Maus meninos
A vontade de escrever sobre a nova novela de Gilberto Braga, que estréia hoje, é tão grande que estou quase tecendo aqui algumas linhas baseadas apenas nas chamadas. Os mais cínicos já estarão vendo nesta introdução uma ardilosa peça de merchandising – especialmente os que acham que novela não é algo que possa ser discutido num espaço tão aberto como este… Meu conselho é que guardem seus comentários para a semana que vem, pois acho que vou conseguir controlar minha ansiedade, assistir esses primeiros capítulos de “Paraíso tropical”, e escrever sobre isso só na próxima segunda-feira. Aguarde.
Hoje, só pelo prazer de estar ligeiramente fora de sintonia com o trem da mídia, quero retomar uma categoria do Oscar (lembra… foi no século – quer dizer, no domingo passado…) sempre muito desprestigiada, mas que este ano me deu bons motivos para sair alegre do cinema: a de melhor ator. Não vou exatamente analisar cada uma das cinco performances, mas focar em apenas dois dos indicados: o vencedor e um derrotado – como se fosse possível chamar Peter OToole de derrotado…
Resolvi juntar os dois, pois tanto OToole, quanto Forest Whitaker brilharam com papéis bastante diferentes, mas que, no fundo dividem uma estranha semelhança: ambos estão na pele de transgressores incorrigíveis. Em escalas bastante diferentes, é verdade. Mas incorrigíveis.
Primeiro OToole. Só consegui ver “Vênus” semana passada, depois da premiação do Oscar. Já havia assistido “O último rei da Escócia” pela primeira vez (vi mais de uma!) na semana anterior, e sabia que, diante de um papel como o de Idi Amin, Maurice (o personagem de OToole em “Vênus”) teria poucas chances. Afinal, pelas notas curtas de jornais e internet, tudo que sabia desse seu trabalho era que seu personagem era um homem de idade avançada que se encantava com a beleza de uma jovem adolescente – ou, se você preferir, um velho babão! Ah, como as sinopses dos filmes são incompetentes…
Maurice é bem mais que isso, claro. À beira dos 80 anos, debilitado fisicamente, vivendo de migalhas de uma carreira brilhante como ator, o personagem de Peter OToole é um retrato da decadência – se não exatamente decrépita (menos ainda melancólica), ao menos uma decadência ordinária. O fato de ele ter, como o filme sugere, uma história de sucesso profissional e o que parece ser um casamento feliz, torna a realidade de Maurice ainda mais triste. Condenado a tardes preguiçosas num café sem charme, trocando pílulas com seu melhor amigo (Ian, interpretado por Leslie Phillips), ele vê nascer um sopro de entusiasmo na sua vida quando a filha de uma sobrinha de Ian vai morar com ele. Recém saída da adolescência, Jessie (Jodie Whittaker) está longe de ser uma das 235.654 garotas mais bonitas da vizinhança. Mas ela é jovem – e gravita na órbita de Maurice. E isso basta.
O velho se apaixona perdidamente pela mocinha. Mas cuidado com esse verbo… O que nós vemos desenrolar na tela é menos um tórrido (sequer melancólico) romance do que uma devastadora perversão. Com sua impotência agravada por um diagnóstico de câncer de próstata (revelado logo no começo do filme), Maurice sente um estranho tesão por Jessie – e joga fora todos os limites da decência para conseguir fragmentos de afeto, como tocar a mão dela, dar três (e apenas três) beijos em seu pescoço, sentir o cheiro da vagina daquela que ele rebatiza inutilmente de Vênus.
O apelido é uma referência direta ao quadro de Velásquez (o pintor dos pintores!), “Vênus com espelho”, que Maurice mostra para Jessie durante um passeio na National Gallery em Londres. A jovem, que não se interessa por nada que não passe pelo “filtro” das celebridades na TV, nem consegue disfarçar seu desinteresse pela pintura. Seria aquela cena ideal para um daqueles momentos transformadores (um clichê tão comum em Hollywood), onde uma prostituta (ou qualquer outra personagem “dalma perdida”), embalada por um pretendente de nobres intenções descobre o mundo da arte e a pureza dentro de seu próprio coração… Mas “Vênus” felizmente não é Hollywood. A história foi escrita pelo genial Hanif Kurueshi (“O Buda do subúrbio”, “O álbum negro”, “O dom de Gabriel”, “Intimidade” – pode procurar seus livros nas boas casas do ramo, inclusive as virtuais…) e você sabe que a tal epifania não vai acontecer.
