Como não ler um livro – ou dois
Saio de férias na semana que vem (este blog, inevitavelmente “sai de férias” também depois do post da próxima segunda – mas falemos disso semana que vem). E, na minha aflição de resolver todas as coisas que tenho pendentes antes de me desligar de tudo, corro para terminar de ler dois livros sensacionais.
Um deles é “O Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos (editora Globo). O outro, “House of Meetings”, de Martin Amis (ainda sem tradução do Brasil, publicado na Inglaterra pela editora Jonathan Cape). Como sempre, os livros foram escolhidos ao acaso, de uma das pilhas de livros comprados espalhadas pela minha casa que estão constantemente me lembrando de que a relação entre “comprados x lidos” é absurdamente injusta e irracional (me lembre de um dia comentar a coluna literária de Nick Hornby na revista americana “The Believer”, onde ele começa sempre citando duas listas: a dos livros comprados naquele mês e a dos livros lidos). E, como sempre, vou achando estranhas coincidências entre os dois ao longo da leitura.
Não usei o adorável gerúndio da frase anterior por descuido do meu treinamento de telemarketing. Eu ainda estou lendo estes livros – e correndo para terminá-los antes de segunda-feira. Só que essa não é, claro, a melhor maneira de ler estes livros. Aliás, essa não é nunca a melhor maneira de ler qualquer livro. Mas, devido à preciosidade da narrativa de ambos, a pressa, no caso, é ainda mais injusta.
Como ainda não terminei nenhum deles, não vou (nem posso) usar este espaço para resenhá-los. O que posso fazer é, mais uma vez, me rasgar de admiração pela preciosidade da narrativa de ambos. Sei que acabei de usar esta expressão; mas, depois de alguns dias na companhia desses dois autores, fico completamente constrangido de buscar novas palavras simplesmente para ser original.
Escolho aqui dois parágrafos aleatórios. Primeiro o de “House of meetings” (e já peço desculpas pela possível tradução superficial; vou me arriscar neste ofício ingrato – imagine, traduzir as palavras do autor de um dos melhores livros que li na minha vida, “A informação”! – apenas para ilustrar o que digo, já que tenho certeza de que, quando o livro for la;ado no Brasil, alguém inevitavelmente fará o mesmo trabalho com competência infinitamente maior).
“E por cerca de um minuto ele chorou, ele chorou musicalmente. Ele estava chorando, ele disse, porque ele estava sujo demais. Eu acreditei nele. Estar sujo demais fazia você chorar mais freqüentemente do que do que estar com frio demais ou esfomeado demais. Nós não estávamos mais com tanto frio ou com tanta fome. Mas nós estávamos tão sujos. Nossas roupas estavam endurecidas, praticamente como madeira, com sujeira. E, embaixo da madeira, cupins e carunchos.”
Agora, um de Cyro: “Na verdade, os olhos apenas refletiam imagens, logo as devolvendo para o exterior, porque algo impedia a comunicação entre o mundo de fora e o mundo de dentro, rico de uma paisagem mais numerosa, que só possuía, em comum com aquele, os esfumaçados traços de coisas que vão se extinguindo, ao morre da luz, e um sinal de sofrimento ou de tristeza, que, em certas oportunidades, nos parecem estar no fundo e na forma de cada coisa, em vez de se localizarem em nós mesmos.”
Para mim, apenas a leitura desses dois parágrafos já me deram um prazer imenso – entre tantos outros que fui anotando até as páginas que eu já li de cada livro. Mas talvez um pouco de contexto te ajude a apreciá-los ainda mais.
Amis escreve sobre uma prisão na antiga União Soviética, Norlag, onde dois irmãos se encontram em meados dos anos 50. O narrador, que chegou primeiro naquele inferno, recebe o irmão mais novo e fica sabendo que ele se casou com a mulher que ele, o mais velho, tanto amava. E, entre tantas humilhações, ele encaminha a história para a mais degradante de todas: a de preparar a “casa de encontros” (uma espécie de sala para visita íntima – uma rara concessão naquele cenário) para que o casal possa ter uma noite de romance – se é que é possível brotar alguma coisa parecida com romance em um lugar desses.
