O poder
Não há como traduzir melhor o que essas duas mulheres transmitem no palco. As mulheres, claro, são Madonna e Ivete – essa tem até um sobrenome, como todos sabem, mas, a essa altura da carreira, já está até podendo dispensar o Sangalo… Os palcos são, respectivamente, o da Wembley Arena, na Inglaterra, e o do Maracanã – aqui mesmo, na terrinha, bem no Rio de Janeiro. Os repertórios, não poderiam ser mais diferentes – e talvez até as platéias (se bem que seria um exercício interessante imaginar o quanto do público de uma estaria à vontade assistindo o show da outra…). Com tantas diferenças assim (sobre as quais vou me alongar daqui a pouco), tenho que começar reforçando que essas duas têm uma coisa muito forte em comum – e essa coisa é o poder.
Já estive com as duas… e posso falar. Com Madonna foi uma corriqueira entrevista de seis minutos, já há uns bons seis ou sete anos. E com Ivete, estive ontem mesmo. Explico melhor: fui participar do “Happy Hour”, o novo programa da Astrid no canal GNT. O tema era “workaholics” – gente que tem uma energia aparentemente inesgotável para trabalhar. Por isso, claro, Ivete estava lá – não exatamente no estúdio, mas num “link” ao vivo, conversando com a gente. Não era a primeira vez que eu encontrava Ivete – felizmente, já foram várias as oportunidades que tive de estar perto dela, e não só virtualmente. Mas naquele encontro de ontem, fiquei até um pouco sem graça… porque lá estava eu, convidado a falar da minha experiência como “workaholic”, junto com uma pessoa que… bem, visivelmente demonstra uma disposição ainda maior que a minha para o trabalho.
Atualmente atravessando a maratona de entrevistas que precede o lançamento de um disco – e, no caso, também de um DVD -, ela tinha todas as desculpas do mundo para mandar só um beijo rápido e fazer um agrado. Mas não… Lá estava ela, conversando por mais de meia hora com a gente – e animada! A curiosidade geral era: de onde ela tira tanta energia? Ela disfarçou, foi modesta, mas sabia bem a resposta: tem gente que já nasce com essa luz – e a única coisa que ela pode fazer é irradiar e contagiar quem está por perto. Foi isso que ela fez ontem com a gente. Foi isso que ela fez com 50 mil pessoas em dezembro do ano passado no Maracanã.
Tenho que confessar que não vi todo o show, nem gravado nem ao vivo. No dia 16 de dezembro, quando a festa, digamos, rolou, eu estava trabalhando direto – e tive de me contentar com os comentários extasiados dos amigos que foram até o estádio. Quanto ao material do DVD, só tive acesso a pequenos trechos do que vai ser lançado – aparentemente, tudo está envolto em uma grande nuvem de segredo até a estréia do especial no Multishow (que acontece dia 10 de abril). Assim, foram só duas músicas inteiras e mais alguns trechos soltos que eu pude ver. E você acha que já não deu para perceber o que eu perdi não indo ao Maracanã naquela noite?
A produção, não duvide, é de grande evento. Quando, depois de uma linda colagem de imagens na abertura, Ivete vem aparecendo ao fundo do palco sentada numa moto para cantar “Abalou”, você tem a sensação que a própria tela onde você está assistindo aquilo está tremendo. Nos telões, imagens de exuberantes labaredas atiçam mais ainda o clima de festa – e tudo vai num crescendo tão rápido que nem Ivete segura o tranco: antes da metade da música, é ela quem está mais abalada do que qualquer pessoa naquele estádio. Em mais de um detalhe, ela deixa transparecer na sua expressão uma pergunta muda que pode ser traduzida como: “será que tudo isso é só pra mim?”. Ou: “será que esse povo tá aqui todinho só pra me ver?”. E, finalmente: “será que eu agüento tanta emoção?”…
Você sabe que Ivete vai agüentar – e não só isso, mas vai, em pouco tempo, e com economia de gestos (e de voz), dominar toda aquela platéia. Não vi todas suas parcerias daquela noite, mas tive uma amostra do que foi seu encontro com Alejandro (em “Corazón partio”). Não tinha uma pessoa cujos olhos não estivessem grudados no casal naquele momento. Estavam todos sob seu comando – e tanto mais, quando uma outra canção que assisti pedia ainda intimidade: em “Deixo”, o respeito do público era quase solene. E Ivete aproveitou para dobrar quem ainda não tinha se convencido de que ela é a melhor “performer” que nós temos hoje.
