Corpos malditos

qui, 11/01/07
por Zeca Camargo |
categoria Todas

Não é sempre que você encontra uma canção em um musical da Broadway cujo refrão (e título) explode num verso simples assim: “totalmente fodido” (no original, “totally fucked”). Também não é sempre que você encontra na Broadway um musical como “O despertar da primavera”.

Os mais familiarizados com clássicos do teatro talvez tenham reconhecido o nome da peça de 1891 escrita pelo alemão Frank Wedekind – um rebelde (e como!) do seu tempo. E aí as coisas começam a ficar ainda mais confusas. Um autor considerado ousado para sua época transplantado para um ambiente careta como a Broadway de Nova York? Mas vamos complicar ainda mais: quem assina as músicas é Duncan Sheik – uma espécie de semi-divindade no cenário alternativo americano. E a coreografia (ainda que tímida) é de Bill T. Jones (que nos bons tempos em que São Paulo dava importância à dança já veio se apresentar por aqui). O primeiro ato tem a canção mais triste jamais escrita sobre um pai molestando uma filha – “The dark I know well”. E a última cena termina com uma defloração (bastante explícita) de Wendla por Melchior – dois adolescentes, entre tantos na história da peça, deliciosa e cruelmente atormentados pelos hormônios que começam a dizer que seus corpos precisam de outros.

Ah – esqueci de acrescentar que é o sucesso (de público e crítica) da temporada. Só posso concordar.

E não apenas porque sou fã de Duncan Sheik. Tudo bem – ser fã de Duncan Sheik ajuda, pois o conjunto de músicas que ele criou é sensacional (você pode encontrar fácil, fácil na internet – compre sem susto). Usando com bastante liberdade o texto de Wedekind, Sheik criou canções que, mesmo sendo fundamentais para a costura da história apresentada no palco, teriam vida independente nas melhores rádios alternativas. Da já citada “Totally fucked” à outra que também tem um título que a maioria das publicações americanas não publica na íntegra (“The bitch of living” – que pode ser traduzido apressadamente como “A merda de viver” – aparece grafada na própria capa do CD com a trilha sonora da peça como “The ***** of living”!), todas canções são de uma melodia que qualquer banda emo time B (e algumas do time A) entregariam seus royalties para ter gravado.

O elenco, de esmagadora maioria super jovem (apenas dois atores mais velhos interpretam dois papéis identificados no programa da peça como “o homem adulto” e “a mulher adulta”), canta tudo com a energia de quem não consegue mesmo entender o que está acontecendo com o seu metabolismo e só tem suas cordas vocais apara expressar tanto desejo. Até, claro, quando alguns descobrem outras partes do corpo para dar vazão a tanta “energia” guardada (já existia “tesão” no século 19?) – e se arrependem amargamente das conseqüências.

Que tema mais atual – talvez você já esteja pensando. De fato. Aliás, os clássicos não servem exatamente para isso, para nos lembrar de que as grandes questões nunca são resolvidas? Mas de quantas remontagens de clássicos você já teve vontade de sair no meio? Nessa versão de “O despertar da primavera” o único impulso que você tem de levantar é para cantar junto com os atores – ou para dançar.

Outro mérito da encenação, como foi observado pelo crítico Jeremy McCarter, da “New York”, é ter driblado as fórmulas e convenções da Broadway. O diretor Michael Meyer, colocou uma banda de verdade no palco – e até cadeiras para alguns espectadores no mesmo espaço – e o clima é mais de um show de rock do que de um musical (ainda citando McCarter, uma adaptação de “Alta fidelidade”, do livro de Nick Hornby, transformou o universo da música alternativa – tão bem descrito pelo escritor inglês – num pastiche de Broadway e teve sua temporada recentemente cancelada após apenas duas semanas em cartaz).