Jessie não é transformada pelo poder da arte, muito menos pela emoção. Sua relação com Maurice vai se tornando cada vez mais degradante – e se o final é, digamos, redentor, é mais por compaixão dela do que pela compreensão dela do que se passou entre os dois. E nessa ladeira (sempre abaixo) da humilhação, ninguém teria feito melhor esse papel que Peter OToole. Aquele que já foi um dos rostos mais belos do cinema nos apresenta a velhice sem uma nota de candura. Ele baba, ele tropeça, ele se embebeda – não tem nada de bonitinho nessa terceira idade. Porém, mesmo assim, é difícil não admirar Maurice. Talvez até por sabermos que um dia vamos viver aquilo tudinho, talvez com um pouco mais ou um pouco menos de sacanagem do que ele – mas não temos como escapar, e sabemos disso. Por isso nos emocionamos com a cena do jantar com sua ex-mulher (a soberba Vanessa Redgrave). Por isso sentimos o mesmo que ele quando seu pé descalço toca o mar gelado. Todos nós, como Maurice, procuramos o prazer. Mas só Peter OToole talvez saiba tirar da frustração de não conseguir mais alcançá-lo um retrato duro e comovente.
A perversão de Idi Amin, contada em “O último rei da Escócia” é, claro, de outra espécie – e, espero, mais difícil de encontrar um ponto de identificação com o público… Não que as fantasias sensuais estivessem fora da pauta do ditador que levou Uganda ao caos nos anos 70. Mas com o poder que acumulou nesses anos de destruição, o sexo era um mero detalhe numa trilha de decadência moral que ia muito além de um “mero” desrespeito pelos padrões sociais de relacionamento. O que Amin não respeitava mesmo era a vida – e a interpretação perfeita da confusão de alguém que não sabe mais em quem confiar foi o que, na minha opinião, deu a estatueta a Forest Whitaker.
Idi Amin, acusado de ser atos que vão do canibalismo ao genocídio, não era o mais esperto dos déspotas. A categoria não prima pela esperteza, como se sabe… Basta conferir uma lista com os piores ditadores da atualidade, publicada pela revista britânica “Newstatesman” (www.newstatesman.com) em setembro do ano. Idiossincrasias à parte, todos tem em comum uma tendência ao pensamento curto – para colocar de uma maneira elegante… Kim Jon-il (Coréia do Norte), Saparmurat Niyazov (Turcomenistão), Teodoro Obiang Nguema (Guinéa Equatorial), Alexander Lukashenko (Belarus) – todos desfilam, nos perfis da revista com um elenco de idiossincrasias e feitos que beiram o ridículo. Beiram não – ultrapassam. Mesmo assim, Idi Amim parece ter superado todos eles (Robert Mugabe, o atual líder do Zimbábue, com uma biografia que ainda é uma “obra aberta” de atrocidades e julgamentos infelizes promete roubar-lhe este título).
Se, no início do filme, ele aparece como um grande líder, com um dom excepcional para falar com multidões, aos poucos ele vai se revelando um coitado, alguém tão desorientado em seus instintos e princípios que qualquer um pode exercer grande influência nas suas decisões. Não é fácil representar esse estado sutil entre a debilidade moral, a fragilidade intelectual e uma enorme autoridade. Mas Whitaker cumpre a missão com louvor (e o filme deve ser visto por outros méritos além de sua interpretação).
Seu olhar manco, aquela boca que parece esperar os comandos das cordas de uma marionete para reagir, e toda um expressão corporal dividida entre a astúcia e a covardia foram as ferramentas essenciais para o ator representar uma figura tão bizarra. Idi Amin, o “mito”, é fruto de uma ambição que deu horrivelmente errado – e fez um mal terrível à humanidade. Maurice, apesar de não ter deixado um rastro de destruição – a não ser o seu próprio, também é vítima de suas frustrações. E seria apenas esse o ponto comum entre eles, não fossem os dois personagens (um na ficção e outro na vida real), veículos para atuações estupendas.
Só uma premiada, como sabemos. Mas OToole e Whitaker nos deram boas razões para nos perguntarmos mais uma vez… De que valem esses prêmios mesmo?
