‘A realidade crua não me interessa’, diz diretor de ‘O Som ao Redor’
O cotidiano de uma rua de classe média no Recife toma um rumo inesperado com a chegada de um serviço de segurança particular. A novidade afeta a rotina dos moradores, trazendo alívio para uns e aflição para outros. Seria difícil acreditar que um filme com essa sinopse, dirigido por um estreante em longas de ficção, tivesse maiores possibilidades de reconhecimento crítico e de alguma presença significativa no concorrido mercado de cinema no Brasil ‘O Som ao Redor’, do pernambucano Kleber Mendonça Filho, que estreia hoje, prova que isso é possível. Apontado pelo jornal ‘The New York Times’ como um dos melhores lançamentos do ano e colecionando prêmios em festivais nacionais e internacionais, o filme se destaca pelo olhar adulto e inquiridor sobre a realidade de uma grande cidade.
Com personagens humanos, que vivem problemas reais, longe portanto da fantasia televisiva e adolescente de uma sociedade de faz-de-conta – mas também dos clichês sobre a violência e a desigualdade social tão comum em nosso cinema – ‘O Som ao Redor’ sacode o espectador entorpecido pelas imagens convencionais, como que o colocando diante de um espelho que reflete o individualismo, o consumismo, as dificuldades de relacionamento, os valores e comportamentos que prevalecem na vida de qualquer metrópole. Nesta entrevista Kleber Mendonça Filho, 44 anos, fala sobre os desafios da produção do filme e o reconhecimento internacional que ele vem conquistando.
- ‘O Som ao Redor’ chama a atenção por tratar de personagens verossímeis, às voltas com o desafio de lidar com uma realidade hostil, marcada por conflitos, condicionamentos e “ruídos” os mais diversos, e por mergulhar em questões reais do cotidiano de uma grande cidade. Como nasceram esses personagens? O filme tem algo de autobiográfico, no sentido de refletir experiências suas ou de conhecidos seus?
KLEBER MENDONÇA: Todo filme, livro, música, poema, deve ser, de alguma forma, autobiográfico. Uma amiga americana, jornalista, me contou uma vez que foi para a high school nos anos 70, e dois amigos seus se tornaram roteiristas de cinema. Eles terminaram escrevendo o roteiro do longa ‘O Garoto do Futuro’, de Rod Daniel, com Michael J.Fox. Os amigos descreveram no filme, que se passa numa high school, várias experiências e personagens que minha amiga reconhecia, incluindo ela própria. Fantástico, não? Um filme comercial, uma comédia teen, mas construída em cima de experiências pessoais. ‘O Som ao Redor’ é construído em cima de experiências vividas ou que eu ouvi falar, adaptadas para o drama ou a comédia de um filme de cinema. As pessoas me perguntam se eu sou João no filme; sou sim, mas também sou Bia, Sofia, Francisco e Clodoaldo. É o mais delicioso e sofisticado exercício em esquizofrenia que há, escrever.
- Mais que uma locação, Recife parece ser uma personagem do filme – talvez “a” personagem. Você se inspirou em outros filmes/diretores que fizeram da paisagem e da atmosfera urbana elementos centrais de suas narrativas? Em outras palavras, com que filmes e cineastas ‘O som ao redor’ dialoga?
KLEBER: É natural filmar o lugar que você vive. Adoro o Recife, e desprezo a cidade quase na mesma intensidade. Quase. Na história do cinema e da literatura, das artes, é natural observar que passamos a conhecer lugares através da expressão artística, lugares que foram filtrados pela arte. A Brighton Beach de Neil Simon, as “Nova Yorks” de Woody Allen e Spike Lee, a Tchecoslováquia de Milan Kundera, a Manchester de Morrissey e The Smiths, a Bahia de Jorge Amado, a Grã-Bretanha de Ken Loach, que a filma desde os anos 60, o Rio de Janeiro de ‘Rio Zona Norte’, de Nelson Pereira dos Santos. Há centenas de grandes exemplos, esses que citei agora são de cabeça, mas todos fazem parte da minha formação. Recife termina sendo uma cidade como qualquer outra, exceto que não é, pois é o Recife.