Assim, falando de temas que não são nada estranhos aos próprios adolescentes, “O despertar da primavera” (“Spring awakening – a new musical”, no título original da montagem) traz embutida a promessa de rejuvenescer a grisalha platéia dos teatros de Times Square… E a identificação não é só na gracinha fácil de colocar palavrões nas letras das músicas. Ao ouvir “The guilty ones”, que abre o segundo ato, é impossível alguém que tenha entre 14 e 17 anos não achar que versos como “algo começou de maneira maluca, doce e desconhecida”, “essa é a temporada dos sonhos”, ou “agora nossos corpos são os culpados, nosso toque preenchendo todas as horas”, foram escritos especialmente para si.

Corpos culpados? Como a própria peça se encarrega de mostrar, eles estão mais para malditos. O adjetivo se encaixa até, ironicamente, no triste retrato da nossa “pobre vítima” do YouTube, Daniella Cicarelli – que por mais algumas horas conseguiu barganhar certa notoriedade por ter tirado o site inteiro do ar para os brasileiros (“mas foi meu namorado!” – tá bom…). Se ela tivesse esse poder de elaboração, talvez saberia lidar melhor com ele. Os adolescentes de “O despertar da primavera” pelo menos tinham a desculpa de serem… bem… adolescentes. Mas com seus vinte e tantos anos, será que Dani já não saberia lidar melhor com essa “maldição” do corpo?

À medida que envelhecemos ele vai nos colocando novos desafios – e a expectativa é de que possamos sempre descobrir novas maneiras de nos relacionar com esse corpo. Fazer o quê? É o único que temos – melhor aprender a lidar com ele. E, para a algumas lições nessa área – especialmente o que fazer com esses corpos depois que eles se tornam adultos e o sexo deixa de ser um mistério (ou, melhor, deixa de ser um mistério e passa a ser um problema) – a temporada nova-iorquina oferece outra chave interessante: uma exposição de Kiki Smith, no Whitney Museum.

Poucas artistas exploraram tão intimamente o corpo humano como ela – o corpo e várias de suas partes, muitas vezes em detalhes escatológicos. Uma rápida olhada em sua biografia (uma versão resumida pode ser encontrada no próprio site do museu, www.whitney.org) explica muita coisa. O fato de ela ter trabalhado com um dos artistas mais alternativos dos anos 80, David Wojnarowicz (que talvez você conheça por ele ter feito uma das versões para o vídeo de “One”, do U2 – aquela onde os búfalos americanos correm desesperados em direção a um precipício), por exemplo, inevitavelmente a aproximou de uma abordagem assim. Wojnarowicz morreu de Aids em 1992 e fez do seu corpo um instrumento fundamental de seu trabalho.

Como ele se manifesta na obra de Kiki Smith? Bem, imagine uma escultura de uma figura feminina agachada, de onde saem tiras de contas amarelas sugerindo pequenos regatos de urina. “Pee body” (“Corpo Xixi”, numa possível tradução), de 1992, não faz parte da retrospectiva, mas o os trabalhos reunidos pelo museu não ficam longe do tema. Pelo contrário: ao juntar obras menos conhecidas (como a boneca vestida com um manto nepalês que emite estranhos sons quando passa um observador; ou o bronze da mulher saindo da barriga de um lobo; ou mesmo a versão da artista para a Virgem Maria, com uma vela de cera transparente e cheia de imperfeições – não muito diferente dos nossos próprios corpos -, que eu nunca havia cruzado em nenhum museu) o Whitney fez um retrato ainda mais profundo e surpreendente da artista.

Enormes potes de vidro com o nome de todas as secreções do corpo humano. A figura feminina de bronze pendurada na parede em pose de quem está prestes a saltar em fuga. As construções da forma humana apenas com materiais que se aproximam da textura de pele. Os desenhos onde bicho e gente se misturam em quimeras. E, finalmente, aquela mulher, também pregada na parede, nua, com os braços estendidos como numa crucificação, mas a cabeça para baixo, coberta por uma longa cabeleira (feita de crina de cavalo).

