O poder

qui, 29/03/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Não há como traduzir melhor o que essas duas mulheres transmitem no palco. As mulheres, claro, são Madonna e Ivete – essa tem até um sobrenome, como todos sabem, mas, a essa altura da carreira, já está até podendo dispensar o Sangalo… Os palcos são, respectivamente, o da Wembley Arena, na Inglaterra, e o do Maracanã – aqui mesmo, na terrinha, bem no Rio de Janeiro. Os repertórios, não poderiam ser mais diferentes – e talvez até as platéias (se bem que seria um exercício interessante imaginar o quanto do público de uma estaria à vontade assistindo o show da outra…). Com tantas diferenças assim (sobre as quais vou me alongar daqui a pouco), tenho que começar reforçando que essas duas têm uma coisa muito forte em comum – e essa coisa é o poder.

Já estive com as duas… e posso falar. Com Madonna foi uma corriqueira entrevista de seis minutos, já há uns bons seis ou sete anos. E com Ivete, estive ontem mesmo. Explico melhor: fui participar do “Happy Hour”, o novo programa da Astrid no canal GNT. O tema era “workaholics” – gente que tem uma energia aparentemente inesgotável para trabalhar. Por isso, claro, Ivete estava lá – não exatamente no estúdio, mas num “link” ao vivo, conversando com a gente. Não era a primeira vez que eu encontrava Ivete – felizmente, já foram várias as oportunidades que tive de estar perto dela, e não só virtualmente. Mas naquele encontro de ontem, fiquei até um pouco sem graça… porque lá estava eu, convidado a falar da minha experiência como “workaholic”, junto com uma pessoa que… bem, visivelmente demonstra uma disposição ainda maior que a minha para o trabalho.

Atualmente atravessando a maratona de entrevistas que precede o lançamento de um disco – e, no caso, também de um DVD -, ela tinha todas as desculpas do mundo para mandar só um beijo rápido e fazer um agrado. Mas não… Lá estava ela, conversando por mais de meia hora com a gente – e animada! A curiosidade geral era: de onde ela tira tanta energia? Ela disfarçou, foi modesta, mas sabia bem a resposta: tem gente que já nasce com essa luz – e a única coisa que ela pode fazer é irradiar e contagiar quem está por perto. Foi isso que ela fez ontem com a gente. Foi isso que ela fez com 50 mil pessoas em dezembro do ano passado no Maracanã.

Tenho que confessar que não vi todo o show, nem gravado nem ao vivo. No dia 16 de dezembro, quando a festa, digamos, rolou, eu estava trabalhando direto – e tive de me contentar com os comentários extasiados dos amigos que foram até o estádio. Quanto ao material do DVD, só tive acesso a pequenos trechos do que vai ser lançado – aparentemente, tudo está envolto em uma grande nuvem de segredo até a estréia do especial no Multishow (que acontece dia 10 de abril). Assim, foram só duas músicas inteiras e mais alguns trechos soltos que eu pude ver. E você acha que já não deu para perceber o que eu perdi não indo ao Maracanã naquela noite?

A produção, não duvide, é de grande evento. Quando, depois de uma linda colagem de imagens na abertura, Ivete vem aparecendo ao fundo do palco sentada numa moto para cantar “Abalou”, você tem a sensação que a própria tela onde você está assistindo aquilo está tremendo. Nos telões, imagens de exuberantes labaredas atiçam mais ainda o clima de festa – e tudo vai num crescendo tão rápido que nem Ivete segura o tranco: antes da metade da música, é ela quem está mais abalada do que qualquer pessoa naquele estádio. Em mais de um detalhe, ela deixa transparecer na sua expressão uma pergunta muda que pode ser traduzida como: “será que tudo isso é só pra mim?”. Ou: “será que esse povo tá aqui todinho só pra me ver?”. E, finalmente: “será que eu agüento tanta emoção?”…

Você sabe que Ivete vai agüentar – e não só isso, mas vai, em pouco tempo, e com economia de gestos (e de voz), dominar toda aquela platéia. Não vi todas suas parcerias daquela noite, mas tive uma amostra do que foi seu encontro com Alejandro (em “Corazón partio”). Não tinha uma pessoa cujos olhos não estivessem grudados no casal naquele momento. Estavam todos sob seu comando – e tanto mais, quando uma outra canção que assisti pedia ainda intimidade: em “Deixo”, o respeito do público era quase solene. E Ivete aproveitou para dobrar quem ainda não tinha se convencido de que ela é a melhor “performer” que nós temos hoje.

Da brincadeira safada de passar o dedo sobre a roupa colada do início do espetáculo – para depois colocá-lo na boca como que para “apagar o fogo” – ao simples cantar de olhos fechados, a noite foi só dela. Um repertório bem misturado (pelo menos a lista das músicas no DVD eu consegui…) me faz ter vontade de ver tudo – ou “tudinho”, como ela diria com aquele sotaque… E você que é fã, ou mesmo você que teve a sorte de estar no Maracanã naquela noite (não quer comentar por aqui?), sabe que eu não estou exagerando…

Por falar em fã, os de Madonna avancem com cuidado daqui para frente. Pois vi esta semana também o DVD “The confessions tour” – e ainda estou tentando entender por que eu não fiquei tão triste de não ter assistido essa turnê (tive chances de me encontrar com algumas escalas da “caravana”, mas acabou não dando certo). Calma! Como já pedi, avance com cuidado – até porque, quem escreve aqui também é alguém que, como um bom filho dos anos 80 (não na certidão de nascimento, claro, mas na minha formação cultural) ainda guarda certa idolatria por essa que é a artista em atividade mais relevante dos últimos 25 anos!

Eu adorei “The confessions tour” – mas estaria mentindo se dissesse que adorei logo de cara. A grande abertura, que deve ter sido pensada – e coreografada – para causar o maior impacto, me pareceu gelada (e, a julgar pelas imagens da platéia, não foi só uma impressão). Toda a primeira meia hora do show gravado é mais um trunfo de montagem de edição do que de presença de palco. Enquanto seus bailarinos – para usar uma expressão citada pela própria Madonna – desafiam a gravidade, ela se reveza em poses estudadas e endurecidas. Fiquei até um pouco entusiasmado quando ela começa a cantar “Like a virgin” (terceira música). Me lembrei da performance histórica dela vestida de noiva interpretando a mesma faixa nos anos 80 e não resisti a compará-la com essa de agora, onde a cantora faz uma seqüência também voluptuosa, mas sobre uma sela de cavalo num carrossel semi-sadomasoquista. Qual das duas tinha mais significados, é difícil de dizer. Mas escolher qual das duas é mais sexy é fácil…

“Jump”, na seqüência, é uma enorme acrobacia – tão bem realizada (e especialmente bem editada) que parece que já foi concebida mais para as câmeras do que para uma platéia. Depois vem toda a famigerada seqüência de Madonna na cruz. Ela entra cantando talvez sua composição que eu menos gosto, “Live to tell”. Nessa versão, a letra deixa de ser um drama pessoal para virar um apelo pelo mundo. Mesmo assim, eu ainda não fiquei convencido.

A meia hora seguinte é mais uma demonstração de muita pirotecnia – e pouco entusiasmo. Nem mesmo “Sorry”, uma das melhores faixas do último disco, me empolgou até aí. Madonna parece que está mais fora do palco do que dentro dele – e a sensação é de que aquilo é só um videoclipe – e não um espetáculo.

Mas aí chega “I love New York” – e as coisas finalmente começam a ficar interessantes. Os telões são tomados por uma silhueta elétrica da cidade, e Madonna entra vestida como que para um show de “glam rock”. E o que acontece é um show de “glam rock”! Me levantei – e, pela primeira vez, lamentei não estar lá em Wembley Arena. Quando as guitarras já estão berrando, no final apoteótico da música, eu já estava de joelhos. Depois vem “Ray of light” (bela lembrança!) e eu acho que a diversão não vai mais acabar… só que chega o sempre temido momento acústico. Não hesite: pule direto para o capítulo 17 do DVD, onde um inacreditável inferno dançante espera você.

Os efeitos especiais, a essa altura, são tão enlouquecidos, que fica até difícil saber o que estava acontecendo “de verdade” no estádio e o que é só pós-produção. Não se preocupe: entregue-se à festa, pois a o clichê reinventado da abertura de “Disco inferno” (clássico da discoteca dos anos 70) é a melhor introdução que “Music” poderia ter. Sem você perceber, isso logo cai em “Erótica”, que vira uma apoteose tropical em “La isla bonita”, que se transforma em uma pista retrô com “Lucky star” – e tudo termina, enlouquecidamente, com “Hung up”.

Se esse fechamento te pareceu um pouco corrido, é porque me falta fôlego para descrever cada uma dessas etapas. Me sinto, ainda agora, eletrizado com a vibração que essa seqüência final provocou em mim. Isso é o poder.

Ivete tem o seu – quente, suado, terno. Madonna, o dela – sinistro, perverso, preciso. A mesma força capaz de controlar multidões, mas com nuances tão diferentes e tão sedutoras, que eu não tenho opção a não ser me declarar, mais uma vez, súdito de duas rainhas.

