A música do acaso

qui, 30/11/06
por Zeca Camargo |
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“A procissão do casamento do Príncipe Jawan Bakht saiu da Porta Lahore do Forte Vermelho, às duas horas da manhã, na quente noite de verão de 1852… Os primeiros a aparecer foram os chobdars, ou carregadores de bastão… Era o trabalho dos chobdars limpar o caminho por entre a multidão excitada, antes que os elefantes imperiais – sempre um pouco imprevisíveis na presença de fogos de artifícios – aparecessem se arrastando pelos portões.”

Lia encantado esse começo da descrição do casamento do filho preferido do último “Mughal” (o líder supremo de uma dinastia imperial da Índia), destituído de todo o poder e completamente humilhado pelos britânicos em 1857. Seu nome era Bahadur Shah Zafar II. E “Mugahl” era só uma espécie de apelido, já que, em toda sua extensão, seu título oficial era de “Sua Alteza Divina, Califa da Época, Padshah tão Glorioso como Jamshed, Ele que É Cercado por um Bando de Anjos, Sombra de Deus, Refúgio do Islam, Protetor da Religião de Mohammed, Rebento da Casa de Timur, O Maior dos Imperadores, O Mais Poderoso Rei dos Reis, Imperador Filho de Imperador, Sultão Filho de Sultão”. Zafar, digamos, estava podendo…

Tudo isso está no livro “The last Mughal”, de William Dalrymple (ainda inédito no Brasil), que eu tinha em mãos na travessia de “ferry boat” entre Hong Kong e Macau. No meu iPod, pela milésima vez naquele dia, as músicas do último CD de Adem, “Love & other planets”. Minha atenção totalmente voltada para a leitura e para a música até que, na viagem de 45 minutos, meus olhos foram fisgados pela fantasia visual de um programa (que depois descobri ser da TV japonesa) no qual os participantes têm de criar ilusões de ótica, usando apenas seus corpos (pense em “efeitos especiais”, sem os “especiais”). Naquele momento, eu sofria de uma pequena convulsão (ou seria uma epifania?) cultural.

Não foi a primeira vez que vivi isso nessas curtas férias que tirei. Logo quando cheguei a Londres, a caminho de Hong Kong, andando na direção de Trafalgar Square para ver a exposição do grande pintor espanhol Velázquez na National Gallery, minutos depois de ter saído da minha loja de CDs favorita na cidade, Sister Ray, com o disco mais barulhento e genial que ouvi este ano (The Horrors, uma perfeita reencarnação do Cramps), literalmente esbarrei em Seu Jorge, que estava lá para um show rápido no The Roundhouse (que ganhou quatro estrelas do jornal “The Guardian”). Acabei não indo ao show, seduzido pela tentação de assistir ao filme “Borat” com urgência – mas eu senti que estava tendo um daqueles momentos de “derretimento e fusão” cultural (uma má tradução, me perdoe, para a expressão “cultural meltdown”), onde informação de mais de um canto do mundo (e de mais de uma época da história) colaborava para meu total deslumbramento diante das possibilidades da criação humana.

Ou ainda, no dia seguinte à minha visita à Disneylândia de Hong Kong e o gigantesco Buda agora mais acessível com o teleférico de Ngong Ping (Mickey e Buda no mesmo dia!), depois de passar a tarde numa megaloja japonesa chamada Muji e de ter me perdido (em todos os sentidos, inclusive no do consumo) nas suas incontáveis prateleiras repletas de objetos (e comidas e utensílios e roupas) tão simples e com um design tão bom (e barato), jantei num tailandês rápido e fui encontrar amigos no karaokê Red Box, no oitavo andar de um dos inúmeros arranha-céus da cidade. Elvina, uma atriz chinesa que conheci na viagem estava treinando para uma apresentação no sábado seguinte e deu um pequeno show naquela exclusiva suíte executiva (o karaokê estava mais para “Encontros e desencontros” do que para aquele que você canta no bar de um hotel de litoral no fim-de-semana) e mandou muito bem nas canções tanto em mandarim como em cantonês, enquanto que eu, desafiado (e desafinado), me acabei numa interpretação de “I want it that way”, tentando fazer uma homenagem, já que estava na Ásia, aos Backroom Boys (o quê? nunca viu? vá já ao YouTube e dê um search com o nome da banda) – só para depois enterrar de vez minha reputação como vocalista com uma versão maldita de “Out of time”, do Blur (eu sei, eu sei… essa música é dificílima de cantar… mas se você visse as outras opções do cardápio de música ocidental…).