Já o amanuense de Cyro dos Anjos é um mineiro trintão que, na primeira metade do século 20, se encontra diante de pequenos dilemas existenciais – nem tão pequenos assim, como o livro vai aos poucos revelando. Pouca coisa acontece em seu cotidiano tão estrangulado. Mas é justamente essa aparente monotonia (amanuense, para economizar sua ida a um dicionário virtual, é um funcionário de repartição pública) que permite a Belmiro profundas reflexões sobre o sua vida – inquietações, note, que parecem tão modernas, mas que chegaram ao papel pela primeira vez numa edição de 1937 (a reedição do livro é para comemorar o centenário de Cyro dos Anjos).
Nessas brevíssimas sinopses, impossível descrever os inesperados pontos de contato das duas obras. Poderia jogar aqui a solidão de ambos personagens centrais – estranhamente próximos ainda que em cenários tão distintos. Há, nos dois, a claustrofóbica sensação de viver num cotidiano do qual é impossível se libertar. De certa maneira, o comunismo e o pensamento de esquerda rondam as duas histórias. E há até a mulher sedutora e progressista que atormenta ambos protagonistas. Na história de Amis, Zoya, com seu poder absoluto sobre qualquer homem (“Ela vivia mais intensamente que eles, mas ela também sofria mais; e ela mostrava a eles as possibilidades”). Na de Cyro, Jandira (“É partidária do amor livre e de todas as outras liberdades, mas defende-se como uma leoa, sempre que está em xeque”). E as duas tramas são permeadas por personagens com nomes de estranha beleza. Em “House of Meetings”, ela vêm do russo, Lev, Uglik, Kovchenko, Georgi. E em “Belmiro”, o charme vem de nomes que não se ouve mais: Glicério, Redelvim, Florêncio, dr. Pereirinha, Silviano (senti falta apenas de um Libório…).
Provavelmente vou encontrar ainda outras ligações entre as duas histórias até terminá-las – o que faço, repito, com absurda pressa, até segunda que vem. Mas se, como já admiti, essa não é a melhor maneira de ler trabalhos tão refinados, se não faço justiça à compreensão maior dessas obras, pelo menos não deixo escapar o prazer amiúde de topar a cada página com pequenas obras-primas. Como nessa descrição do personagem Lev, quando Amis diz que ele tinha algo de “troglodítico nas assimetrias de seu rosto, como se as feições tivessem sido jogadas desatentamente, como se no escuro”. Ou, citando Cyro, a adorável contradição de Belmiro: “Mas, ponhamos de parte essa história e lembremo-nos de que não se pode ser criança aos trinta e oito anos. É preciso fazer qualquer coisa. Sobretudo tomar um sorvete, pois a noite está quente”.
Para ver o todo e mergulhar no exato prazer de cada livro, vou ter certamente de relê-los em breve… Quem sabe nas férias?
10 dezembro, 2006 as 2:13 pm
Zeca, Seu blogue (é blogue mesmo) traz uma coisa que você não tem, acredito, na Globo. A liberdade de tratar de temas que não interessa à patuléia, como é o caso da literatura. Cyro dos Anjos então é o que há de menos televisivo e espetaculoso. A estória do amanuense Belmiro é de uma monotonia incrível e nos remete ao mais fundo do pensamento. Ali nada acontece, mas tudo acontece. Li-o há mais de 20 anos, mas inda me recordo de seu desenrolar como um rio pronfundo e sinuoso. Gostaria mesmo que você voltasse ao tema quando acabar de ler o livro. Peço visitar meu blogue. O Blog (aqui é blog) do El Carmo. fttp://el.carmo.blog.uol.com.br. Abraços. El Carmo.
9 dezembro, 2006 as 1:09 am
cara eu to assistindo agora sua entrevista com jô , e acho vc o cara mais inteligente! adoro vc é meu sonho te conhecer! vc nem imagina o qto. adoro tudo q vc escreve. vc pod me adcionar em seu e-mail? obg se puder.sucesso p/ vc sempre. abraços.
5 dezembro, 2006 as 3:43 pm
Está acontecendo um fato, que pensei ser apenas coisa de cinema americano, algo que pensei ser impossível de aontecer. Não seo se vocês sabem sobre a descoberto do cérebro artificial, o qual implantado no corpo, aciona todos mecanismo e funções cerebrais, inclusive a transmissão e recepção do pensamento, literalmente falando, algo que pensei ser apenas abstrato.
