Em 68 contos, a genialidade delicada de Vladimir Nabokov
Do ponto de vista estritamente literário, “Contos reunidos” (Alfaguara, 832 pgs. R$ 89), de Vladimir Nabokov, é o lançamento editorial mais importante do ano. São 68 contos, originalmente escritos em russo, francês e inglês, entre 1920 e 1951. Muitos deles são traduzidos pela primeira vez no Brasil, e a ordenação cronológica oferece uma visão panorâmica que permite ao leitor acompanhar as mudanças de ênfase, abordagem e estilo do autor. Mas em todos, da sátira política (“Fala-se russo”) à fábula fantástica (“O dragão”), do puro entretenimento (“A visita ao museu”) à exploração psicológica da vida interior (“Signos e símbolos”), o autor oferece retratos brilhantes das relações humanas, em seus aspectos por vezes inconfessáveis ou bizarros, em textos que a todo momento provocam um sorriso de satisfação, mesmo no leitor mais exigente. O livro reafirma Nabokov como um dos escritores mais importantes do século 20, diante de quem a produção ficcional contemporânea parece tímida e minúscula.
Em vida, o autor de “Lolita” publicou em livro 52 contos, reunidos em quatro volumes de 13 (as famosas “dúzias” de Nabokov). Pouco antes de morrer, selecionou mais oito para um quinto volume, que não chegou a ver. Coube a seu filho e tradutor Dmitri, autor do prefácio, fazer a seleção final dos 65 contos (cinco “dúzias”) que constavam na edição americana original dos “Contos reunidos”, aos quais foram acrescentados mais três, à medida que novos originais foram descobertos pelos pesquisadores. Em muitos é possível identificar sementes de tema ou estilo que seriam utilizados posteriormente em romances de Nabokov: é o caso da duplicação dos registros de espaço e tempo do conto “Terra incógnita”, que prenuncia a atmosfera de “Ada” e “Fogo pálido” – para mim seu melhor livro, que pode ser classificado como um romance policial estruturado na forma de análise de um poema, com um enredo invisível sendo costurado pelo jogo sonoro-vocabular da poesia.
Os grandes temas não são tratados diretamente nos contos, mas aparecem como pano de fundo que afeta de forma decisiva a atmosfera e as circunstâncias de vida dos personagens: a nostalgia do país natal, a ascensão do totalitarismo, a desintegração dos laços com o passado, a necessidade de lidar com a perda e com o destino sempre implacável. Amante de enigmas e jogos de linguagem (que representam um desafio bem superado pela competente tradução de José Rubens Siqueira), Nabokov busca de forma obsessiva o vocabulário preciso e funcional, tratando as palavras com a mesma lupa com que estudava suas borboletas. Diferentes tratamentos da realidade e da imaginação interagem em uma prosa inteligente e erudita mas nunca vaidosa, elegante e poética mas nunca exibida. Essa diluição de fronteiras está presente por exemplo, no conto “A Veneziana”. Já “Símbolos e sigos”, no qual um casal de judeus idosos visita o filho com tendências suicidas numa instituição psiquiátrica, merece figurar em qualquer antologia do conto do século 20. Nenhuma palavra é casual, nem uma vírgula é dispensável: Nabokov é profundo mesmo quando aparentemente se limita a descrever um objeto; a cada parágrafo ele coloca em questão as próprias convenções da representação da realidade e os limites da ficção.
Nabokov nasceu em São Petersburgo, em 1899, numa família aristocrática que perdeu todos os seus bens com a Revolução, sendo forçada a fugir da Rússia em 1919, durante a guerra civil. Exilado, estudou literatura em Cambridge, na Inglaterra (onde seu pai foi assassinado em 1922), e viveu em Berlim (1923 a 1937) e Paris (1937-1940, quando escreveu seus primeiros contos, em russo, sob pseudônimo), antes de se radicar nos Estados Unidos, onde lecionou em Stanford, Cornell e Harvard. Seu primeiro livro escrito em inglês foi “A verdadeira vida de Sebastian Knight” (1941), em que já revelava as características que o distinguiriam como um dos maiores estilistas da língua inglesa. Mas foi com “Lolita” (1955), que descreve a paixão de um professor quarentão por sua enteada de 12 anos, que o escritor alcançou o reconhecimento e o sucesso comercial que lhe permitiram largar a atividade acadêmica para se dedicar exclusivamente à literatura. Adaptado para o cinema por Stanley Kubkrick com roteiro do próprio Nabokov, “Lolita” foi acusado de pornográfico e indutor da pedofilia, mas o escândalo não comprometeu os méritos literários do romance. Em 1961, o escritor mudou de país mais uma vez, passando a morar com a mulher Vera e o filho Dmitri em Montreux, na Suíça, até sua morte, em 1977.