Poderia descrever aqui outros momentos assim, mas acho que você já pegou a idéia. Ou, melhor dizendo, o meu moto quando viajo de férias: não existe nenhum roteiro prévio. Quer maneira melhor de descobrir as coisas, encontrar pessoas, ser supreendido, enfim, aproveitar uma viagem, do que se entregar à música do acaso?

A expressão, claro, não é minha. É emprestada de um livro de 1990 do escritor americano Paul Auster (é pouco provável também que ele tenha cunhado a expressão, mas é sempre bom deixar claro suas fontes…). O autor a usa para batizar uma sucessão de acasos mirabolantes – que acabou virando uma espécie de marca registrada da sua obra (absolutamente todos seus livros são recomendadíssimos – e quase todos, felizmente têm tradução o Brasil; tente começar por “O Livro das Ilusões” ou “Mr. Vertigo”). E é daí que eu também parto, quando parto em férias.

Contrariando talvez sua expectativa, não vou, neste retorno, entrar a fundo na experiência de passar uma semana numa das cidades mais frenéticas do mundo – que é Hong Kong. Até porque, não sei se vou digerir toda a experiência assim tão rapidamente. Optei por oferecer apenas esses “flashes” da viagem, que foram acontecendo para mim da maneira mais espontânea possível. Exatamente como eu queria. Fui vivendo cada evento desses com uma curiosidade quase adolescente (do alto dos meus 43 anos…) e longe de descansar, aproveitei esse “período de descanso” absorvendo tudo da maneira mais intensa que pude.

Qualquer passeio, qualquer shopping, qualquer nova amizade, qualquer templo, qualquer meio de transporte, qualquer comida – até qualquer hora de sono – tudo teve uma vibração especial. E talvez seja melhor eu ir falando dessas experiências aos poucos. E começando por aquelas mais fáceis (se bem que nem sempre) de a gente assimilar – digamos, as mais ocidentais, que experimentei em Londres.

Aos que tinham alguma esperança de que eu voltaria “muito mudado”, com a firme intenção de fazer textos mais curtos (se bem que essas pessoas nem chegaram a este parágrafo – ou chegaram?), com frases mais breves e sem tantos apartes.. desculpe. Acho que voltei ainda mais animado para fazer justamente o contrário… E se não deu para perceber, espere até segunda, quando vou falar da bizarra exposição da coleção do artista plástico Damien Hirst na Serpentine Gallery e do não menos bizarro filme “Borat”.

Isso, claro, se o acaso permitir…

Apresentando: a Curva das Expectativas Flutuantes

seg, 13/11/06
por Zeca Camargo |
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Conforme o combinado (isto é, combinado comigo mesmo), saio em breves férias por duas semanas. Duas semanas é um bom tempo para refletir sobre qualquer coisa. Por isso aqui vai um bom material, inspirado na revista americana “New York”. “Inspirado” é um eufemismo, claro. A Curva de Expectativas Flutuantes será aqui literalmente copiada daquela que foi inventada pela “New York”. Copiar, quando a idéia é boa, é bom — sempre que se dê o crédito… A idéia da Curva é tão boa que merece essa “homenagem”… Não sei se sou o primeiro a reproduzi-la no Brasil, mas mundo afora, já vi clones dela — o mais bem feito, talvez, é o da revista francesa “Les Inrockuptibles”.

Para facilitar a reflexão sobre ela, algumas explicações. Quando estreou na “New York”, um texto esperto dava a entender que ela serviria como um termômetro das manias culturais. Você conhece o movimento… Muito antes de alguma coisa boa aparecer, os mais “descolados” (não é um adjetivo adorável?) já começam a falar sobre aquilo — uma fase que vou batizar de “pré-bochicho”. Em seguida, o tal evento cultural (um filme, livro, artista, celebridade etc.) passa a ser comentado abertamente — é o período “bochico”. Então vêm as “ótimas críticas” — um doce período a atravessar. Mas logo chega o “ponto de saturação”, quando o tal produto cultural chega ao limite dos comentários positivos. Daí… é ladeira abaixo… Vem a fase da “superexposição” e, logo depois, da ressaca — onde as pessoas, de tanto ouvirem falar sobre aquilo se perguntam: “será que era mesmo tão legal assim?”. Mas, nesse irônico mundo maravilhoso da mídia e da cultura, tudo tem salvação: aquilo que já foi tão pichado pode voltar a ser bem avaliado, como se as pessoas dessem uma nova chance… e até voltassem a elogiar.