Essa foi, para mim, a imagem mais forte – o convite irrecusável de confronto com o próprio corpo. Aquele maldito que nos empurra para as tentações inevitáveis de “O despertar da primavera” antes dos 20… E que nos revolta, seja na busca da perfeição ou na aceitação das suas imperfeições, a cada ano que avançamos.

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27 Comentários para “Corpos malditos”

Páginas: [2] 1 »

  1. 27
    Laís:

    É, e Spring Awakening estréia no Brasil dia 21 de agosto xD

  2. 26
    maria keilane lima da silva:

    o portunidade para trabalha como a triz na clobo esi e meu sonho como eu faso pra realza esi sonho

  3. 25
    Anônimo:

    Zeca
    Tá tao confuso entender o corpo? Talvez nós n tenhamos entendido direito, esse seu comentário. Logo vcs, celebridades, artistas… para nos tão bem resolvidos.
    Se foi um comentário generalizado serviu de reflexao para quem está em ebulição.
    Adoro vc desde muito, vê se põe o pé no Brasil os atributos para as curvas vão além de Juliana Paes.
    Vieje pelo Brasil também !

  4. 24
    Sandra:

    Queria que você falasse de livros. Gosto quando leio sugestões de leitura, críticas e resenhas.
    Beijo
    Sandra

  5. 23
    Douglas Vinicius:

    Ola grande camarada… ultimamente venho te acompanhando sempre que está no “ar”. Não vim aqui pra comentar sobre seu blog, ainda, mas sim pra falar que voce é LINDO.
    Desde os meus 14 anos te admirava pela TV, hoje com 22 ainda tenho essa paixao PLATONICA por voce.
    Ja encontrei com alguns artistas globais nas noites de Sao Paulo etc. mas voce nunca tive a oportunidade :(
    Vim ontem no fantastico que voce cortou o cabelo: quando eu comentei isso na sala, minha mae ate se surpreendeu, rs! Disse: “como voce repara…”
    Bem, sei que é dificil um dia te encontrar, mas fica aqui expresso o meu desejo pra 2007. E por falar em 2007, um otimo ano de sucesso pra voce!
    Um grande beijo de quem muito te admira!

  6. 22
    Graziella Fritscher:

    Ô Zeca!
    Não tem um email não?!
    Queria fazer uns comentários sobre o livro “De A-ha a U2″, mas acho chato escrever aqui, pra todo mundo ler.
    Pode ser?
    Brigada!

  7. 21
    Anônimo:

    olá, de novo, lendo o post senti uma vontade de ver esse musical, aliás de ir a broadway hehehehe, um dia eu vou, tenho certeza disso e capacidade tbm. abraços

  8. 20
    KADU GIABATTELO:

    ZECA !!!!

    QUE BOM QUE HJ É DOMINGO, ASSIM VOU VER O FANTÁSTICA REVISTA ELETRÓNICA, CLARO O FANTÁSTICO.
    ZECA REALMENTE ESSE MÚSICAL QUE VC CITOU:
    “O DESPERTAR DA PRIMAVERA” PARECE SER UM MÚSICAL SURPREENDENTE, AONDE IMPULSIONA O SEU CORPO A TAMBÉM PARTICIPAR DO MUSICAL.
    REALMENTE FIQUEI MUITO CURIOSO PARA VER MAIS SOBRE ESSE MÚSICAL, VOU FAZER ALGUMAS PESQUISAS NO YOUTUBE, OU SERÁ QUE JÁ ESTAMOS LIVRES DO “BLOQUEIO CICARELLI” – REALMENTE ESSA QUESTÃO CORPO AINDA INFLUÊNCIA MUITA PESSOAS, OU MELHOR DIZENDO A MAIORIA DAS PESSOAS.

    TUDO BEM PODE ATÉ INFLUÊNCIAR, MAIS UMA INFLUÊNCIA SAUDÁVEL E CONSTRUTIVA, E NÃO UMA EXPOSIÇÃO BIZARA EM UMA PRAIA DA ITÁLIA.