- Além da crítica explícita à especulação imobiliária na cidade, o filme traz críticas mais sutis ao modo como vivemos hoje – por exemplo, na relação peculiar (e até erótica) de uma personagem com os eletrodomésticos – o aspirador de pó, a máquina de lavar, a televisão etc. Essa crítica social voltada não às diferenças de classe, mas à própria identidade e aos valores da classe média individualista e consumista, me parece única na produção brasileira atual, recuperando para o nosso cinema um sentido político que andava meio ausente. Você concorda?
KLEBER: O cinema é um retrato artístico da realidade. Para mim, não há sentido em deixar uma câmera digital ligada o dia inteiro numa rua e pegar o material mais tarde. Isso é uma mera observação eletrônica. Se você tem o dom artístico de filmar e comentar, exercer um ponto de vista, você fará um filme, ou escreverá um belo texto, e me interessa ser fiel à realidade, mas também dar uns tapas bem dados, uma cusparada aqui e ali, na realidade, e decolar em direção ao cinema. A realidade nua e crua não me interessa. Eu preciso mostrar o real, mas sob minhas especificações de autor. Portanto, nada do que tem sido dito ou escrito sobre ‘O Som ao Redor’ foi premeditado. Eu fiz o filme, ele ficou pronto, e agora há um retorno, há reações, e me sinto sortudo de ver que bate bem, e as pessoas revidam com uma explosão de todo tipo de energia, sempre forte.
- Em relação à linguagem, há momentos, sobretudo na parte passada no engenho, em que você rompe com a linguagem realista que parece prevalecer. Por que fez essa opção?
KLEBER: Eu não gosto de explicar o filme, nem suas cenas, mas me parece que talvez aquilo ali seja um longo e elaborado sonho, um pouco como o sonho que abre ‘Rebecca’, de Hitchcock, onde ela sonha que voltou a Mandalay. Mas isso é o que eu acho, o espectador pode achar que aquilo não é um sonho.
- Fale sobre o nascimento e o desenvolvimento do projeto de ‘O som ao redor’. Como foi a captação de recursos, o contato com o Fundo Huber Bals, a escolha do elenco, qual foi o orçamento, quais foram as dificuldades imprevistas ao longo do processo, a montagem etc?
KLEBER: O filme veio de alguns anos de maturação, durante os quais eu fiz outros filmes. Esses curtas-metragens – ‘A Menina do Algodão’, ‘Vinil Verde’, ‘Eletrodoméstica’, ‘Recife Frio’ – foram ensaios completos que terminaram me trazendo para ‘O Som ao Redor’. A reação ao roteiro foi muito forte, e em menos de um ano, ganhamos apoio da Petrobras, do MinC, do Governo de Pernambuco e do Fundo Hubert Bals, de Rotterdam. Fiquei com a sensação de que há de fato uma procura por roteiros fortes por aí afora. Rotterdam já era um festival próximo, porque eles haviam feito uma retrospectiva dos meus curtas, portanto estavam curiosos sobre meu roteiro de longa. Dificuldades, as de sempre: primeiro longa grande, rodado à moda antiga (35mm, caminhões de equipamentos, 130 pessoas na equipe, sete semanas de filmagem), o primeiro trabalho grande de produção de Emilie [a produtora Emilie Lesclaux]. No entanto, deu tudo certo, creio que quase todos se divertiram muito fazendo, eu incluído.
- Como você interpreta a grande receptividade no exterior ao filme, em Rotterdam, Nova York etc? E qual a sua expectativa em relação à carreira comercial no Brasil e em futuros festivais internacionais? Você acha que o fato de um filme às vezes precisar do reconhecimento internacional para chamar a atenção no Brasil reflete um certo provincianismo cultural?