3 dezembro, 2006 as 12:43 am
Engraçado voce falar de livros nesse post, e mencionar o Paul Auster no seu último post.
Eu adoro ele. Gosto até de Mister Vertigo que ninguém gosta por ser muito absurdo.
Mas A música do Acaso é mesmo o melhor!
26 novembro, 2006 as 12:19 am
ZECA ..
OS LIVROS PELO POUCO QUE LI SÃO MUITO BONS
PRINCIPALMENTE O “SALA DE REUNIOES” ADOREI !!!
PENA QUE AINDA NAO ESTA TRADUZIDO PARA PROTUGUÈS, E NEM ME ARRISCO AO INGLÊS (ANDA TAO INFERUJADO RSRS)
ZECA ESPERO QUE APROVEITE MUITO AS FERIAS E QUE VOLTE COM COISAS NOVAS …
ABRAÇAO ….
KADU
22 novembro, 2006 as 11:50 am
“Previdente e providente amigo! Esqueceu-me comunicar-lhe que já não preciso de papel, nem de penas, nem de boiões de tinta. Esqueceu-me dizer-lhe que a vida parou e nada há mais por escrever.”
O trecho decorado não foi para o vestibular… Ele só me cobrou que fizesse a leitura de “O Amanuense Belmiro”, mas gostei tanto que certas passagens minha memória não deixou passar.
É um excelente livro.
21 novembro, 2006 as 11:34 am
Olá Zeca, sou sua admiradora irrestrita. Quianto ao seu trabalho, qualquer comentário é indispensável. Oxalá o Brasil tivesse mais cérebros como o seu, e espíritos iluminados como o seu. Abraços!…De.
14 novembro, 2006 as 12:15 pm
Corra e termine a leitura, os dois são ótimos. Mas o tal amanause conquistou meu coração. Sobre “como não ler um livro”, me vem sempre a lembrança um texto da Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”. Qualquer apaixonado por livros sente exatamente o prazer de desfrutar de cada página. Também vale a pena.
Eu não sei não essa história de tirar “férias”. Jornalista sabe o que é isso? Mesmo assim, bom descanso.
Abraço
13 novembro, 2006 as 1:16 am
olhe, eu to sofrendo pra terminar de ler um livro… que dureza, eu compro livro pq acho a capa bonita, ja me decepcionei com livros de capa bonita e historias horriveis… mas fazer o que mania de comprar livro e nao lê-los é algo a ser revisto….
Parabens pelo blog tah otimo!
12 novembro, 2006 as 11:37 pm
Ei Zeca.
Que você tenha boas férias e faça uma ótima viagem!
Sempre que posso, leio este blog e, fico feliz em poder absorver mais um pouquinho de cultura através desse cérebro genial que é o seu! Obrigada por tanta informação legal!
Tenho certeza que mesmo descansando, você vai descobrir novidades por este mundo e, com toda essa bagagem, fazer novas matérias sensacionais para o Fantástico e para este blog também!
Beijo
Dinah.
12 novembro, 2006 as 11:01 pm
Oi Zeca! Reler um livro eh sempre bom, qd eh bom! Sabe, as pessoas nao conhecem o q eh o verdadeiro progresso, por exemplo, as vezes elas se orgulham e falam..Mudamos da cabana para o arranha-ceu”. E pensam que isso eh progresso.As pessoas podem viver numa cabana e serem muito avancadas em auto-realizacao e isso inlcui ler, ler e ler. Todavia, se ela desperdica seu tempo transformando sua cabana em arranha-ceu, entao meu amigo, toda a sua vida esta perdida. Penso assim porque ler eh sempre muito bom, ler 02 livros ao mesmo tempo, melhor ainda! Ja li O Amanuense Belmiro, e tenho apenas uma coisa a falar, eh otimo, uma perola. Nao vou comentar porque vc ainda nao terminou, vamos deixar para uma outra oportunidade. Fico aqui com uma simples frase do Joao Guimaraes Rosa (Grande Sertao Veredas): “Sossego traz desejos, e todo caminho da gente eh resvaloso. Mas, tambem, cair nao prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta.” Boas ferias…
Levante, suba, e volte… cheio de energias boas.