Eu achei que ia ser a maior dor de cabeça…

seg, 26/03/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Foi difícil resistir – mas quando não é? Sempre que escolho um assunto sobre o qual escrever neste espaço, logo sou distraído pelas múltiplas opões de temas que tenho à minha frente. Tem sido assim nesses últimos seis meses – e não foi diferente desta vez, quando eu tinha me proposto a fazer um balanço justamente desse nosso contato de meio ano. Já tinha mais ou menos na cabeça o que iria escrever quando chegam às minhas mãos, quase simultaneamente, as primeiras imagens do DVD daquele show de Ivete Sangalo no Maracanã e o DVD da última turnê de Madonna. É ou não é motivo suficiente para um blog sobre cultura (alta, baixa, não importa – lembra da premissa lá no início?) se debruçar…

A semana ainda registrou duas polêmicas tentadoras sobre, digamos, produtos culturais. A primeira, mais instantânea e atômica, foi a dos quadros exposto no chão por Bia Lessa numa sala da mostra “Itaú Contemporâneo – 1981- 2006″. Tenho um viés na minha leitura dessa “crise”, claro, por já ter trabalhado com Bia (e ser admirador do que ela faz), mas, mesmo descontando esse detalhe, poderia me divertir comentando sobre os tantos “ais” que ela ouviu… Mas, resisti.

A outra polêmica, que promete uma discussão ainda mais duradoura, é sobre o projeto de uma coleção de livros sob o nome de “Amores expressos”, onde escritores que ficaram de fora dos convites para viajar para destinos “inspiradores” e “descolados” pelo mundo, atacam o projeto que é bancado por dinheiro público (leia-se Lei Rouanet). Já alguns escritores incluídos no projeto, bem como seus organizadores… bem, se você quiser acompanhar o “brouhaha”, um bom começo é este link (comece pelo post de 20/03/07 para entender tudo). Só para dar um palpite de longe (não sou de ferro!), não consigo deixar de achar que boa parte do bafafá vem do fato de o projeto envolver viagens internacionais – algo que, no imaginário do nosso atávico caipirismo nacional, significa algo muito chique, “só para privilegiados” – logo, digno de disputa e cobiça. Ao entrar mais na troca de farpas (que acontece “em plena luz do dia”), dá até para achar que a vaidade é um ingrediente forte na polêmica (e depois dizem que isso é privilégio de quem trabalha em televisão…). Mas nada me desconvence (um verbo que meu corretor ortográfico, ao contrário do Houaiss, não aceita) de que, na gênese da discussão, está um passaporte…

Mas resisti também: nada me tiraria, dessa vez, do propósito de discutir o que tinha planejado. Afinal, em tempos frenéticos como esses nossos, seis meses é quase um jubileu – e descontando um ou outro feriado, você me acompanha com lisonjeira assiduidade aqui duas vezes por semana. Acho que nós dois merecemos essa pausa para refletir sobre o que, na semana passada chamei de “quite a ride” – ou de, numa tradução apressada, “um passeio e tanto”…

De Daniela Cicarelli a Harry Potter, passando por Martin Amis, “Cobras & Lagartos”, Mika, Cordel do Fogo Encantado, Phil Collins (o fotógrafo), Tintim, Ilha da Páscoa, “Antônia”, “Rolling Stone”, Beastie Boys, Céu, Broadway, DJ Tiesto, Yves Klein (Yves Klein!), Gilberto Braga, Alex Kapranos, Oscars, Hong Kong, Paulo Barros – além da minha estimada Curva das Expectativas Flutuantes… nossa! Foi, de fato, um passeio e tanto!

Só por esse elenco (em versão resumida), já posso ficar contente de ter cumprido a proposta de falar dos mais variados aspectos da manifestação cultural – internacional e brasileira (ao contrário do que insistiam comentar os mais desavisados que liam apenas um post e reclamavam de que eu não olhava para os filhos dessa nossa mãe gentil – mas, mais sobre isso, daqui a pouco). Quero até acreditar que esse “mix” funcionou bem, a julgar pela resposta de quem passa por aqui – resposta essa que eu sempre tentei corresponder. Até o comecinho deste ano, antes de ficar atolado com a produção de uma série que estou fazendo agora dentro do “Fantástico” (“Novos Olhares”, no ar até junho), eu ainda conseguia responder os comentários daqueles que faziam a gentileza de se identificarem (tinham sempre aqueles anônimos – curiosamente, sempre os mais ofensivos… mas, mais sobre isso, também daqui a pouco). Nas últimas semanas, ou melhor, nos últimos meses, esse saudável (apesar de colegas blogueiros ainda insistirem em classificar como insalubre) e estimulante hábito ficou encostado. Espero, sinceramente, retornar em breve.

Mas, ainda nesses comentários, tentei, nesses seis meses, tirar deles algumas pistas sobre o que as pessoas gostavam mais de ler – ou, para colocar de outra maneira, que assuntos poderiam repercutir mais. Não cheguei a nenhuma conclusão… Por um momento achei que as artes plásticas intimidavam um pouco os comentaristas. Semana passada, por exemplo, quando falei da exposição de Goya (no Masp, São Paulo), o retorno foi um dos mais baixos dessa breve história. Por outro lado, quando escrevi sobre um artista ainda menos conhecido do grande público, Yves Klein (uma exposição no Beaubourg, Paris), a resposta foi surpreendente: três vezes o número de comentários que Goya mereceu!

Será que esses visitantes (sim, você) e, em especial, aqueles gentis xenófobos que levantam o dedo quando escrevo sobre algo que vi, vivi ou trouxe de fora do país (talvez você?) preferiam uma discussão sobre um produto cultural verde e amarelo a algo mais cosmopolita? Veja o caso de “Antônia”. Como entender que o post sobre esse filme ganhou quase 30% menos comentários do que aquele em que falei sobre “Mais estranho que a ficção” – uma produção hollywoodiana? Ainda me lembrei do texto sobre “O ano que meus pais saíram de férias” e “Pequena miss Sunshine”, quando os comentários foram razoavelmente equilibrados entre o filme nacional e o estrangeiro… Você acha que dá para tirar alguma conclusão daí?

A nacionalidade do tema tem a ver com a repercussão? Outro exemplo – este, de música. Quando escrevi sobre quatro cantoras cujos trabalhos desafiavam as definições de música “negra” e “branca”, citei duas artistas brasileiras (Céu e Negra Li) e duas “importadas” (Regina Spektor e Nicole Willis). Os comentários, talvez familiaridade com as cantoras nacionais, penderam para o lado delas. Mas, ao mesmo tempo, não faltou quem escrevesse para registrar que ia logo “descobrir” o trabalho das internacionais na própria internet.

Será que, ainda nos temas musicais, era tudo uma questão de geração? A resposta para posts sobre DJ Tiesto e Ricardo Villalobos – mestres da música eletrônica, mais familiar, portanto, à faixa etária mais presente na chamada blogosfera – foi surpreendente. Quando falei de Mika (um artista novíssimo, cujo post ainda está nesta página), com fortes referências a uma banda “das antigas” (o Queen), a reação foi apenas morna – mesmo com a minha “campanha” para que “Relax (take it easy)” seja adotada como tema oficial de 2007!!!

A reação ao meu texto sobre o trabalho do carnavalesco Paulo Borges foi uma das mais intensas (89 comentários, até hoje). Então… é disso que o povo gosta? De Carnaval? O que dizer, então, da interatividade ainda maior despertada por um ícone da cultura globalizada, Harry Potter? Tudo bem, estava escrevendo sobre a peça em que ele aparecia nu, mas 158 comentários (até hoje)? E as novelas? Por que “Cobras & Lagartos” instigou mais as pessoas (quase o dobro) a escrever do que “Paraíso tropical”? Entende agora meu questionamento? Será que essas coisas podem ser traduzidas em estatísticas? Como tirar conclusões de informações tão díspares?

Em meio a tantas perguntas, aposto que você já vem com mais uma: por que esse cara está tão preocupado em encontrar essas respostas? Já adianto que não é para “querer acertar” as próximas colunas. O esforço para prever o que as pessoas vão gostar de consumir culturalmente já foi duramente criticado aqui mesmo. Não se trata disso. É, outrossim, pura curiosidade sobre como se desenvolve nossa… curiosidade!

Mas antes que este texto fique “meta” demais, as considerações finais – e minhas desculpas por essa rima…

Fiquei devendo algumas coisas nesses seis meses. Anunciei prematuramente que iria comentar assuntos que não levei adiante. Alguns, já passaram – a última Bienal de São Paulo, o filme “Dreamgirls”. Outros, porém, ainda merecem seu espaço (a revista “Spy”, o livro “Trinta anos de mim mesmo”, de Millôr Fernandes). Isso dá para consertar. E tem uma pequena lista ainda de desculpas, consertos, arrependimentos e possibilidades não cumpridas – mas esse texto já está longo demais (já viu eu escrever isso aqui antes?).

Em tempo, preciso só dizer que me diverti horrores nessa função – que vai continuar! Bem mais do que imaginava quando recebi o convite do G1 – eu achei que ia ser a maior dor de cabeça e… olha só! É só prazer!

Só quero encerrar fazendo agradecimentos especiais a dois tipos de comentários que chegam com perturbadora freqüência. Primeiro, aqueles na linha “patrulha”, que não desistem de postular como (e sobre o quê) eu deveria escrever – aqueles que começam com algo do tipo “não sei se quero saber tanto sobre sua vida pessoal”, ou “quem disse que você entende disso?”… Obrigado: vocês me fazem ter uma crença infinita na liberdade que uma mídia como essa proporciona – inclusive a liberdade de achar que só você sabe como escrever, a liberdade de eu reproduzir esses comentários e a liberdade de rir deles.