Muito abstrato? Vamos aos exemplos práticos — bem ilustrados no quadro abaixo. Bela Gil é — você adivinhou! — irmã de Preta Gil. Seu único talento demonstrado até agora é o de posar nua e lânguida em um sofá de couro. Mas apenas isso (e uma dose de história familiar) já está garantindo sua presença nas conversas mais… “descoladas” (gosto demais desse adjetivo para usá-lo só uma vez…). Já a mini-série de TV “Antônia”, que estréia nesta semana, mal pode se conter de tão promissora que é. O filme de Cao Hamburguer, “O ano em que meus pais saíram de férias”, já está há algum tempo aproveitando as benesses da crítica. E o filme novo de Almodóvar, “Volver” está naquele limite de ser elogiado — um limite que a revista “Piauí” já passou com seu segundo número nas bancas. Com a atual Bienal de São Paulo, o caso é um pouco mais grave: será que ela merecia toda aquela atenção? Você tem mais algumas semanas para conferir.

Vamos à ressaca? Coloquei o DVD da segunda temporada de “Lost” nesse ponto da curva, cansado de ouvir elogios à série americana que vinham sempre acompanhados de uma insatisfação (até mesmo dos fãs mais entusiasmados) quanto às pistas falsas da história que não param de acumular. Paciência tem limites — mas quem sabe Rodrigo Santoro não chega para salvar tudo na terceira temportada? Quanto ao Cirque du Soleil… preciso explicar? E a fase da recuperação serviu bem à novela “Páginas da vida”. Lembra-se de quanto ela foi criticada há algumas semanas, porque estava pesada demais, triste demais, carregada demais? Bem… nada como uma audiência estelar para sossegar os ânimos!

Aos que já estão arregaçando as mangas e levando a Curva das Expectativas Flutuantes muito a sério… convido agora à reflexão. Você faria diferente? Qual seria sua versão? Quer mandar para os comentários do blog? Terei o maior prazer de ler… daqui a quinze dias! Férias: finalmente nos encontramos!!

Queria revisitar essa Curva a cada mês. Que coisas vou encontrar no meu retorno? A voz, ela é do povo… Aguardem um novo post aqui dia 30 de novembro. Até “já”!

Como não ler um livro – ou dois

qui, 09/11/06
por Zeca Camargo |
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Saio de férias na semana que vem (este blog, inevitavelmente “sai de férias” também depois do post da próxima segunda – mas falemos disso semana que vem). E, na minha aflição de resolver todas as coisas que tenho pendentes antes de me desligar de tudo, corro para terminar de ler dois livros sensacionais.

Um deles é “O Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos (editora Globo). O outro, “House of Meetings”, de Martin Amis (ainda sem tradução do Brasil, publicado na Inglaterra pela editora Jonathan Cape). Como sempre, os livros foram escolhidos ao acaso, de uma das pilhas de livros comprados espalhadas pela minha casa que estão constantemente me lembrando de que a relação entre “comprados x lidos” é absurdamente injusta e irracional (me lembre de um dia comentar a coluna literária de Nick Hornby na revista americana “The Believer”, onde ele começa sempre citando duas listas: a dos livros comprados naquele mês e a dos livros lidos). E, como sempre, vou achando estranhas coincidências entre os dois ao longo da leitura.

Não usei o adorável gerúndio da frase anterior por descuido do meu treinamento de telemarketing. Eu ainda estou lendo estes livros – e correndo para terminá-los antes de segunda-feira. Só que essa não é, claro, a melhor maneira de ler estes livros. Aliás, essa não é nunca a melhor maneira de ler qualquer livro. Mas, devido à preciosidade da narrativa de ambos, a pressa, no caso, é ainda mais injusta.

Como ainda não terminei nenhum deles, não vou (nem posso) usar este espaço para resenhá-los. O que posso fazer é, mais uma vez, me rasgar de admiração pela preciosidade da narrativa de ambos. Sei que acabei de usar esta expressão; mas, depois de alguns dias na companhia desses dois autores, fico completamente constrangido de buscar novas palavras simplesmente para ser original.