21 março, 2007 as 6:30 pm
sou seu fã e gostaria muito que você respondesse esse imail e gosto muito das suas reportagens e sinto saudade dp programa no limite.
21 março, 2007 as 5:54 pm
Zeca, eu te amo como pessoa e profissional, não ligue para comentários maldosos vc ficou muito lindo dançando.
Zen/ 21/03/2007
21 março, 2007 as 1:27 pm
Zeca, acho você tudo de bom, e aqui no seu Blog, você vem mostrar novamente que você é “fera” no que faz, pois adoro suas reportagens, e aqui a forma como você escreve já fico visualisando como se você estivesse falando…Show, parabéns.
19 março, 2007 as 8:41 pm
Zeca
Que legal a sua atitude de assumir que fez o vídeo mesmo, se o pânico te seguir, acho que vc deveria levar mesmo na sacanagem e até dançar de novo .
FOI MUITO LEGAL, ver vc quase despido do PADRÃO GLOBO , ver que vc tem um corpo, tem uma exuberância e é muito lindo. Por que vc não faz um ensaio fotográfico de nú ?? Seria lindo eternizar as suas belas formas!!!
Um grande beijo
June
10 março, 2007 as 4:16 pm
O bom é que ainda ñ tive a oportunidade de ver nunhum desses filmes, muito menos de ler seu livro, que estou a muito tempo procurando para ler…
Mas quando isso acontecer deixo a minha “crítica”, falô!! Eu estou começando a perceber que vc é meio fanático por oscar… Legal, mas fale mais sobre uns bons livros ou até mesmo sobre o BBB.
Bjuss…
10 março, 2007 as 2:24 pm
Oi Querido Zeca. Tua capacidade de descrever com palavras a interpretação (ação)do O’Toole e que nos tocou (reação) é que vale um prêmio. Mais uma vez parabéns pela tua genialidade. Um grande beijo. Patty
7 março, 2007 as 10:41 am
Eu prefiro quendo você fala alguma coisa mais pessoal, mas gostei da crítica, e vou ver os filmes.
Até entendo que não é um blog pra ficar falanddo de si…
Mas é tão gostoso.
Podia falar da matéria de domingo, em Londres. Podia juntar o Fnatastico com o Blog, não?
7 março, 2007 as 8:56 am
Zeca, eu não estava animado com Vênus, talvez por causa dessas sinopses simplistas, mas depois de um texto como esse, o filme está no topo da minha lista.
Valeu. Parabéns pelo Blog.
7 março, 2007 as 7:30 am
OI ZECA, TUDO BEM?
quando sai a proxima curva? o assunto oscar já rendeu demais.
BEIJOS
6 março, 2007 as 7:28 pm
Entre novela das 8, Oscar, Harry Potter e carnaval, eu fico com Jean Baudrillard, falecido hoje, terça-feira dia 6 de Março de 2007, mas deixa um grande legado. Zeca nos apresenta aqui sua visão crítica de elementos característicos da pós-modernidade, do exagero, da moda e do efêmero, numa condição de imersão, ele faz parte disso, e é resultado disso. Por isso fico com Baudrillard, a crítica sobre a crítica, um gênio. Luto.
6 março, 2007 as 3:31 pm
Ainda não consegui assistir Venus, mas O Último Rei da Escócia foi antes do Oscar e concordo com vc sobre suas palavras. Agora queria dizer: Finalmente!!! Vejo um texto sobre esse filme sem ser citado o nome de Gillian Anderson (Dana Scully, Arquivo X) q infelizmente foi o chamativo para muita gente assistir esse filme q dela quase nada aparece.
Odeio qdo colocam atores secundários para chamativo de filmes q possuem um brilho maior.
Abs,
Danielle
6 março, 2007 as 12:59 pm
Seu livro é fascinante, só estou aqui para deixar meu elogio. Por diversas vezes, lendo o seu livro, eu faço o mesmo percusso que vc, “viajo na maionese”.
Vc é fera!!!
Que Deus continue te abençoando…
6 março, 2007 as 9:19 am
Eu chorei muito com Venus. Os atores são todos maravilhosos. Fiquei até com raiva do whitaker, e nem quero ver o filme. Poxa o cara talvez nõa tenha chance de ganhar outro Oscar e to cheio de representaçõa= imitação.
