Domingo passado, em entrevista ao “Fantástico”, logo depois de o Internacional ter ganho o Mundial de Clubes de 2006 (bravo!), o jogador colorado Alexandre Pato dava o seguinte depoimento sobre a sinistra honra de ter jogado ao lado de Ronaldinho Gaúcho (sinistra, claro, pelo resultado do jogo), tendo assim finalmente chegado perto do seu ídolo: “Só conhecia ele do videogame”.
Apresentando o programa ao vivo, como estava, quase engasguei. Fui tão surpreendido pela frase que mal registrei a continuação dela (na íntegra, ele disse: “só conhecia ele do videogame e da televisão”). Mas o curioso aí é justamente a primeira parte da frase. Já temos uma geração inteira (e futuras virão) em que as pessoas acham que conhecem as outras por um universo totalmente virtual. Pato, com seus 17 anos, é certamente representante dela. E vai tentar explicar que “conhecer” não é um verbo conjugado com personagens virtuais. Ou é?
A rigor, nem quando você vê alguém na TV, poderia dizer que conhece esse alguém. Conhecer, apertar a mão, ver como ela é de perto, poder analisar suas feições, seus tons de voz, seus traços, sua reações e tirar disso algumas conclusões sobre a pessoa para quem você acaba de ser apresentado – isso significa “conhecer”. Mas, vá lá. Diante da inundante (e irreversível) presença das imagens no nosso cotidiano, é possível até aceitar que as pessoas conheçam as outras pela televisão – ou pela imagem transmitida por computador (já que essas coisas vão se fundir daqui a pouco…). Eu mesmo experimento isso ao encontrar pessoas na rua, que me tratam com uma intimidade que já nem é intimidadora. Chega a ser confortável.
Mas “conhecer” uma pessoa pela representação virtual dela? Será essa a nova fronteira das amizades? Não quero nem entrar aqui em discussões mais “profundas”, que envolvam Second Life (www.secondlife.com) ou Habbo Hotel (www.habbo.com.br). Os planos de relacionamento estão cada vez mais imaginários – e as conseqüências disso são imprevisíveis. Faço a reflexão sobre o que o jogador do Inter disse sobre Ronaldinho apenas como um exercício que, de certa forma, resume a experiência do livro que escrevi e lancei este ano. Achei que isso daria um bom fechamento para as atividades deste blog em 2006.
O livro, “De a-ha a U2″ (editora Globo), reúne 53 entrevistas com artistas nacionais e internacionais que fiz ao longo de quase 20 anos de carreira. Além das bandas citadas no título, Radiohead, Cazuza, Madonna, Mick Jagger, The White Stripes, Renato Russo, R.E.M., Mariah Carey, Jennifer Lopez – dezenas delas, num sacudido mix de estilos musicais. Qual foi exatamente o critério para escolher essas entrevistas (entre quase cem que fiz nesses anos todos)? A história por trás desses encontros.
Já citei rapidamente o livro aqui quando escrevi sobre minha entrevista recente com os Beastie Boys. Retomando em linhas rápidas, optei falar sobre os bastidores, porque as próprias entrevistas geralmente são tolas: os artistas quase sempre querem dar só respostas que eles já decoraram sobre assuntos sem graça. Como você pode constatar no livro, quando a entrevista sai desse contexto é que ela fica legal. Mas aonde eu quero chegar é…
Depois de todos esses contatos – pessoais, diga-se – com essas mega-celebridades, será que eu posso falar que as conheço? Que linha é essa que define a intimidade entre duas pessoas? Entre um ídolo e seu fã? Entre um político e seu eleitor? Entre dois amigos – ou dois amantes? Se você já trocou toda a intimidade sexual possível por MSN com alguém que conheceu na internet, é possível ter alguma surpresa quando vocês finalmente se tocarem? É possível se apaixonar (ou, no exemplo que inspirou este texto, idolatrar) um personagem de videogame? Por que rimos de um Borat (ele de novo) que fica obcecado por Pamela Anderson Lee, mas ouvimos a frase de Pato com a maior naturalidade?
Num questionamento mais pessoal, posso falar que conheço bem todas as pessoas que entrevistei? Pincelo brevemente essa questão em capítulos como o de Alanis Morissette, Pretenders, Green Day – e o próprio U2. Não sei exatamente o quanto vou gastar da minha breve folga de Natal e Ano Novo pensando nisso. Mas posso, outrossim, convidar você a refletir comigo.