Escolho aqui dois parágrafos aleatórios. Primeiro o de “House of meetings” (e já peço desculpas pela possível tradução superficial; vou me arriscar neste ofício ingrato – imagine, traduzir as palavras do autor de um dos melhores livros que li na minha vida, “A informação”! – apenas para ilustrar o que digo, já que tenho certeza de que, quando o livro for la;ado no Brasil, alguém inevitavelmente fará o mesmo trabalho com competência infinitamente maior).

“E por cerca de um minuto ele chorou, ele chorou musicalmente. Ele estava chorando, ele disse, porque ele estava sujo demais. Eu acreditei nele. Estar sujo demais fazia você chorar mais freqüentemente do que do que estar com frio demais ou esfomeado demais. Nós não estávamos mais com tanto frio ou com tanta fome. Mas nós estávamos tão sujos. Nossas roupas estavam endurecidas, praticamente como madeira, com sujeira. E, embaixo da madeira, cupins e carunchos.”

Agora, um de Cyro: “Na verdade, os olhos apenas refletiam imagens, logo as devolvendo para o exterior, porque algo impedia a comunicação entre o mundo de fora e o mundo de dentro, rico de uma paisagem mais numerosa, que só possuía, em comum com aquele, os esfumaçados traços de coisas que vão se extinguindo, ao morre da luz, e um sinal de sofrimento ou de tristeza, que, em certas oportunidades, nos parecem estar no fundo e na forma de cada coisa, em vez de se localizarem em nós mesmos.”

Para mim, apenas a leitura desses dois parágrafos já me deram um prazer imenso – entre tantos outros que fui anotando até as páginas que eu já li de cada livro. Mas talvez um pouco de contexto te ajude a apreciá-los ainda mais.

Amis escreve sobre uma prisão na antiga União Soviética, Norlag, onde dois irmãos se encontram em meados dos anos 50. O narrador, que chegou primeiro naquele inferno, recebe o irmão mais novo e fica sabendo que ele se casou com a mulher que ele, o mais velho, tanto amava. E, entre tantas humilhações, ele encaminha a história para a mais degradante de todas: a de preparar a “casa de encontros” (uma espécie de sala para visita íntima – uma rara concessão naquele cenário) para que o casal possa ter uma noite de romance – se é que é possível brotar alguma coisa parecida com romance em um lugar desses.

Já o amanuense de Cyro dos Anjos é um mineiro trintão que, na primeira metade do século 20, se encontra diante de pequenos dilemas existenciais – nem tão pequenos assim, como o livro vai aos poucos revelando. Pouca coisa acontece em seu cotidiano tão estrangulado. Mas é justamente essa aparente monotonia (amanuense, para economizar sua ida a um dicionário virtual, é um funcionário de repartição pública) que permite a Belmiro profundas reflexões sobre o sua vida – inquietações, note, que parecem tão modernas, mas que chegaram ao papel pela primeira vez numa edição de 1937 (a reedição do livro é para comemorar o centenário de Cyro dos Anjos).

Nessas brevíssimas sinopses, impossível descrever os inesperados pontos de contato das duas obras. Poderia jogar aqui a solidão de ambos personagens centrais – estranhamente próximos ainda que em cenários tão distintos. Há, nos dois, a claustrofóbica sensação de viver num cotidiano do qual é impossível se libertar. De certa maneira, o comunismo e o pensamento de esquerda rondam as duas histórias. E há até a mulher sedutora e progressista que atormenta ambos protagonistas. Na história de Amis, Zoya, com seu poder absoluto sobre qualquer homem (“Ela vivia mais intensamente que eles, mas ela também sofria mais; e ela mostrava a eles as possibilidades”). Na de Cyro, Jandira (“É partidária do amor livre e de todas as outras liberdades, mas defende-se como uma leoa, sempre que está em xeque”). E as duas tramas são permeadas por personagens com nomes de estranha beleza. Em “House of Meetings”, ela vêm do russo, Lev, Uglik, Kovchenko, Georgi. E em “Belmiro”, o charme vem de nomes que não se ouve mais: Glicério, Redelvim, Florêncio, dr. Pereirinha, Silviano (senti falta apenas de um Libório…).