O outro agradecimento vai para o comentarista anônimo – você, autor de mão cheia (de pedras!). Não foi surpresa nenhuma perceber que a acidez de um comentário de autoria oculta é inversamente proporcional à coragem de quem escreve. Espanto mesmo foi descobrir que esse tipo de atitude ainda prolifera, especialmente num espaço tão transparente como é um blog! Você pode achar estranho, mas isso me anima. Não num sentido perverso, de concluir que as pessoas (a humanidade?) não têm jeito – mas na intenção de continuar fazendo aqui o melhor na “disputa severa entre a inteligência, que empurra para frente, e a indigna, tímida ignorância obstruindo nosso progresso”.

Gostou da frase? Não é minha – por isso as aspas. É da revista britânica “The Economist”, que a traz impressa em suas páginas como uma justificativa de sua existência, desde que foi publicado pela primeira vez em 1843. E se você acha uma frase da “Economist” muito deslocada num blog que vai falar, na quinta-feira de Ivete Sangalo e de Madonna, definitivamente, você acaba de perder um tempo precioso da sua vida me lendo até aqui… já pensou quantos comentários anônimos você poderia ter escrito até agora?

Enfim, uma curva decente

qui, 22/03/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Reclamei, reclamei, reclamei – desde o começo do ano que as coisas interessantes estavam demorando para acontecer. Um verão que mal chegou e já se foi, quase nada mereceu registro, por enquanto, em 2007. Mas a esperança está a caminho.

No mundo dito sério as coisas estão ligeiramente fora da ordem. Para dizer pouco… Você também ficou perplexo diante da constrangedora (ainda que modesta) comemoração em certos círculos pelo fato de uma das maiores tragédias na história de São Paulo – a “tomada” da cidade por uma quadrilha de criminosos em maio do ano passado – ser destaque numa revista de frivolidades, a “Vanity Fair” americana? Ou ainda está tentando digerir a imagem de nossa primeira dama aparecendo numa “photo-op” (eventos não-oficiais que têm cobertura da imprensa e servem como oportunidade para pessoas públicas mostrarem seu “outro lado”), numa visita a um hospital em São Paulo, com uma camiseta estampando o logo e o nome de uma marca de artigos esportivos?

Faça como eu: mergulhe na agora abundante onda de opções de entretenimento que se anuncia. Com destaque especial para as artes plásticas. Já se fala (e muito) da mostra comemorativa “Leo 50″, que ainda nem abriu, para homenagear o que seria os 50 anos de Leonilson (Pinacoteca, São Paulo) – o artista mais fugaz (mas não exatamente efêmero) da minha geração. O múltiplo que será lançado na ocasião promete ser disputado a tapas! E duas exposições em cartaz, também em São Paulo, celebram o talento brasileiro: Miguel Rio Branco (galeria Millan) e “Itaú Contemporâneo – 1981/2006″ (um precioso retrato do que foi feito de bom por aqui nos últimos 25 anos).

Se quiser olhar para o cinema, estréia esta semana “O cheiro do ralo”, que já vem com um bom bochicho desde o ano passado, com a premiação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (e viva Selton Mello!). E recuperando-se da ressaca das críticas sofríveis, “300″ (com Rodrigo Santoro, que também estréia por aqui) já rendeu mais de 130 milhões de dólares nos Estados Unidos – e, pelo que eu vi no trailer, eu pagaria sim uma entrada inteira de cinema só para ver aquelas imagens por cerca de duas horas (mesmo que a história não faça o menor sentido!).

Dividindo essa categoria com “300″, passemos à TV, já que o desenho animado americano “South Park” passa por uma considerável reabilitação na comemoração dos seus dez anos de vida (não viu a matéria de capa da última “Rolling Stone” americana?). Quem sabe alguns seriados também americanos não tenham mais sorte daqui a alguns anos… “Desperate housewives” e “Nip/tuck” já estão surrando a audiência até agora cativa… Também no “ponto de saturação”, Alemão do BBB 7 que se cuide… parece que não aprendeu nada nas seis versões anteriores? Não são vários paredões seguidos que vão garantir alguma coisa lá no final… Mas, como ele não vai ver essa curva mesmo, vamos adiante!

Ainda na TV, “Paraíso tropical” (que eu ainda acho que é uma das melhores novelas dos últimos dez anos) luta para levantar sua audiência (e todos se perguntam se a ressaca é do gênero, do autor, do formato – ou simplesmente uma ressaca…). Nos vemos na “ressaca da ressaca” em breve (não é incrível como tem gente – você sabe que estou falando com você – que acha que eu sou obrigado a falar bem da novela? ah, essas patrulhas…).

As coisas vão bem também na música. O novo disco do Air, “Pocket Symphony”, já faz onda na imprensa estrangeira. Ainda abaixo do radar, mas crescendo, tem o disco de estréia da Quelynah – sim, você já ouviu esse nome e até viu esse rosto… foi no filme “Antônia” (lembrou agora?). Mika, bem, leu meu post da semana passada? Só lamento a superexposição do Arcade Fire. Calma, eu também adorei “Neon bible”. Mas eles precisam estar em todos os lugares ao mesmo tempo? Olhe a lição do CSS…

Enfim, aproveite esse cardápio variado. Como sempre, não leve essa curva muito a sério – sinta-se à vontade para fazer mudanças e sugestões. E prepare-se: segunda que vem, um balanço desses seis meses de blog. Como se diz em inglês… “it has been quite a ride”… (tradução, se necessário, na segunda-feira – até lá!)

Meus asnos favoritos

seg, 19/03/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

No ano passado, Nuno Ramos, um dos melhores artistas contemporâneos do Brasil, fez uma exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, onde, numa grande sala coberta de feno, três asnos carregavam caixas de som que emitiam uma curiosa seleção musical. Eles se tornaram meus segundos asnos favoritos nas artes. Sim, eu tenho um ranking de asnos favoritos na arte. Em terceiro lugar, por exemplo, está um singelo espécime solitário fotografado em um barco abandonado em alto-mar, pela artista italiana Paola Pivi. A lista é longa, e não vou me estender nela aqui. Afinal, só me lembrei disso ao sentar para escrever sobre uma exposição sensacional que os paulistanos (e todos que passarem pela capital e tiverem um mínimo interesse em artes plásticas) têm a oportunidade de ver a partir desta semana.

Foi ao ver as reportagens sobre a abertura de “Goya: as gravuras da coleção Caixanova” (no Masp, até dia 20 de maio – veja matéria do G1 aqui) que me voltaram as imagens dos adoráveis asnos retratados em alguns dos “Caprichos” desse artista que é uma referência maior da arte universal. Ainda não fui visitar a exposição, mas fiz o que aqueles que não agüentam de curiosidade (ou os que não poderão visitar a exposição em São Paulo), podem também fazer: fui à internet (veja todos os “Caprichos” aqui; eu mesmo visitei esse site agora para matar as saudades dos bichinhos e me preparar para o reencontro com Goya… afinal, não é possível que, nos próximos dois meses eu não encontre um tempo para ir ao Masp!).

Lá estavam eles: um segurando uma partitura musical, outro se deliciando com um violão tocado por um mico, tem um que olha intrigado uma cartilha e aqueles que são carregados nas costas por homens – e o meu favorito entre os favoritos: aquele que, vestindo um elegante traje, está sentado à beira de uma cama onde um homem moribundo padece e pergunta “De que mal morrerá?”. E mais todos os outros onde os asnos não aparecem, mas são substituídos por figuras ainda mais grotescas – humanas e animais. Prepare-se para emoções fortes antes de clicar seu computador atrás de obras do artista…

Claro que esse passeio virtual não substitui o impacto de ver as obras de perto (e é por isso que você deve se esforçar para visitar a mostra). Percebi isso há muitos anos, quando vi as pinturas de Goya de perto pela primeira vez. Foi assustador – mas foi também um alívio, uma espécie de exorcismo. Explico: desde criança, uma imagem do artista me perseguia. Quando eu era bem pequeno, existia uma coisa chamada fascículos. Às gerações mais jovens, vale explicar que eram magros capítulos de uma mini-enciclopédia de um assunto só, que você colecionava (imagine! a paciência de esperar uma semana para ter o número seguinte!) e, ao final de alguns meses, tinha dois, três ou mais volumes para encadernar e pôr na estante. Pois bem, um dos meus fascículos prediletos chamava-se “Mitologia” – e era, claro, sobre aquele bizarro elenco de divindades gregas e suas ainda mais bizarras biografias. E foi no fascículo sobre Cronos – Saturno, na transposição para a mitologia romana – que vi, pela primeira vez “Saturno devorando a su hijo”, de um tal Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828, como estava indicado na legenda).

