“Bon anniversaire”
Semana passada, repeti um prazer simples – e raro… Comprei uma das minhas revistas favoritas, Les Inrockuptibles” de uma pilha de um quiosque no meio de uma calçada em Paris.
Estava eu degustando a particular felicidade desse momento, quando descubro, na página 38 da edição de número 582, um artigo sobre o aniversário de 30 anos do Centro Georges Pompidou – também conhecido como Beaubourg. Eu caminhava justamente na direção de lá, para visitar duas exposições que certamente serão comentadas aqui em breve (a do artista mais genial da segunda metade do século 20, Yves Klein, e a do centenário do criador de um dos melhores personagens de história em quadrinhos de todos os tempo – Hergé, o pai” de Tintin), e me senti especialmente afortunado de poder visitar esse templo das artes contemporâneas (e o plural aqui não é mero recurso narrativo) justamente nesse período.
Não que o próprio Beaubourg transparecesse um clima de festa… A data do aniversário é amanhã – a cerimônia de abertura oficial aconteceu em 31 de janeiro de 1977. Mas, pelo menos até quinta-feira da semana passada, nada nas dependências do centro cultural indicava uma comemoração.
Antes mesmo de entrar lá dessa vez, olhando aquela vasta praça que permite que as (ainda hoje) bizarras formas da construção criadas por Renzo Piano e Richard Rogers sejam apreciadas (ou mal-apreciadas, dependendo do espectador), lembrei da primeira vez que entrei lá, em janeiro de 1980, e me deparei com uma gigantesca retrospectiva de Salvador Dali. Moleque, mochileiro, eu mal sabia o que era o Pompidou. Tinha a referência arquitetônica – nos anos 70, não tinha como escapar das imagens do ousado edifício, nas páginas coloridas da revista Manchete”… Imaginava que era apenas” um museu (ele abriga um museu, o Museu Nacional de Arte Moderna, mas é, claro, mais que isso) – uma espécie de antídoto do Louvre, que eu visitara pela primeira vez também nessa viagem. Sabia, enfim que tinha de conhecer. Mas nada me preparou para aquela experiência.
E experiência” é mesmo a melhor maneira de definir o que acontecia por lá. Logo na entrada, naquele imenso hall, colossais cachos de uvas e baguetes caíam do teto, que era riscado pelo cabo de uma colher gigantesca, cuja concha recebia um jorro ininterrupto de um líquido que parecia ser vinho tinto. Centenas de pessoas circulavam sem um itinerário definido – com seus olhos ainda menos preocupados em encontrar um rumo. Era um festival sensorial – meu primeiro contato com um tipo totalmente diferente de exposição, nada linear, multimídia (a palavra ainda era moderna na época), multidisciplinar (outra novidade), e extremamente preenchedora. Na galeria subterrânea, um carrossel com vitrine de jóias desenhadas pelo surrealista. Quadros e fotos e objetos e frases se misturavam pelas paredes (quando havia paredes) – e, sobretudo, numa sala escura, Um cão andaluz” me esperava (imagine o prazer e a sensação de desnorteamento de assistir esse filme pela primeira vez).
Acho que fiquei um três dias indo lá – e tendo dificuldades para dormir, já que o centro fechava tarde (algumas noites, ficava – e ainda fica – aberto até as 23h!). Ia para a cama sempre excitado com o que tinha experimentado – uma excitação, aliás, que foi se repetindo a cada vez que eu tinha a chance de fazer uma visita à Paris (e, inevitavelmente, de ir ao Beaubourg). Assim, fui aos poucos entendendo melhor toda aquela proposta” (até essa palavra era moderna então…). Proposta essa que, segundo o artigo da Les Inrock”, vinha sendo gradualmente abandonada nos últimos anos. Resumindo bem, o Centro Pompidou foi criado para ser um verdadeiro centro cultural interativo, onde música, cinema, artes performáticas, artes plásticas, arquitetura, literatura, filosofia, ciências sociais, educação – e até gastronomia! – se cruzassem. Foi assim na primeira – e impecável década. Exposições inovadoras, como uma série de retratos paralelos e simbióticos de capitais culturais (Paris/Moscou”, Paris/Nova York”, Paris/Berlim”, Paris/Paris”), que durou até meados dos anos 80, ou totalmente experimentais, como Magiciens de la terre” (mágicos da terra), de 1989 – que eu tive a sorte de ver e que abriu todos os horizontes possíveis das manifestações artísticas, ampliando os olhares de curadores do mundo todo -, ajudaram a construir uma reputação invejável para o Beaubourg.