Provavelmente vou encontrar ainda outras ligações entre as duas histórias até terminá-las – o que faço, repito, com absurda pressa, até segunda que vem. Mas se, como já admiti, essa não é a melhor maneira de ler trabalhos tão refinados, se não faço justiça à compreensão maior dessas obras, pelo menos não deixo escapar o prazer amiúde de topar a cada página com pequenas obras-primas. Como nessa descrição do personagem Lev, quando Amis diz que ele tinha algo de “troglodítico nas assimetrias de seu rosto, como se as feições tivessem sido jogadas desatentamente, como se no escuro”. Ou, citando Cyro, a adorável contradição de Belmiro: “Mas, ponhamos de parte essa história e lembremo-nos de que não se pode ser criança aos trinta e oito anos. É preciso fazer qualquer coisa. Sobretudo tomar um sorvete, pois a noite está quente”.

Para ver o todo e mergulhar no exato prazer de cada livro, vou ter certamente de relê-los em breve… Quem sabe nas férias?

Crianças

seg, 06/11/06
por Zeca Camargo |
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Se você, como eu, sente sempre uma ponta de constrangimento quando vai assistir um filme protagonizado por crianças, as telas nacionais trazem atualmente dois alívios para essa tensão: ‘O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias’ e ‘Pequena Miss Sunshine’. Fui ver os dois esta semana – e fui duplamente recompensado. Os dois filmes, de maneira totalmente espontânea, guardam curiosas semelhanças, além de terem suas histórias perigosamente apoiadas em um elenco mirim.

Antes de falar sobre eles, porém, uma pequena justificativa desse meu medo (que, creio, divido com muitos) de encarar um filme com a gurizada. Acho que começou com ‘Bugsy Malone’, um filme de 1976, no qual uma história de gângsteres era encenada por crianças. Eu tinha 13 anos, achei que o filme era feito pra mim (uma história ‘adulta’, com atores mais ou menos da minha idade… êba!). Não foi… Ou talvez tenha sido o efeito cumulativo de tantas séries de TV dos anos 70 – ‘Os Waltons’ (‘Boa noite, John Boy!’), ‘A Família Do-ré-mi’, ‘Julia’ (nossa! Como fui me lembrar de ‘Julia’, um seriado cuja protagonista era uma enfermeira negra, viúva de um soldado morto na guerra do Vietnã – obrigado IMDB! – e que tinha de criar sozinha seu filho Corey Baker???). Ou talvez os problemas começaram até nos anos 60, quando eu assistia, na extinta TV Excelsior, a saga de Toquinho, numa novela chamada ‘A Pequena Órfã’?

O fato é que durante anos, a experiência só reforçou meu trauma. Para citar casos mais recentes, que desprazer ver uma história boa estragada pelo ‘fofo’ Jonathan Lipnicki, em ‘Jerry Maguire’ (1996). E não vamos bem começar a discutir a série ‘Harry Potter’ (sim, acabo de comprar briga com mais ou menos 3 milhões de pessoas fãs hidrófobos!). Raras eram as exceções (como Haley Joel Osment, em ‘O Sexto Sentido’, de 1999) que me davam esperança. Mas aí veio ‘Cidade de Deus’ (2002).

De tantas coisas boas que é possível falar sobre esse trabalho ‘divisor de águas’ de Fernando Meirelles, a que eu mais destacaria aqui é o trabalho com os atores mirins. Aliás, destacaria brevemente, pois muito já foi dito (se bem que elogio, nunca é demais) sobre o trabalho de atores (ou seria ‘não-atores’?) do filme. Douglas Silva e Darlan Cunha (já consagrados como Acerola e Laranjinha) são só os primeiros que vêm à cabeça de uma lista enorme de talentos que, para a surpresa geral, se destacaram no filme. ‘Tá vendo como é possível tirar boas interpretações de crianças sem nenhuma formação artística?’, parecia que o diretor estava querendo nos dizer.

Foi justamente desse elenco de ‘Cidade de Deus’ que me lembrei ao assistir ‘O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias’ (ao qual me referirei apenas como ‘Férias’, daqui para frente, na tentativa – sempre vã – de abreviar este blog…). Ali estava um elenco mirim que era quase que um irônico negativo do mesmo em ‘Cidade’: no lugar de crianças de uma comunidade pobre no Rio, garotos selecionados em colégios judaicos da capital paulistana. Sentiu a diferença? Pois elas param por aí. Se os ‘backgrounds’ desses dois grupos de atores são tão distintos, o resultado do trabalho deles que pude ver na tela é o mesmo – não o mesmo na performance (já que são filmes profundamente diferentes), mas na qualidade.