Se você já passou os olhos por esse quadro (novamente, aproveite que você está na internet e dê uma busca) pode imaginar a reação que uma criança de pouco mais de dez anos pode ter ao ver aquilo. Durante anos, o rosto daquele gigante desesperado prestes a dar outra mordida num corpo já sem cabeça não me saiu da imaginação. Foi só na década de 80, quando pude visitar o Museu do Prado pela primeira vez, em Madri, que fiquei cara a cara com aquele Saturno – e, aí sim, pude exorcizar aquilo da minha mente. Não que eu hoje consiga olhar para aquela pintura – ou qualquer outro trabalho de Goya – sem uma nota de perturbação. Mas, depois de encará-la, já não tinha medo de que ela aparecesse em um pesadelo…

Daí a recomendação para que você vá preparado à exposição do Masp. As gravuras das quatro séries – num total de 218 obras – são bem pequenas, e, já imaginando que multidões vão querer ir até o museu (sou sempre um otimista!), prepare-se também para ter sua paciência testada. Qualquer esforço em observar as gravuras de perto, porém, será mais que recompensado.

Suguiro que você comece pela série “Tauromaquia” – uma aparentemente inofensiva coleção de imagens de touradas, onde você pode prestar atenção, primeiro no traço de Goya, e depois na imagem representada. Aproveite bem, pois esse exercício vai ficando cada vez mais difícil à medida que você passa para as outras séries, “Disparates”, depois “Caprichos” e, por último, a mais assustadora de todas, “Desastres da guerra”. Quando seus olhos tentam focar em imagens como “Com razon ó sin ella”, “Tanto y más”, “Tampoco”, “Esto es peor” (que nomes são esses?) e, finalmente, “Grande hazaña! Con muertos!”, você já não consegue ver a parte. Só o todo. Em todo seu horror.

Mas não desanime! Sobreviver a essas gravuras é como deixar-se atravessar por uma onda de estranha violência, que é mais um convite a desvendar o enigma do imaginário humano do que uma alegoria do desespero com nossa própria ignorância. Como em toda a obra de Goya, a beleza só pode aparecer depois de um insulto. Se a visita à exposição for seu primeiro contato com o artista, então deixe-se ofender, indigne-se, vire o rosto – e depois siga em frente. Um pouquinho de choque, você vai ver, faz muito bem.

Aliás, se você quiser uma dose um pouco mais forte, procure também aqui na internet, o que os irmãos Chapman fizeram com uma das séries de Goya. Numa exposição que rodou museus europeus e americanos entre 2002 e 2004, os artistas ingleses compraram uma coleção inteira dos “Desastres de guerra” e, bem, pintaram em cima de suas imagens. O horror! O horror!

Cruzei com esses trabalhos no P.S.1, em Nova York, nessa época e, já tendo lido alguns críticos indignados com a heresia que Jake e Dino Chapman tinham aprontado, confesso que me diverti com a ousadia. “O estupro da criatividade”, como o “novo” trabalho foi batizado, acrescentou principalmente rostos (ou máscaras, se preferir) com cor aos personagens desenhados por Goya. Só frisando: eles alteraram um trabalho original (ou quase original, já que se tratavam de gravuras – gravuras… originais!). E causaram mais tumulto do que quando fizeram uma versão tridimensional de “Grande hazaña! Con muertos!” – um trabalho polêmico, mesmo sem a marca registrada deles, aqueles manequins com um pênis no lugar do nariz e uma vagina no lugar da boca.

Já é o suficiente? Não. Com Goya, nunca é.

A ironia, com relação aos trabalhos dos irmãos Chapman (ao lado), é que nem nesses manifestos escabrosos eles são capazes de superar a genialidade do artista que os inspirou. Admiro (e até defendo) o trabalho de Jake e Dino, que estão perfeitamente em sintonia com nossos tempos – uma argumentação que certamente não cabe aqui. Mas nada substitui o encanto do original – um raro prazer que, insisto, quem tiver a chance de ir ao Masp não pode deixar passar.

E, só para criar um clima, se for possível, leia antes o livro “Os fantasmas de Goya”, de Jean-Claude Carriére e Milos Forman (Companhia das Letras). Se conseguir ver o filme do mesmo nome, dirigido por Forman, melhor ainda. As duas obras podem te ajudar a entender o contexto histórico de uma Espanha descarrilando entre o final da Santa Inquisição e os ventos da Revolução Francesa. Vale aqui reproduzir um trecho:

“Ele (Goya) sabe, como todo mundo, que a cidade de Madri está novamente em crise. Um pouco antes, um clarão havia iluminado sua janela. Mesmo sem ouvir nada, foi até lá, para dar uma olhada na rua, sem largar a paleta e os pincéis. Não viu nada. Uma explosão, certamente, ao longe. A gente se acostuma.”

É nesse momento conturbado que uma mente nada convencional (e não menos conturbada) sai criando algumas das imagens mais estupendas da humanidade – além, claro, daqueles asnos adoráveis…

You can dance!

qui, 15/03/07
por Zeca Camargo |
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Dependendo da sua geração, você pode achar que o título acima se refere a uma música do ABBA (“Dancing queen”) ou de Madonna (“Into the groove”). Ou, se você não era nem nascido na época em que essas músicas faziam sucesso (e nem tem a virtude de se permitir, bem de vez em quando, uma noite de flashback), mas acompanha as novidades musicais, você pode achar que eu estou me referindo a quatro lançamentos recentes – todos próximos de um gênero que um dia já foi chamado de rock. E é rock. Mas dá para dançar. E como. (Só por essa introdução, você já deve ter percebido que, apesar de o assunto de hoje ser sobre novidades musicais, ele não vai fazer parte da blitz/avalanche de palavras escritas sobre o novo disco do Arcade Fire – ufa!).

Comecemos com Mika – ou Freddie Mercury 2007, se você preferir. Lembra quando o Queen era considerada a maior banda de rock do planeta (se não lembra, vá ao wikipedia.com)? Isso mesmo, rock: com solos de guitarras, bateria poderosa, vocais histriônicos e… uma certa batida “dance”! Um blog como esse, sempre tão ligeiro, nem é lugar para discorrer sobre o que o Queen significou para a música pop – e para o rock. Ousadias (“Jazz”), cafonices (“We are the champions”), momentos únicos (“A night at the opera”) e bizarros (“Hot Space”) – o Queen tinha tudo. E tinha especialmente Freddie Mercury. Os fãs mais hidrófobos certamente já estão se incomodando com as comparações entre Mika e Freddie (assim como os fãs do Talking Heads se incomodaram tolamente com as comparações entre o vocalista do Clap Your Hand And Say Yeah com David Byrne…). Será que a voz do jovem libanês de 23 anos pode ser mesmo comparada com a do veterano inglês? Serão os arranjos de Mika iguais – ou quem sabe, superiores – aos do Queen? Ah… quanto tempo a gente perde discutindo esses detalhes, quando o que importa mesmo é que os dois artistas tem um ponto de convergência: um talento para a diversidade.

Logo da primeira vez que você ouve “Life in cartoon motion”, o disco de estréia de Mika, percebe que não está diante de um disco ordinário. “Grace Kelly”, a faixa de abertura – já um sucesso mundial – não se parece com nada que você ouve por aí nas rádios – nem nas rádios mais alternativas. Ao longo dos magros – ainda que fartos – três minutos e sete segundos da canção, você fica tentando encaixar aquele som em alguma categoria que você conheça – mas antes de que a música acabe, você percebe que o exercício é inútil.

A última vez que me senti atordoado foi quando ouvi “Hey ya!”, do Outkast, pela primeira vez (tudo bem, “Hey ya!”, ainda continua insuperável – mas estou falando da lembrança daquele primeiro contato, revivido com “Grace Kelly”). E, assim como aquela faixa me deu vontade de ouvir o álbum todo dezenas de vezes, entrei no mesmo processo com “Life in cartoon motion” (os vídeos, você encontra com facilidade na internet, mas se quiser entrar mais no mundo encantado de Mika, o link é esse www.mikasounds.com).

A experiência é parecida com a de uma criança que entra num parque de diversões pela primeira vez: você não sabe direito para onde olha – ou melhor, no que seu ouvido deve prestar atenção. Tudo cintila numa cornucópia de surpresas agradáveis – e, só lembrando, quase sempre dançantes. Da brincadeira de “Lollipop” à mensagem tipo auto-ajuda de “Relax (take it easy)”, você não quer mais largar. Aos poucos a comparação com Freddie Mercury vai se desfazendo e você nem pensa em reescutar seus antigos discos do Queen. Na verdade você não pensa em escutar mais nada – e tive de me esforçar para passar para os outros artistas que eu me propus a discutir aqui hoje. Estamos falando sobre rock que dá para dançar, certo? Então passemos ao Klaxons.

Os mais alternativos já se animaram… Klaxons é a banda cult da hora (ok, você pode ter adotado The View para jogar numa conversa para impressionar seus amigos… é bom também, mas não dá exatamente para dançar, então, vamos achar uma outra oportunidades para falar deles). E é fácil entender porque: embora não seja um TV on the Radio, eles são… cabeça! O termo é propositalmente fora de moda, uma vez que ninguém ainda inventou algo melhor para definir uma manifestação artística com um pé na pretensão – o que não significa que eu não adorei “Myths of the near future” – o primeiro disco “oficial” deles.

