Musa? Que musa? O contorno das coisas por vir
Musa? Que musa? O contorno das coisas por vir
Um domingo estranho. E não apenas pelo fato de eu ter entrevista com o Beastie Boys.
Logo depois de votar, ouvi no rádio, numa estação FM daquelas que só tocam música brasileira, logo que entrei no carro, “Como Nossos Pais”, na gravação clássica de Elis Regina. “Hoje eu sei que quem deu a idéia de uma nova consciência e juventude…” – você sabe o resto. E, logo em seguida, entrou Chico Buarque, com “Apesar de você”. Você também conhece a letra. Coincidência? “Timing”? Oportunismo? O que teria feito o DJ da tal rádio programar as duas músicas, uma em seguida da outra – e justo neste dia? Mensagem subliminar? Ou será que eu estava vendo coisas onde elas não existem? Ou existem?
Que motivos tenho eu para achar que só porque o programa de “músicas aleatórias” (a tradução um tanto lusitana para a tecla “shuffle” do meu iPod) toca “Che meraviglia”, com Elza Soares, e depois “Ódio el amor”, com o roqueiro argentino Rubin – e, na seqüência, “Labirinto dos carrascos”, com Os Carrascos (trecho da letra: “No labirinto dos carrascos, as fofuchas tão cercadas/ desce até embaixo e vem dançar com seu carrasco”) – eu tenho que tirar alguma lição disso?
Como você vê, eram muitas perguntas importantes passando pela minha cabeça a caminho da entrevista com os Beastie Boys. Mas nenhuma mais importante do que aquela levantada por dois artigos assustadores que li esta semana: será que o acaso vai deixar de fazer parte da nossa experiência cultural?
Encontrei o primeiro deles no caderno de artes do jornal “The New York Times” do domingo, 22 de outubro último. Sob o título de “A estética Starbucks”, a reportagem detectava, de maneira bastante lúcida, a tendência de a rede de cafeterias americana (que, parece, está prestes a chegar ao Brasil) estender seu conceito para muito além das doses duplas de capuccino (descafeinado, por favor!). Começando experimentalmente com CDs e depois com livros e filmes (os DVDs devem ser introduzidos neste Natal, segundo o artigo), a Starbucks oferece, cada vez mais aos seus clientes, produtos culturais que seriam uma espécie de continuidade do espírito (ou seria, da filosofia?) das bebidas que vende.
Que espírito é esse? Bem, o Brasil ainda vai levar um tempo para se familiarizar com ela – mas não um tempo muito longo, já que, depois que chega em algum lugar, ela se espalha como capim selvagem! Mas, acostumado a me deparar com suas lojas nas viagens internacionais, arrisco aqui dizer que é um espírito alternativo-comportado. Exemplos? Recentemente, Aimee Mann fez um “pocket show” numa Starbucks de Nova York. E entre os artistas que têm seus CDs à venda nas lojas, estão Alanis Morrisette, Bob Dylan (mas não Bruce Springsteen: seu álbum “Devils and dust”, de 2005, não foi vendido nas cafeterias por causa de uma música que falava sobre sexo anal com uma prostituta) – se bem que nomes mais ligados ao jazz, como Herbie Hancock, Ray Charles e até a “nova” sensação vocal, Madeleine Peyroux, estão à venda.
Nenhum problema com essa seleção diga-se. Meu problema é com o fato de uma rede de “coffe shops” escolher o que você quer ouvir. Eu sei, eu sei. Ninguém é obrigado a comprar o que eles têm para oferecer. Mas você sabe como funcionam as coisas… Uma vez que alguém conseguiu vender (ou emplacar) comercialmente uma imagem ligada a um tipo de produto (e pode ser uma xícara de café ou uma grife de roupa, uma linha de cosméticos, de lingerie, de “fast food”, ou qualquer outra marca consagrada em vários países), por que não estender essa influência? É isso mesmo que as pessoas querem? O que as pessoas querem?
A pergunta remete ao outro artigo não menos temerário que li esta semana – esse, na “The New Yorker”, escrito pelo sempre esperto autor do livro “Blink” (uma boa fonte de inspiração recente), Malcolm Gladwell. O título do seu texto é “A fórmula”, onde ele comenta dois métodos desenvolvidos recentemente para prever sucessos. Prever sucessos? Isso mesmo: Platinum Blue é um programa capaz de dizer se uma música nova vai fazer sucesso com o público; e uma matrix desenvolvida por uma companhia que se chama Epagogix é capaz de analisar o roteiro de um filme e dizer, com pouca margem de erro, que bilheteria ele terá nos Estados Unidos.
Como? Resumindo bem, Platinum Blue dividiu um número astronômico de músicas em partes matemáticas (acredite: isso é possível). Organizou as que entraram nas paradas americanas em sub-grupos e, a cada música nova que analisa, o programa a compara com esse arquivo de sucessos e diz se ela vai ou não estourar. Já a matrix do Epagogix, também chamada por seus criadores de “rede neural” (tradução para “neural networks”), “quebra” os elementos de um roteiro em itens quantificáveis, que são traduzidos em arrecadação de bilheteria.
Não tente entender – até porque, mesmo no artigo de Gladwell, nenhuma fórmula é explicada a contento (afinal… algum segredo tem de ser mantido para que a “receita” continue a ser preciosa…). O que me inquietou foi o fato de existir a possibilidade de a criação de uma música ou de um filme ser “monitorada” para agradar o grande público. É ou não é assustador?
Imagine que ao tentar escolher um filme para ver no cinema você só tenha diante de si títulos, atores, atrizes, cenários, tramas e desfechos que você já sabe que vai gostar. O prazer de ser surpreendido por uma virada na história? Isso também pode ser programado. A sensação de descobrir um talento desconhecido na tela? Só se a “equação do gosto popular” permitir. E é fácil imaginar a mesma coisa no mundo da música. Para que perder tanto tempo ouvindo centenas de músicas que “não batem fundo”, se você pode ir direto numa que já foi programada para você gostar? Musa? Quem precisa de musa? Bem-vindo a mais um novo admirável mundo novo: o do inesperado, empacotado.
Claro que, no final de seu artigo, Malcolm Gladwell tem o cuidado de fazer aquela média e dizer que os executivos de Hollywood não estão muito a fim de adotar a “matrix” do Epagogix (se bem que os executivos de gravadoras estão mais em cima do muro com relação ao Platinum Blue…). E ele termina exaltando o poder incalculável da criação humana de surpreender. Mas seu argumento convincente que afaste de vez o fantasma de um dia o futuro da música e do cinema ser dominado por fórmulas previsíveis. Ou, como na matéria do “New York Times”, um futuro onde os outros escolhem o que eu quero ver, ler e ouvir baseado no café que eu tomo ou na roupa que eu visto.
Ainda que para oferecer uma frágil resistência, faço aqui uma minúscula campanha pela criatividade humana – pela sua capacidade infinita de tirar do acaso sons, palavras, imagens, idéias que nunca se esgotam em sua originalidade. Uma campanha que é também pelo gosto humano, que, acredito, não se cansa de ser surpreendido também pelo acaso. Este sim, o acaso, o mesmo que “programou” as músicas que tornaram a manhã do meu último domingo meio estranho – o acaso é que é a grande fórmula. Eu tenho que acreditar nisso – até para celebrar a genialidade de artistas como aqueles três malucos do Beastie Boys que eu entrevistei nesse mesmo dia “estranho”.
Sobre eles, falamos na quinta.