialmente as travessias de despenhadeiros e os atendimentos médicos em povoados pequenos), sem serem piegas. Resumindo, na história de “O fotógrafo” você encontra tudo de bom que você espera de uma boa… reportagem!

Há uma grande onda de repórteres cartunistas – embora eu desconfie que as primeiras aventuras rotuladas como tal tivessem a intenção explícita de ser uma reportagem. Talvez fossem apenas documentos… Mas a riqueza de detalhes, o volume de informações e a importância do que esses artistas estavam descrevendo acabaram criando esse “novo” gênero.

Estamos bem servidos dele aqui no Brasil. A própria Conrad já lançou também vários volumes assinados por Joe Sacco (que também estava na exposição do Beaubourg). São relatos de conflitos não menos (quando não mais) turbulentos que esse do Afeganistão pré-Talibã. Dois desses volumes disponíveis no Brasil falam da guerra da Bósnia (anos 90) e outros dois sobre a questão palestina (se você acha que uma abordagem dessa, sobre um assunto como esse, é impossível, vá direto ao prefácio de “Palestina – uma nação ocupada”, escrito pelo José Arbex, que argumenta que tal proeza não só é possível, como “em certos aspectos, sua reportagem em quadrinhos é bem mais eficaz do que o tradicional texto jornalístico ou mesmo histórico/acadêmico”). Não são volumes tão bonitos quanto “O fotógrafo” – mas eles nem são para o ser. Nas seqüências, às vezes confusas, de Sacco, você encontra outro tipo de registro – algo muito mais cruel, mais “na sua cara” e (por vezes) mais chocante. Mas, se estamos falando de reportagem de guerra, as nuances não têm mesmo muito espaço – ainda mais em um quadrinho.

Na reprodução, Sacco – desenhado por ele mesmo – se pergunta onde fica a tenda da hospitalidade

Você pode até se perguntar sobre o que é mais eficiente: o impacto de Sacco, ou a transcendência de “O fotógrafo”. Mas se realmente precisar de uma resposta, então você está sem pistas para entender o caos que os noticiários despejam todos os dias no seu cotidiano – e que não é nada menos do que isso mesmo: seu cotidiano…



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