Se o Klaxons não vem com uma batida “dance” tão descarada quanto Mika, quando eles soltam um “groove” eletrônico, como na quase-perfeita faixa “Golden skanks”, é como se alguém ligasse um holofote sobre um enorme globo de espelhos iluminando uma discoteca lotada – e com um corinho tipo “ú-ú-ú” para animar. Essa é certamente a faixa mais pop de todo o álbum. Mas, mesmo nos momentos em que eles pegam um pouco mais pesado, eles vão fazer você vibrar (e, dependendo do que você consumiu na noite, sua cabeça pode até começar a girar descontroladamente ao ouvir, por exemplo, “Magick” ou “It’s not over yet” – a segunda melhor faixa do disco).

Eles são de Londres (de Stratford-Upon-Avon, se você gosta de ser fiel à certidão de nascimento de dois membros da banda; mas eles se formaram mesmo na capital inglesa), o mesmo lugar que permitiu que Mika florescesse. A cidade – sim, mais uma vez – vive um feliz renascimento musical. E o Klaxons pode se orgulhar de estarem liderando essa pequena revolução. Os vocais meio desordenados – quase “hippies” – são um charme à parte. Mas o que mais me fascina no som deles é capacidade de ressuscitar aquela vontade de fazer você dançar sob a influência de um som que – lá no fundo de sua consciência – você sabe que não foi concebido bem para isso. Experimente ficar imóvel ouvindo “Gravity’s rainbow” no seu iPod. Como eles mesmo cantam em “Golden skanks”, você pode esquecer seus planos futuros…

E o abando no só vai além se, por acaso, depois do Klaxons, Cold War Kids. Mais especificamente “Hang me up to dry”, a segunda faixa do CD “Robbers & cowards”, a estréia dessa banda californiana. Sim, saímos da Inglaterra, mas não do espírito que me faz conectar eles com Mika e Klaxons: “rock lives – but get into the groove, please!”. Você pode até achar que “Hang me up to dry” é um pouco lenta para levantar a massa… Recomendo então que você procure ouvir a “pré-histórica” “Heart of glass” (Blondie, 1979) para entender que nem só o que tem entre 160 e 180 bpm (batidas, ou “beats”, por minuto) é capaz de te fazer sacudir. Mas se você quiser algo mais rapidinho, vá até a faixa final, “Rubidoux”. Ou imagine o que um remix de “Tell me in the morning” poderia fazer para essa banda…

Mas melhor ainda é descobrir que o que liga essas três bandas não é apenas a possibilidade de uma pista de dança. “We used to vacation”, “Passing the hat” e “Hospital beds”, do Cold War Kids, remete às inspirações mais “mercurianas” de Mika. E o círculo se fecha… Mas não sem esses três ótimos discos mandarem uma mensagem – que não é nem nova, já que foi repetida por incontáveis bandas: “the beat goes on”…

(você, leitor/leitora mais atento/atenta, não deixou escapar: lá no início falei de “quatro lançamentos recentes” e, aqui no final fechei com “três ótimos discos”… não foi um engano… originalmente queria falar aqui de mais um álbum que não sai do meu iPod: “Hissing fauna, are you the destroyer?”, de uns caras sob o nome de Of Montreal; mas, dado o avançado do texto, vou deixar para apresentá-los uma outra hora – não são exatamente uma novidade, mas esse disco é o último lançamento deles; se você não agüentar de curiosidade, tente ouvir na internet, pelo menos o coro final de “Heimdalsgate like a promethean curse” – e veja se o grito de guerra “c’mon chemicals” sai de sua cabeça… “c’mon chemical-al-al-al-al-als” – viva! viva!)

Como reconhecer uma novela de Gilberto Braga

seg, 12/03/07
por Zeca Camargo |
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Quantas novelas você já viu onde um cenário de bastante exposição (pelo menos no primeiro capítulo) é decorado com um quadro de Beatriz Milhazes? Onde mais você pode ouvir, com naturalidade, sem afetação, uma neta chamar a avó dizendo: “Vem ver uma coisa maneira que eu fiz no computador” – segundo antes do genro dessa avó detonar a melhor piada da semana (descontando as da visita do Bush ao Brasil), sobre um falso classificado de jornal no qual uma senhora de respeito (sua sogra) estar recrutando amantes jovens para receber em seu apartamento?

Separei esses dois momentos da primeira semana de “Paraíso tropical” (o primeiro, do capítulo de estréia, e o segundo, do de anteontem), para reforçar minha tese de que, em matéria de acelerar o ritmo da modernidade da discussão sobre a cultura e a sociedade brasileira, difícil alguém fazer tão bem quanto Gilberto Braga.

Sim, eu sei: aos já quase 44 anos, eu não posso disfarçar que cresci sob o signo de “Dancin’ days” – a novela de sua autoria (1978), que é das poucas que merecem o aposto “um trabalho que revolucionou a TV brasileira” (para mais informações, consulte a wikipedia – o que eu mesmo fiz agora há pouco, descobrindo, entre outras coisas, que ele escreveu minha “Corrida do ouro”, uma das primeiras novelas de que me lembro; aliás, devo acrescentar que eu nem sabia que “Dancin’ days” era um verbete… mas onde isso vai parar?). Tudo bem que ele já tinha adaptado “A escrava Isaura” – um comprovado sucesso internacional, se não intergaláctico! Sei que é difícil para quem tem menos de 25 anos entender isso, mas o país de fato parou para assistir a história da ex-presidiária Julia Matos (Sônia Braga). Toda a metáfora do processo de anistia política pelo qual o Brasil passava estava ali na novela, disfarçado de folhetim, mexendo com a cabeça de uma geração (a minha) que tentava entender algo que a história oficial não registrava… Impossível negar suas marcas.

Ainda falando em marcas (e no intuito de tornar este meu post transparente), tenho de confessar que a cobertura da novela “Vale tudo”, de 1988, (na foto ao lado) foi um dos pontos altos da primeira fase da minha carreira como jornalista – e olhe que, ao contrário do que você possa estar pensando, eu não trabalhava na redação de uma revista de celebridades (isso foi bem antes desse fenômeno), mas no caderno cultural de um dos jornais mais lidos e respeitados do país. Foram semanas onde a missão mais importante era descobrir uma pista sobre quem teria matado Odete Roitman – e como era bom!

Isso para citar apenas dois momentos “formadores”. Durante todos esses anos, foi sempre um prazer ver para onde a lente de Gilberto Braga iria apontar. Até que em 2003 ele veio com a prova cabal de que seu radar era infalível: em “Celebridade”, tratou do assunto de maneira irônica, bem-humorada, provocadora e – seria desnecessário acrescentar, mas, vamos lá! – inteligente (e ainda por cima driblando o curioso obstáculo de não ser auto-referente, sem citar demais a própria usina maior dessas criaturas, que é a televisão).

Entra “Paraíso tropical” – e que entrada! Um minuto e vinte segundos de um plano-seqüência (como é chamada, em “dialeto cinematográfico” uma cena longa onde várias ações acontecem em seguida uma da outra, mas sem cortes) onde boa parte do elenco – e dos personagens, claro – é apresentada. Sai de um glorioso cenário de céu e mar azuis, atravessa a areia e chega ao não menos glorioso Copacabana Palace. Depois de ter visto isso, sosseguei: o que vinha em seguida só poderia ser bom. E era: outro plano-seqüência, na calçada de Copacabana, à noite – um pouquinho menor (1 minuto, 18 segundos), um pouquinho mais simples, mas tudo de bom (e aqui os créditos vão também para a direção de Dennis Carvalho, evidentemente…).

Teria sido facílimo, para segurar o público, sair dali para uma cena de Camila Pitanga (vou usar apenas os nomes dos atores e atrizes, pois ainda não gravei seus personagens) dançando no poleiro vertical, no prostíbulo que sofre a ameaça de ser fechado no litoral da Bahia. Quinze segundos, que fosse, de Camila dançando com qualquer uma das roupas que ela desfilou esta semana na novela seriam capazes de fazer loucuras com a audiência. Mas Gilberto Braga corta dessa abertura espetacular para uma cena de humor – a expulsão de uma “organizadora de festas” (a definição correta está logo abaixo) de um prédio em Copacabana não era exatamente uma cena de humor, vá lá… mas que a troca de vitupérios entre síndica e cafetina ficou hilária, ficou.

Em seguida, somos introduzidos aos conchavos, traições, disputas de interesses e hipocrisias nos bastidores de uma famosa rede de hotéis. Tudo complicadíssimo – ou melhor, seria complicadíssimo se não fosse contado com a habilidade de Gilberto Braga (e com a competência do elenco, claro). Só depois de “exigir” tanta atenção de seus telespectadores, o autor entrega Camila Pitanga. Ali mesmo no bordel, um rumor de que ele vai ser fechado já abala a tranqüilidade, mexe com a saúde da dona do estabelecimento (Suzana Vieira), e leva à sua declaração “bombástica”: ela não pode morrer sem contar um segredo à filha. De quebra, só para encerrar, Fábio Assunção é salvo de um naufrágio por Alessandra Negrini, numa seqüência de sofisticados efeitos visuais.

Esse é um resumo bem sumário do primeiro capítulo. A semana se desenrolou num ritmo talvez menos frenético, mas não menos esperto – e certamente não menos sensual. Se alguém duvida é porque não assistiu o capítulo de sábado onde ela transa safadamente com Chico Diaz em cima do capô de um carro (numa praia deserta!) e vai para o trabalho dar um selinho na sua colega antes de pegar seu turno da dança. “Sexy time” – como diria Borat!