Bjs
12 novembro, 2006 as 10:18 pm
Olá, Zeca!!! Tudo bom!!! Sou um grande admirador do seu trabalho e estou sempre visitando este seu blog. Embora este não seja o espaço ideal para sugestões, muito menos para autopromoção, resolvi falar sobre o meu trabalho, pois acho que poderá ser útil na programação de vocês. Eu dirigi um curta-metragem, premiado na última edição da Mostra Internacional de São Paulo, que tem com tema a sexualidade na adolescência. Como vocês abordaram esse tema no último Fantástico, gostaria de sugerir uma divulgação do curta para continuarmos o debate acerca deste tema, tão importante. Estou a disposição para apresentar o filme. Um grande abraço e parabéns pelo seu trabalho.
12 novembro, 2006 as 11:58 am
Meu querido amigo, se estás mandando bem nesta “esfera”???
A resposta bem óbvia é q sim e muito.
Férias? tudo de bom…rs!!!
Pra onde será essa viagem agora?
Grande abraço, boa viagem e parabéns por + 1 grande trabalho.
11 novembro, 2006 as 3:54 pm
Eu só quero comentar que gostaria que você respondesse o e-mail… te enviei desde o dia que veio fazer o lançamento de seu livro em BH. Responde aí UAI!!!!!!!
11 novembro, 2006 as 2:31 pm
Zeca querido
Fiquei interessada nesses dois livros que você comentou , só esses trechos são simplesmente ma-ra-vi-lho-sos. Quem sabe nas minhas férias eu consiga adquirir pelo menos um e sentir a beleza desses texto.
Zeca, descanse bastante, curta esse mundo e até a volta, sentirei falta de seus textos, que são ótimos.
Desculpe a indiscrição, sou curiosa mesmo, para onde você vai viajar?
beijão
ana lúcia (da cidade de Santos)
11 novembro, 2006 as 12:49 pm
Oi Zeca, td bem? Enfim, as merecidas férias hein…
Se bem que aposto que ” workaholic” do jeito que vc é, não descansará um só segundo. Vc estára viajando, verá uma cena e logo já pensará: ” Puxa! Isto dará uma bela pauta. Então já irá correndo escrever uma matéria…Estou certa?????Mas é isso que faz de vc um jornalista tão especial, sabia? Você é incansável!
MUdando um pouco de assunto, ví vc falar sobre o livro “O Amanuense Belmiro”, e queria saber onde posso achá-lo. Meu professor de captação jornalística também já havia me indicado este livro. Já o procurei em algumas livrarias e sebos, porém não consegui encontrá-lo.
Bom, vou parar de te ” alugar”. Mas antes só mais uma perguntinha: Vc vai visitar algum país em especial nestas férias?
Beijos desta sua sempre fã ( com muito orgulho )!!!
11 novembro, 2006 as 12:37 am
A seu pedido, Zeca, estou comentando aqui no seu blog. Geralmente entro em blogs, leio e nao comento. Mas vamos lá .. Como funciona aqui? A gente comenta e você responde, ou não?
Adorei sua palestra ontem, como te disse hoje a tarde. E seu blog será um jeito para que eu me aproxime mais de você e saber o que o autor e jornalista que eu admiro está lendo.
Boa férias..e volte com toda a energia..Só Deus sabe quando terei férias agora..da faculdade, terei, ultimo semestre, claro, mas do trabalho .. iii..
Um Bjao!
10 novembro, 2006 as 8:53 pm
OI
voltei aqui só pra te deixar beijinho…..
aceita ai vai?
10 novembro, 2006 as 6:18 pm
Quanta alma num post! Parece que você foi lendo, abrindo o peito e esqueceu de fechá-lo antes de escrever esse texto. E agora fiquei eu aqui, suspirenta, com vontade de ler esses dois livros…
10 novembro, 2006 as 6:15 pm
oi zeca,
vc eralmente virou minha referência literária…aprendi a amar muito mais os livros por sua causa… (sem demagigia, é sincero!!).
Não sossego enquanto não leio todas as suas indicações!!!
obrigado por trazer esse prazer a minha vida!!!
e obrigado por mais essas duas indicações que não conhecia…
obs: estou quase terminando seu livro!!!