Da brincadeira safada de passar o dedo sobre a roupa colada do início do espetáculo – para depois colocá-lo na boca como que para “apagar o fogo” – ao simples cantar de olhos fechados, a noite foi só dela. Um repertório bem misturado (pelo menos a lista das músicas no DVD eu consegui…) me faz ter vontade de ver tudo – ou “tudinho”, como ela diria com aquele sotaque… E você que é fã, ou mesmo você que teve a sorte de estar no Maracanã naquela noite (não quer comentar por aqui?), sabe que eu não estou exagerando…
Por falar em fã, os de Madonna avancem com cuidado daqui para frente. Pois vi esta semana também o DVD “The confessions tour” – e ainda estou tentando entender por que eu não fiquei tão triste de não ter assistido essa turnê (tive chances de me encontrar com algumas escalas da “caravana”, mas acabou não dando certo). Calma! Como já pedi, avance com cuidado – até porque, quem escreve aqui também é alguém que, como um bom filho dos anos 80 (não na certidão de nascimento, claro, mas na minha formação cultural) ainda guarda certa idolatria por essa que é a artista em atividade mais relevante dos últimos 25 anos!
Eu adorei “The confessions tour” – mas estaria mentindo se dissesse que adorei logo de cara. A grande abertura, que deve ter sido pensada – e coreografada – para causar o maior impacto, me pareceu gelada (e, a julgar pelas imagens da platéia, não foi só uma impressão). Toda a primeira meia hora do show gravado é mais um trunfo de montagem de edição do que de presença de palco. Enquanto seus bailarinos – para usar uma expressão citada pela própria Madonna – desafiam a gravidade, ela se reveza em poses estudadas e endurecidas. Fiquei até um pouco entusiasmado quando ela começa a cantar “Like a virgin” (terceira música). Me lembrei da performance histórica dela vestida de noiva interpretando a mesma faixa nos anos 80 e não resisti a compará-la com essa de agora, onde a cantora faz uma seqüência também voluptuosa, mas sobre uma sela de cavalo num carrossel semi-sadomasoquista. Qual das duas tinha mais significados, é difícil de dizer. Mas escolher qual das duas é mais sexy é fácil…
“Jump”, na seqüência, é uma enorme acrobacia – tão bem realizada (e especialmente bem editada) que parece que já foi concebida mais para as câmeras do que para uma platéia. Depois vem toda a famigerada seqüência de Madonna na cruz. Ela entra cantando talvez sua composição que eu menos gosto, “Live to tell”. Nessa versão, a letra deixa de ser um drama pessoal para virar um apelo pelo mundo. Mesmo assim, eu ainda não fiquei convencido.
A meia hora seguinte é mais uma demonstração de muita pirotecnia – e pouco entusiasmo. Nem mesmo “Sorry”, uma das melhores faixas do último disco, me empolgou até aí. Madonna parece que está mais fora do palco do que dentro dele – e a sensação é de que aquilo é só um videoclipe – e não um espetáculo.
Mas aí chega “I love New York” – e as coisas finalmente começam a ficar interessantes. Os telões são tomados por uma silhueta elétrica da cidade, e Madonna entra vestida como que para um show de “glam rock”. E o que acontece é um show de “glam rock”! Me levantei – e, pela primeira vez, lamentei não estar lá em Wembley Arena. Quando as guitarras já estão berrando, no final apoteótico da música, eu já estava de joelhos. Depois vem “Ray of light” (bela lembrança!) e eu acho que a diversão não vai mais acabar… só que chega o sempre temido momento acústico. Não hesite: pule direto para o capítulo 17 do DVD, onde um inacreditável inferno dançante espera você.
Os efeitos especiais, a essa altura, são tão enlouquecidos, que fica até difícil saber o que estava acontecendo “de verdade” no estádio e o que é só pós-produção. Não se preocupe: entregue-se à festa, pois a o clichê reinventado da abertura de “Disco inferno” (clássico da discoteca dos anos 70) é a melhor introdução que “Music” poderia ter. Sem você perceber, isso logo cai em “Erótica”, que vira uma apoteose tropical em “La isla bonita”, que se transforma em uma pista retrô com “Lucky star” – e tudo termina, enlouquecidamente, com “Hung up”.
Se esse fechamento te pareceu um pouco corrido, é porque me falta fôlego para descrever cada uma dessas etapas. Me sinto, ainda agora, eletrizado com a vibração que essa seqüência final provocou em mim. Isso é o poder.
Ivete tem o seu – quente, suado, terno. Madonna, o dela – sinistro, perverso, preciso. A mesma força capaz de controlar multidões, mas com nuances tão diferentes e tão sedutoras, que eu não tenho opção a não ser me declarar, mais uma vez, súdito de duas rainhas.