Michel Joelsas e Daniela Piepszyk, ambos de 11 anos, são os condutores perfeitos para a triste história filmada brilhantemente por Cao Hamburger (que meu corretor ortográfico insiste ‘!) em ‘Férias’. O adjetivo ali é quase uma ironia, pois seria impossível chamar de ‘brilhante’ a paleta de cores delicadamente escolhida para essa história que se passa em 1970, bem quando o Brasil estava prestes a ganhar o tricampeonato da Copa do Mundo – e centenas (milhares?) de pessoas (principalmente jovens) eram obrigados a ‘sair de férias’ fugindo da perseguição política imposta pela ditadura militar, como os pais do personagem de Michel, o Mauro. Uma história triste sim, mas pontuada com toques de extremo bom-humor (como a cena da festa de casamento, tão especial, que fez com que o rei Roberto Carlos, numa rara concessão, liberasse sua música ‘Eu Sou Terrível’ para ser usada no filme).

E as nuances desse humor de ‘Férias’ estão a cargo dessas crianças. Do jogo de futebol às indiscrições nos vestiários da loja de roupa da mãe da personagem de Daniela, a Hannah, esses meninos e menina (basta uma para controlar aquele bando de meninos – como todos nós aprendemos na pré-adolescência…) não são nem um pouco afetados. São crianças. Só crianças. Ao contrário dos maus exemplos que tanto me perseguiram, não precisaram interpretar a idade que já tem: tiveram apenas de se preocupar com a história que está por trás de seus personagens. E isso, o fizeram com empenho total. Bravo!

Em ‘Pequena Miss Sunshine’, Abigail Breslin é a única criança que vemos quase até o final do filme (quando ela é então cercada de um bando de pequenos monstros que só a cultura americana é capaz de formar, no caso, durante uma competição de beleza infantil – já falo disso). A responsabilidade é maior, especialmente porque ela contracena com um ótimo elenco adulto (qualquer ‘casting’ que traga Toni Collette, para mim, já pode ser chamado de ótimo). E, o tempo todo, sua personagem Olive não é nada além de uma criança. Só uma criança. Do chilique que dá ao saber que vai participar de um concurso de beleza à impagável coreografia que apresenta no palco (num fino comentário, o filme parece querer dizer: ‘Vocês não queriam meninas se comportando como adultas? Então toma!’), Abigail é impecável. Enquanto o mundo à sua volta (ou seria mais preciso dizer a estrada à sua volta, já que estamos falando do melhor ‘road movie’ desde ‘Transamérica’? – eu sei que nenhum desses dois títulos se encaixa bem na definição de ‘road movie’, mas a comparação vale assim mesmo…) – enfim, enquanto o mundo à sua volta vai sendo pintado de horrores (e, noutra estranha semelhança com ‘Férias’, as coisas tristes são pontuadas com toque de bom humor), Olive se concentra no seu mundo de menina. Pensa e reage como tal (sua inquisição sobre a tentativa de suicídio do tio logo no início do filme já me encheu de esperança). E é puro prazer de se ver.

Só retomando brevemente o concurso final de beleza, aquelas aberrações que competem com Olive não são criações de um roteirista maluco. São retratos da realidade da cultura ‘trash’ americana, que rouba qualquer traço infantil dessas meninas em nome de uma consagração imbecil à beleza artificial das mulheres adultas. São monstros sim – talvez apenas só um pouco melhores que aqueles que estão sentados na platéia do concurso (pais, mães, entusiastas e… pedófilos, como mostra o próprio ‘Pequena Miss Sunshine’). No meio dessa fauna bizarra, a dança erótica de Olive é a melhor vingança – a salvação que permite que ela preserve sua inocência ao mesmo tempo em que choca aqueles adultos imbecis. Palmas para o avô tarado dela que a ensaiou com tanto afinco!

Será que, depois desses dois bons exemplos, vou poder encarar novos filmes com crianças sem susto. Tenho cá minhas esperanças. Mas não posso registrar aqui que o momento que tirou a maior risada minha em ‘Férias’ não é uma cena com o elenco infantil. Pelo contrário: é uma com o (não menos impressionante) elenco da terceira idade – ou ‘melhor idade’, como manda a mais recente entrada do manual do politicamente correto que ouvi outro dia. Minutos antes da final da Copa de 70, com as imagens borradas de preto e branco inundando todas as TVs, numa sala de um apartamento do bairro paulistano do Bom Retiro, um pequeno grupo de senhores judeus aguarda ansiosamente o apito para começar a partida ao lado de suas esposas – sempre mais preocupadas com os quitutes servidos durante a transmissão do que com o próprio jogo. Em meio à expectativa de uma decisão onde o Brasil inteiro sabia de cor qual era a escalação do escrete que defenderia o verde-amarelo, uma dessas simpáticas senhoras pergunta a ninguém especificamente: ‘O Pelé tá aí?’.