Eu quero invenção.
Abraço
6 março, 2007 as 12:24 am
Zeca, não vi ainda nenhum dos dois filmes: não chegaram ao circuito comercial de Goiània. Mas torci muito pelo O’Toole: naquela idade, estar entre os 5 indicados, tinha de levar. O Whitaker merecia ter ganho em “Birdy”. Sabia que seu comentário sobre “O último rei da Escócia” é um dos poucos que me animaram a ver o filme? O que mais li/ouvi foi que é um filme ruim com uma atuação brilhante. Valeu.
Primeira vez por aqui, mas voltarei outras vezes.
Abração
5 março, 2007 as 11:13 pm
Dae Zec! Respondendo à pergunta feita no fim do artigo, não sei a real função destes prêmios… acho que para controle de talentos no showbiz, ou algo assim. O pop Oscar é o que mais desmerece todos. É um daqueles prêmios que se deixa levar pelomomento, e as vezes esquece de premiar um verdadeiro talento. Apesar que este ano, foi um tanto diferente. Ainda não vi “Venus”, mas acho díficil mudar minha opinião quanto a atuação do Sr. Whitaker. Foi acima do excelente. Aliás, as categorias tanto de melhor ator, quanto de melhor atriz este ano estavam realmente díficeis (atriz mais ainda….). Os filmes de 2006 tiveram atuações memoráveis. Bom, agora é contar com a sorte e ver quando “Venus” estréia no ES. ( tu acreditas que “Pecados…” ainda não estreiou?) Bom, fico por aqui. Show o artigo, grande abraço Zeca!!
5 março, 2007 as 6:19 pm
Ainda não assisti nenhum dos dois filmes. Mas para mim o melhor do Oscar foi Enio Morricone agradecendo em italiano para uma platéia “que não se interessa por nada que não passe pelo filtro das celebridades na TV” e a gentileza e sutil percepção de Eastwood em traduzir para a dita platéia, que ao invés de se contentar, ainda aplaudia.
5 março, 2007 as 4:50 pm
Zeca,
é meio complicado pensar que todos nós ainda iremos ficar como o personagem de O’Toole. Quem sabe mais complicado ainda seja parar pra pensar que esse é um caminho único…Não importa o que se faça, não há como voltar atrás. Talvez se o homem pensasse mais sobre isso, não existiriam pessoas cometendo atrocidades como fez Idi Amin, que, aliás, foi muito bem representado por Whitaker.
Sua matéria ontem com “Os Britos” estava fantástica! Parabéns mais uma vez!
Beijo!
5 março, 2007 as 12:43 pm
Interessante é retirar do filme, Vênus, uma lição de que estar velho, é diferente de ser VELHO.O amigo de “Maurice”, “Ian”, viveu um lado muito mais duro da velhice, não se permetia apaixonar-se e então vamos construindo as nossas paixões porque o tempo passa pra todos,pra quem ainda se encanta ou não pela vida.Vamos dar aqueles beijinhos mesmo sem sabermos se vamos poder dar continuidade a essas histórias, mas vamos nos sentir capazes:”Senhores e Senhoras”.Desculpe, mas eu entendo quando diz passar por tudo isso, quer dizer: nossas frustações balzaquianas ou de terceira-primeira, ou segunda idades…Viva a cadência do cinema Inglês e a decadência de uma vida vivida!bjs bjs bjs(3)
5 março, 2007 as 12:09 pm
Se formos pelo caminho de pensarmos quem ganha ou perde com a premiação do Oscar, com certeza ilustraremos aqui a máxima conhecida por todos “alguém tem que perder para outro perder”; ou também poderíamos falar da tal injustiça sempre cometida, em nosso ver,pela Academia ao premiar filmes que nós não gostamos, ou realmente não mereciam.
Mas prefiro ver pela ótica de que quem mais ganha com isso é o grande público por terem em mente bons filmes para ver. Aliás, é isso o que os estúdios sempre querem, por mais independente que sejam. Nós que amamos cinema, de uma forma ou outra, estamos sempre ligados ao que acontece no mundo da ficção!
5 março, 2007 as 11:58 am
Não, Zeca,
Bom é o Fantástico e o Bigbrother…
Afffffeeeeeeeeeeeee