Um dia invisível
Hoje é o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Faz diferença para você? É possível que não. Aliás, essa também é uma data ignorada pela maioria dos veículos de comunicação de massa, que não deverão mencioná-la hoje.
Mas esse é um dia muito importante para a Organização Mundial da Saúde, que estabeleceu essa data e vem tentando – ao que parece sem muito sucesso – sensibilizar jornalistas e comunicadores para a importância do tema. O que está em jogo, segundo a OMS, é abrir espaço nas mídias para informações que podem efetivamente salvar vidas. O tema pode ficar mais em evidência com a notícia que envolve o ex-baixista do grupo Charlie Brown Jr, Champignon, encontrado morto ontem.
Os números da Organização Mundial da Saúde são impressionantes:
- a cada ano, aproximadamente 1 milhão de pessoas morrem em todo mundo por suicídios;
- um crescimento de 60% nos últimos 45 anos;
- para cada caso consumado de suicídio há 20 tentativas;
- embora tradicionalmente o número de suicídios seja maior entre idosos, verifica-se o aumento da incidência de óbitos por esta causa entre os mais jovens.
A informação mais surpreendente, entretanto, é que o suicídio é prevenível em 90% dos casos.
O mais completo estudo da OMS já realizado sobre o assunto (do qual participou o psiquiatra brasileiro, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e consultor da OMS, José Manoel Bertolote) analisou o histórico de 15.629 suicídios em diversas partes do mundo. De cada 10 casos analisados, 9 estavam relacionados a alguma patologia de ordem mental diagnosticável e tratável, como transtornos de humor (depressão), transtornos relacionados ao uso de substâncias, transtornos de personalidade, esquizofrenia etc. Ou seja, através desse levantamento, foi possível estabelecer “inequivocamente, um elo entre dois grupos de fenômenos: comportamento suicida e doença mental”.
O entendimento dos especialistas é o de que a informação clara e objetiva pode salvar vidas, tal como já acontece em campanhas de prevenção contra doenças sexualmente transmissíveis, tabagismo, câncer, doenças do coração, dengue etc.
O problema é o tabu. Disseminou-se pelas redações a idéia de que toda e qualquer referência a “suicídio” terá o poder de fomentar o aparecimento de novos casos. Não é bem assim. A OMS e a Associação Brasileira de Psiquiatria lançaram manuais especialmente dirigidos aos profissionais de imprensa informando, entre outras coisas, que “dependendo do foco dado a uma reportagem, pode haver aumento no número de casos de suicídio, ou, ao contrário, pode-se prestar ajuda a pessoas que se encontram sob risco de suicídio”.
Ao justificar a ideia de um manual, os responsáveis explicam que o objetivo é “fomentar a parceria entre psiquiatras e profissionais da imprensa, com a meta de informar e, sempre que possível, auxiliar a população exposta ou sob risco de suicídio”. Dentre as sugestões propostas, recomenda-se que o suicídio não seja enaltecido nem tomado como ato de coragem, num processo de “romantização” do ato, ou de “heroicização do falecido”; mostrar a história de pessoas que contaram com a ajuda certa na hora certa para evitar o suicídio, enumerar os sinais de alerta de que uma pessoa está em risco de suicídio e o que fazer para ajudá-la, revelar as estratégias de prevenção e ouvir profissionais de saúde mental, entre outras dicas.
Ao vedar toda e qualquer informação sobre suicídio – sob o pretexto de estar fazendo a coisa certa – os veículos de comunicação acabam contribuindo para o agravamento das estatísticas.
Graças a essa enorme desinformação de quem trabalha justamente com notícias, poucos de nós sabemos que o suicídio é caso de saúde pública no Brasil (segundo o Ministério da Saúde) e no mundo (de acordo com a própria OMS). Estima-se que no Brasil aproximadamente 26 óbitos por suicídio sejam registrados a cada dia.
De acordo com a última edição do “Mapa da Violência”, um amplo levantamento das mortes por homicídio, acidentes de trânsito e suicídios no Brasil, a taxa de suicídios no Brasil passou de 4,3 para 5,1 por 100 mil habitantes (na população total) e de 4,9 para 5,1 por 100 mil (entre os jovens). Se no ranking mundial, estamos aparentemente bem situados na posição de nº 73, muito atrás de países como Lituânia, Japão ou Bélgica, alguns estados brasileiros registram taxas extremamente preocupantes de autoextermínio, como Roraima e Rio Grande do Sul. As causas são difusas e ainda estão sendo mapeadas.
“Os suicídios no país vêm aumentando de forma progressiva e constante: a década de 80 praticamente não teve crescimento (2,7%); na década de 90 o crescimento foi de 18,8% e daí até 2011 de 28,3%”, diz o coordenador do Mapa, professor Julio Jacobo Waiselfisz.
Por detrás das estatísticas oficiais, há o problema dos sub-registros – segundo o IBGE, 15,6% dos óbitos em geral não chegam a ser oficialmente registrados – e das subnotificações – de acordo com a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, o número correto de suicídios no Brasil pode ser até 30% maior em função do preenchimento impreciso dos atestados de óbitos. Em boa parte dos casos onde se lê “quedas”, “acidentes de trânsito” ou “acidentes com armas de fogo”, o que de fato aconteceu foi suicídio.
Em meio a tantas dificuldades para divulgar a urgência da prevenção do suicídio no Brasil, merece atenção o trabalho realizado há 51 anos pelo CVV.
O Centro de Valorização da Vida realiza um serviço voluntário de apoio emocional e prevenção do suicídio reconhecido como de utilidade pública pelo próprio Ministério da Saúde. Fundado em 1962, o CVV está presente hoje em 18 estados (mais o Distrito Federal) onde mobiliza um exército de 2.200 voluntários que se disponibilizam para ouvir com atenção quem liga procurando ajuda: alguém que deseja conversar, desabafar, compartilhar o que quer que seja. Há também aqueles que pensam em se matar. O voluntário guarda sigilo da conversa e não julga aquele que faz contato.
Pela experiência dos voluntários, a escuta atenciosa já salvou muitas vidas. A experiência do CVV – elogiada por técnicos do Ministério da Saúde como a melhor iniciativa não governamental de prevenção ao suicídio no país – revela os efeitos colaterais de uma sociedade cada vez mais apressada e impaciente, onde a simples oferta de uma escuta amorosa, em boa parte dos casos, faz toda a diferença.
O atendimento se dá pelo telefone 141 (24 horas por dia), ou pessoalmente nos 72 postos existentes no país, ou ainda pela internet através do site da instituição, via chat, VoIP (Skype) e e-mail.
Toda essa estrutura é mantida pelos próprios voluntários, que recebem aproximadamente 1 milhão de ligações por ano.
Uma iniciativa do CVV lançada na última semana de agosto é o movimento “Isso me faz seguir em frente”, onde diferentes pessoas revelam o que as faz querer viver. “Família”, “meus amigos”, “Deus”, “o sorriso do meu filho”, são muitas as respostas, todas interessantes. Qualquer um pode participar da brincadeira compartilhando o que realmente faz toda a diferença em nossas vidas. Afinal de contas, pra que viver?
“Quem não se comunica, se trumbica”, dizia um dos maiores comunicadores do Brasil, o velho Chacrinha.
Quando a informação pode salvar uma vida, por que não fazê-lo?
Ouça o comentário de André Trigueiro sobre este assunto na Rádio CBN