Tenho a impressão de que isso nem deveria estar no roteiro. Parece aquilo que os atores chamam de ‘caco’. Mas ficou genial. Michel e Daniela, tão bons quanto já são, ainda vão ter que comer muito feijão para soltar uma dessas…

Conversando sobre frutas tropicais com os Beastie Boys

qui, 02/11/06
por Zeca Camargo |
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Há um mês eu lancei um livro de entrevistas com artistas do cenário musical nacional e internacional. Chama-se “De a-ha a U2″ (editora Globo). Este texto de hoje, porém, não é uma peça de merchandising (aos mais engraçadinhos… se eu quisesse fazer isso, teria feito um mês atrás, concorda?). Mas preciso mencioná-lo para chegar à entrevista com os Beastie Boys.

No livro, reuni 53 encontros, com artistas que vão de (além daqueles que o próprio título indica) Björk a Rita Lee; de Mick Jagger a Lenny Kravitz; de Renato Russo a Robbie Williams; de Courtney Love a Kurt Cobain – 53! E, mesmo assim, ainda falta tanta gente pra falar. Ao dar entrevistas sobre os livros, ou mesmo nos bate-papos em noites de lançamento, sempre aparecia essa pergunta: quem você ainda não entrevistou mas que gostaria de entrevistar? Tenho sempre essa lista pronta: Prince (impossível!), Morrisey (pura nostalgia, Sade (a dos sonhos), Lulu Santos (com quem nunca parei para falar à larga…). E tem uma banda que eu sempre falo e causa certa estranheza: os Beastie Boys!

Depois do domingo passado, eu já posso tirá-los da lista. Se bem que, mesmo hoje, quinta, já tendo digerido bem nosso encontro, não tenho certeza de que o que aconteceu foi mesmo uma entrevista – algo que eu já deveria ter começado a desconfiar do momento em que eles entraram na sala montada para as gravações.

Ao falar sobre “De a-ha a U2″, sempre explico que uma das lições desses quase 20 anos (!) cobrindo a área de música (em especial o rock n’roll) é esperar qualquer coisa dos artistas. Bom humor, mau humor, péssimo humor, preguiça, entusiasmo, apatia, boa vontade, agressividade – e até cantadas! Isso, claro, depois que você espera horas para encontrar a celebridade (ao bater o recorde nesse quesito, depois de aguardar nove – 9 – horas para conversar com Courtney Love, tive de recorrer ao mantra que aprendi lá nos tempos de MTV: se você quer trabalhar com “showbusiness”, o negócio é correr, correr, correr… e esperar! – em inglês, como ouvi da primeira vez, “you got to rush rush, rush, rush… and wait!).

O atraso, no caso dos Beastie Boys foi negligível (para os parâmetros do rock): apenas uma hora. O que exigiu esforço supremo naquele momento foi disfarçar o choque de ver Mike D, Adrock e MCA adentrando a sala de terno e gravata – retrô, com pinta de anos 50!

Tentei não demonstrar qualquer reação. Dei um “reload” rápido na pauta que tinha preparado na minha cabeça e entrei logo no clima. Que clima? Não tinha muita idéia naquele momento, mas sabia que não poderia nem pensar em falar sobre processo de criação – e nem sobre o Tibete (que os Beastie defendem ativamente que dever ser libertado pela China, e voltar a ser uma nação independente). Então… falar do quê?

Que tal sobre a roupa que estavam usando? A resposta veio rápida: como era domingo de manhã, e eles sabiam que o Brasil é um país católico, eles queriam se vestir de acordo, explicou Mike D. Adrock o contrariou em seguida, dizendo que, como eles sabiam que era dia de eleição, eles optaram pela formalidade. Só para em seguida se contradizer e acrescentar que estavam vestidos daquela maneira para ir tomar um suco na esquina.