Para tanto, ofereço aqui um bônus de fim de ano: um capítulo “perdido” do meu livro. Por uma questão de espaço, vários artistas acabaram ficando de fora na edição final – Peter Gabriel, Jamiroquai, Santana. Ah, e também Celine Dion. E é justamente esse que reproduzo aqui – exatamente como ele estava revisado, pronto para entrar no livro, quando nos deparamos com o número de páginas final da primeira edição – quase 700! Elas “caíram” para 470… O que vou fazer exatamente com esse material que não coube, ainda não sei. Mas mostrar alguma coisa aqui não é uma má idéia…
Assim, aqui está, de presente, um capítulo inédito de “De a-ha a U2″. Este blog volta com novas idéias dia 4 de janeiro de 2007. Num rápido balanço, tem sido divertido trocar essas idéias com você – especialmente você que diz que não me lê, mas surpreendentemente chegou até este parágrafo (e provavelmente vai seguir em frente)! Para o ano que vem, além de votos de tempos um pouco menos turbulentos e conversas um pouco mais esclarecidas, deixo aqui meu compromisso de trazer mais discussões sobre qualquer tesouro ou aberração que possa cair nessa malha nada fina que costumamos chamar de “cultura”.
Agora, com você, uma velha “conhecida” minha: Celine Dion.
“Um disco por segundo. Era isso que se acreditava que Celine Dion vendia lá pelos últimos dias do século 20.
Números sempre foram um conceito meio elástico no pop. Tal banda chegou a 5 milhões de discos (nos Estados Unidos? No mundo?). Outra ganhou um disco de platina (quantas cópias precisam ser vendidas mesmo para se chegar a essa marca? Cada país não tem um limite diferente?). Uma cantora lançou o disco de estréia de maior sucesso da história do rock (quando essa história começou mesmo? E quem conferiu esses lançamentos desde o início?). Fulaninho quebrou todos os recordes de venda (que recordes? Todos?) Meio vago, não?
Refiz as contas para este livro: um disco por segundo, 3.600 por hora, mais de 600 mil em uma semana (604.800, para ser exato). E, num ano, 31 milhões e 536 mil discos. Se Michael Jackson vendeu algo em torno dos 60 milhões de cópias de Thriller no mundo todo até hoje (ou pelo menos este é o número, mais uma vez elástico, encontrado em uma pesquisa rápida na internet) – e Thriller é muito provavelmente o disco mais vendido da história -, se Celine Dion vendesse mesmo um disco por segundo, bem… vamos começar do zero.
Talvez ela vendesse isso mesmo, num período menor. Do jeito que ela fazia sucesso entre 97 e 99, talvez em alguns meses tenha chegado a 2,5 milhões de álbuns, muito perto do número de segundos que um mês de trinta dias tem: 2 milhões e 536 mil. Nessa época, quem ligasse o rádio e conseguisse escapar de ouvir ‘My heart will go on’ (tema do filme ‘Titanic’) pelo menos por um dia poderia ser considerado alguém de sorte.
Assim, quando fui entrevistá-la, no final de 1998, não foi sem uma certa reverência por alguém que dominava tão predatoriamente todas as paradas de sucessos do mundo. Que tipo de ‘monstro’ seria Celine Dion? Que tipo de artista era essa que conseguia emocionar toda noite centenas de pessoas numa platéia ao subir num cenário que lembrava a proa de um navio e cantar como se recriasse a famosa cena do filme que era um dos maiores sucessos de todos os tempos – como se o próprio Leonardo di Caprio estivesse ao seu lado beijando Kate Winslet?
Eu já tinha visto a cena em vídeo e estava prestes a presenciá-la ao vivo. O show ia começar em menos de uma hora, e eu perambulava nos bastidores de um teatro gigantesco em Phoenix, Arizona. Já havia sido informado de que Celine era extremamente pontual em seus compromissos, mas como eu, mineiro, sempre gosto de chegar cedo, tinha um tempo para matar até a hora marcada. À minha volta, dezenas de pessoas atarefadas, rádios enfurecidos transmitindo ordens de última hora, ‘cheque isso’, ‘cheque aquilo’ – nada podia dar errado. Muito menos a entrevista, pensava eu.
Talvez não fosse uma das artistas mais cool, mais legais que entrevistaria na minha vida. Mas e daí? Há momentos em que nossa curiosidade tem que travar uma batalha ferrenha com nosso gosto pessoal – e se você gosta do que faz, como jornalista, sabe que seu gosto pessoal vai perder essa luta. Eu estava ali para fazer uma matéria para o ‘Fantástico’, e tinha certeza de que milhões de pessoas que assistem ao programa tinham interesse pela mulher ‘que cantava o ‘Titanic”, como eu já havia ouvido alguém se referir a Celine Dion. Apesar de admirar sua voz, seu repertório não está entre os meus 574 favoritos – sem falar que nunca gastei um segundo pensando se deveria ter um disco dela (e assumo isso, não com desdém, mas como mero registro). Pensava nisso enquanto passeava por aqueles bastidores, e não demorei a concluir que, para voltar com uma boa entrevista, era melhor eu não me encantar com a agitação à minha volta e me concentrar.
Fazendo justiça à sua fama (de pontual), Celine apareceu no camarim, especialmente decorado com flores e plantas para nossa entrevista, com menos de cinco minutos de atraso – negligenciável pelos parâmetros do show biz. Ao seu lado, René, seu empresário, guru, farol, fixação, todo-poderoso assessor de imprensa, agente, marido – e, alguns anos depois do nosso encontro, pai de seu primeiro filho.