KLEBER: Vejo com muito entusiasmo. Ninguém é obrigado a amar ou detestar filme algum. Esse filme tem sido muito bem recebido, e entendo que isso é raro. Eu trabalhei muito para que esse filme fosse bem lançado, com Emilie, Silvia Cruz e Ibirá Machado da Vitrine Filmes, mas sou incapaz de me torturar com possibilidades de números. O importante é saber que tudo foi feito. Sobre reconhecimento no exterior, isso não é algo brasileiro, por mais que o Brasil seja um país provinciano. Filmes romenos, canadenses, russos, mexicanos ou hollywoodianos usam estratégias de serem mostrados antes num grande festival internacional. Faz parte. E se der certo, se for um filme forte, os desdobramentos são importantes para o filme e para o cinema em si. É verdade que há interesses fajutos de mercado guiando o cinema, mas posso afirmar que esse ano, estive em alguns dos melhores festivais de cinema do mundo, em quatro continentes, e com esse filme conheci apenas programadores, críticos e curadores que, de fato, vivem suas vidas à procura de belos filmes.
- O cinema pernambucano vive uma grande fase, com vários longas-metragens conquistando reconhecimento crítico (além De ‘O Som ao Redor’, ‘Boa sorte, meu amor’, ‘Era uma vez eu, Verônica’ etc). A que você atribui isso? Existe uma comunidade cinematográfica, ou uma escola específica? Como você definiria essa escola, em termos de projeto estético, mas também em termos de viabilização econômica das produções?
KLEBER: A melhor coisa do cinema pernambucano é que ele, na verdade, não existe. Não temos um “Estúdio do Cinema Pernambucano”, ou “Pernambuco Studios”. Não temos projeto estético, não nos reunimos para traçar metas e definir temas. Não há ambições mercadológicas, muito embora eu acredite que a parte mais importante dessa produção será mais duradoura na cultura, como produto cultural, do que as porcarias que são feitas para faturar rápida e grosseiramente, para serem esquecidas depois de dois meses. É um cinema que existe pura e unicamente nos filmes, goste-se ou não desses filmes, e o mesmo digo sobre os bons filmes de outros estados do Brasil. O cinema pernambucano tanto não existe que os filmes vieram antes dos incentivos, e as escolas surgiram por último. Desafia explicações. Felizmente, pelo fato de os filmes, os resultados, a massa crítica e o prestígio serem reais, nós nos organizamos no sentido de garantir incentivos estaduais, e esse edital tem se tornado mais profissional e democrático a cada ano. É perfeito? Longe disso, mas tentamos lidar com ele filme a filme.
- Voltando ao tema de seu documentário ‘Crítico’, como você analisa a crítica de cinema que se faz no Brasil hoje, na grande imprensa e na internet?
KLEBER: É uma bela época para ver e descobrir filmes, e isso é a parte mais bela do cinema, seja você um realizador ou um observador, um crítico. A época é boa, pois o cinema é onipresente, em muitos formatos de imagem. É também uma época onde a mídia se tornou um brutamontes, que nivela tudo no cheiro e no nível do lixo, portanto muito importante ter aqueles que abrem bem os olhos e não caem nesse munturo. Bom lembrar também que, assim como médicos, tratoristas e cineastas, há belos críticos, e há também os que são completamente estúpidos.
- Como você enxerga o futuro do cinema diante de tantas transformações tecnológicas em curso – a digitalização, a possibilidade de se assistir a conteúdos audiovisuais em diferentes telas etc. As salas de cinema correm algum risco?
KLEBER: De 1990 para cá, quando fiz meu primeiro “vídeo”, devo ter usado uns 10 formatos diferentes de captação de imagem. E continuo querendo fazer filmes, independente dos formatos. Para além disso, me fascina estar vivendo um momento histórico sensacional. As salas de cinema não correm risco, não.
- Qual é seu próximo projeto?
KLEBER: ‘Bacurau’, um filme de ficção científica.