Foi só falar nisso, que o assunto se iluminou! Os três passaram a discutir os sabores novos que tinham experimentado na casa de sucos a algumas quadras do hotel onde estavam. “Tangerina”, dizia Mike D em português mesmo, com seu entusiasmo praticamente escondendo o forte sotaque. Se atrapalhou no “abacaxi” (“abaxica”, foi sua primeira tentativa). E Adrock custou mas finalmente descreveu a matéria-prima de seu suco favorito de uma maneira que eu pudesse identificar: fruta-do-conde!

Como eles descobriram essa casa de frutas? “Nós sempre temos olheiros que mandamos na frente de nossas viagens para descobrir o que há de bom na cidade que visitamos”, adiantou-se MCA. Mike D: “Por exemplo, próxima parada, Buenos Aires – e nossos homens já estão lá!”. “Eles sabem do que gostamos”, completou Adrock. Foi então que eu perdi qualquer esperança de fazer uma entrevista séria com os Beastie Boys.

Felizmente, essa é a regra – e não a exceção – no mundo do pop. Já havia aprendido isso desde o tempo em que, lá pelo início dos anos 90, seduzimos o Red Hot Chili Peppers a passear num veleiro pela costa do Rio de Janeiro, na esperança de fazer a melhor entrevista da carreira deles – só para, depois de passar o dia com eles no barco, sair com um belo material para um videoclip, mas nada de consistente para uma entrevista… Daí em diante, relaxei.

Não apenas relaxei: passei a ver todas as entrevistas com artistas do mundo do rock de maneira diferente. Será que alguém quer saber mesmo qual foi a inspiração de um artista por trás da faixa 7 do disco de 1998? Se o novo álbum tem mesmo uma influência mais de blues do que o trabalho anterior? Se ele ou ela está mais contente com a nova formação da banda? Se a banda se considera uma alternativa para o movimento batizado de “new wave of new wave”(não estou inventando!! isso realmente existiu!)? Ou se esse é mesmo (pela décima-oitava vez) o fim da banda?

Na preparação do meu livro, relendo entrevistas antigas (não as minhas, mas de outros repórteres, em várias revistas que coleciono) tive a convicção de que, para a maioria das pessoas, inclusive para muitos dos fãs, esse tipo de informação é chatíssima. E os próprios artistas não agüentam mais falar sobre as mesmas coisas (colegas e futuros colegas: se vocês quiserem ter uma visão do horror que é para uma banda passar pelas nossas entrevistas, procurem o DVD “Meeting People Is Easy” (1999), onde o Radiohead registra, aparentemente sem nenhuma ironia, a avalanche de encontros com a imprensa de parte da turnê de “OK Computer”; você nunca mais vai encarar uma sessão de perguntas e respostas da mesma maneira…).

As boas entrevistas acontecem quando o artista sai do universo do seu disco e explora assuntos maiores – pode ser até música mesmo, mas de uma maneira mais geral. Foi assim com Lenny Kravitz. Ou quando eles mostram um interesse maior na própria essência de sua celebridade – como Alanis Morrisette. Ou quando o mundo lhe parece mais interessante que seu próprio trabalho musical. Sim, Bono. Ou então quando eles chutam tudo para cima e resolver falar qualquer bobagem. Como os Beastie Boys.

Nosso encontro teve um leve momento de sobriedade sim, quando, ao perguntar como eles conseguiam fazer um trabalho tão interessante, mesmo depois de 20 anos juntos. “Hit the juice bar!”, respondeu MCA (ou, “vá mais à loja de sucos). E prosseguiu na metáfora, dizendo que quanto mais frutas eles experimentam, melhor fica o trabalho. Se não gostam de alguma fruta (palavras dele), não repetem – mas o importante é sair experimentando sem medo.

E tudo terminou depois que Mike D ofereceu um emprego para alguém que pudesse ajudá-los a combinar os ternos com os sapatos (os que os três usavam naquela manhã eram terríveis). Outra piadinha… e, pelo menos do jeito que ele falou, engraçada! (a entrevista editada pode ser vista aqui).

Não consegui ir ao show deles no Rio, no domingo – nem em Curitiba, na terça. Mas todos os relatos de amigos que foram (para não falar nas críticas da imprensa) me confirmam que foi sensacional. Talvez tenha perdido um grande momento. Mas pelo menos aproveitei a conversa com os Beastie Boys para reafirmar a certeza de que no mundo do pop, quanto menos sério, melhor…



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