Resumindo: do quadro de Beatriz Milhazes ao selinho de Camila Pitanga, tudo é moderno – e é assim que reconhecemos uma novela de Gilberto Braga. Já estamos num outro patamar – e isso com apenas seis capítulos!

Tudo indica que esses flashes de uma vida cotidiana vibrante e antenada vai continuar. Na chamada que vi hoje, Vera Holtz tira uma foto roubada de um beijo entre Tony Ramos e Maria Fernanda Cândido. Como ela tira a foto? Do seu celular – assim como milhões de adolescentes fazem nas baladas para depois colocar nos seus flogs (e se possível destruir a reputação dos meninos pegadores…). O jogo de sombras entre fato e fofoca, hoje tão bem articulado na mídia de celebridades, já fez do personagem de Fábio Assunção a primeira vítima (uma brilhante meta-referência, quando você lembra que o próprio Fábio, ator e “pessoa”, está sujeito a cair nas mesmas armadilhas na vida real). E toda a discussão sobre prostituição e turismo sexual (inclusive o aliciamento de menores) promete ser fresca e pertinente, sem pieguice nem meias-palavras.

Acredito que mesmo as ferramentas mais previsíveis – gêmeas que não se conheciam, um possível crime misterioso (que é uma de suas marcas registradas), chantagens implacáveis etc. – vão se suceder numa narrativa tão sedutora, que, pelo menos pelos próximos meses, vou ser obrigado a marcar os jantares com os amigos depois das dez horas da noite…

Mal posso esperar para, quando o desfecho vier, eu olhar para a história toda e falar (mais uma vez): o país que eu adoro viver é assim. Obrigado, Gilberto.

Notas sobre um escândalo

qui, 08/03/07
por Zeca Camargo |
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Previsivelmente, aquele vídeo com imagens minhas fazendo danças orientais chegou à TV – curiosamente num programa que sempre foi legal por ser imprevisível… Que material delicioso para meus colegas blogueiros! Foi pura diversão – mas talvez ninguém tenha se divertido mais do que eu com a inesperada conclusão de que algumas pessoas ainda insistem em condenar o que eu acredito que deve ser celebrado: a capacidade de passar da informalidade da dança para a seriedade do meu trabalho como jornalista com extrema facilidade, desenvoltura e, dizem, com competência. E isso porque cito aqui apenas dois aspectos das minhas atividades… Entre passado e presente – e, tomara, o futuro também – a diversidade das experiências que experimento é tão rica que só posso lamentar que mais pessoas não tenham essa oportunidade. Talvez seja essa falta de perspectivas que gerou um “debate” (e põe aspas nisso) tão inócuo – para não falar dos comentários que recebi aqui e na minha caixa postal (invariavelmente anônimos, claro) que beiravam (quando não ultrapassavam) o limite da cordialidade virtual – uma tentativa pífia de transformar episódio num escândalo…


Aliás, tenho que pedir desculpas, pois, mais uma vez, você foi enganado pelo título de um post meu. “” não se refere aos acontecimentos que descrevi acima – como eu poderia considerar “escandaloso” um trabalho que fiz com dedicação, prazer – e, dentro do cenário da dança, com uma boa dose de profissionalismo? Se rever o vídeo despertou alguma coisa em mim foi uma certa saudade daquela forma física que já não tenho mais (lembrando sempre que o material foi gravado no início dos anos 90, quando a natureza ainda estava jogando a meu favor…). Esse assunto está bem resolvido, vamos em frente.

Chamei este post de “” para falar – sim – de mais um filme que estava na seleção do Oscar. É o última vez que vou recorrer ao Oscar, ok? Muitos são os títulos que concorreram (inclusive os que ganharam algumas estatuetas) que ainda poderiam ser comentados. Mas fiquei com mais vontade de ir adiante nas minhas escolhas cinematográficas porque o que sobrou para eu assistir não me inspira. “Babel”? Cansei de encontrar gente que detestou e me desestimulou de assistir. “Dreamgirls”? Eu mesmo me comprometi a fazer uma crítica comparada dele com “Antônia“, lembra, mas o desestímulo de quem viu também bateu forte. Os dois de Clint Eastwood? Se era só para conferir a fotografia (e evitar a nada subliminar “mensagem americana” – leia-se “propaganda”), acho que o trailer de “Cartas de Iwo Jima” já é suficiente (e que fotografia, hein?).

Minha opção então é falar de mais um pequeno filme para encerrar a temporada. Pequeno filme, claro, não é a melhor maneira de descrever “”. Mas uso a expressão para definir esses filmes que não têm um grande lançamento nos cinemas por aqui – e às vezes nem o tiveram no exterior. Um distribuição menor, infelizmente, significa que o filme chega a um público menor. Os dois trabalhos comentados no último post, “Vênus” e “O último rei da Escócia”, também estão neste grupo. Nenhum dos dois, porém, é algo menos que “brilhante”. E isso serve, claro, para “Notas”.

O diretor Richard Eyre, conhecido por trabalhos “pequenos” (veja a definição acima), saiu com vantagem, pois estava trabalhando com uma história que já era muito boa: o livro de Zoe Heller (que na tradução brasileira recebeu o nome de “Anotações sobre um escândalo”, editora Record). Como se esse não fosse um belo empurrãozinho, ainda tem o elenco, encabeçado simplesmente por Judi Dench e Cate Blanchett. Com tantos ingredientes bons, seria difícil não sair com um filme interessante – e o que o público recebe, ao sair da sessão, é mais que isso: um belo estudo sobre manipulação.


Podia gastar bem mais de um parágrafo descrevendo como Judi Dench, no papel de uma professora veterana de uma escola pública de Londres que acredita esconder um segredo de todos os colegas. Mas recontar aqui qualquer uma de suas cenas é roubar você do prazer de ver o filme – se é que você vai conseguir pegá-lo em cartaz depois de ler isso (como as programações mudam amanhã, na sexta, e como “Notas” não foi agraciado com nenhum Oscar, as chances de ele sumir das telas em menos de 24 horas é grande; mas… viva o DVD, que logo vem aí para resolver essa questão!). O que é interessante ressaltar é que, mesmo no papel de uma vilã, a atriz consegue fazer com que você torça para ela. E isso é o aspecto mais fascinante do filme: não é só para a professora má que você torce – quando você vê, passou o tempo todo torcendo para todas as pessoas “erradas”.

Mais algumas explicações: Bárbara (a professora) manipula Sheba (Cate Blanchett, no papel de outra professora) porque descobriu que ela tem um caso com um aluno de 15 anos de idade. Bárbara, por sua vez, tem um interesse, digamos, especial por Sheba – que é casada, com um homem bem mais velho (possivelmente da idade de Bárbara) que foi também seu professor… Complicado? Você não viu nada…

Todas as paixões do filme são desencontradas. Mas ao contrário daquelas mostradas em “Pecados Íntimos” elas não são reprimidas. São vividas com perigosa intensidade. O escândalo do título da história está no singular, mas seria mais correto usar a palavra no plural. Cada um daqueles personagens, do garoto de 15 anos – Andrew Simpson, no papel de Steven – ao diretor da escola; da ex-”amiga” de Barbara (como ela prefere se referir à antiga companheira) ao marido de Sheba – todos vivem ali seus pequenos escândalos. E você torce por todos eles.

Vá ver o filme – e encerre comigo essa temporada de Oscar. Sei, sei… Ela chegou (e vai embora) meio atrasada, mas nós aqui no Brasil, lamentavelmente, temos que aproveitar os lançamentos desses filmes indicados depois da cerimônia, e não antes, como os americanos… Mas chega. O resto fica para o DVD – e, se for o caso, comentamos uma outra hora.

Até porque, só lembrando, este não é um blog só de cinema… Temos muitos outros assuntos para tratar aqui. Segunda-feira, vamos de “Paraíso tropical”. E depois tem Gilbert & George, Racionais MC, Klaxons, The View, Dave Eggers, Elis Regina – e quem sabe até outros filmes – para falar.

Vamos em frente. Sempre.

Maus meninos

seg, 05/03/07
por Zeca Camargo |
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A vontade de escrever sobre a nova novela de Gilberto Braga, que estréia hoje, é tão grande que estou quase tecendo aqui algumas linhas baseadas apenas nas chamadas. Os mais cínicos já estarão vendo nesta introdução uma ardilosa peça de merchandising – especialmente os que acham que novela não é algo que possa ser discutido num espaço tão aberto como este… Meu conselho é que guardem seus comentários para a semana que vem, pois acho que vou conseguir controlar minha ansiedade, assistir esses primeiros capítulos de “Paraíso tropical”, e escrever sobre isso só na próxima segunda-feira. Aguarde.

Hoje, só pelo prazer de estar ligeiramente fora de sintonia com o trem da mídia, quero retomar uma categoria do Oscar (lembra… foi no século – quer dizer, no domingo passado…) sempre muito desprestigiada, mas que este ano me deu bons motivos para sair alegre do cinema: a de melhor ator. Não vou exatamente analisar cada uma das cinco performances, mas focar em apenas dois dos indicados: o vencedor e um derrotado – como se fosse possível chamar Peter O’Toole de derrotado…

Resolvi juntar os dois, pois tanto O’Toole, quanto Forest Whitaker brilharam com papéis bastante diferentes, mas que, no fundo dividem uma estranha semelhança: ambos estão na pele de transgressores incorrigíveis. Em escalas bastante diferentes, é verdade. Mas incorrigíveis.