René não apareceu na reportagem (ele quase nunca aparece), mas fez parte da nossa conversa – uma parte tão grande que vale a pena eu começar contando sobre ela. De cabelos cacheados e usando uma maquiagem ligeiramente pesada, Celine parecia cansada. Enquanto falávamos de música e de sua carreira (sucesso, repertório, turnês), ela tinha um ar quase enfadonho, assumia um tom de voz protocolar (ainda que estudadamente entusiasmado) e respondia como se estivesse recitando um press release. Mas quando começou a falar de René, toda a atmosfera mudou.
Era como se estivesse se referindo a uma divindade. Sua voz se transformou,. e o ritmo da conversa parecia ter acelerado. Sem sair da sala, o maridão ouvia cada palavra da cantora com aqueles olhos meio saltitantes de quem ouve pela primeira vez uma cantada (desculpe o trocadilho inevitável…). Mas o que dizia Celine de René? Que ele havia transformado sua vida. Eu tinha algumas informações sobre a história dos dois: que eles se conheceram quando Celine tinha doze anos; que ele ficou encantado com seu canto; que ele construiu sua carreira desde então; que eles um dia se apaixonaram, apesar da diferença de idade de vinte e seis anos; que eles passaram a viver juntos vinte e quatro horas por dia; que carreira e romance se tornaram uma coisa só. Juntando tudo isso ao discurso apaixonado que eu ouvia, fiquei realmente admirado.
Não deveria ser a primeira vez que ela desfilava suas emoções na frente de René, mas o fazia com uma espontaneidade convincente, de quem estava abrindo seu coração. Eu estava quase caindo na armadilha quando lembrei que, mais que uma cantora, Celine Dion era uma ótima atriz! Era com esse poder de atuação que ela fazia seu show todas as noites, que convencia tanta gente de que seu coração iria em frente – traduzindo toscamente o refrão do seu maior sucesso… Ela só estava adaptando sua capacidade de atuação ao que era importante naquele momento: convencer aquele jornalista (e os prováveis milhões de brasileiros que assistiriam à entrevista) de que nada era mais importante que seu amor por René. Não tenho por que duvidar da veracidade desse amor (só para dar um exemplo, a história entre eles sempre foi tão forte que, quando René teve um câncer na garganta, ela cancelou sua farta agenda de shows e encarou um baita prejuízo para ficar a seu lado). Mas, percebendo que ela fazia questão de me convencer disso, fiquei incomodado.
Sem querer partir para uma discussão filosófica sobre minha profissão, naquele instante me senti um pouco usado. Claro que a edição final da matéria seria minha. Eu escolheria depois o que usar ou não de toda a entrevista – nunca me esqueci disso. Mas as coisas ficam sempre confusas nesse universo tão nebuloso das celebridades e do show business. É claro que eu queria falar com a artista que vendia um disco por segundo – quem não queria? Mas não queria ouvir histórias contadas como se ela tivesse ligado a tecla do piloto automático. Não fiquei imediatamente bravo com Celine. Artistas do seu calibre são treinados para falar com a imprensa, porque nem sempre o talento que eles têm para a música se traduz em um dom também para responder a perguntas. Daí o treinamento. Estou acostumado com isso – e até me divirto em encontrar soluções para quebrar essa barreira da ‘entrevista pronta’, oscilando entre histórias de sucesso (Jennifer Lopez) e de total frustração (a própria Celine). Claro que me dá muito prazer conversar com artistas que não têm um protocolo na manga (confira, por exemplo, a entrevista com Chrissie Hynde, dos Pretenders, ou todos os encontros com Alanis Morisette – para citar apenas alguns momentos incluídos neste livro). Mas quando não dá… não dá!
E ali, com Celine Dion, percebi que não ia dar. Continuei a entrevista, claro. Mesmo com grande resistência, tentei descobrir como ela ‘farejava’ um sucesso (um feeling, disse ela, sem explicar muita coisa), se ela acompanhava a venda de seus discos (disse que não, mas sem muita convicção). Sobre o sucesso, ela contou – sem emoção – que antes batia em várias portas pedindo para ser ouvida, e agora eram as pessoas que batiam à sua porta. E, num rasgo de informalidade, pareceu fazer uma confissão sincera quando disse que no dia-a-dia anda pelas ruas sem vaidade – e, quando alguém a reconhece, não tem nenhum constrangimento de admitir que é a própria Celine Dion e ‘pedir desculpas’, dizendo que está num dia de folga…
A matéria, no final, ficou direitinha. Não tinha o direito de deixar pesar sobre ela esses meus questionamentos tão… teóricos! Só que eles me acompanham até hoje. Celine Dion já não vende mais um disco por segundo. Mas até hoje o quarto de hora que passou comigo rendem dezenas de reflexões por minuto.”