A mim, mero expectador do que o centro tinha para oferecer a cada vez que eu estava na cidade – mesmo que fosse para um trabalho rápido -, aquele lugar sempre foi fascinante. Fora aquela introdução daliniana”, outros momentos memoráveis foram uma instalação de Natal nessa praça da entrada, com centenas de pinheiros de onde se ouviam sussurros em várias línguas; a própria (e indescritível) descoberta de uma nova visão sobre as artes em Magiciens du monde”; a contemplação dos quatro dorsos femininos em bronze de Matisse; Féminin/Masculin”, em 1985; a revelação do suprematismo de Quadrado negro sobre fundo branco”, de Malevicth, numa carona que peguei numa excursão guiada numa ala então dedicada ao construtivismo russo; a primeira mostra dedicada a Yves Klein, em 1983; e, claro, essa de agora, do mesmo artista, que está exposta até dia 05 do mês que vem (e da qual eu pretendo falar aqui na quinta-feira que vem). Até quando o que estava em cartaz não era algo de especial, ia só para sentir a vibração.
Para mim, sempre um estrangeiro de passagem (leia-se, turista”), foi uma surpresa descobrir, no artigo da Inrock”, que a crítica geral é a de que o Beaubourg está deixando de ser, cada vez mais, um organismo interdepartamental, se segmentando mais e mais – além de, no que se refere às exposições, ter procurado quase que exclusivamente, nos últimos anos, um caminho que tende às mostras monográficas (grandes retrospectivas de um artista só – Francis Bacon, Jean Cocteau, Sophie Calle). Engraçado… Nunca deixei de sentir aquele endereço como algo pulsante – e único. Mais único ainda, quando eu trazia a referência para o Brasil e percebia que raras eram as instituições culturais que, por aqui, almejavam um funcionamento tão orgânico e interativo como o Beaubourg.
Nesse jogo cruel de comparar instituições culturais, nós sempre saímos perdendo (e, por favor, me contradiga se você tiver um bom exemplo…). O que não significa que eu tenha a esperança de um dia entrar num espaço com a mesma energia do Pompidou em solo nacional. (Para você sentir um pouco do que estou falando, basta entrar no site do centro – www.centrepompidou.fr – e dar uma olhada no que ele oferece. Entre outras coisas, você pode olhar o acervo inteiro do Museu Nacional de Arte Moderna: procure por um link collection en ligne”, ou on-line collection”, ou colleción en línea”, e veja, aqui nesta mesma tela nada menos que 58.000 obras da coleção, os 129 Légres, os 411 Duchamps, os 184 Picassos, os 1.089 Rouaults, os 193 Arps, os 87 Gioacomettis – e por aí vai… Confesso que não deixo de sentir uma certa inveja boa dessa geração toda que só precisa de um clique para conhecer um museu como esse…).
Enquanto isso não acontece, fico irremediavelmente sonhando com a possibilidade de um novo frio na barriga a cada subida daquelas escadas rolantes transparentes (que fazem o zigue-zague da marca registrada da fachada do Beaubourg), com o que é uma das vistas mais lindas de uma das cidades mais lindas do mundo revelando-se lentamente a cada andar. Apesar das críticas (e a do Les Inrock” não é a única…), mal posso esperar pelos próximos 30 anos!