    ABRAÇOS ZECA.

  9. 19
    diego:

    Oi zeca…bom sinceramente sou um grande apreciador de seu trabalho…sua escrita e sua dinâmica forma de se expressar.Venho através desse comentario pedir que me responda algumas perguntas.Não sei se é pretensão demais, mas antes de te ver como o ZECA CAMARGO , te vejo como um alguém vencedor que é espelho pra minha profissão futura.Se possivel me enviar um email, ficarei grato e emocionado, por poder conversar com quem entende do assunto. Obrigado e parabens pela trilha de sucesso.

  10. 18
    Helder Machado:

    Quase realizei um post anônimo.
    Que conteúdo hein! Ainda bem que eu tenho 20 anos para chegar no seu nível (risos), quem sabe quando eu crescer né?

  11. 17
    Anônimo:

    Que matéria linda Zeca. Vc é demais…

  12. 16
    Fabi V.:

    Oi Zeca!
    Essa exposição é tão impressionante quanto aquela em que há corpos de verdade?
    Aff! Vocês viram? Até que ponto alguém pode interferir no cotidiano de uma sociedade?

    Hugs

  13. 15
    Danielle:

    Como queria poder ir a NY ver esta peça, mas do jeito q as coisas estão: trabalhando… estudando… estudando… trabalhando… sei lá até qdo… Vai ser difícil isso acontecer.
    Agora qto a “Cica” q tá mais pra Zica… será que se todos deixassem de falar dela por um dia, essa coisa sumiria??? Poderia acontecer, né??? Uma garota q é só polêmica e mentira pra poder aparecer e acontecer deveria desaparecer… Coisinha mais chata!!!
    Abs,
    Danielle

  14. 14
    Anônimo:

    Parabéns e obrigado por trazer tanta informação desse nível pra nós. É interessante como a arte nos faz viajar para e nos permite fazer tantas ligações entre assuntos diversos…aliás que voce faz com maestria! “…eu ganho o mundo sem sair do lugar, acorda meu Brasil pro lado bom de pensar…” Cidade Negra

  15. 13
    joselma:

    Escrevi sobre o teu livro A fantástica volta ao mundo. A crônica denominada O fascínio do mundo foi publicada no Bom Dia, um jornal regional no qual escrevo semanalmente. Se quiseres ler o meu texto tá no meu blog: https://joselmanoal.blog.terra.com.br
    Admiro muito o teu trabalho!
    Um abraço, Joselma

  16. 12
    Fernando:

    Parabéns Zeca.. o seu texto é primoroso, fazendo a interpretaçao das coisas de maneira bela.. deixa um pouco mais perto de nós que nao temos a oportunidade de ir pra NY ver tudo isso que vc relatou e interpretou..

  17. 11
    edna:

    primeiro comentário ehhhhhh

    o que fazer com o corpo ??? bom pergunta…
    gosto muito de toca-lo…e pra isso não preciso de silicones e plásticas. basta fechar os olhos e sentir …

  18. 10
    ana:

    Que lindo…

  19. 9
    Marcela Lago:

    Oi Zeca! Olha, primeiro de tudo muito bom o comentário sobre a “Dani”. Sempre que leio a respeito do assunto lembro-me do seu primeiro texto. Será que ela leu? Vai ver que não, caso contrário teria seguido o seu conselho. Que papelão o dela! Segundo, sobre a peça, realmente deve ser uma maravilha. Confesso que fiquei muito curiosa, mas Deus sabe lá quando eu vou conseguir tirar umas férias e quem sabe viajar para Nova York. Se ao menos eu tivesse acertado na Mega Sena…
    Beijo carinhoso.

  20. 8
    Gian:

    Mto legal a matéria!
    Zeca, parabéns!
    O cara é da paz!
    vlw

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