A música do acaso
“A procissão do casamento do Príncipe Jawan Bakht saiu da Porta Lahore do Forte Vermelho, às duas horas da manhã, na quente noite de verão de 1852… Os primeiros a aparecer foram os chobdars, ou carregadores de bastão… Era o trabalho dos chobdars limpar o caminho por entre a multidão excitada, antes que os elefantes imperiais – sempre um pouco imprevisíveis na presença de fogos de artifícios – aparecessem se arrastando pelos portões.”
Lia encantado esse começo da descrição do casamento do filho preferido do último “Mughal” (o líder supremo de uma dinastia imperial da Índia), destituído de todo o poder e completamente humilhado pelos britânicos em 1857. Seu nome era Bahadur Shah Zafar II. E “Mugahl” era só uma espécie de apelido, já que, em toda sua extensão, seu título oficial era de “Sua Alteza Divina, Califa da Época, Padshah tão Glorioso como Jamshed, Ele que É Cercado por um Bando de Anjos, Sombra de Deus, Refúgio do Islam, Protetor da Religião de Mohammed, Rebento da Casa de Timur, O Maior dos Imperadores, O Mais Poderoso Rei dos Reis, Imperador Filho de Imperador, Sultão Filho de Sultão”. Zafar, digamos, estava podendo…
Tudo isso está no livro “The last Mughal”, de William Dalrymple (ainda inédito no Brasil), que eu tinha em mãos na travessia de “ferry boat” entre Hong Kong e Macau. No meu iPod, pela milésima vez naquele dia, as músicas do último CD de Adem, “Love & other planets”. Minha atenção totalmente voltada para a leitura e para a música até que, na viagem de 45 minutos, meus olhos foram fisgados pela fantasia visual de um programa (que depois descobri ser da TV japonesa) no qual os participantes têm de criar ilusões de ótica, usando apenas seus corpos (pense em “efeitos especiais”, sem os “especiais”). Naquele momento, eu sofria de uma pequena convulsão (ou seria uma epifania?) cultural.
Não foi a primeira vez que vivi isso nessas curtas férias que tirei. Logo quando cheguei a Londres, a caminho de Hong Kong, andando na direção de Trafalgar Square para ver a exposição do grande pintor espanhol Velázquez na National Gallery, minutos depois de ter saído da minha loja de CDs favorita na cidade, Sister Ray, com o disco mais barulhento e genial que ouvi este ano (The Horrors, uma perfeita reencarnação do Cramps), literalmente esbarrei em Seu Jorge, que estava lá para um show rápido no The Roundhouse (que ganhou quatro estrelas do jornal “The Guardian”). Acabei não indo ao show, seduzido pela tentação de assistir ao filme “Borat” com urgência – mas eu senti que estava tendo um daqueles momentos de “derretimento e fusão” cultural (uma má tradução, me perdoe, para a expressão “cultural meltdown”), onde informação de mais de um canto do mundo (e de mais de uma época da história) colaborava para meu total deslumbramento diante das possibilidades da criação humana.
Ou ainda, no dia seguinte à minha visita à Disneylândia de Hong Kong e o gigantesco Buda agora mais acessível com o teleférico de Ngong Ping (Mickey e Buda no mesmo dia!), depois de passar a tarde numa megaloja japonesa chamada Muji e de ter me perdido (em todos os sentidos, inclusive no do consumo) nas suas incontáveis prateleiras repletas de objetos (e comidas e utensílios e roupas) tão simples e com um design tão bom (e barato), jantei num tailandês rápido e fui encontrar amigos no karaokê Red Box, no oitavo andar de um dos inúmeros arranha-céus da cidade. Elvina, uma atriz chinesa que conheci na viagem estava treinando para uma apresentação no sábado seguinte e deu um pequeno show naquela exclusiva suíte executiva (o karaokê estava mais para “Encontros e desencontros” do que para aquele que você canta no bar de um hotel de litoral no fim-de-semana) e mandou muito bem nas canções tanto em mandarim como em cantonês, enquanto que eu, desafiado (e desafinado), me acabei numa interpretação de “I want it that way”, tentando fazer uma homenagem, já que estava na Ásia, aos Backroom Boys (o quê? nunca viu? vá já ao YouTube e dê um search com o nome da banda) – só para depois enterrar de vez minha reputação como vocalista com uma versão maldita de “Out of time”, do Blur (eu sei, eu sei… essa música é dificílima de cantar… mas se você visse as outras opções do cardápio de música ocidental…).
Poderia descrever aqui outros momentos assim, mas acho que você já pegou a idéia. Ou, melhor dizendo, o meu moto quando viajo de férias: não existe nenhum roteiro prévio. Quer maneira melhor de descobrir as coisas, encontrar pessoas, ser supreendido, enfim, aproveitar uma viagem, do que se entregar à música do acaso?
A expressão, claro, não é minha. É emprestada de um livro de 1990 do escritor americano Paul Auster (é pouco provável também que ele tenha cunhado a expressão, mas é sempre bom deixar claro suas fontes…). O autor a usa para batizar uma sucessão de acasos mirabolantes – que acabou virando uma espécie de marca registrada da sua obra (absolutamente todos seus livros são recomendadíssimos – e quase todos, felizmente têm tradução o Brasil; tente começar por “O Livro das Ilusões” ou “Mr. Vertigo”). E é daí que eu também parto, quando parto em férias.
Contrariando talvez sua expectativa, não vou, neste retorno, entrar a fundo na experiência de passar uma semana numa das cidades mais frenéticas do mundo – que é Hong Kong. Até porque, não sei se vou digerir toda a experiência assim tão rapidamente. Optei por oferecer apenas esses “flashes” da viagem, que foram acontecendo para mim da maneira mais espontânea possível. Exatamente como eu queria. Fui vivendo cada evento desses com uma curiosidade quase adolescente (do alto dos meus 43 anos…) e longe de descansar, aproveitei esse “período de descanso” absorvendo tudo da maneira mais intensa que pude.
Qualquer passeio, qualquer shopping, qualquer nova amizade, qualquer templo, qualquer meio de transporte, qualquer comida – até qualquer hora de sono – tudo teve uma vibração especial. E talvez seja melhor eu ir falando dessas experiências aos poucos. E começando por aquelas mais fáceis (se bem que nem sempre) de a gente assimilar – digamos, as mais ocidentais, que experimentei em Londres.
Aos que tinham alguma esperança de que eu voltaria “muito mudado”, com a firme intenção de fazer textos mais curtos (se bem que essas pessoas nem chegaram a este parágrafo – ou chegaram?), com frases mais breves e sem tantos apartes.. desculpe. Acho que voltei ainda mais animado para fazer justamente o contrário… E se não deu para perceber, espere até segunda, quando vou falar da bizarra exposição da coleção do artista plástico Damien Hirst na Serpentine Gallery e do não menos bizarro filme “Borat”.
Isso, claro, se o acaso permitir…