Primeiro O’Toole. Só consegui ver “Vênus” semana passada, depois da premiação do Oscar. Já havia assistido “O último rei da Escócia” pela primeira vez (vi mais de uma!) na semana anterior, e sabia que, diante de um papel como o de Idi Amin, Maurice (o personagem de O’Toole em “Vênus”) teria poucas chances. Afinal, pelas notas curtas de jornais e internet, tudo que sabia desse seu trabalho era que seu personagem era um homem de idade avançada que se encantava com a beleza de uma jovem adolescente – ou, se você preferir, um velho babão! Ah, como as sinopses dos filmes são incompetentes…

Maurice é bem mais que isso, claro. À beira dos 80 anos, debilitado fisicamente, vivendo de migalhas de uma carreira brilhante como ator, o personagem de Peter O’Toole é um retrato da decadência – se não exatamente decrépita (menos ainda melancólica), ao menos uma decadência ordinária. O fato de ele ter, como o filme sugere, uma história de sucesso profissional e o que parece ser um casamento feliz, torna a realidade de Maurice ainda mais triste. Condenado a tardes preguiçosas num café sem charme, trocando pílulas com seu melhor amigo (Ian, interpretado por Leslie Phillips), ele vê nascer um sopro de entusiasmo na sua vida quando a filha de uma sobrinha de Ian vai morar com ele. Recém saída da adolescência, Jessie (Jodie Whittaker) está longe de ser uma das 235.654 garotas mais bonitas da vizinhança. Mas ela é jovem – e gravita na órbita de Maurice. E isso basta.

O velho se apaixona perdidamente pela mocinha. Mas cuidado com esse verbo… O que nós vemos desenrolar na tela é menos um tórrido (sequer melancólico) romance do que uma devastadora perversão. Com sua impotência agravada por um diagnóstico de câncer de próstata (revelado logo no começo do filme), Maurice sente um estranho tesão por Jessie – e joga fora todos os limites da decência para conseguir fragmentos de afeto, como tocar a mão dela, dar três (e apenas três) beijos em seu pescoço, sentir o cheiro da vagina daquela que ele rebatiza inutilmente de Vênus.

O apelido é uma referência direta ao quadro de Velásquez (o pintor dos pintores!), “Vênus com espelho”, que Maurice mostra para Jessie durante um passeio na National Gallery em Londres. A jovem, que não se interessa por nada que não passe pelo “filtro” das celebridades na TV, nem consegue disfarçar seu desinteresse pela pintura. Seria aquela cena ideal para um daqueles momentos transformadores (um clichê tão comum em Hollywood), onde uma prostituta (ou qualquer outra personagem “d’alma perdida”), embalada por um pretendente de nobres intenções descobre o mundo da arte e a pureza dentro de seu próprio coração… Mas “Vênus” felizmente não é Hollywood. A história foi escrita pelo genial Hanif Kurueshi (“O Buda do subúrbio”, “O álbum negro”, “O dom de Gabriel”, “Intimidade” – pode procurar seus livros nas boas casas do ramo, inclusive as virtuais…) e você sabe que a tal epifania não vai acontecer.

Jessie não é transformada pelo poder da arte, muito menos pela emoção. Sua relação com Maurice vai se tornando cada vez mais degradante – e se o final é, digamos, redentor, é mais por compaixão dela do que pela compreensão dela do que se passou entre os dois. E nessa ladeira (sempre abaixo) da humilhação, ninguém teria feito melhor esse papel que Peter O’Toole. Aquele que já foi um dos rostos mais belos do cinema nos apresenta a velhice sem uma nota de candura. Ele baba, ele tropeça, ele se embebeda – não tem nada de bonitinho nessa terceira idade. Porém, mesmo assim, é difícil não admirar Maurice. Talvez até por sabermos que um dia vamos viver aquilo tudinho, talvez com um pouco mais ou um pouco menos de sacanagem do que ele – mas não temos como escapar, e sabemos disso. Por isso nos emocionamos com a cena do jantar com sua ex-mulher (a soberba Vanessa Redgrave). Por isso sentimos o mesmo que ele quando seu pé descalço toca o mar gelado. Todos nós, como Maurice, procuramos o prazer. Mas só Peter O’Toole talvez saiba tirar da frustração de não conseguir mais alcançá-lo um retrato duro e comovente.


A perversão de Idi Amin, contada em “O último rei da Escócia” é, claro, de outra espécie – e, espero, mais difícil de encontrar um ponto de identificação com o público… Não que as fantasias sensuais estivessem fora da pauta do ditador que levou Uganda ao caos nos anos 70. Mas com o poder que acumulou nesses anos de destruição, o sexo era um mero detalhe numa trilha de decadência moral que ia muito além de um “mero” desrespeito pelos padrões sociais de relacionamento. O que Amin não respeitava mesmo era a vida – e a interpretação perfeita da confusão de alguém que não sabe mais em quem confiar foi o que, na minha opinião, deu a estatueta a Forest Whitaker.

Idi Amin, acusado de ser atos que vão do canibalismo ao genocídio, não era o mais esperto dos déspotas. A categoria não prima pela esperteza, como se sabe… Basta conferir uma lista com os piores ditadores da atualidade, publicada pela revista britânica “Newstatesman” (www.newstatesman.com) em setembro do ano. Idiossincrasias à parte, todos tem em comum uma tendência ao pensamento curto – para colocar de uma maneira elegante… Kim Jon-il (Coréia do Norte), Saparmurat Niyazov (Turcomenistão), Teodoro Obiang Nguema (Guinéa Equatorial), Alexander Lukashenko (Belarus) – todos desfilam, nos perfis da revista com um elenco de idiossincrasias e feitos que beiram o ridículo. Beiram não – ultrapassam. Mesmo assim, Idi Amim parece ter superado todos eles (Robert Mugabe, o atual líder do Zimbábue, com uma biografia que ainda é uma “obra aberta” de atrocidades e julgamentos infelizes promete roubar-lhe este título).

Se, no início do filme, ele aparece como um grande líder, com um dom excepcional para falar com multidões, aos poucos ele vai se revelando um coitado, alguém tão desorientado em seus instintos e princípios que qualquer um pode exercer grande influência nas suas decisões. Não é fácil representar esse estado sutil entre a debilidade moral, a fragilidade intelectual e uma enorme autoridade. Mas Whitaker cumpre a missão com louvor (e o filme deve ser visto por outros méritos além de sua interpretação).

Seu olhar manco, aquela boca que parece esperar os comandos das cordas de uma marionete para reagir, e toda um expressão corporal dividida entre a astúcia e a covardia foram as ferramentas essenciais para o ator representar uma figura tão bizarra. Idi Amin, o “mito”, é fruto de uma ambição que deu horrivelmente errado – e fez um mal terrível à humanidade. Maurice, apesar de não ter deixado um rastro de destruição – a não ser o seu próprio, também é vítima de suas frustrações. E seria apenas esse o ponto comum entre eles, não fossem os dois personagens (um na ficção e outro na vida real), veículos para atuações estupendas.

Só uma premiada, como sabemos. Mas O’Toole e Whitaker nos deram boas razões para nos perguntarmos mais uma vez… De que valem esses prêmios mesmo?

Então você quer saber como é o Harry Potter sem roupa?

qui, 01/03/07
por Zeca Camargo |
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Imagine que você é conhecido mundialmente por interpretar, no cinema, o personagem de ficção mais popular do seu tempo. E que esse personagem é um pré-adolescente cujo maior atrativo é o poder da magia – não a magia da imaginação, da inocência ou da pureza ainda intocada pelo mundo dos adultos, mas uma magia daquelas de varinha encantada mesmo, com direito a vassouras voadoras e chapéus enfeitiçados. Quando esse personagem estreou no cinema, em 2001, você tinha apenas 12 anos. Já é 2007 e, como a série de filmes que você estrela é um dos franchisings mais lucrativos do cinema mundial, sua perspectiva de carreira, depois de já ter protagonizado quatro títulos na pele desse personagem, é continuar a fazer a mesma coisa pelo menos por mais dois anos. O que você faria para romper com a imagem que pode amaldiçoar sua carreira de ator (mesmo que ela tenha sido imensamente lucrativa)? Fácil: uma peça adulta onde você aparece pelado!

O tal personagem – como você provavelmente já deduziu – é Harry Potter. O ator em questão, Daniel Radcliffe. E a peça com a missão de salvar sua carreira é “Equus” – um “clássico” dos anos 70, numa remontagem no West End londrino, que eu tive a oportunidade de ver na semana passada. Isso implica, obviamente, em ter visto Harry Potter/Daniel Radcliffe nu por cerca de 20 minutos (talvez um pouco mais) no placo. Porém, se é só para saciar essa curiosidade que você está lendo este texto, paciência. Vamos primeiro falar da peça.

“Equus” foi um tremendo sucesso do século passado – mais precisamente, dos anos 70. Estreou em Londres, em 1973 e logo foi para a Broadway nova-iorquina, ganhando todos os prêmios da temporada. Virou filme, estrelado por Richard Burton, e teve até uma montagem brasileira, com Paulo Autran e Ewerton de Castro – ambos dirigidos por Celso Nunes, em 1976. É, a princípio, um típico produto da década: um drama psicológico, sobre um garoto de 17 anos, que tem uma obsessão por cavalos – e que inexplicavelmente, numa noite de fúria, cega seis garanhões na estrebaria onde trabalha. “Equus” catapultou para a fama seu autor, Peter Shaffer – que ainda assinaria um outro sucesso internacional, já nos anos 80: “Amadeus”, sobre o arqui-rival de Mozart, Antonio Salieri.

Por que chamar a peça, agora remontada, de “um típico produto da década”? Logo no monólogo inicial, o psiquiatra que vai cuidar do jovem perturbado engata numa longa reflexão aparentemente abstrata – e você logo pensa: “blá blá blá de divã”… E tem mesmo muitos trechos assim na encenação – a ponto de eu, em vários momentos, quase desistir de acompanhar o que está acontecendo. Mas, aos poucos, a trama vai ficando clara, e quando você percebe, já está totalmente envolvido pela ação que se desenrola no palco. E Radcliffe ainda nem tirou a roupa…

O que “Equus” pretende colocar é uma interessante provocação sobre desejo e paixão. Traumas infantis, mitologia grega, dúvidas morais, dialeto “psiquiatrês” – tudo isso vai aparecendo no texto como distrações impertinentes. Mas quando se ultrapassa esses obstáculos, o que fica é uma bela história sobre o que realmente nos move – o que nos faz distintos uns dos outros e o perigo de se subtrair de alguém justamente as paixões que nos tornam únicos.

Martin Dysart, o psiquiatra interpretado por Richard Griffiths nessa versão que eu assisti, pergunta-se, numa das cenas mais comoventes, se vale a pena concluir o seu trabalho. Ele sabe que tem o poder de curar (talvez “reformar” seja um verbo mais apropriado) o garoto – mas hesita heroicamente, sem saber se é isso que vai fazer dele alguém normal. Isso porque a normalidade aparente dele, do próprio Dr. Dysart, lhe parece vazia: entre um casamento de décadas (no qual ele admite que sequer deu um beijo em sua mulher nos últimos seis anos) e uma punheta diante da cabeça suada de um cavalo-deus, ele se vê fortemente tentado a achar que a segunda opção faz mais sentido.

Mesmo inseguro, o psiquiatra segue com o tratamento – que culmina então na caótica cena que obriga o ator que interpreta Alan Strang – o inquieto personagem – a tirar toda a roupa. No caso, claro, Daniel Radcliffe. Ou Harry Potter – se você preferir.

À cena, então – mas não sem antes um esclarecimento. Eu mesmo já experimentei a sensação de entrar nu em um palco. Em 1994, dirigido por Bia Lessa, na peça “Futebol” (de Alberto Renault), eu vivi minha primeira (e única) incursão profissional no teatro. Fazia o papel de um padre, que dominava todo o conhecimento numa ilha distante que ainda não conhecia o jogo que é nossa paixão nacional até que um inglês chegava com uma bola e um punhado de regras engraçadas. Resumindo bem uma história que é bem mais sofisticada, o padre se incomoda horrores com essa turbulência na ordem da ilha – e, de repente, numa cena em que está se preparando para uma missa, entra sem roupa em cena e se veste para a cerimônia na frente do público.

Se você passou pelo teatro do Sesi, em São Paulo, nessa época, talvez tenha visto essa minha… “interpretação” (as aspas estão aí para deixar claro que eu não poderia me colocar no mesmo patamar de um elenco que tinha Maria Luiza Mendonça, Geórgia Gomide e Carlos Moreno – mas vamos falar sobre isso numa outra oportunidade). O que significava, para mim, estar nu diante de uma platéia? Difícil de explicar. A princípio era uma coisa inconseqüente – me lembro que ficava, não incomodado, mas intrigado com os risos nervosos que de vez em quando apareciam. Será que essas pessoas não estão prestando atenção na cena?, eu me perguntava. Será que o “frisson” de ver alguém sem roupa (especialmente alguém que já era conhecido de um outro referencial – uma vez que eu já tinha trabalhado na MTV) ainda era tão provocante assim, em pleno 1994? A resposta: sim. E treze anos não mudaram muita coisa.

Ainda antes de saltar para a nudez de Potter/Radcliffe, porém, não posso deixar de associar a lembrança desses faniquitos que o público tinha diante da minha imagem sem roupas em cena ao curioso interesse que um vídeo onde apareço fazendo uma dança oriental – gravado há anos, e recentemente “descoberto” pelos internautas – vem provocando. Você não vai ter dificuldade de encontrá-lo, tenho certeza – desde que a garota que me convidou para gravar a performance o disponibilizou para o inescapável universo da web. Não chamo esse interesse de “curioso” à toa. Fico verdadeiramente lisonjeado com a atenção que essas imagens despertam – certamente não é nada que pudesse me envergonhar… Pelo contrário. Não é segredo que fui dançarino e professor de dança durante anos, durante a década de 80 e comecinho dos anos 90. Trabalhei sempre com um verdadeiro mestre chamado Ivaldo Bertazzo – cujo trabalho ainda quero ter a chance de comentar aqui no blog. Percebo que o tal vídeo, inspirado, como disse, em danças orientais (inclusive “do ventre” – que, ao que parece, é o que está provocando tanta turbulência), tem causando esse curioso interesse, pelas menções em vários sites (inclusive de humor) e em comentários que recebo aqui – e que não são publicados ou por não terem a ver com o assunto do post a que ele deveria se referir (ou de qualquer outro post deste blog – você não tem idéia como as pessoas viajam…) ou porque são de um conteúdo extremamente ofensivo (geralmente contra mim, mas também contra toda a categoria de artistas, bailarinos, atores – quando não jornalistas…). E que são, claro, anônimos… (ah, o confinamento de não poder se expressar abertamente… deve doer…).

Faço a associação entre o vídeo, minha cena em “Futebol” e Daniel Radcliffe pelado por uma razão muito simples: estão entre as coisas difíceis de a opinião pública lidar. Não pretendo aqui comparar o nível da minha projeção profissional com a de alguém que é raramente citado pelo seu nome próprio – e, quando o é, vem sempre com o aposto de seu personagem, Harry Potter. Mas acho fascinante ver como a caretice e a repressão ainda governam nossa curiosidade…

O título deste post era, certamente, uma isca. Se você me acompanhou por tantos parágrafos (e, até o final desses parênteses, por mais de 1.384 palavras e doze parágrafos), é porque talvez queira mesmo saber como é o Harry Potter sem roupa… Será que, só por isso, eu tenho o direito de chamar você de pervertido ou pervertida? Veja que reflexão interessante: o que trouxe você até aqui? O comichão do voyeur? Seu entusiasmo (ou talvez fanatismo) por um personagem da literatura jovem? Uma genuína paixão pelo teatro? Uma inércia ocular-cerebral? Ou a construção do próprio texto?

O caminho realmente não importa. A essa altura, você merece saber que a nudez de Radcliffe incomoda bem menos do que um fã médio de Harry Potter (como eu) pode supor. De cara, mesmo com o ator ainda vestido, o que estava me distraindo mais era a perturbadora semelhança entre ele e um primo-irmão meu – que vejo, infelizmente com pouca regularidade. Com a nudez, então, esse “ruído” ficou ainda mais sensível – e tive de me concentrar para não pensar nisso. O que estava diante de mim era Radcliffe/Potter fumando, soltando palavrões pesadíssimos e se despindo. E daí?

Se seu interesse é apenas anatômico, vou ficar devendo na descrição. De estatura (ainda) baixa com traços ainda indefinidos, Radcliffe, do alto de seus 17 anos, tem a graça dos contornos que a adolescência lhe presenteia (e sobre a qual já falei aqui no post de 11/01/07). Da platéia, em sua maioria inglesa, não arrancou suspiros. E deveria? Era a genitália do ator que estava ali sendo avaliada – apreciada? Ou sua capacidade de interpretar um personagem extremamente complexo?

Não vivo num mosteiro – e sei das tentações que a mídia de celebridades lança diariamente no nosso dia-a-dia. Não vou aqui disfarçar inocência e ignorar a genuína curiosidade daqueles que reforçam seu cotidiano muitas vezes sem-graça com uma dieta de fotos. Um beijo roubado, uma calcinha ausente, um choro indiscreto, um púbis quase exposto (como nas imagens de divulgação da peça, que você pode até encontrar no site www.equustheplay.com) – ou mesmo um vídeo de dança oriental…

Fico imaginando um evento semelhante no cenário barsileiro: por exemplo, se Cauã Reymond interpretasse o adolescente de “Equus”? Ou Bruno Gagliasso? Ou, para ficar mais próximo da faixa etária do personagem, Kayky Brito? Já imaginou o barulho que ia fazer? Agora imagine quantas pessoas iriam ao teatro para conferir se esse ator estaria mesmo fazendo um bom trabalho de interpretação… Ah, as armadilhas da fama…

Daniel Radcliffe foi corajoso ao escolher essa peça para dar uma guinada em sua imagem. Os aplausos, ao final da performance, eram vigorosos e – já descontada a tietagem – genuínos. Talvez quem tenha pago até 50 libras esterlinas (preço de bilheteria – cerca de R$ 200,00) para ver um “pingolim” famoso tenha saído decepcionado. Mas quem achou que ia ver um bom espetáculo deixou o teatro com a sensação de que pagou barato…



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